1A partir de algumas considerações sobre o patrimônio cultural, o industrial e o ferroviário, ancoramos a nossa reflexão sobre a Companhia Paulista e a preservação desse patrimônio ferroviário pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT), e analisamos o momento presente, com a refuncionalização nos usos de seus bens.
2O patrimônio cultural, assim instituído, representa um conjunto de bens materiais e imateriais, práticas, objetos e manifestações legitimadas como referências culturais que exprimem os traços identitários da sociedade no território. É intrínseco ao processo de identificação, valoração e proteção dos elementos da cultura, em determinado período histórico e em territórios distintos, a seleção de bens em meio à diversidade e à pluralidade cultural. Das paisagens naturais às edificações, dos fósseis humanos aos de animais, dos maquinários da produção industrial ou artesanal, às festas, saberes, gastronomia, danças e cantos, todos têm um papel importante como manifestação da cultura.
3“O território, a paisagem ou o lugar de memória permitem que esta ganhe concretude” (Paes, 2012, p.322). É no tempo e no espaço que as sociedades se realizam. O patrimônio cultural e suas espacialidades possuem uma relação intrínseca com a história, com a memória e carrega importante carga simbólica para a sociedade:
(...) o patrimônio é expressão de um passado e lhe dá concretude permitindo compreendê-lo, mobiliza memórias coletivas e estimula uma reflexão sobre os caminhos traçados na trajetória da construção da humanidade e do homem (Scifoni, 2015, p. 130).
4Como afirma Arantes (1984, p. 8), “o interesse pela defesa das estruturas arquitetônicas, paisagens e recursos naturais decorre sem dúvida do desejo de manter laços de continuidade com o passado”. E é importante ressaltar que “a sua persistência no tempo resulta de ações e interpretações que partem do presente em direção ao passado” (Arantes, 1984, p. 8). É no desenrolar da história da sociedade que que os bens imateriais e os objetos, naturais ou artificiais, ganham sentido pela ação humana, e é no presente que as formas ganham – ou não -, valor e significado. Por isso “o patrimônio cultural de uma sociedade ou região ou de uma nação é bastante diversificado, sofrendo permanentes alterações” (Lemos, 1981, p. 21).
5A patrimonialização é resultado de uma seleção conflituosa, como diz Canclini (1994), pois envolve disputas de interesses, de valores, ideologias e, também, é claro, escolhas culturais que representam grupos sociais distintos - ou distintivos -, e seus espaços constitutivos. Os monumentos que compõem o patrimônio cultural portam significados que vão além dos estéticos, possuem uma natureza política e impõem uma comunicação intencional (Corrêa, 2014). Lefèbvre (2000, p. 185 [1ª ed.1974]), ao tratar da forma e da função na preservação dos bens arquitetônicos, afirmava a necessidade de se analisar o contexto ideológico que sustenta os materiais, as técnicas, os arranjos espaciais, e como estes se alteram e dependem de relações sociais.
6Após a origem e a consolidação do patrimônio cultural nos séculos XIX e XX, a partir da segunda metade do século XX, as tipologias e a distribuição geográfica dos bens considerados patrimônio se ampliaram, extrapolando as escalas espaciais e a primazia da concepção de monumentos, como bem já descreveu Choay (2000).
7A ampliação da noção de patrimônio viabilizou o tombamento de edifícios isolados, conjuntos arquitetônicos, centros históricos, cidades, incorporando, com o tempo, as construções modestas e menores que, anteriormente, eram excluídas do campo patrimonial. Uma das tipologias que compõe essa diversidade é o patrimônio industrial, vinculado ao desenvolvimento da atividade ocorrida, sobretudo, nos últimos 200 anos, em territórios distintos.
8O patrimônio industrial vai se consolidar com a busca de preservação dos remanescentes significativos da Revolução Industrial, em meados do século XVIII, na Inglaterra, e nos demais países da Europa. Sobressaem as antigas fábricas e plantas industriais, mas, para além da materialidade, a memória também ganha valor, lembrando que o patrimônio industrial é “parte constituinte da vida de homens e mulheres comuns, que lhe confere valor identitário” (Mesquita e Pierotte, 2018, p. 72). Assim, a partir dos estudos do patrimônio industrial e de sua preservação, compreende-se a industrialização e as técnicas de produção de um período, seus maquinários e instalações, bem como a história social da classe operária.
9No sentido de consolidar as definições sobre o que é o patrimônio industrial, em uma das assembleias gerais do Comitê Internacional para a Conservação do Patrimônio Industrial - TICCIH, em 2003, foi elaborada a Carta de Nizhny Tagil, documento que define o patrimônio industrial:
O patrimônio industrial compreende os vestígios da cultura industrial que possuem valor histórico, tecnológico, social, arquitetônico ou científico. Estes vestígios englobam edifícios e maquinaria, oficinas, fábricas, minas e locais de processamento e de refinação, entrepostos e armazéns, centros de produção, transmissão e utilização de energia, meios de transporte e todas as suas estruturas e infraestruturas, assim como os locais onde se desenvolveram atividades sociais relacionadas com a indústria, tais como habitações, locais de culto ou de educação (TICCIH, 2003).
10Alguns exemplos são as atividades pré-industriais, os remanescentes da Revolução Industrial, ou mesmo atividades pioneiras mais recentes, como as atividades de países de industrialização tardia, como no Brasil, onde a industrialização intensificou-se a partir da década de 1930, e suas atividades ocorreram de formas diversas em diferentes lugares e regiões.
11O patrimônio cultural ferroviário, constituinte do patrimônio industrial, é representado pelos bens históricos culturais que podem ser subdivididos entre: os bens móveis (vagões, locomotivas e equipamentos em geral); os bens imóveis (estações de passageiros, edifícios ligados à infraestrutura da ferrovia, pontes e viadutos); e os bens intangíveis (o saber fazer dos trabalhadores ferroviários, a memória da população que viveu durante o auge das estradas de ferro, costumes e tradições causadas pela vivência na ferrovia) (Castro e Monastirsky, 2013, p. 05).
12Para além da importância da preservação dos bens ferroviários, as transformações ocorridas nos transportes de mercadorias e passageiros alteraram definitivamente a vida social e a própria cognição do Mundo. Em uma sessão da Assembleia Geral da Companhia Paulista, em 1869, foi proferida a seguinte frase: “Então nós também teremos realizado esse milagre humano dos tempos modernos – o desaparecimento das distâncias” (Relatório da diretoria da Companhia Paulista lido na sessão de Assembleia Geral, de 26/09/1869). Henry David Thoreau (1817-1862), autor de “Walden ou A vida nos bosques”, de 1854, que defendia o retorno à natureza e à vida simples, temeu a chegada do trem e a mudança da percepção da vida que ele traria: “Porque teríamos que viver com tanta pressa, esbanjando a vida?” (Thoreau, 1989, p. 94).
13Para Santos (1977, p. 31), “a máquina a vapor nada mais é do que um instrumento da evolução social, uma forma criada por um novo momento histórico da formação socioeconômica e apenas um resultado deste momento”. Na medida em que a rede ferroviária se expandiu, intensificaram-se os fluxos de pessoas, de mercadorias, de informações, de hábitos, enfim, a própria difusão cultural, seja para colocar em curso mais rápido a mundialização da cultura ou a globalização da economia. Harvey (1992, p.220) caracteriza o final do século XX como uma “compressão tempo-espaço”, em grande medida possibilitada pelas tecnologias, particularmente, nos transportes, que encolheram o mapa do mundo e aniquilaram o espaço por meio do tempo.
14Em relação à formação socioeconômica e ao povoamento do estado de São Paulo, podemos observar, no Mapa 01, a intersecção entre o povoamento do estado de São Paulo e a ferrovia que, em 1870, atingia somente Santos, São Paulo e Jundiaí.
Mapa 1: Povoamento e Ferrovias no estado de São Paulo em 1870.
Fonte: Monbeig (1984 [1947], p. 47).
15Para a formação do território do atual estado de São Paulo e sua ocupação efetiva foi necessário o estabelecimento de pontos de controle do território, como uma malha do poder constituído, a partir da criação de distritos e municípios (Silva, 2008, p. 119). As longas distâncias e o isolamento das demais regiões – ou seja, os caminhos, transportes e ligações de difícil acesso – dificultavam a vida no território paulista, e “a conjuntura só se tornou favorável por volta de 1870” [...] “época do movimento de conquista dos planaltos ocidentais” (Monbeig, 1984). Desse modo, a atividade ferroviária contribuiu para o adensamento populacional e de infraestruturas do estado de São Paulo.
16Nesse processo em que o papel da rede ferroviária foi fundamental para o elo entre o local, o regional e o global, trazemos à luz as heranças históricas que a atividade ferroviária deixou no território paulista, cristalizadas no patrimônio ferroviário da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, e sinalizamos a importância da atuação do Condephaat na preservação do patrimônio ferroviário paulista.
17A investigação que sustenta este artigo, além da revisão bibliográfica sobre a temática, contou com a análise documental de todos os processos de tombamento citados, assim como atualizou as informações coletadas sobre os atuais usos dos referidos bens ferroviários a partir da empiria dos trabalhos de campo.
18A construção da via férrea de Santos a Jundiaí (SPR-Inglesa) começou em 24 de novembro de 1860 e foi inaugurada em 16 de fevereiro de 1867 (Pinto, 1903, p. 35-36). Com o monopólio, advindo da concessão por 90 anos, para ligar o interior (Jundiaí), passando por São Paulo, até chegar a Santos, a SPR declara, em 1868, não ter interesse em prolongar os trilhos para além de Jundiaí. Com a desistência da companhia inglesa em prolongar seus trilhos nessa direção, nasce, então, a Companhia Paulista de Estradas de Ferro (CPEF).
19A Companhia Paulista de Estradas de Ferro foi fundada em 1868. Durante o século XX a CPEF prolonga-se até as divisas com Minas Gerais e Mato Grosso do Sul e, em 1971, a empresa é incorporada à Fepasa (Ferrovias Paulistas) e, em 1998, é privatizada, como podemos observar na Linha do tempo da CPEF com seus antecedentes, apresentada no Quadro 01. Desde 2015 passou a ser gerida pela Rumo Logística.
Quadro 01: Linha do tempo – Companhia Paulista de Estradas de Ferro
Fonte: Pinto (1903); Matos (1974). Organizado pelos autores.
20A CPEF surge do interesse de políticos, de fazendeiros do café e negociantes, pois, além do capital privado, havia a garantia de juros de 5% da União e de 2% da Província de São Paulo. Pinto (1903, p. 21) divide o desenvolvimento ferroviário em quatro fases de incentivos e concessões do Império e da Província Paulista. Estas etapas ocorrem entre as metades dos séculos XIX e XX, sendo elas: uma primeira fase de “tentativas malogradas”, segundo o autor; uma segunda fase de investimentos estatais, com garantias de juros de 5% da União e de 2% da Província de São Paulo, sendo que, a empresa férrea que se instalasse nesta fase, possuía o direito de usar as terras numa área de 31 quilômetros para cada lado da ferrovia; uma terceira fase de diminuição dos investimentos e privilégios, quando a construção das estradas ainda possuíam privilégio de zona, mas sem a garantia de juros (Pinto, 1903, p. 21); e uma quarta fase, de abertura da construção de ferrovias no território brasileiro à livre concorrência, mas sem nenhum incentivo estatal.
21Com o objetivo da CPEF de atender o escoamento da produção de café das fazendas do interior paulista, foi construído, em 1872, o entroncamento Jundiaí-Campinas. De acordo com Stefani (2007, p. 278):
O transporte de cargas era prioritário, uma vez que, além de conseguir manter os custos de manutenção e de expansão do sistema ferroviário, ainda gerava excedentes que passaram a ser investidos no processo inicial de industrialização tanto da capital, quanto do interior.
22A partir de uma rede ferroviária densa e desenvolvida, outras integrações ocorreram. Em geral, as linhas férreas do país obedecem ao sentido de exportação do interior para um porto principal de escoamento. No território paulista, a linha da Companhia Paulista também segue neste sentido, mas esta é a única malha ferroviária do país que se desenvolve em uma rede com as linhas tronco principais e muitos ramais e sub-ramais de porte menor, tornando a rede ferroviária paulista bastante densa e simbólica, com diversas ramificações em um formato arbóreo. No Mapa 02 observamos a distribuição dos principais ramais da CPEF e as regiões administrativas que possuem bens tombados.
Mapa 2: Bens ferroviários da Companhia Paulista subdivididos nas regiões administrativas do estado de São Paulo.
Fonte: Condephaat (2020).23Essa rede ferroviária intensificou o desenvolvimento territorial paulista, expandiu os fluxos e fixou no território as estruturas para a sua produção. Em grande medida, a expansão da rede ferroviária no estado de São Paulo foi responsável pela fundação de muitas cidades. Ao café e à ferrovia juntou-se, então, a urbanização e a industrialização. A ferrovia ultrapassou os campos da economia, articulando-se a um modo de vida, à cultura e à história, e teve, com o Condephaat, um agente para o reconhecimento desta tipologia de patrimônios culturais.
24No estado de São Paulo é o Condephaat que atua no processo de identificação, proteção, preservação, conservação, restauração e valorização do patrimônio em nível estadual. O órgão, criado pela Lei Estadual 10.2471, em 1968, possui uma unidade técnico-executiva que coordena a gestão dos trabalhos, a Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico (UPPH), constituída por dois Grupos Técnicos, o Grupo de Estudos de Inventário e Reconhecimento do Patrimônio Cultural e Natural, e o Grupo de Conservação e Restauração de Bens Tombados.
25O Condephaat, atualmente ligado à Secretaria de Cultura e Economia Criativa, atua por meio do tombamento dos bens a serem protegidos, pelo registro dos bens em livros especiais, pelo acompanhando das ações e autorizações para quaisquer solicitações de mudanças formais que possam descaracterizar esses bens.
26Ao longo de décadas de atuação, o órgão ampliou as tipologias dos bens materiais passíveis de tombamento, e incorporou o patrimônio industrial e ferroviário desde os anos 1970, ambos relacionados à história do desenvolvimento urbano-industrial do país. O Quadro 2 sintetiza esse processo:
Quadro 02: Linha do tempo – Bens Culturais da antiga Companhia Paulista e tombados pelo Condephaat.
Fonte: Processos de tombamento da Companhia Paulista (Condephaat). Elaborado pelos autores.27Ao analisar o patrimônio ferroviário paulista de modo a discriminar as diretrizes e os critérios desses tombamentos, Oliveira (2010) identifica três grandes diretrizes gerais que sustentaram os argumentos da preservação do patrimônio ferroviário paulista. O primeiro refere-se ao valor arquitetônico, considerando os materiais, o estilo e as técnicas construtivas. Esse é o caso da Estação de Santa Rita do Passa Quatro, primeiro tombamento relativo à CPEF, aberto em 1974 (Processo de Tombamento n. 00467/74), e da Estação Ferroviária de Rio Claro (Processo de Tombamento n. 22295/82).
28Em seguida, uma segunda diretriz identificada por Oliveira (2010, p.185) refere-se ao valor histórico das edificações ferroviárias. É importante ressaltar que a CPEF e suas edificações sempre representaram a história social e econômica do café, com os trilhos desbravando os “sertões” e contribuindo na origem de muitas cidades do interior paulista. Essa associação é muito pertinente para os tombamentos aqui analisados, particularmente para o tombamento da Estação Ferroviária de Campinas, com pareceres de Murilo Max e Ulpiano Bezerra de Meneses (Processos de tombamento n. 20682/78). Edificada em 1884 pelos ingleses, em estilo gótico-vitoriano, a Estação Ferroviária de Campinas modificou o padrão construtivo e a própria centralidade da cidade. Além disso, o parecer de Murilo Max trouxe a importância do conjunto paisagístico e do papel desta estrutura ferroviária como patrimônio ambiental urbano – concepções inovadoras que integram o bem isolado à produção social do espaço. Como salienta (Rufinoni, 2019), “a percepção de uma estreita correlação entre bens ferroviários e desenhos territoriais” já estava presente em importantes pareceres de tombamentos – como os das estações da Luz, de Santa Rita do Passa Quatro e de Campinas”, o que demonstra que uma nova forma de conceber o bem patrimonial integrado ao território, particularmente o urbano, já estava presente no Condephaat no final dos anos 1970.
29A terceira diretriz identificada por Oliveira (2010) nos tombamentos de bens ferroviários paulistas refere-se à integração com a gestão urbana, em um momento de políticas públicas de requalificação e revitalização de centros históricos, associando o mercado cultural, o turismo e o meio ambiente. São desse período, iniciado nos anos 1970, mas, estruturado e implantado, particularmente, a partir dos anos 1990, os valores gestados de proteção à paisagem, à área envoltória ou áreas de entorno, ao patrimônio ambiental urbano, dos conjuntos em substituição aos monumentos isolados, da representatividade da memória social e do papel da população na valoração dos tombamentos.
30A partir dos anos 1970 as estratégias das políticas públicas para o território, associaram de forma integrada o planejamento urbano e a preservação do patrimônio histórico ao uso turístico do território, fato que ganha concretude e visibilidade nos anos 1990, particularmente nos centros históricos tombados. Esse é um processo que vai, consequentemente, influenciar a valorização turística do patrimônio ferroviário, seja por meio da musealização, ou mesmo da requalificação dos bens como atrativos para a visitação turística.
31Com exceção dos anos 1990, no Quadro 02 apresentado vemos uma certa regularidade nos processos de abertura de tombamento dos bens ferroviários, indicando a valorização de tais bens no conjunto do patrimônio cultural paulista. Moraes e Oliveira (2017, p.36), ao analisarem tais tombamentos, entre 1969 a 1984, pontuam que os bens “reconhecidos pelo Condephaat neste período foram protegidos com base em múltiplos valores” e, segundo os autores, entre 1969 e 2015, o Condephaat tombou um total de 37 bens ferroviários, que estão localizados em 29 cidades (Moraes e Oliveira, 2017, p. 26-28), o que confirma a importância desta proteção.
32Para os bens referentes ao patrimônio ferroviário, os tombamentos ocorrem principalmente pela valorização de seus elementos estéticos, arquitetônicos e históricos, ressaltando as técnicas e os materiais construtivos provenientes do exterior. Essa valorização está em acordo com a hegemonia do patrimônio-monumento, herança dominante durante o século XX.
33Além dos valores históricos e econômicos, outras justificativas e critérios foram agregados, tais como a utilização de técnicas inovadoras que impulsionaram o transporte ferroviário, como no caso da preservação do antigo sistema funicular de Paranapiacaba em Santo André – SP (Oliveira, 2010).
34Na escala estadual, “a estação de passageiros foi o principal objeto de proteção do órgão” (Moraes e Oliveira, 2017, p. 36), mas também na escala federal, com relação ao patrimônio ferroviário, o inventário de bens feito pelo IPHAN, entre 2007 a 2010, destaca a prioridade dada às estações ferroviárias (Castro e Monastirsky, 2013). Contudo, como destacou Meneguello (2012, p.82-83),
“estes bens relacionam-se entre si em complexas redes interligadas (como as ferrovias e todos os bens a ela associados) e sua salvaguarda isolada é insuficiente para a compreensão da rede de recebimento de matéria-prima, produção e escoamento que definem a atividade industrial”.
35Ou seja, a preservação do bem isolado não é suficiente para a sua conservação; é necessário que tal bem possua sentido em seu contexto territorial e paisagístico, assim como significado em termos funcionais.
36Embora os tombamentos de bens ferroviários pelo Condephaat tenham sinalizado a importância destes e dessas ações efetivas para a preservação do patrimônio ferroviário, ao analisarmos tais edificações no tempo presente, foi possível confirmar que somente a ferramenta do tombamento não é suficiente para a sua preservação. Para confirmar tal hipótese, tomamos as estações ferroviárias da CPEF, a partir da refuncionalização em seus usos como uma estratégia complementar para a preservação dos bens tombados.
- 1 Este é um bem cultural ferroviário tombado pelo Condephaat e pertencente a antiga CPEF, entretanto, (...)
37O tombamento do conjunto de bens ferroviários da CPEF pelo Condephaat se deu, em sua maioria, nas décadas entre 1980 e 2010, conforme já ilustrado no Quadro 2. Apesar da ausência de um plano que delineasse os bens significativos de serem tombados, as estações ferroviárias tombadas durante a década de 1980, o foram, principalmente, por sua importância arquitetônica e histórica. São elas: Estação Ferroviária de Santa Rita do Passa Quatro, Estação Ferroviária de Campinas, Estação Ferroviária de Rio Claro, Estação Ferroviária de Descalvado e Horto Florestal e o Museu Edmundo Navarro de Andrade1.
38Quanto aos bens tombados na década de 2010, de acordo com Moraes (2017, p.31), “a ação do CONDEPHAAT naquele momento não estava ausente ao contexto nacional de extinção da Rede Ferroviária Federal e atribuição de responsabilidade ao IPHAN”. A partir dos anos 2010, o Grupo de Estudos de Inventário da Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico (GEI/UPPH) do Condephaat, tomou para si o levantamento do “Patrimônio Ferroviário: linhas e estações ferroviárias do Estado de São Paulo”, ampliando a escala dos bens isolados e dando maior expressão territorial a esses bens, momento em que foram assentados critérios de proteção mais abrangentes e melhor definidos, tais como: conjuntos ferroviários completos (complexos ferroviários), entroncamentos, integridade do bem, história, e localização em estâncias turísticas (Moraes, 2017, p.32). Embora a localização em estâncias turísticas não seja um critério para o tombamento, é possível observar uma tendência de as instâncias turísticas investirem na requalificação destes bens para implementar a visitação.
39Os bens culturais da CPEF tombados pelo Condephaat na década de 2010 são: Estação Ferroviária de Valinhos, Estação Ferroviária de Louveira, Estação Ferroviária de Vinhedo, Estação Ferroviária de Sumaré e Estação Ferroviária de Piratininga. Com relação aos critérios do Condephaat, de modo geral, o órgão prioriza conjuntos ferroviários íntegros e que tiveram um papel importante na ocupação do território paulista, além de integrar o conjunto de estações pioneiras com tração elétrica nos trens, com exceção de Piratininga, que não possuiu tração elétrica.
40Indo além do importante papel da preservação do patrimônio ferroviário paulista, situamos a questão, agora, a partir dos usos dados a estes no período presente. A refuncionalização das estações ferroviárias vai além da preservação de suas formas e é de importância capital para tal preservação. Como veremos a seguir, os usos do patrimônio ferroviário auxiliam a preservação de seus bens.
41Para a análise do patrimônio ferroviário, nossa atenção se volta para as nove (09) estações ferroviárias tombadas da antiga CPEF, sendo estas localizadas nas respectivas cidades (Quadro 3): Louveira, Vinhedo, Valinhos, Campinas, Sumaré, Rio Claro, Descalvado, Santa Rita do Passa Quatro e Piratininga.
Quadro 03: Estações da Companhia Paulista – Bens Culturais Ferroviários tombados pelo Condephaat.
Fonte: Elaborado pelos autores.42Como resultado de pesquisa documental e empírica, observamos que os bens ferroviários tombados possuem ampla diversidade de usos e possibilidades de apropriação do espaço. Conforme a Tabela 1, apresentada a seguir, com os dados relativos às novas funções das estações ferroviárias da CPEF e confirmadas em trabalho de campo, entre os bens com uso cultural figuram 04 bens, sendo as estações de Campinas, Descalvado, Santa Rita do Passa Quatro e Valinhos.
Tabela 01: Estações tombadas e seus novos usos
43Fonte das informações: Processos de Tombamento. Fotos: Trabalhos de Campo realizados entre 2018 a 2020. Elaborada pelos autores.
44A estação ferroviária de Santa Rita do Passa Quatro, por exemplo, construída em 1899, funcionou até os anos 1960 e foi tombada em 1981. Posteriormente à desativação, abrigou uma escola e, em seguida, o Museu Zequinha de Abreu, que abriga o acervo do compositor nascido na cidade. Em seu processo de tombamento (Processo Condephaat nº 00467/74) encontramos a indicação de refuncionalização, com a nova função assumida, dinamizada pelos investimentos do município para torna-la atrativa para a visitação. Além do museu municipal, a estação também abriga o centro de informações turísticas do município.
45A Estação Ferroviária de Campinas, inaugurada em 1872, foi construída em estilo gótico-vitoriano, seguindo os padrões arquitetônicos ingleses, do século XIX, e teve um papel muito importante no redirecionamento da centralidade da cidade. Tombada pelo Condephaat em 1982 como importante marco do patrimônio ambiental urbano, teve, desde 2002, o seu uso cultural assegurado pela iniciativa municipal, que dinamizou este patrimônio com atividades culturais, tais como exposições, feiras, teatro, entre outras. Atualmente este edifício é conhecido como “Estação Cultura “Prefeito Antonio da Costa Santos”, devido aos esforços do ex-prefeito, morto em 2001, em defesa do patrimônio cultural da cidade.
46Para a finalidade de usos institucionais ligados à gestão municipal, 03 bens ferroviários se destinam a estas funções, sendo as estações: de Piratininga, inaugurada em 1905, que teve um “papel importante como ponta de lança em direção ao extremo oeste do Estado e avanço da ferrovia para a região da Alta Paulista” (Processo de tombamento: 59339/09); de Sumaré, que “é marco da primeira fase do avanço da Companhia Paulista de Estradas de Ferro (CPEF) pela região de Campinas, e foi propulsor da formação da atual cidade de Sumaré” (Processo de tombamento n. 46225/03); e de Rio Claro, construída em 1910, em estilo eclético, e que gerou grande impacto no desenvolvimento da cidade (Processo de tombamento n. 22295/82).
47A estação ferroviária de Louveira está classificada entre os bens culturais que se destinam a infraestrutura da atividade turística, abrigando a Secretaria Municipal de Turismo. O pedido do seu tombamento foi solicitado pela Associação de Preservação da Memória Ferroviária (APMF), em 26 de dezembro de 1990 (Processo de tombamento n. 61063/10, p.2) e, e 1996, a prefeitura também a tombou na esfera municipal. Vale lembrar que a estação de Louveira foi a primeira estação eletrificada da América do Sul (Processo Tombamento n. 61063/10, p. 306), e que a cidade se beneficia deste posto, assim como da produção frutífera que é desenvolvida na região, dois eventos que a identificam na divulgação turística da cidade.
48Dentre os 09 bens analisados, a estação ferroviária de Vinhedo é um dos bens culturais sem uso e em situação de abandono. O Conjunto Ferroviário representa “o primeiro trecho construído pela Companhia Paulista de Estradas de Ferro, à qual se atribui o pioneirismo na eletrificação ferroviária brasileira” (Processo de tombamento n. 61056/10) e participou do desenvolvimento econômico regional e urbano. Tal conjunto incluía a Estação Ferroviária, a Vila Ferroviária e o Cabine de Controle. A sua situação de abandono indica que somente o tombamento dos bens culturais não é suficiente para a preservação das edificações, colocando essa memória histórica em risco caso o seu suporte formal não receba uma nova função.
49A partir da pesquisa realizada é possível constatar que os usos no período presente são fundamentais para a permanência e a não degradação desses bens culturais que são as estações ferroviárias. No caso da rede ferroviária que foi abandonada pelo interesse público e privado, tendo em vista a opção feita pelo rodoviarismo no país, suas estruturas, particularmente as edificações das estações ferroviárias, só permanecem conservadas se encontram novos usos para a sua sobrevivência enquanto forma e função. Antigas formas podem ancorar novas funções, mais adaptadas aos interesses e às intencionalidades do presente. A refuncionalização, nesse caso, participa de um processo dialético em relação à proteção do tombamento. Ainda que o tombamento apresente restrições à alteração das formas, o uso dos bens culturais imprime vida e significado às formas no presente, reavivando assim, a memória do papel do patrimônio cultural ferroviário.
50Esse artigo apresentou sinteticamente o histórico da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, e destacou o importante papel da preservação do patrimônio ferroviário pelo Condephaat, e do processo de refuncionalização contemporânea das estações ferroviárias desta rede.
51A monumentalidade da arquitetura das estações ferroviárias marcou o território onde foram erguidas. Ainda que muitas estações do interior paulista não possuam tal monumentalidade – como é o caso da Estação da Luz, na capital paulista -, a originalidade de estilos, de técnicas construtivas, de materiais ou, simplesmente, o papel de sua centralidade na nucleação de cidades, refere-se a uma parcela privilegiada do espaço urbano, como afirma Kuhl (1998, p.66): “tanto nas grandes como nas pequenas cidades as estações se destacaram entre os mais importantes e significativos edifícios públicos”.
52A partir da análise dessas estações ferroviárias da CPEF, foi possível identificar e compreender importantes processos sociopolíticos e espaciais, tais como o papel dessa rede ferroviária como vetor de expansão da malha urbana do estado; o tombamento dos bens ferroviários pelo Condephaat, marcado por uma nova valoração social, técnica, política, econômica e cultural na esfera do patrimônio; e a refuncionalização das estações marcando no patrimônio cultural as necessidades do tempo presente. Esses novos usos do patrimônio são caracterizados por apresentarem uma série de possibilidades e, vale dizer, não apenas pela refuncionalização turística ou pela musealização – alternativas mais comuns, em muitos casos. A função social dada ao bem no período presente é o que, em grande medida, o preserva e lhe dá significado. Como afirma Silva (2018, p.19), ao analisar os Complexo da Estação Ferroviária de Jundiaí e o Complexo da FEPASA como bens turísticos:
A respeito dos usos atuais atribuídos a cada complexo, cabe destacar a Carta de Atenas (1931) em que se considera que a ocupação dos monumentos é primordial para assegurar sua continuidade vital, visto que o uso assegura sua permanência no tempo.
53Identificar entre os bens tombados a estação de Vinhedo em ruínas, confirma que a ausência de função social no presente, coloca em risco a preservação do edifício instruída pelo tombamento. A importância dos usos do patrimônio no presente, tema negado por muito tempo nos órgãos de preservação, nos faz confirmar que somente o tombamento não é suficiente para a proteção do bem cultural, material ou imaterial, que só se mantém, de fato, quando faz sentido ou possui um uso funcional para a sociedade, fato que confirma que a refuncionalização dos usos sociais dos edifícios tombados se apresenta como uma via de proteção pela apropriação dos espaços/bens culturais tombados, seja pela ação coletiva, institucional ou mesmo privada, como os exemplos apresentados neste artigo.
54A memória ferroviária, preservada nos processos de tombamento, possibilita o diálogo entre o passado e o presente. Essa é uma ação necessária para sustentar a continuidade da vida social no tempo e no espaço. Mas um mesmo sistema de objetos que estruturou representações coletivas, tais como “valores, ideais, imagens, aspirações, justificações” (Menezes, 1978, p.18), em um outro tempo histórico pode sustentar novas representações. É dessa forma que o tombamento do bem, no caso tratado aqui, as estações ferroviárias, não é suficiente para a sua preservação. É necessário que a preservação do bem tenha ressonância, significado e valor para a sociedade no momento presente e, para que esse processo se dê, a refuncionalização social dos seus usos alicerçam um novo sistema de ações e teias de significados para a sua manutenção.