- 1 Este texto científico é realizado com apoio e financiamento de uma bolsa de pós-doutorado do Consel (...)
1O fazer ciência é criar novas possibilidades de transformação da realidade pela construção de práticas e caminhos para (re)pensar o mundo: práxis, (re)flexão e ação1.
Así, el aparente vacío en la relación entre la teoría y la práctica se resuelve permanencia depende de la medida en que pueda adecuarse y transformarse, es decir en la de ser producto y productor de una nueva realidad, transformada a partir de la acción consciente de los actores (Cortez, 2014, p. 16).
2Em relação a Amazônia Legal – “território da governança”, “palco” das políticas públicas no(s) discurso(s) hegemônico(s) –, a fábula do vazio demográfico é trazida à baila pelo Estado, na qual a concepção é fundamentada em uma externalidade da natureza em relação à sociedade, como se a natureza estivesse ali esperando para ser desbravada. Essa frente discursiva se empolgou com uma visão sobre a região pautada no contraste entre beleza e abundância, considerando-a como Natureza, como Floresta, como Atrasada, como Reserva de Recursos, como o Futuro do Brasil (Porto-Gonçalves, 2017; Mello-Thery, 2011; Becker, 2005).
3Passadas três décadas, um dos maiores problemas da Amazônia Legal cristaliza-se no caos fundiário que comparece como gravidade social desde a década de 1970, decorrente da ocupação agrário-territorial desordenada. Os conflitos no campo surgem, dentre outros motivos, pela emblemática questão agrária brasileira, sendo um processo inerente da luta pela terra na Amazônia Legal: afinal, quem é o dono da terra? Nessa geografia social, de um lado estão os camponeses, os indígenas, as comunidades tradicionais amazônicas, os quilombolas e, do outro, encontram-se os grileiros, os fazendeiros, as empresas agropecuárias, os madeireiros, os mineradores e, mais recentemente, as empresas associadas ao capital internacional que disputam a apropriação privada dos recursos naturais da Amazônia (Ribeiro; Costa Silva; Lisboa, 2016).
4Neste panorama, o presente texto objetiva analisar o Projeto Regulariza Amazônia de cooperação bilateral Brasil-União Europeia e sua interface com a governança fundiária. A intencionalidade é desvelar os desdobramentos que as expectativas e os limites de um programa bilateral com vistas à gestão do território na Amazônia brasileira, com enfoque estratégico na regularização fundiária em terras públicas devolutas pertencentes à União.
5Em seu estudo sobre as transformações territoriais do então Território Federal de Rondônia, Hervé Théry já indicara, a partir dos trabalhos de campo realizados em 1974, que um dos problemas estruturais da malha fundiária da Amazônia residia na situação jurídica das propriedades rurais (Théry, 2012).
6Hodiernamente, a situação fundiária da Amazônia é a seguinte: dos seus 501.600.000 hectares, 120 milhões são de terras públicas e, deste montante, 63 milhões são de terras destinadas e 57 milhões de hectares a destinar (gráfico 1). Essas áreas são correspondentes a terras sob a jurisdição da União, ocupadas informalmente por agricultores e sem o precedente do título de propriedade.
Gráfico 1 – Discriminação da terra (áreas em milhões de hectares) na Amazônia Legal.
Elaborado por: Alysson Fernando Alves Ribeiro. Fonte: Brasil (2019).
7O Projeto Regulariza Amazônia (figura 1) é uma cooperação entre o Incra e a União Europeia. Seu escopo institucional é fornecer apoio à Política de Regularização Fundiária na Amazônia (PNRF), nos estados do Amazonas, Pará, Mato Grosso e Amapá. No Brasil, o projeto teve início em 2017 e é conduzido pelo Incra, tendo duração de quatro anos, renovada para mais quatro anos.
Figura 1 – Projeto Regulariza Amazônia: cooperação bilateral Brasil-União Europeia
Fonte: INCRA (2020)
8O Projeto “Regulariza Amazônia” é financiado pela União Europeia. Essa colaboração entre o Governo brasileiro e a União Europeia visa auxiliar à regularização de terras públicas devolutas pertencentes à União, nos estados selecionados da Amazônia Legal. Sendo assim, coloca em prática um plano de diretrizes operacionais de assistência no tocante ao (re)ordenamento fundiário territorial da Amazônia.
9O Projeto Regulariza Amazônia é financiado pela União Europeia. Essa colaboração entre o Governo brasileiro e a União Europeia visa auxiliar à regularização de terras públicas devolutas pertencentes à União, nos estados selecionados da Amazônia Legal. Sendo assim, coloca em prática um plano de diretrizes operacionais de assistência no tocante ao (re)ordenamento fundiário territorial da Amazônia.
10A regularização fundiária, como mecanismo jurídico de governança para o reordenamento territorial, configura-se uma dimensão instrumental/institucional de gestão da terra pública. Seus aspectos básicos jurídicos e institucionais são: cumprimento da função social da propriedade, realização de georreferenciamento do imóvel, ocupação mansa e pacífica, e não titulação de proprietários de outros imóveis rurais.
A governança é um conceito que compreende complexos mecanismos, processos e instituições por meio dos quais os cidadãos e os grupos articulam seus interesses e exercem seus direitos e obrigações legais. Por extensão, a governança da terra compreende normas, processos e organizações mediante os quais se adotam decisões relativas ao uso e ao controle da terra, à tomada de decisões e à forma como se administram interesses contrapostos relativos à terra. O conceito de governança abarca tanto os marcos jurídicos e normativos sobre a terra como as práticas tradicionais e informais que contam com legitimidade social (Reydon; Plata, 2017, p. 24).
11O projeto promove um intercâmbio nacional e internacional ao se estruturar no lastro conceitual da política pública de governança da terra, elencando como objetivo geral: “contribuir para aperfeiçoar o processo de gestão fundiária, em nível federal e estadual, na Amazônia Legal” (INCRA, 2021a, p.9). Já o objetivo específico do Projeto Regulariza Amazônia é aprimorar e acelerar o processo de destinação e regularização fundiária de terras públicas no âmbito do Programa Terra Legal em quatro estados: Pará, Mato Grosso, Amazonas e Amapá (INCRA, 2020).
- 2 Com a extinção da SERFAL – com base na Medida Provisória nº 870, de 01 de janeiro de 2019 –, a Lei (...)
12A Política de Regularização Fundiária da Amazônia (PRFA), também chamada de Programa Terra Legal, consubstanciada pela Lei Federal nº 11.952/2009, é coordenada por meio da Secretaria Extraordinária de Regularização Fundiária na Amazônia Legal (SERFAL)2. O programa tem por objetivo regularizar posses em terras da União (glebas federais) ocupadas por posseiros dos nove estados da Amazônia Legal que possuam posses até o limite de 2.500 hectares (BRASIL, 2009). Para regularizar a posse, o Programa Terra Legal Amazônia, em tese, trabalha com as etapas de georreferenciamento, requerimento, cadastro e titulação (Brasil, 2019).
Organograma 1 – Etapas da Política de Regularização Fundiária da Amazônia (PRFA)
Elaboração: autor. Fonte: Brasil (2019).
13Com o intento de auxiliar no processo de destinação e regularização de terras da União no âmbito da Política de Regularização Fundiária da Amazônia (PRFA), o Regulariza Amazônia está dividido em quatro componentes (INCRA, 2021b):
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Fortalecer a regularização fundiária por meio de aprimoramento de metodologias e da aplicação de inovações na gestão de terras;
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Promover o acesso da agricultura familiar a políticas públicas para o desenvolvimento sustentável;
-
Sistematizar e disseminar a metodologia de regularização fundiária; e,
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Desenvolver mecanismos de gestão de terras entre as esferas estaduais e federais de apoio para o processo de regularização de terras.
14O Projeto Regulariza Amazônia é de responsabilidade de um consórcio formado por três instituições, de acordo com o Instituto Brasileiro de Colonização e Reforma Agrária (INCRA, 2021, p.12):
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GFA Consulting Group, uma empresa de consultoria alemã com sede na cidade de Hamburgo. A empresa atua desde 1982 e já implementou projetos e estudos em mais de 130 países para agências de desenvolvimento, líderes, ministérios e clientes públicos (INCRA, 2020);
-
Instituto Internacional para a Educação do Brasil (IEB), uma instituição brasileira do terceiro setor dedicada a formar e capacitar pessoas, bem como fortalecer organizações nas áreas de manejo dos recursos naturais, gestão ambiental e territorial e outros temas relacionados à sustentabilidade (INCRA, 2020); e,
-
Dr. Schindler Geo Consult International GmbH & Co, uma empresa de administração de terras, gestão de terras, levantamento topográfico e Sistemas de Informação Geográfica (SIG) (INCRA, 2020).
Figura 2 – Consórcio Projeto Regulariza Amazônia
Elaboração: autor; Fonte: INCRA (2021b).
15Segundo os termos de referência do Projeto Regulariza Amazônia, essa cooperação no âmbito do (re)ordenamento fundiário do território apresenta os seguintes componentes operacionais (INCRA, 2020):
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Metodologias aperfeiçoadas e inovações aplicadas à gestão fundiária;
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Acesso de produtores da agricultura familiar a políticas públicas para o desenvolvimento sustentável promovido;
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Metodologia da regularização fundiária sistematizada e disseminada; e,
-
Desenvolvimento de mecanismos de governança entre as esferas federal e estadual em apoio ao processo de regularização fundiária.
- 3 A GIZ – Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (Agência Alemã de Cooperação Intern (...)
16O projeto foi idealizado para aprimorar e acelerar o processo de regularização fundiária de terras públicas no âmbito do Programa Terra Legal. Para concretizar esse intento, ele apresenta uma estrutura organizacional que busca fornecer suporte e monitoramento da regularização fundiária, sendo composta por: Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ)3, comitê internacional, articulação entre o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), delegação europeia e consórcio.
Organograma 2 – Estrutura Organizacional do Projeto Regulariza Amazônia
Elaboração: autor. Fonte: Incra (2020).
17Este projeto bilateral Brasil-União Europeia, na esfera de atuação do Programa Terra Legal, no discurso e nos instrumentos normativos, promove uma parceria internacional na esfera de atuação da governança da terra ao colocar em prática mecanismos para “agilizar” e “modernizar” o acervo fundiário da Amazônia Legal.
18A delegação da União Europeia no Brasil, no âmbito da governança da terra, lançou editais para contratação de consultorias de curto prazo no contexto do projeto de apoio à Política de Regularização Fundiária nos estados do Amazonas, Pará, Mato Grosso e Amapá.
19No ano de 2013, a Política de Regularização Fundiária da Amazônia (PRFA), no seio do Programa Terra Legal, com o intuito de automatizar o processo de regularização fundiária, foi desenvolvido a partir de um novo Sistema de Gestão Fundiária: o SIGEF (figura 3). Com esse sistema, o processo de certificação de propriedades no Brasil foi automatizado, o que elimina a análise humana sobre o processo e, se aprovado, emite a certificação automaticamente. Além disso, é possível o acompanhamento, em tempo real, do processo de regularização fundiária, fornecendo, então, dados públicos da tramitação da regularização fundiária das terras federais na Amazônia Legal.
Figura 3 – Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF)
Fonte: Incra (2013).
20O Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF) é uma ferramenta eletrônica desenvolvida pelo Incra e pelo extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) para subsidiar a governança fundiária do território nacional. Por ele são efetuadas a recepção, validação, organização, regularização e disponibilização das informações georreferenciadas de limites de imóveis rurais, públicos e privados. O sistema é automatizado mediante um encadeamento de eixos e ações (figura 4), com trâmite processual todo digital, tendo por objetivo a expedição de títulos fundiários por certificação automatizada (e-certifica).
Figura 4 – Eixos e ações do Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF)
Fonte: InCRA (2013).
21Segundo o Incra (2013), o SIGEF possui como objetivos principais: automatizar e desburocratizar o processo de certificação; assegurar transparência e impessoalidade; garantir segurança ao fluxo processual; construir uma estrutura segura de Banco de Dados Georreferenciados; permitir a interconexão com o registro de imóveis; e, disponibilizar plantas e memoriais descritivos de forma automática e com verificação de autenticidade on-line.
22O SIGEF apresenta quatros componentes: SIGEF-GEO; SIGEF-Acervo; SIGEF-Titulação; e, SIGEF-Financeiro (Incra, 2021b). O propósito do SIGEF-Titulação é informatizar todo o processo de expedição do título de terra da área a ser regularizada, desde o requerimento até a análise, instrução e tramitação dos processos de expedição do Título de Domínio (TD) e Concessão de Direito Real de Uso (CDRU).
23Neste campo de ação, o Projeto Regulariza Amazônia apoia o diagnóstico dos documentos a serem digitalizados nas unidades do Incra nos estados do Amapá, Amazonas, Pará e Mato Grosso. Além desta alçada, o Governo da Alemanha apoia a digitalização e o aprimoramento do acervo dos processos de regularização fundiária na unidade do Incra na cidade de Ji-Paraná, no Estado de Rondônia.
24No âmbito da digitalização dos documentos integrantes do processo de regularização fundiária, foi realizada, também, uma divisão do acervo em módulos fundiários de uso estratégico: destinação para órgãos públicos, destinação urbana e regularização fundiária de ocupações rurais (INCRA, 2021b).
- 4 O Serpro é a maior e mais importante estatal de tecnologia do Brasil, administrando o maior banco d (...)
25A consultoria para a digitalização do acervo fundiário buscava garantir a transferência do Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF-Titulação) para o SERPRO4/Incra. Este plano estratégico de ação na modernização e ampliação do Sistema de Gestão Fundiária obteve como resultado os seguintes produtos (INCRA, 2021b).
Quadro 1 – Relação de produtos: suporte técnico ao Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF).
Produto 1
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Plano de Trabalho para o desenvolvimento das atividades necessárias à internalização do Sigef-Titulação ao Incra/Serpro, contendo cronograma detalhado de repasse ou transferência de conhecimento.
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Produto 2
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Consultorias de repasse ou transferência de conhecimento ao Incra/Serpro.
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Produto 3
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Seis relatórios parciais (semanais) com os resultados das reuniões de atividades para a internalização do Sigef-Titulação ao Incra/Serpro.
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Produto 4
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Validação das bases de dados consultadas pelo SIGEF-Titulação e auxílio e monitoramento do ambiente de produção do sistema.
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Produto 5
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Documentação técnica do acervo do SIGEF: arquitetura; modelo de dados; procedimentos de execução periódica.
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Produto 6
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Relatório final com os resultados do escopo do objeto do Termo de Referência com as atividades para a internalização do Sigef-Titulação ao Incra/Serpro.
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Produto 7
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Workshop de apresentação dos resultados da entrega das três consultorias SIGEF (SIGEF-GEO, SIGEF-Acervo e SIGEF-Titulação).
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Elaborado por: Alysson Fernando Alves Ribeiro. Fonte: Incra (2021b).
26O Projeto Regulariza Amazônia, a pedido do Incra, com financiamento e cooperação da União Europeia, realizou consultoria com o objetivo de apoiar a gestão fundiária mediante ferramentas de Tecnologias da Informação (TI), tendo como foco principal o Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF). A consultoria tinha por intuito central, no âmbito da assessoria de governança da terra, fortalecer a capacidade de planejamento operacional do Painel de Inteligência Territorial (PIT) do Incra, com implementação de novas tecnologias da informação ao módulo de glebas (INCRA, 2021c).
27Este aprimoramento tecnológico do PIT-Incra abrangia, também, além do auxílio à gestão da regularização fundiária em terras públicas da União ocupadas por agricultores, o aprimoramento do módulo de reforma agrária do painel de inteligência territorial do INCRA, que, eventualmente, poderia ser aplicado ao módulo de assentamentos (INCRA, 2021c).
28Essa atualização e adaptação do PIT-Incra no auxílio à governança fundiária na Amazônia Legal, e seu intento normativo de monitoramento das cláusulas resolutivas na esfera ambiental, contêm o cruzamento de dados do SIGEF com o Cadastro Ambiental Rural (CAR), junção esta que contará com gráficos, filtros, relatórios e mapas, além de busca por CPF. Ainda, consoante o Incra (2021c), os objetivos operacionais desse cruzamento de dados entre o SIGEF-CAR, na esfera do PIT-Incra, e o Plano de Monitoramento das Glebas Públicas Federais são identificar se o detentor pesquisado faz parte da regularização fundiária ou da reforma agrária.
Quadro 2 – Relação de produtos: atualização do Painel de Inteligência Territorial (PIT) – Incra.
Produto 1
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Plano de monitoramento das cláusulas resolutivas, incluindo as cláusulas resolutivas anteriores à vigência da Lei nº 11.952/2009.
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Produto 2
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Plano de monitoramento do processo de regularização.
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Produto 3
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Plano de monitoramento das Glebas Públicas Federais.
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Elaborado por: Alysson Fernando Alves Ribeiro. Fonte: Incra (2021b).
29A Política de Regularização Fundiária na Amazônia (PNRF), com base no motivo jurídico institucional da Lei Federal nº 11.952/2009, estabelece os procedimentos para determinar a validação do Título de Domínio (TD) e da Concessão de Direito Real de Uso (CDRU). Para concretizar tal objetivo, analisa se as cláusulas resolutivas ambientais (relacionadas à averbação de reserva legal) e se as cláusulas resolutivas de inalienabilidade (a transferência para terceiros) foram cumpridas (BRASIL, 2009).
30Esse aspecto de acompanhamento das cláusulas resolutivas – exigências para a validação do título de terra expedido – é fundamental para a eficiência do propósito ao qual se destina a política de regularização fundiária: a segurança jurídica. Estudos desenvolvidos por Ribeiro (2020; 2016) apontam que a Amazônia apresenta um fatídico problema em sua estrutura fundiária determinado por inúmeros litígios agrários.
O Incra tem um longo legado de produção e organização de dados geoespaciais de grande relevância para a análise fundiária do território brasileiro. Essas informações geoespaciais são resultantes de uma integração entre os dados do INCRA (propriedades já georreferenciadas) e do CAR (polígonos cadastrados).
O banco de dados do Incra é composto de informações sobre: dominialidade de áreas públicas ou privadas; certificação de imóveis rurais; alienação de terras públicas (regularização fundiária); criação e destinação de assentamento de Reforma Agrária; e, reconhecimento e homologação de territórios quilombolas. Essas informações são organizadas em quadros e tabelas, vetorizados em gráficos e cartesianamente em forma de mapas e cartogramas, com informações da estrutura fundiária brasileira.
A cooperação bilateral Incra-União Europeia realizou consultorias visando aprimorar o banco de dados geoespaciais do Incra. O plano de trabalho da consultoria buscou estruturar a plataforma de manutenção do banco de dados geoespaciais do Incra com o intuito de tornar mais rápidos e eficientes a coleta e o processamento de dados referentes à regularização fundiária na Amazônia brasileira.
A consultoria incluirá reuniões com a equipe técnica indicada pelo INCRA. Incluirá ainda repasses técnicos de configuração do Sistema; Código Fonte, quando couber; Arquitetura; Modelo de Dados; Procedimentos de execução periódica. Outras atividades possivelmente demandadas durante a consultoria são auxílio no entendimento dos ajustes, correções e manutenções evolutivas e adaptativas que o sistema necessita; acompanhamento, orientação e realização de intervenções de recomendações técnicas durante o processo de migração e internalização do sistema no ambiente do INCRA; realização de testes e validação das funcionalidades do sistema durante o período de homologação do sistema no processo de migração para o ambiente INCRA; acompanhamento da implantação do sistema; e fornecimento de documentação necessária para instalação do sistema (INCRA, 2021d, p. 9).
O objetivo foi proporcionar a modernização e a ampliação da coleta e dos processamentos de dados do Incra em referência à regularização fundiária, criação de assentamentos e reconhecimento de territórios quilombolas. O objetivo específico, por sua vez, é aprimorar a plataforma gerenciadora de dados geoespaciais, permitindo (Incra, 2021d):
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Simplificação da atualização, com acesso direto aos dados pertinentes a cada contribuidor;
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Aumento da segurança e do controle, com usuários para sede e superintendências e manutenção de dados históricos;
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Criação de modelo de dados unificado, acessível e mais flexível; e,
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Flexibilidade e robustez para publicação de dados.
Quadro 3 – Relação de produtos: manutenção de banco de dados geoespaciais do Incra.
Produto 1
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Plano de Trabalho para o desenvolvimento das atividades, contendo cronograma detalhado de repasse ou transferência de conhecimento. Integração de ferramentas de edição com GeoServer / GeoNode.
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Produto 2
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Aplicações de ferramentas para edição de dados geoespaciais. Scripts para migração de dados (ETL e documentos) e otimização para banco de dados com respectivo relatório de atividades cobrindo índices, constraints, tabelas, views, functions, triggers e views materializadas.
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Produto 3
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Funções de documentação de banco de dados para gerenciamento. Relatório com documentação de banco de dados contendo: fluxo completo de dados e processos desde a fonte até o dado publicável/compartilhado. Workshop de apresentação dos resultados da entrega da consultoria.
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Elaborado por: Alysson Fernando Alves Ribeiro. Fonte: Incra (2021d).
31O acervo fundiário brasileiro, que contém plantas e informações sobre imóveis rurais de todo o país e está acessível para a população em geral, é imprescindível para a análise e a produção de conhecimentos relativos à malha fundiária e questão agrária brasileira. Com a consultoria no Projeto Regulariza Amazônia os temas que devem migrar para o novo banco de dados incluem: indícios de irregularidade; acervo de títulos INCRA; acervo de títulos SERFAL; conflitos agrários; glebas do SIGEF-Titulação; e, áreas de interesse do Sigef-GEO.
32A Política de Regularização Fundiária da Amazônia (PRFA), sob os ditames institucionais do Programa Terra Legal, justifica que a lentidão nos primeiros anos da destinação das terras públicas residia no procedimento adotado, em que eram encaminhados os ofícios aos órgãos para que pudessem, em 30 dias, manifestar interesse ou não nas áreas a serem destinadas pelo Programa. Esta metodologia foi ineficaz, pois muitas consultas foram respondidas fora do prazo, outras não foram respondidas e, em quase todas, havia sobreposição de interesses (Ribeiro, 2016).
33Esse processo demonstra as sucessivas, confusas e desorganizadas ações do Estado, que vacila no gerenciamento e na sistematização das terras, contribuindo com a situação de “caos” territorial. A sobreposição de interesses, então, acaba (re)produzindo conflitos em função das diferentes pretensões de uso das terras entre as instituições públicas e as esferas distintas de escala de poder: municipal, estadual e federal.
34Para sanar este empecilho que atravancava o processo de transferência de domínio das terras públicas da Amazônia, foi criada, em 2013, a Câmara Técnica de Destinação e Regularização de Terras Públicas Federais (Secretaria de Patrimônio da União – SPU; Ministério do Meio Ambiente – MMA; Serviço Florestal Brasileiro – SFB; Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBIO; Fundação Nacional do Índio – FUNAI) e a automatização do processo de regularização fundiária, por meio do SIGEF, que passou a registrar e a gerir os interesses dos órgãos, evitando, assim, os transtornos citados logo acima.
35O Projeto “Regulariza Amazônia” promoveu consultorias com o objetivo de desenvolver e modernizar a governança fundiária na área prática de destinação e transferência de domínio das terras públicas federais. O objetivo geral foi elaborar uma metodologia e uma rotina para a submissão de glebas públicas federais para consulta à Câmara Técnica de Destinação de terras públicas federais (INCRA, 2020). A consultoria constatou como resultado os seguintes produtos: proposta de metodologia para a submissão de consultas de glebas e a proposta de procedimentos para submersão de consultas de glebas.
Quadro 4 – Relação de produtos: metodologia para submissão de consulta de glebas públicas à Câmara Técnica de Destinação de terras públicas federais.
Produto 1
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Preparação de plano de trabalho para a consultoria.
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Produto 2
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Proposta para a metodologia de submissão de consultas e integração.
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Produto 3
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Procedimentos para a submissão de consultas.
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Produto 4
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Apresentação final dos resultados da consultoria.
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Elaborado por: Alysson Fernando Alves Ribeiro. Fonte: Incra (2020).
36A consultoria proposta pelo Projeto “Regulariza Amazônia”, em seu relatório normativo de resultados, apoiou o INCRA a propor e acordar, com os demais membros da Câmara Técnica, os procedimentos necessários para a submissão das consultas das glebas federais (INCRA, 2020).
37A Câmara Técnica de Destinação busca, portanto, atuar como um plano de destinação, visando eliminar a sobreposição de interesses entre os órgãos e as esferas de poder, ao atribuir uso e domínio das terras devolutas dentro de uma política de (re)ordenamento do território. Desta forma, o Terra Legal (leia-se, em tese) busca, com a destinação de terras, eliminar as sobreposições, repassando a jurídica de terras públicas devolutas concentradas em poder da União a outras instituições públicas, como FUNAI, INCRA, IBMA, Forças Armadas, estados e municípios, transmutando, assim, terras sem destinação em terras determináveis com utilidade pública (Ribeiro, 2016).
38O Projeto Regulariza Amazônia faz parte de uma ampla iniciativa de cooperação técnica, na qual o bloco econômico se coloca em disponibilidade para auxiliar na melhoria da gestão fundiária de países da África, Ásia e América do Sul, na perspectiva da política de governança da terra. Por meio de consultorias de apoio ao Incra, o Projeto Regulariza Amazônia promoveu a modernização de metodologias operacionais e tecnológicas na gestão de terras públicas da União – patrimônio mais fundamental de uma sociedade: as terras de domínio comum e os recursos inestimáveis da natureza.
39No entanto, devemos ressaltar que a Política de Regularização Fundiária da Amazônia (PRFA) vivencia um processo violento de cooptação por grileiros, latifundiários, fazendeiros e empresários, com o intuito de reconcentrar terras devolutas pertencentes à União. As consultorias realizadas pelo Projeto Regulariza Amazônia podem ser usadas como escopo técnico a favorecer o mercado global de terras (land global), mas também correm o risco de ser usadas na promoção de “novos” cercamentos de terras, em que prevalece a função sociometabólica da terra-mercadoria (land-commodity). Essa lógica, incentiva a exploração indevida da Amazônia, estimula a compra e venda especulativa de grandes áreas, encarece o preço da terra no país e, ainda, atravanca a destinação de terras à reforma agrária.
40De acordo com Delgado (2016), o mercado de terras no Brasil se defende da desvalorização mediante um tríplice movimento, que segundo o economista é endógeno à realidade agrária brasileira, mas que, na conjuntura da crise cíclica do capital, adquire maior amplitude: 1) mercadorização irrestrita; 2) ultraconcentração; e, 3) internacionalização.
41O website do Incra, vinculado ao Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), em notícias sobre o Projeto Regulariza Amazônia e as ações e contribuições provenientes das consultorias, destaca melhorias no banco de dados geoespaciais. A manchete tem como título: “consultoria vai estruturar informações sobre o uso de solos para análise do mercado de terras” (INCRA, 2021e, p.1).
O acesso a informações confiáveis e atualizadas sobre o preço da terra no país é fundamental para o desenvolvimento de políticas públicas adequadas de reforma agrária e ordenamento fundiário. O papel da nova consultoria nessa área será construir e articular dentro do Incra uma classificação do uso de solo específica e padronizada para a análise do mercado de terras. O valor da terra está diretamente relacionado à sua capacidade de geração de renda, que, por sua vez, é influenciada por diversos fatores de ordem econômica, tais como localização, acesso e qualidade das terras, entre outros (INCRA, 2021e, p. 2).
42A referida reportagem ainda explicita um gráfico com informações sobre a rentabilidade econômica de terras devolutas da União, apresentando os usos da terra (a ser regularizada ou em processo de regularização) e sua capacidade de renda econômica. Os usos mais rentáveis são comerciais e industriais, e os usos menos rentáveis são pastos nativos e florestas.
43O Projeto Regulariza Amazônia promoveu, de fato, um intercâmbio na esfera de cooperação bilateral para o gerenciamento fundiário desempenhado pelo Incra. É notória, contudo, a precariedade em metodologias operacionais voltadas para a gestão de terras no Brasil. Atualmente, o Incra trabalha com orçamento reduzido, alto índice de evasão de mão de obra e ausência de um leque maior de geotecnologias.
Neste sentido, o Projeto Regulariza Amazônia cumpre sua destinação institucional: capacitar a governança fundiária do Governo Federal brasileiro. Porém, faz-se necessário descortinar o véu ideológico e confrontar as perspectivas contraditórias diante do aliciamento da política fundiária em prol da mercantilização da terra. Segundo o próprio Incra (2021e, p. 2), “o diagnóstico do conjunto de classes de uso de solo, que será realizado pela consultoria, servirá como insumo aos técnicos que realizam trabalhos de análise do Mercado de Terras do Incra”.
44Para qual finalidade serve o Projeto Regulariza Amazônia? Aprimorar e acelerar a legalização fundiária de terras públicas federais para quem? Para o quê? Diante das próprias contradições da autarquia responsável pela gestão do patrimônio fundiário brasileiro, o Projeto Regulariza Amazônia poderá ser utilizado como engrenagem “modernizante” no “velho” processo histórico de concentração fundiária, de grilagem de terra pública e de saque de recursos naturais.
45Não é um déjà vu, nem visão profética do futuro. Não! Isso é a realidade dolorosa da historiografia da Amazônia. Isso porque, consoante Eduardo Galeano (1998, p. 19), “a história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi e conta o que foi, anuncia o que será”. A história da Amazônia é rolagem inexorável da geograficidade da história da pilhagem do “vazio demográfico”.