Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG) pelos auxílios prestados.
1Desde o surgimento da cidade política, o espaço público na sociedade urbana vem se transformando à medida que a realização da vida e a produção em amplo sentido são influenciadas pelas relações de troca, indo da simples até a mais complexa, na contemporaneidade, incorporando a dinâmica da financeirização e do rentismo. Nesta perspectiva, ocorre a regressão do valor de uso em detrimento de um aprofundamento e disseminação do valor de troca, produzindo impactos significativos na reprodução social, pautando as relações humanas, culminando no controle da reprodução social e na realização da vida pelo consumo.
2Se a cidade tem por natureza ser o locus da produção social e da realização da vida, o recuo do espaço público dentro da estrutura intraurbana afeta a vida nas cidades de maneira geral. Na dimensão do cotidiano, esse recuo pode ser interpretado a partir de uma dialética de produto e condição. Como resultante do interesse/desinteresse de um grupo de agentes que passam a ditar quando, como e onde cada fragmento da cidade se transforma em vetor de investimento público e/ou privado, buscando retirar de determinadas localizações o maior valor possível da renda da terra. De outro modo, como condição da reprodução social que aliena, fragmenta e segrega os indivíduos, produz-se um espaço urbano que privilegia o consumo e a dominação, em detrimento do uso e apropriação, fundamentando uma vida cotidiana esvaziada da natureza humana.
3Este processo é desenvolvido de maneira a ter delineamentos característicos a partir da escala da cidade a ser observada, mas carrega os ditames hegemônicos impostos pelo capital. Para Harvey (2012, p. 74), “a urbanização sempre foi um fenômeno de classe, já que o excedente é extraído de algum lugar e de alguém, enquanto o controle sobre sua distribuição repousa em umas poucas mãos”.
4Ituiutaba, cidade localizada no Triângulo Mineiro, possuía 97.171 habitantes, de acordo com o Censo Demográfico de 2010, sendo que 4.046 destes estavam concentrados em área rural e 93.125 em área urbana (IBGE, 2010), tendo a população de 105.818 pessoas estimada para o ano de 2021 (IBGE, 2021). Ainda de acordo com o IBGE (2007), segundo o estudo Região de Influência das Cidades (REGIC), a cidade de Ituiutaba é elencada como um centro sub-regional B, com zona de influência sobre Santa Vitória (MG), Capinópolis (MG), Ipiaçu (MG), Gurinhatã (MG), Ipiaçu (MG), Cachoeira Dourada (MG) e São Simão (GO) (IBGE, 2018). Para a nova divisão das regiões geográficas, Ituiutaba está inserida na região geográfica intermediária de Uberlândia e é sede de sua região geográfica imediata (figura 1). Portanto, de acordo com seu papel na rede urbana próxima, é acionada para cumprir um papel de destino do capital excedente.
FIGURA 1 - Localização do município de Ituiutaba (MG)
Fonte: IBGE (2018). Organização: Lucas Alves Pereira (2022).
5Para tanto, o investimento na urbanização, pautado em interesses voltados para a acumulação capitalista, incidiu diferencialmente na estrutura intraurbana também em Ituiutaba, gerando uma significativa produção de moradias que visavam atender a uma “demanda” mercadológica, enquanto nos espaços públicos voltados à sociabilidade, devido à sua natureza, pouco ou nada foi produzido.
6Para tanto, alinhamos esta proposta aos questionamentos de Lefebvre (2001), que nos lembra que:
“As necessidades urbanas específicas não seriam necessidades de lugares qualificados, lugares de simultaneidade e de encontro, lugares onde a troca não seria tomada pelo valor de troca, pelo comércio e pelo lucro? A transformação da cotidianidade não faz parte das variáveis estratégicas?” (Lefebvre, 2001, p. 106).
7A partir da problemática empírica, propomos como objetivo identificar elementos que comprovam o recuo do espaço público (puro) na cidade de Ituiutaba, bem como demonstrar os impactos desta transformação na realização da vida dos indivíduos que nela residem.
8Em um primeiro momento, a proposta busca vincular a contradição entre valor de uso e valor de troca à dinâmica do espaço público materialmente estruturado na cidade, onde tomamos como referência a presença ou ausência de praças (áreas verdes urbanas e espaços livres), demonstrando seu recuo nas últimas décadas, sobretudo após as implicações de uma ampla agenda neoliberal, que passa a ser seguida, também, pelas instituições públicas e poderes municipais locais, transformando cada fragmento da cidade em mercadoria. Este processo será demonstrado por meio de mapa e inferências geográficas, evidenciando como esta contradição se desenrola por meio do processo que transformou o espaço público da cidade de Ituiutaba a partir da década de 1960.
9Em um segundo momento, abordando as características marcadas pela individualidade e os afetos que se impõem ao sujeito, serão tratados alguns elementos que compõem a espacialidade da reprodução social, esta, para além das considerações, a partir da reprodução da força de trabalho, mas como instância da realização da vida dos sujeitos. Nestes termos, evidenciaremos o controle territorial por meio da vigilância e seus desdobramentos, a substituição dos espaços públicos por espaços normativos e de consumo em Ituiutaba, indo do público enquanto lugar de uso indeterminado para o público e enquanto lugar de consumo, desempenhando papel contínuo na alienação pelo consumo.
10O espaço público enquanto comum da antiga cidade política passou, ao longo das revoluções urbanas, a se tornar uma gestão burocrática do espaço. No entanto, o conceito de comum ainda é pertinente para pensarmos as relações na cidade a partir da sociabilidade, sobretudo por entender que este espaço é tanto fruto da instituição, quanto dos usos coletivos, tendo por base que o uso do espaço público não o exaure de sua natureza qualitativa ou quantitativa, ocorrendo o uso justaposto ou sobreposto, deste modo, priorizando o valor de uso e indo além da instituição da propriedade jurídica, ainda que do Estado. Devido a isso, acreditamos que, primeiramente, devemos demonstrar estas implicações.
11Por comum, entendemos, a partir de Dardot e Laval (2017), não como um bem, “porque ele não é um objeto ao qual deva tender a vontade, seja para possuí-lo, seja para constituí-lo” (Dardot e Laval, 2017, p. 43), pois, se colocamos o comum na categoria dos bens, “nós nos condenamos, sem muita consciência disso” (Dardot e Laval, 2017, p. 53) a limites impostos pela economia política; ele precisa ser interpretado como produto e meio de uma “co-atividade, e não como copertencimento, copropriedade ou copossessão” (Dardot e Laval, 2017, p. 56).
12Neste sentido, o comum necessita ser pensado para além de instituições, ele carece de uma “práxis instituinte”, onde o agir, a partir da atividade prática, pode produzir um novo sujeito coletivo. Por fim, deve-se estar ciente que o comum como centro da produção social é um campo de disputa até que seja efetivado.
13O comum tradicionalmente estabelecido foi se perdendo, sobretudo, desde a intensificação das relações capitalistas, tornando-se totalmente privado, ou como no público, uma gestão burocrática do espaço nos termos do interesse privado de certos indivíduos, sobretudo nos espaços urbanos dos países de modernidade tardia, de acelerada transição do rural ao urbano, intensivo processo de expansão desordenada da cidade pautada na propriedade privada, culminando na gestão pública a partir da governança neoliberal.
14Para tanto, podemos relacionar o recuo do espaço público material na cidade de Ituiutaba à lógica de submissão do uso à troca, imposto de maneira acelerada por meio do neoliberalismo e da governança, não se configurando como comum, mas que devemos tê-lo no horizonte. Este processo se caracteriza pela acentuação das determinações do valor de troca, materializando a dominação dos espaços, indivíduos e grupos sociais em espaços cada vez mais privados.
- 1 Dardot e Laval (2017) indicam como característica intrínseca do comum sua capacidade de não poder s (...)
15Enquanto a apropriação1 preconiza o uso do espaço pelo corpo, neste sentido, mobilizando também subjetividades, permitindo ao sujeito no espaço uma miríade de possibilidades, o recuo do “público” vai além do espaço materialmente constituído, indo para o âmbito da esfera pública. Assim o privado excede a propriedade individual, sendo considerada como uma esfera particular, ou seja, a fragmentação dos indivíduos, sua individualização e privação, que passa a se apresentar no espaço a partir de determinadas formas que de maneira mais violenta se manifesta no neoliberalismo, onde
“Grande parcela da população vive a cidade como privação, nas dificuldades do ir e vir do trabalho, na dupla jornada dos serviços domésticos e da construção e manutenção da própria moradia, na escassez de divertimento, nas dificuldades de acesso à educação, à saúde, à cultura. Evidencia-se, assim, a expansão da indiferença, que se realiza concretamente da cidade como segregação, desencontro, as vezes trágico, entre os diferentes sujeitos e grupos sociais que compartilham (de maneira segmentada, separada) o espaço da cidade” (Padua, 2017, p. 80).
16A privação ocorre devido à mobilização voluntária ou involuntária, tendo como pano de fundo a dinâmica da urbanização orientada pelo valor de troca diferencial das diversas porções da cidade, possibilidade de aquisição da propriedade da terra e da habitação, que sujeita a uma parcela empobrecida da população residir em localizações cada vez mais distantes dos equipamentos urbanos, que são centralizados à medida que o crescimento da periferia não acompanha em qualidade a produção do espaço urbano da cidade. Esta periferia a que estamos referindo é a de baixo poder aquisitivo e carente das benesses da cidade, porque, de outra forma, pela expansão da cidade, surge uma periferia com poder aquisitivo para se instaurar em seus próprios enclaves autossuficientes. No que tange ao espaço público como um comum, intrinsicamente ligado ao uso, o crescimento urbano se apresenta por meio da escassez, ausência e desigualdade de espaços coletivos vinculados à sociabilidade.
17Como produto de pesquisa anterior, tomando por base o conceito de áreas verdes urbanas (definido a partir das funções sociais, ambientais e estéticas), Pereira (2019) indicou que na cidade de Ituiutaba, das 63 “praças” contidas no mapa oficial da prefeitura municipal, apenas 22 se mostravam como espaços propícios para a sociabilidade, sendo 41 destas áreas apenas espaços livres voltados à circulação, organização do arruamento, residuais ou como reserva institucional (figura 2). As áreas não adequadas ao uso estão intimamente ligadas à periferia, consistindo apenas em resíduos da urbanização pela lei de parcelamento do solo urbano de 1973.
FIGURA 2 – Evolução urbana e distribuição de áreas verdes e espaços livres
Fonte: IBGE (2020); Secretaria Municipal de Planejamento Urbano de Ituiutaba (2021); atividades de campo (2021). Organização: Lucas Alves Pereira (2022).
18As áreas verdes urbanas tendem a se localizar impreterivelmente nos bairros mais antigos da cidade, que acabam por concentrar também a renda, tendo em vista o contexto de formação e desenvolvimento urbano de Ituiutaba, caracterizado por uma população de mais idade e maior rendimento médio e localizada na área central, na medida em que as porções periféricas concentram menor renda, salvo os bairros Drummond e Gerson Baduy, de padrão mais alto, mas que ainda possuem ocupação do solo muito baixa. Este detalhe é emblemático, visto que os bairros carregam o nome das famílias tradicionais da cidade, que investiram o excedente da renda de sua produção rural em incorporações urbanas.
- 2 Ressaltamos que não ocorre a construção de novos espaços. O que vem acontecendo em pequena medida é (...)
- 3 A expansão dos limites da cidade foi muito defendida pelos vereadores em reunião da Câmara, onde fo (...)
19Entendemos que a escala de ação em que atua o capital na contemporaneidade avança sobre os territórios e procura se realizar por processos hegemônicos que se desenrolam no mundo, evidenciando que seus impactos e caraterísticas se mostram de maneira diferenciada em cada lugar. Nesta medida, não podemos cair na armadilha de analisar processos e fenômenos a partir de um modelo determinado de ação e resultado do capital. Para tanto, as ações mais diretas do capital parecem ser pouco percebidas na cidade de Ituiutaba devido à escala de impacto e montante de capital envolvido; porém, a postura de governança que orienta as administrações municipais nos remete a orientações baseadas em um comportamento neoliberal, com forte apelo em austeridade, tolhendo investimentos em equipamentos2 urbanos coletivos como praças, parques e locais de lazer, tendo em vista a pouca expressão que sua externalidade para valorização de localizações que sirvam ao capital imobiliário, ao passo que o perímetro urbano é constantemente aumentado3, abrindo espaços para novos conjuntos e condomínios habitacionais.
20Assim, não ocorre a transmutação de público para privado nas áreas já estabelecidas, ao modo como evidenciam Dardot e Laval (2017) ao indicarem que
“cidades, ruas, praças e transportes públicos são transformados em espaços de comércio e publicidade; o acesso às instituições culturais, aos equipamentos esportivos e aos locais de lazer e descanso torna-se cada vez mais difícil em vista das tarifas cada vez mais elevadas que são cobradas dos usuários-clientes” (Dardot e Laval, 2017, p. 109).
21No caso de Ituiutaba, o que ocorre é o abandono e o desinteresse em desenvolver novos espaços de coletividade que sejam realmente públicos, relegando a função de público a espaços de consumo, mesmo estes definidos por uma centralidade que torna muitas vezes inviável o deslocamento, devido à ineficiência do transporte público local no atual momento.
22Observando a evolução urbana apresentada na figura anterior (figura 2), relacionada às categorias de espaço público citadas, podemos atribuir um corte temporal que nos remete, não por coincidência, à indicação de Harvey (2016), de que a partir de meados da década de 1970 tem início a imposição de um “consenso neoliberal” que exime o Estado de prover direitos sociais até então inalienáveis, deixando para “essas áreas à acumulação de capital privado e à primazia do valor de troca” (Harvey, 2016, p. 33) e que desde então estas
“mudanças desse tipo têm afetado profundamente o envolvimento do Estado na provisão habitacional em boa parte do mundo capitalista – e isso tem implicações específicas para o modo como lidamos com a contradição entre valor de uso e valor de troca” (Harvey, 2016, p. 33).
23O autor nos chama a atenção para a provisão habitacional, que podemos entender tanto por quantidade quanto por qualidade. Este último nos leva a pensar através do “direito à cidade”. Para Lefebvre (2001), a cidade é produzida a partir do trabalho coletivo; então, nada mais justo que ela seja tratada enquanto obra, não como mercadoria, pois a obra é valor de uso, sendo principal o uso da cidade, isto é, das ruas e das praças, dos edifícios e dos momentos. Por sua vez, Harvey (2012) parte do mesmo conceito, dando a ele cunho político e de classe, por compreender que na cidade ocorre, além da captura, o redirecionamento do excedente de capital; neste sentido, o direito à cidade está muito longe da liberdade individual de acesso a recursos urbanos: é o direito de mudar a nós mesmos, pela mudança da cidade, direito de participar da cidade enquanto produtor. A cidade não é simples exterioridade, pelo movimento dialético, da mesma forma que habitamos a cidade, a cidade também nos habita.
24Desta forma, a leitura do comum e do direito à cidade se aproximam, e nos ajudam a dar relevância ao recuo do espaço público materialmente constituído. Segundo Harvey (2012, p. 74), “a questão de que tipo de cidade queremos não pode ser divorciada do tipo de laços sociais, relação com a natureza, estilos de vida, tecnologia e valores estéticos que desejamos”. Assim, o comum surge como meio de chegarmos à cidade que queremos, pois, uma de suas funções é “organizar o social para possibilitar uma deliberação na esfera pública que não seja prisioneira dos interesses de tal ou tal categoria socioprofissional” (Dardot e Laval, 2017, p. 492).
25Estes conceitos nos ajudam a dar relevância ao espaço público, pois, a partir de seu recuo, os indivíduos acabam por serem confinados em seus “mundos privados”, sendo estes mais passíveis de controle, tendo em vista que os afetos que chegam até eles podem ser manipulados por uma estrutura de tecnologia e comunicação capazes de prover uma alienação pelo medo e pelo consumo, o que acaba por criar excrecências patológicas na reprodução social.
26Quanto mais se dissemina o aprofundamento do valor de troca, mais se monopoliza o controle sobre o espaço pela propriedade privada, passando a se produzir também comportamentos vinculados à esfera privada e a consequente individualização. O controle do espaço-tempo dos indivíduos é uma fonte de poder social (Harvey, 2014) e perfaz uma linha tênue na relação da reprodução social, tendo em vista que a imobilização e despossessão total das possibilidades dos indivíduos podem gerar revoltas individuais e coletivas. De outro modo, o afrouxamento do controle faz com o que o capital não se realize de forma ótima, entendendo que a indeterminação pode causar comportamentos desinteressantes à forma de vida produtora de mais valor e de consumo compensatório. Parte deste aspecto é tratada por Harvey (2016, p. 254), quando o autor indica que “permitir tempo livre para que mais indivíduos busquem seus objetivos de realização é terrível para as perspectivas do controle sólido e contínuo do capital sobre o trabalho, tanto no local de trabalho quando no mercado”; mas pensamos que o controle atualmente vai além, incidindo a todos os momentos de realização da vida, mesmo no cotidiano, nas esferas privada e pública, capturando subjetividades individuais e coletivas em favor da fabricação e publicidade de novas mercadorias, aquelas vinculadas, sobretudo ao digital, na qual o capital
“deve expropriar todas as motivações que poderiam fornecer espaço para experiências que não se deixam ler a partir da lógica em operação na esfera econômica (...) nossos corpos perderam a qualidade narrativa, eles são habitados pela violência dos fluxos contínuos codificados pela forma-mercadoria” (Safatle, 2018, p. 136;138).
27No que tange ao espaço público como condição de produção de subjetividades coletivas, com base na reprodução social no cotidiano dos sujeitos nas cidades, procuramos compreender o espaço público devido à sua natureza, como mediador e condição da experiência humana coletiva na urbanidade, lugar do encontro no amplo sentido. Devido a isto, é palco de circulação de afetos, onde a potência dos indivíduos realiza o agir em sociedade, lugar onde o corpo é afetado e afeta, incorporando situações do público no “eu” privado de forma dialética. Portanto, sua transformação, recuo ou supressão produz efeitos sociopsicológicos que podem ser observados em grupos e indivíduos.
28De acordo com Safatle (2018, p. 38), Freud procurou “compreender como esses afetos são produzidos e mobilizados para bloquear o que normalmente chamaríamos de expectativas emancipatórias”. Os afetos políticos que tenderiam a causar o surgimento de novos comportamentos e ideias são bloqueados pelo afeto do medo, que passa a induzir padrões de defesa de outrem. Para tanto, a metáfora da “lógica do condômino” (Dunker, 2015) demonstra muito bem como a modernidade brasileira desenvolveu uma patologia social vinculada ao espaço, sobretudo, induzida pelo medo. Nela, o autor nos apresenta o sintoma de um sofrimento que se manifesta em uma forma especificamente privada da vida, na qual a
“lógica do condomínio tem por premissa justamente excluir o que está fora de seus muros; portanto, no fundo, não há nada para pensar na tensão entre esse local murado e seu exterior. Também não há muito a pensar na tensão intramuros, uma vez que, como observamos, a única área de real convivência pública é o playground. O espaço já é concebido e vivido como falso universal” (Dunker, 2015, p. 52-53).
- 4 “O neoliberalismo não é apenas um modo de regulação dos sistemas de trocas econômicas baseado na ma (...)
29É como se o conforto e a segurança estivessem em um lugar isolado, uma ilha, e neste lugar, uma espécie de síndico, um gestor, por meio da governança, atendesse às demandas específicas, favorecendo certos grupos apenas no cumprimento da lei, “lavando suas mãos”, pois, na contemporaneidade, a violência é acionada para resguardar pontualmente os interesses do modo de vida neoliberal4. O muro, como fronteira, protege o condomínio, e, segundo Dunker (2015), é uma estrutura que determina um território e sua defesa, “que gira em torno das diferentes maneiras como a indeterminação, gerada pelo desejo, pela angústia, pelo trauma e pela pulsão, podendo ser concernida em estrutura de determinação”. Este limite simbólico na forma de muro é edificado, em grande medida, pela imposição de um medo constante. Portanto,
“a melhor expressão do sofrimento de indeterminação é a chamada “cultura da insegurança” ou “cultura da administração de riscos”. Reencontramos aqui esse modo de subjetivação que chamei de lógica do condomínio, ou seja, a estratégia baseada em privatização do espaço, seguida da hipernormatização de seu funcionamento e do incremento de políticas de identidade baseadas na conformação do gozo” (Dunker, 2015, p. 226).
30Como elemento fundamental do sintoma deste sofrimento, o muro protege de um horizonte de expectativas, portanto, “podemos dizer que o medo é essa forma de angústia que encontrou um objeto, no sentido de reação ao perigo produzido por um objeto possível de ser representado” (Safatle, 2015, p. 51), esse sendo a morte social, a possibilidade de insatisfação, aquilo que atrapalharia a produção de um capital cultural que permitisse a ilusória noção de realização e do outrem como alienígena.
31Se a metáfora do muro nos demonstra o efeito sociopsicológico baseado em uma espacialidade privada do indivíduo, a cidade enquanto produção social materializa nas formas determinados conteúdos da metáfora do condomínio. Além do “muro” como elemento fundamental de separação, desempenhando papel semelhante, indicamos a arquitetura hostil, que exclui o indivíduo de ordem próxima, inviabiliza a estadia em locais públicos, principalmente em ruas, daqueles que, em certa medida, raramente necessitam sair de seu condomínio para o mundo real. A vigilância realizada pelas câmeras de segurança em lugares públicos, instaladas tanto pelos órgãos públicos, quanto pela população, que procura na vigilância os meios de se proteger do “invasor”, constitui uma ideia de ordem sobre o acontecer cotidiano. Por fim, o controle que se manifesta por uma estrutura opressora que reúne separação, exclusão e vigilância e fundamenta ações coercitivas àqueles que, de forma premeditada ou não, transgridam o contrato imposto e saiam de seus lugares, dentro da lógica do capital. Neste sentido, o que se manifesta sobremaneira nas cidades contemporâneas é um híbrido de público-privado de controle ativo e constante. Espaços privatizados, sob gestão privada ou uma gestão burocrática do Estado, têm se tornado cada vez mais corriqueiros, e esse modelo passou a ser considerado solução para cidades “limpas e seguras”, mediante a construção de grandes espaços “sanitizados” (Firmino, 2018, p. 80).
32O controle, como admitimos anteriormente, pode ser realizado pela falta de espaços para a sociabilidade; deste modo, a dominação ocorre pela supressão das possibilidades de contato, ressalvando (ainda) o contato virtual pelo meio da esfera pública digital. Se o controle dos de baixo se faz por meio dos instrumentos de vigilância, sobre os emuralhados recai, além do isolamento, a vigilância por meio de um controle da vida através do comportamento empresarial, a partir da gestão dos afetos. As condutas são medidas por uma econometria que busca maximizar um certo capital cultural e emocional por meio de uma intensificação desmedida do desejo ao valor de troca (Safatle, 2015), onde o consumo ocupa sobremaneira o desejo e a satisfação. A utilidade dos produtos é suplantada pelo desejo; neste sentido, cria-se a insatisfação imanente. Os que podem consumir nunca estarão satisfeitos, pois o mundo das mercadorias é “infinito”, enquanto àqueles que não possuem condições de consumo buscarão alternativas que subvertam a lógica, enfrentando constantemente a coerção que os inibe e pune.
“É nesse campo que a destruição criativa do capital manifesta seu aspecto mais traiçoeiro, promovendo um consumismo alienado e formas individualistas de vida que conduzem a nada menos do que uma cobiça egoísta, grosseira e competitiva, ao mesmo tempo que atribui a suas vítimas a responsabilidade pela situação difícil em que se encontram quando não conseguem (como é inevitável) construir seu capital pretensamente humano” (Harvey, 2016, p. 181).
33Todo espaço de representação dos que vêm “de baixo” é insurgente e promovido pela inexistência, insuficiência e escassez. Portanto, se historicamente a contradição da reprodução social se inicia pautada nos recursos necessários para a reprodução da força de trabalho, atualmente, se manifesta também como maneira de realização da vida, sobretudo no cotidiano nas cidades, produzindo a desigualdade nas e das condições de realização da vida, promovendo um cotidiano segmentado pelos entraves do valor de troca no urbano.
34O controle territorial urbano na cidade de Ituiutaba segue impreterivelmente o elucidado, o recuo do espaço público promove na periferia o esvaziamento de parte do conteúdo da produção social da cidade, despossuindo os indivíduos de sua possibilidade de sociabilidade, salvo raras exceções, em que transgressões se realizem na emergência de práticas não negadas pela própria população a partir do discurso: “na minha porta, não”. Portanto, a própria população participa do controle, por meio de uma autovigilância.
35Nesta cidade, devido ao seu porte e formação, ainda não se apresenta a estruturação de parques, praças e outros objetos que possam servir ao capital por meio da monumentalidade e seu emprego como forma de atração turística, atendendo a uma demanda de grife do empreendedorismo urbano. Os parques que encontramos (figura 3) são da ordem do projeto e do descaso. O primeiro, o Centro Turístico Camilo Chaves Neto, fruto de obra mal planejada, que se encontra em total desuso e deterioração, área esvaziada que se torna condição de novas territorialidades vinculadas a usos ilícitos; o segundo se apresenta como descaso, o Parque Municipal do Goiabal, que até meados da década de 1990, figurava como destino de diversos indivíduos e atualmente se encontra sem condições de uso e fechado, devido, principalmente, a questões estruturais e de gestão.
FIGURA 3 - Centro Turístico Camilo Chaves Neto e Parque Municipal do Goiabal em Ituiutaba (MG)
Fonte: IBGE (2020); Google Earth Pro (2021). Organização: Lucas Alves Pereira (2022).
- 5 Uma análise sobre as transformações ocorridas nesta praça tem aprofundamento em Pereira e Loboda (2 (...)
36Das áreas verdes urbanas e espaços livres, destacamos, a título de exemplo, a Praça Senador Moreira da Gama5 e a Praça Rui Barbosa (figura 4), ambas ocupando posição periférica. Para tanto, enfatizamos as transformações ocorridas nestes locais, levando em consideração não apenas a transformação de sua paisagem, mas de seus usos, que foram modificados ou extintos.
FIGURA 4 – Senador Moreira da Gama e Praça Rui Barbosa em Ituiutaba
Fonte: Google Earth Pro; atividades de campo. Organização: Lucas Alves Pereira (2022).
37Vemos este movimento a partir da ressignificação do espaço público, transcendendo a escala da metrópole, onde ocorre com maior magnitude, devido a uma maior intensificação de processos sociais, tomando também lugar nas pequenas, intermediárias e médias cidades. A transição de um espaço público que preconiza a contingência, a impessoalidade e a mobilidade irrestrita para um espaço púbico controlado e normativo tangencia um caminho orientado pela reprodução social como reprodução do capital na cidade contemporânea.
38No primeiro caso, as mudanças na estrutura interna tornaram o lugar impossibilitado de acesso e uso (atualmente, toda a extensão se encontra cercada) para além das instituições normativas que ali se encontram, como igreja, escola e unidade básica de saúde e creche em construção. No segundo caso, mesmo sem infraestrutura, o local apresentava um “campinho” improvisado de futebol, marcado pelo uso. Em um segundo momento, foi finalizada a construção de um centro de atendimento especializado para adolescentes (CONVIVER), com objetivo de receber menores que cometeram crimes, para o cumprimento de medidas socioeducativas.
39É importante deixar claro que não pautamos nossa crítica à construção de prédios institucionais que visem assistir à sociedade, mas sim à seletividade das localizações. No primeiro caso, em um entorno próximo (150 metros) se encontra um espaço livre de edificação como reserva urbana institucional, e, no segundo, a instituição não teria necessariamente de ser alocada no local, sabendo que sua demanda não ocorre especificamente no entorno, que demonstrava pelos indícios de uso, necessitaria de outro tipo de equipamento urbano, como lugar de práticas recreativas e esportivas.
40Os exemplos demonstrados podem se mostrar de pequena ordem, mas, ainda assim, são representativos. Portanto, se a cidade é cada vez mais meio do valor de troca, seus espaços passam a ser privatizados e/ou normatizados, inviabilizando práticas vinculadas à sociabilidade, que acaba por ser despossuída, indicando um caminho ao consumo compensatório. Com a ausência do espaço puramente público, a criação de novas formas públicas (controladas) essencialmente ligadas ao consumo e a intensificação da publicidade, o grupo que ocupa menor ou nenhum estrato de renda, não possui meios de viver a cidade, surgindo, assim, a insatisfação pela impossibilidade de consumir da cidade.
41As recentes centralidades vinculadas ao consumo, não há muito tempo foram estabelecidas em Ituiutaba. Localizado no núcleo central, o pequeno shopping Pátio Cidade, além de dispor de franquias de gênero alimentício fastfood, lojas diversas e cinema, atrai pelo discurso do novo e pela segurança, como um pequeno oásis entravado em um núcleo central pouco dinâmico. Por outro lado, dois supermercados, além dos serviços convencionais, possuem também uma espécie de centro comercial diverso, localizados mais à periferia, porém, com interesse em se situarem próximos à entrada da cidade, tendo em vista a captura de consumidores das cidades circunvizinhas.
42O termo “consumir da cidade” nos remete à ideia de cidade enquanto exterioridade, neste sentido, desvinculando pessoas e a constituição do lugar a partir da capacidade de consumo. Para tal, tanto indivíduos quanto lugares se alienam em favor do capital. O consumo deveria aqui ser substituído pelo uso, considerando que ele não exaure a cidade em quantidade e qualidade a partir da apropriação.
43 Segundo Harvey (2016, p. 255-256), “a vida cotidiana na cidade, as formas estabelecidas de vida, de relação e de socialização são sucessivamente desfeitas para dar passagem a última moda ou tendência”. No entanto, o autor encaminha este processo para escalas de maior intervenção do capital, mas podemos interpretá-lo também como incorporação do mercado e do consumo na paisagem e estrutura intraurbana. Neste sentido, podemos, com certa clareza, verificar que recentemente, sobretudo na última década, a cidade de Ituiutaba recebeu expressivo (devido ao impacto para sua escala) acréscimo de lugares públicos essencialmente voltados para o consumo.
44 Harvey (2016, p. 256) indica ainda que o capital reestrutura a cidade contemporânea de acordo com seus interesses, “apesar da resistência das pessoas, que se sentem totalmente alienadas dos processos que não só remodelam o ambiente em que vivem, mas também redefinem o tipo de pessoa que elas devem se tornar para sobreviver”. No entanto, retomamos à escala da cidade para melhor argumentar como ocorre esta resistência. Em Ituiutaba, ela não parece ser ativa, como manifestação violenta, mas ainda assim, impacta, ocorrendo na medida em que, durante a elaboração do Plano Diretor em 2017, em uma das consultas públicas, surgiu uma solicitação mais enérgica: uma representante dos bairros Nova Ituiutaba I, II, III e IV se manifestou, demandando de forma veemente que a “cidade” chegasse até eles, solicitando não lugares de consumo, mas de sociabilidade, nos dando uma pequena, mas significativa medida dos conflitos que se manifestam a partir da contradição entre desenvolvimento e crescimento urbano.
45 O espaço urbano produzido a partir da lógica capitalista contemporânea, sobretudo seguindo direcionamentos neoliberais, aprofunda sobremaneira a captura de renda em todos os momentos da reprodução social, transformando o valor de uso em valor de troca, passando a abarcar, inclusive, o espaço público a partir de sua supressão e/ou conformação de um novo espaço público voltado ao consumo. Em Ituiutaba, é perceptível essa mudança, quando evidenciamos que majoritariamente que a construção de novos espaços públicos na forma de praças e espaços livres esteve paralisada desde as décadas de 1970 e 1980, tornando-os centralizados devido à expansão urbana. De outra forma, uma estrutura de consumo, ainda que incipiente, já se apresenta, nos dando a perspectiva de um desequilíbrio, tendo em vista o recuo do espaço público comum e o desenvolvimento de um espaço público de consumo.
46Enquanto o aspecto anterior pode ser considerado um produto da produção capitalista do espaço urbano, o espaço público surge como meio e condição tanto da reprodução social quanto do controle social, neste aspecto, sendo estratégico. À medida que se perde espaço público, menos sociabilidade, menor comunicação e uma maior individualização que aliena os indivíduos, na medida que cada vez mais ocorre o fechamento em seus próprios mundos privados e o consumo como desejo e tentativa de satisfação. Neste ponto, o medo, enquanto afeto político, é fundamental para a individualização e controle.
47O medo surge ainda como orientador das ações de controle no espaço público que foge à supressão, tornando-se residual, passa a ser o campo da vigilância realizada por todo um aparato tecnológico que procura impor a ordem sobre os usos e os fluxos; para tanto, o espaço público torna-se regido por um conjunto de normas impostas, tanto pelo Estado quanto pela população, que age pela imposição do medo.
48Portanto, dois conceitos são aqui fundamentais, como forma de orientar novas perspectivas de ação e resistência. O primeiro relacionado à busca da retomada do “comum”, para o espaço público urbano. O comum, como forma de garantia de lugares propícios vinculados à realização da vida em seu amplo sentido, voltados para lazer, recreação, contemplação, um verdadeiro espaço aberto, devendo ser preenchido com um conteúdo social coletivo. O segundo, o “medo” que passa a impor uma forma de agir característica, mas, que ao extremo, junto com a despossessão total, que inicia pela renda e culmina nos direitos e identidades, pode proporcionar novas formas de resistência e demandas.
49A partir do que foi exposto, se o processo de recuo do espaço público na cidade de Ituiutaba ainda não traz consequências mais drásticas, em seu fundamento, já podemos notar nuances de um processo que ocupa cada vez mais as cidades. Uma imbricação entre a despossessão material da cidade enquanto lugar de uso e a despossessão subjetiva também da cidade pelo medo e a satisfação pautada apenas no consumo e não no uso.