1A mobilidade sempre desempenhou um papel importante na vida e nas estratégias econômicas e políticas dos povos amazônicos (Eloy et al,. 2010; Trisch, 2015). Os longos trekkings para coleta de frutas no período seco, as mudanças cíclicas de aldeia e zonas de cultivo, e a profusão de sítios e acampamentos ao longo de grandes rios são exemplos de elaborações geográficas para lidar com a sazonalidade e a dispersão dos recursos na floresta. Da mesma forma, a alternância de movimentos de dispersão e de concentração populacional foi também um importante expediente de alguns povos para se resguardar dos impactos da colonização, e garantir a distância necessária a um processo de mediação com a sociedade envolvente menos desigual e destrutivo.
2Assim, em vez de entidades rígidas e claramente delimitadas, os territórios indígenas, muitas vezes, se caracterizam como espaços fluídos, dotados de fronteiras vivas e dinâmicas ou como uma constelação de lugares articulados através das trajetórias pessoais e coletivas, onde as noções de distância social são mais relevantes do que as de distância geográfica (Alexiades, 2009). O que torna extremamente complexa a tarefa de estabelecer correspondências semânticas entre o conceito ocidental de território e as concepções nativas sobre o espaço que habitam e produzem cotidianamente (Gallois, 2004).
3Esse impasse, por sua vez, produziu muitos equívocos na relação entre os povos indígenas e a sociedade envolvente, com consequências importantes para o modo de vida e a territorialidade dos primeiros. Posto que o contato, a partir de suas entidades mais representativas: o Estado, o Mercado e a Religião, tem imposto sistematicamente a estas sociedades um modelo territorial essencialmente sedentário, seja com o objetivo de reduzir a área de ocupação tradicional a pequenas “colônias agrícolas”, seja com o objetivo de assimilar a população em tela como simples mão-de-obra barata.
4A maneira como cada povo experimentou tal processo, contudo, é variada sob muitos aspectos. As circunstâncias históricas e geográficas, bem como a estratégia de cada grupo são fatores-chave para a compreensão da atual organização espacial de uma dada sociedade. Há situações em que existe algum acoplamento entre a área que lhes é conferida o usufruto exclusivo e a base territorial reconhecida pela sociedade em questão, e situações nas quais os grupos indígenas dispõem apenas de fragmentos dos seus “espaços tradicionais”, ou mesmo de sítios que não correspondem à sua localização histórica, em razão de fugas e deslocamentos forçados.
5O presente texto tem por objetivo revisitar a história de formação da Terra Indígena Yanomami à luz dessa discussão. Considerando que este povo é reconhecidamente um grupo de alta mobilidade territorial, ao mesmo tempo em que desde os seus primeiros contatos com a sociedade envolvente, enfrenta uma intensa disputa pelo controle do espaço onde se reproduz enquanto sociedade.
6Para tanto, proponho uma discussão sobre a relação entre o conceito de território, tal como ele é compreendido pela sociedade ocidental moderna na sua dimensão política, e as elaborações espaciais indígenas, na perspectiva de discutir suas diferenças, eventuais pontos de contato, bem como explorar novas formas e percepções que emergem a partir da interação entre essas duas maneiras de pensar e produzir o espaço.
7Em seguida, apresento um histórico da demarcação da Terra Indígena Yanomami, destacando a disputa pelo controle deste espaço e os diferentes atores que influenciaram nessa contenda. Finalmente, concluo com o argumento de que o conceito de território político, apesar de ser uma categoria estrangeira e relativamente limitada diante da riqueza teórica das elaborações espaciais nativas, é hoje apropriado pelas lideranças yanomami como um exercício de “equivocação controlada” (Viveiros de Castro, 2018), frente às tentativas de fragmentação do seu espaço de vida, impostas pelo avanço da fronteira agroextrativista.
8O texto é derivado de uma pesquisa de doutorado sobre a mobilidade cidade-floresta yanomami, baseada em métodos mistos, com levantamento de dados primários por meio de oficinas de mapeamento e rodas de conversa, bem como, análises de imagem de satélite e pesquisa histórica e bibliográfica. A maior parte do conteúdo apresentado a seguir, porém, é resultado de reflexões realizadas a partir do diálogo com a bibliografia disponível sobre o povo Yanomami.
9Como nos ensina Porto Gonçalves (2002), cada sociedade é, antes de tudo, um modo próprio de estar (junto) no mundo. O território é o espaço geográfico apropriado, um espaço que enseja identidades (territorialidades), dinâmicas e varáveis, que a cada momento se materializam em uma determinada forma.
10A diversidade dos territórios e territorialidades indígenas é, pois, notável. Mesmo se analisarmos somente o conjunto de elaborações espaciais das sociedades das terras baixas sul-americanas, ainda assim nos defrontaremos com uma miríade de formas (Fausto, 2001; Gallois, 2004; Ladeira, 2008; Sáez, 2015; Surrallés & Hierro, 2005).
11Para os Ye’kwana, povo de filiação Karib, que também vive na Terra Indígena Yanomami, no norte de Roraima, o seu território é constituído de elementos da passagem de Kuyujani, o criador do mundo, que em tempos imemoriais “demarcou” seu espaço de vida, chamado na língua nativa de nonoodö. Serras, cachoeiras e afloramentos rochosos são símbolos desse ato e conformam o conjunto de referências a partir das quais esse território deve ser organizado (Silva, 2017).
12Já os Yaminawa, povo de língua Pano que vive no estado do Acre, não procuram estabelecer fronteiras geográficas à sua territorialidade ou situar seu vínculo com a terra em determinado momento histórico. Para eles, “o espaço não é um dado extenso e absoluto, mas uma função do sujeito que o habita” (Sáez, 2015, p.217), são as relações sociais que criam o território, independente da base física em que estas se realizam. A consequência dessa concepção “perspectivista” e fractal do espaço é a incorporação de lugares ditos não tradicionais ao seu espaço de vida, sem que isso impeça a reprodução de um modo de ser propriamente Yaminawa nesses novos contextos (Sáez, 2015).
13No caso dos Guarani-Mbya, ainda que de modo menos radical, algo semelhante à experiência Yawinawa ocorre. A raiz do termo comumente utilizado na tradução de uma noção de território tradicional (teko) faz referência a uma espécie de modo de ser Guarani, colocando em evidência antes os aspectos sociais e espirituais do seu território do que as condições físicas do mesmo (Ladeira, 2008). Naturalmente, é preciso considerar as condições ambientais, ecológicas e materiais necessárias para a manutenção desse modo de vida, mas essas não estão efetivadas em um recorte espacial específico. O território Mbya é delimitado não por limites geográficos, mas pelas relações entre as aldeias que o formam.
- 1 Nos últimos anos houve um enorme esforço no âmbito da ciência geográfica para atualizar a noção de (...)
14Não obstante as diferenças fundamentais que cada uma dessas territorialidades enseja, há algo de comum entre elas, quando colocadas em contraste com as expressões espaciais hegemônicas, que derivam do pensamento ocidental moderno, articuladas à ideia de território, tal como o território estado-nação1. E, de certa forma, comum a todas as demais expressões territoriais indígenas para além da América.
15Para o antropólogo Arturo Escobar (2014), o pensamento moderno europeu, que se pretende universal, caracteriza-se por uma visão dualista do mundo, que separa o humano do não humano; o indivíduo da sociedade; a natureza da cultura, enquanto os pensamentos indígenas compartilham de uma ontologia relacional, na qual se estabelecem continuidades entre aquilo que chamamos de humanos, o mundo biofísico e o sobrenatural.
16De tal modo, em vez de se constituírem como espaços geometricamente recortados, bem delimitadas por marcos físicos e/ou imaginários, as territorialidades indígenas se expressam especialmente a partir da consolidação de uma forma particular de se produzir relações sociais. Não apenas relações entre pessoas, mas também relações entre os diferentes seres e o espaço que coabitam (Surrallés & Hierro, 2005).
17Para esses povos, a “natureza” não é concebida como um espaço inerte, sujeito à exploração econômica dos homens, mas uma entidade viva, inserida numa complexa dinâmica cosmológica de trocas entre humanos e não humanos (Albert, 2009). O que traz outras implicações para as relações entre “homem-ambiente”, que, em vez de serem compreendidas apenas como relações econômicas, são antes de tudo relações sociais.
18O xamã Yanomami Davi Kopenawa, ao discutir essa diferença, enfatiza a diversidade dos seres e das relações estabelecidas entre eles para tentar explicar o conceito de Urihi a, e propor uma tradução criativa da ideia de natureza/floresta dos “brancos”:
“O que eles chamam de “natureza” é, em nossa língua, urihi a, a terra-floresta e também sua imagem, visível apenas para os xamãs, que nomeamos urihinari, o espírito da floresta. É graças a ela que as árvores são vivas. Assim, o que chamamos de espírito da floresta, são as inumeráveis imagens das árvores, as das folhas que são seus cabelos e as dos cipós. São também as dos animais e dos peixes, das abelhas, dos jabutis, dos lagartos, das minhocas e até mesmo as dos grandes caracóis warama aka.A imagem do valor de fertilidade në roperi da floresta também é o que os brancos chamam de natureza. Foi criada com ela e lhe dá a sua riqueza. De modo que, para nós, os espíritos xapiri são os verdadeiros donos da natureza, e não os humanos” (Kopenawa & Albert, 2015, p. 475).
19Tradicionalmente, Urihi a, em seu sentido mais amplo, designa tanto a floresta quanto a superfície sobre a qual ela se estende, que, no limite, abrange a totalidade do plano terrestre atual (Hutukara). Um mundo cujo formato circular é comparado ao de uma placa de cerâmica utilizada para assar beijus de mandioca (mahe), e cujos atributos fisiográficos aparentes são reconhecidos como produto das intervenções do demiurgo Omama (Kopenawa & Albert, 2015).
20A terra-floresta dos seres humanos (Yanomae thë pë urihi pë) ocupa o centro deste mundo. Na sua periferia imediata existe a morada de outros povos indígenas (napë pë yai) e, para além dela, a terra dos brancos (napë kraiwa pë). Nos confins da superfície terrestre estão os pés do céu, enormes estacas que ajudam a sustentar a abóboda celeste que cobre o mundo (Hutu mosi). Fora desse limite, há o grande vazio cósmico conhecido como wawëwawë a (Ver figura 1).
21O cosmos yanomami, todavia, não se restringe à Hutukara. Ela é apenas uma das quatro camadas que o compõe. Abaixo da superfície terrestre fica pëhëtëhami mosi, o mundo subterrâneo dos seres ancestrais aõpatari,um lugar úmido e lamacento, onde está a fonte primordial de todos os corpos d´água, o grande rio Motu uri.
22Imediatamente acima do nível terrestre está o céu (Hutu mosi), onde vivem os fantasmas dos humanos, pore pë, em uma abundante floresta, plena de caça e frutas. Acima do céu, existe ainda um quarto plano, etéreo e diáfano. Uma espécie de céu embrionário chamado de Tukurima mosi, habitado por fantasmas humanos que, depois de uma segunda morte, são transformados em espíritos de moscas (Prõori pë), larvas (Moxari pë) e urubus (Watupari pë), assim como em espíritos da morte (Yorohiyoma pë) (Albert, 2009).
23Essa composição do cosmos, por sua vez, não é estática. Sujeita-se a mudanças e reorganizações. O atual nível terrestre é resultado de uma antiga forma do nível celeste que despencou no princípio dos tempos, e que foi substituído por um jovem céu, enquanto o anterior se tornou o mundo subterrâneo corrente. A possibilidade de que um novo cataclisma aconteça é, pois, algo sempre presente, de modo que, boa parte do trabalho dos xamãs Yanomami hoje consiste em garantir a estabilidade da abóboda celeste (Kopenawa & Albert, 2015).
Figura 1– Modelo esquemático da organização do cosmos segundo os Yanomami
Fonte: Elaborado pelo autor a partir de Kopenawa & Albert , 2015.
24Como Kopenawa aponta, a terra-floresta não abriga apenas os seres humanos (Yanomae thëpë), mas também os animais (Yaro pë), antigos ancestrais dos atuais humanos, que foram transformados nos tempos míticos pelos seus comportamentos desviantes, e um infinidade de seres invisíveis (Yai thëpë), entre os quais se destacam os espíritos-auxiliares Xapiri pë.
25O entendimento de que os humanos (Yanomae thepë) são coabitantes da terra-floresta e não possuem privilégios ontológicos em relação aos demais seres, por conseguinte, torna estranha a possibilidade de se pensar o espaço a partir de um viés de propriedade e/ou exclusão. E, por isso, as fronteiras são entendidas como membranas porosas que permitem trocas entre os mais diversos grupos, e não barreiras fixas que os isolam.
26O avanço do processo colonial, que na América se inicia com a invasão em 1492, e se estende até os dias de hoje, resulta, com efeito, no embate entre essas cosmovisões. De um lado, o projeto moderno que busca converter os muitos mundos existentes em um mundo único, e de outro, os territórios que preservam uma multiplicidade de mundos no seu interior (Escobar, 2014). A colonização, entretanto, não apenas coloca os grupos indígenas diante de lógicas espaciais diferentes da sua, como lhes impõe uma base territorial fixa e, na maioria das vezes, reduzida.
- 2 No período colonial, aldeamentos e descimentos foram as estratégias adotadas para concentrar essas (...)
27A “dispersão” da população indígena no novo mundo, por exemplo, foi tratada como um importante obstáculo para a expansão colonial desde os primórdios da chegada dos europeus (Ladeira, 2008). Não por acaso, nos primeiros anos da colonização, os povos nativos estiveram simbolicamente divididos entre “aliados” e “inimigos” da coroa, sendo, os primeiros, os grupos aldeados2, considerados fundamentais para o sustento e a defesa da colônia, e, os segundo, os “índios espalhados pelos sertões”, a quem a violência e a escravização eram institucionalmente permitidas e incentivadas (Carneiro da Cunha, 1992).
28Assim, a essência das relações históricas entre a sociedade envolvente e os povos indígenas, independente do regime político, pode ser resumida como uma questão de terra e força de trabalho. Isto é, confinar a população em pequenas áreas, transformá-la em mão de obra barata, e se apropriar do entorno. O próprio Serviço de Proteção ao Índio (SPI), foi criado em 1910 com esses dois objetivos principais: 1) conquistar os espaços grafados como desconhecidos nos mapas da época; e 2) converter os indígenas em trabalhadores nacionais (Carneiro da Cunha, 1992).
29Os povos indígenas, por sua vez, têm respondido a essas determinações de forma criativa e diversa. Como veremos, no caso Yanomami, a emergência da nova Constituição Federal, os contornos altamente dramáticos de sua trajetória de contato e a habilidade etnopolítica de suas lideranças contribuíram para formar a maior Terra Indígena do país, um marco na história das demarcações. O que, de alguma maneira, permite que ainda hoje a sua terra-floresta se mantenha viva.
30O contato dos Yanomami com a sociedade envolvente é relativamente recente para maior parte de sua população. As primeiros aproximações aconteceram com representantes da frente extrativista (balateiros, caçadores de pele etc), viajantes e membros das Comissões de Demarcação dos Limites entre Brasil e Venezuela, seguidos por missionários católicos e protestantes (Albert, 1985). Foi somente entre as décadas de 1950 e 1970 que muitos grupos estabeleceram relações permanentes com os não indígenas.
31As missões e os postos do SPI foram as primeiras infraestruturas de contato durável construídas entre os Yanomami e, por isso, rapidamente se tornaram centros de grande influência e atração, por facilitar a aquisição de bens manufaturados, sobretudo ferramentas de metais, e acesso a serviços médicos.
32Essa fase de contato inicial, naturalmente trouxe mudanças nos padrões de assentamento Yanomami, com a concentração populacional e a redução da mobilidade residencial de algumas comunidades. Todavia, é razoável dizer que essas mudanças não foram suficientes para perturbar de maneira significativa a visão dos Yanomami sobre a terra-floresta.
33É somente em meados da década de 1970 que a situação muda de figura, quando o Estado brasileiro opta por uma política de ordenamento territorial para a Amazônia ainda mais agressiva e disruptiva para os seus povos. O governo militar, inspirado pela doutrina da segurança nacional, impulsiona projetos de desenvolvimento para a região com o objetivo de estimular a sua ocupação e abri-la para a exploração econômica em grande escala (Operação Amazônia, Plano de Integração Nacional, Polamazônia). Esses planos tinham como principais instrumentos o desenvolvimento de infraestrutura de transporte e telecomunicação, a disponibilização de linhas crédito e incentivos fiscais, e a implementação de grandes projetos agropecuários, minerais e florestais (Albert, 1991; Hecht & Cockburn, 1990).
34Duas linhas de ação do Plano de Integração Nacional (PIN) tiveram especial repercussão para a nossa área de interesse: 1) o programa de construção de grandes rodovias, que começou com a famigerada BR-230 ou, como é mais conhecida, Rodovia Transamazônica; e 2) o projeto RADAM, que tinha por objetivo mapear os recursos naturais disponíveis no território brasileiro, visando à sua exploração econômica (Ramos & Taylor, 1979).
35No caso de Roraima, as rodovias previstas no PIN foram a BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, e a rodovia BR-210, conhecida também como Perimetral Norte (Ver mapa 1). Esta última, que planejava a conexão da parte leste da região amazônica ao seu limite oeste, projetava-se para dentro da terra-floresta yanomami, em uma zona onde a maioria da população ainda não possuía nenhuma experiência de contato com a sociedade não indígena.
36A construção da perimetral, com efeito, representou uma verdadeira tragédia para os grupos yanomami que habitavam as imediações de seu traçado. A maciça invasão de trabalhadores, que investiram contra a área indígena sem nenhum controle de saúde, provocou duas epidemias de sarampo (1974 e 1976/1977), contínuos surtos de gripe, malária e outras patologias que dizimaram dezenas de comunidades (Saffirio, 1980).
37Em 1975, os antropólogos Kenneth Taylor e Alcida Ramos conduziram uma pesquisa, como parte do Plano Yanoama, cuja finalidade era orientar e mitigar os efeitos do contato entre os Yanomami e os não indígenas na área de construção da Perimetral Norte. Por esse estudo concluíram que: (a) no primeiro ano de construção da estrada, 22% da população de quatro aldeias, localizadas no vale do rio Ajaraní, faleceram por causa de doenças infecciosas; (b) dos quase 250 Yanomami que moravam na região, antes do início das obras, somente 81 pessoas sobreviveram; e (c) 75% da população da região do rio Apiaú, aproximadamente 100 pessoas, desapareceram nos dez primeiros meses de construção da rodovia (Ramos & Taylor, 1979).
38Embora as obras da Perimetral Norte tenham sido interrompidas em 1976 por falta de investimentos, os efeitos dessa tragédia persistem até os dias de hoje na estrutura social das descendentes diretos dos grupos diretamente atingidos; que hoje vivem em comunidades composta por integrantes de diferentes origens, sobreviventes de grupos familiares que desapareceram em decorrência de epidemias ou do extermínio físico, por conflitos internos e ações violentas da população não indígena local.
39Pouco depois do início das obras da rodovia Perimetral Norte, o projeto RADAM, outro braço do PIN, anuncia a descoberta de jazidas de minerais radioativos e cassiterita na Serra de Surucucus, uma das zonas com a maior densidade populacional yanomami. O Ministério das Minas e Energia declara a área aberta para pesquisas minerais, e a região passa a ser considerada de interesse estratégico e de segurança nacional. Apesar disso, poucas semanas após a divulgação do RADAM, o local começa a ser ocupado por garimpeiros clandestinos e, em pouco tempo, o número de pessoas envolvidas na atividade chega a quase quinhentos (Ramos & Taylor, 1979).
40O RADAM proporciona o primeiro mapeamento geológico do estado de Roraima. Apesar da sua escala (1:1.000.000) não permitir a identificação precisa dos depósitos minerais registrados, apenas sugerir o seu potencial econômico, duas descobertas do levantamento foram capitais para impulsionar o setor mineral na região: 1) a observação de que a origem do ouro e do diamante encontrados nos aluviões estava associada à decomposição das rochas representantes do antigo escudo da Guiana, mais especificamente as formações do Conglomerado Roraima (Monte Roraima, Tepequém, Serra dos Surucucus etc.); e 2) o conhecimento de que a formação granítica ao redor da Serra de Surucucus era geologicamente favorável à ocorrência de cassiterita (Macmillian, 1995)
41Note-se que os grandes empreendimentos do período militar promoveram a abertura da região para um amplo conjunto de atores econômicos (grandes proprietários de terra, bancos, corporações, madeireiras, mineradoras, garimpeiros, pequenos agricultores etc.), que passaram a competir entre si pelo controle do espaço e dos recursos naturais. Em muitos casos, como em Surucucus, o próprio Estado, que havia dado início ao processo, perde o controle para outros agentes interessados em se apropriar desse território.
Mapa 1 – Localização dos principais locais citados no texto (1974-1991)
Fonte: Elaboração própria. Dados utilizados: Rodovias. Limite Internacional, Cidades e hidrografia (RAISG, 2021).
42Nos anos que se seguiram, o número de garimpeiros se multiplicou e as relações entre indígenas e invasores se intensificou. Atraídos pelos objetos dos brancos, em especial por ferramentas de metal e armas de fogo, comunidades inteiras foram viver nas proximidades de grotas de garimpo, expostas a novas doenças para as quais não tinham imunidade. A maior proximidade dos não indígenas, por sua vez, além dos problemas sanitários também conduziu a um processo de recrudescimento das tensões entre os grupos, que em pouco tempo derivou para a forma de conflitos violentos (Pateo, 2005).
43Diversas idas e vindas se deram desde a primeira ocupação ilegal de garimpeiros na Serra de Surucucus, foi preciso, contudo, uma importante mudança no mercado internacional da economia mineral para criar as condições de uma nova onda de invasões ainda mais avassaladora. O ouro, que até então era marginalmente explorado em Roraima nas jazidas de diamante, tem o seu preço elevado a níveis recordes (Ver Figura 2), estimulando uma mudança no foco dos garimpeiros e abrindo a perspectiva de exploração de novas áreas.
- 3 O processo de colonização agrícola em Roraima iniciou-se no âmbito do programa POLO AMAZONIA, em 19 (...)
44Nessa época, o garimpo Santa Rosa, localizado nas bordas da área Yanomami, concentrava a maior parte da produção de ouro do estado, sob a supervisão da Companhia de Desenvolvimento de Roraima (CODESAIMA), no qual trabalhavam cerca de dois mil homens. Com o seu fechamento em 1982, boa parte dos garimpeiros se deslocou para os recentes Projetos de Assentamento (PA) nas proximidades da Perimetral Norte (PA Apíaú, criado em 1981, e PA Confiança, de 1982), onde haviam recebido lotes por meio dos programas de colonização promovidos pelo governo federal3. Esses garimpeiros costumavam alternar entre o trabalho na exploração mineral (no período chuvoso) e a agricultura (no período seco) ao longo do ano, e assim, começaram a organizar pequenas expedições de exploração nas imediações dos PAs, encontrando ouro nos sedimentos dos rios Catrimani e Apíau, ambos localizados na floresta Yanomami (Macmillian, 1995).
45A descoberta de um grande depósito na cabeceira do rio Apiaú, em 1986, o garimpo Cambalacho, contribuiu então para impulsionar a invasão em direção ao território Indígena. A partir de uma trilha de duas semanas que conectava o Cambalacho ao PA Apíaú, os garimpeiros esquadrinharam a floresta em busca de outras ocorrências, abrindo novas minas e alcançando outras bacias, como é o caso do garimpo Novo Cruzado, no rio Mucajaí (Macmillian, 1995).
- 4 De 1987 a 1991, migraram para Roraima cerca de 2.400 pessoas por ano, para trabalhar no garimpo. Em (...)
46Fatores externos, porém, são igualmente importantes para compreender a escala do fenômeno. São eles: 1) o início de um período de forte recessão da economia nacional, associado a uma redução do nível de investimento do Estado e a uma política de congelamento de salários e controle de preços; 2) a migração de milhares de pessoas para Roraima, devido ao declínio na produção dos garimpos paraenses e mato-grossenses4; e 3) um clima político regional favorável aos empreendimentos na área de mineração (MacMillian 1995).
47O elemento que faltava para permitir uma verdadeira explosão do garimpo na área Yanomami, todavia, foi introduzido sob a responsabilidade do governo federal, mais especificamente do Ministério da Aeronáutica, com a ampliação da pista de pouso na região do Papiu em 1986 (Ramos, 1993a). A pista, recém ampliada no contexto do Projeto Calha Norte, dava acesso a cerca de 50 lavras pelas trilhas no meio da floresta, e facilitava a chegada a outras 30 pistas de pouso clandestinas de menor porte (Machado, 2015). O seu controle possibilitou um ganho logístico enorme, tanto para as operações de abastecimento dos garimpos já existentes quanto para viabilizar a exploração de novas áreas localizadas na direção da fronteira Brasil-Venezuela.
48De 1986 a 1990, o garimpo se espalhou por grande parte da floresta yanomami, estando presente na cabeceira de praticamente todos os tributários da margem direita do rio Branco. Estima-se que, nesse período, funcionavam cerca de 100 garimpos, onde trabalhavam aproximadamente 40 mil pessoas e 500 máquinas, abastecidos por mais de 300 aviões em 80 pistas de pouso (Macmillian, 1995).
49Os efeitos ecológicos e epidemiológicos de uma invasão dessas proporções foram devastadores para os Yanomami. A estimativa do Ministério da Saúde é de que, de meados de 1987 a janeiro de 1990, cerca de 14% da população yanomami em Roraima morreu em decorrência de doenças associadas à invasão garimpeira (Ramos, 1993b). Da mesma forma, a destruição do leito dos rios e a sua contaminação por mercúrio, óleo diesel e outros resíduos causaram danos significativos aos ecossistemas locais, impossibilitando os Yanomami de usufruir de numerosos recursos imprescindíveis ao seu sistema produtivo.
50A tentativa de extermínio físico do povo Yanomami, entretanto, ao invés de abrir espaço para a livre ocupação de sua floresta, acabou produzindo o efeito contrário, à medida que a imagem dos indígenas em situações semelhantes à de vítimas de guerra colocou-os em um lugar de destaque na arena internacional de defesa pelos direitos universais da humanidade, e essa visibilidade foi fundamental para proporcionar as ações que viriam se contrapor aos efeitos das invasões (Ramos, 1993b).
51Assim, com as notícias sobre a crise humanitária enfrentada pelos Yanomami, uma avalanche de acusações de genocídio desabou sobre o governo brasileiro, até que, em outubro de 1989, o Poder Judiciário interditou 9,5 milhões de hectares que haviam sido reconhecidos pela FUNAI como área de ocupação tradicional yanomami e ordenou ao Poder Executivo a retirada imediata dos invasores.
52Antes dessa decisão, porém, diversas manobras com o objetivo de fragmentar a TI Yanomami haviam sido ensejadas.
53A primeira dessas propostas foi apresentada no ano de 1977, em meio às disputas pelo controle do platô de Surucucus e suas jazidas de cassiterita. Após um sobrevoo que tinha por objetivo mapear as aldeias localizadas no território brasileiro e dimensionar a sua extensão, a FUNAI encaminhou um desenho no qual o território yanomami aparece recortada em ilhas, cercadas por projetos de colonização e grandes obras de infraestrutura, como estradas e hidroelétricas (Ramos & Taylor, 1979).
54Essa proposta foi imediatamente rebatida por especialistas que argumentavam que o projeto, além de não contemplar todas as aldeias mapeadas e obliterar outras já reconhecidas em mapeamentos anteriores, desconsiderava aspectos essenciais dos arranjos políticos e do sistema produtivo yanomami, ambos baseados em intensa mobilidade espacial e amplas áreas de uso (Ramos & Taylor, 1979). E, com o objetivo de pressionar o Estado brasileiro para que fosse realizada a demarcação de uma área contínua e adequada às necessidades dos Yanomami, foi formada, em 1978, a Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), que se dedica a uma campanha nacional e internacional de sensibilização da opinião pública.
55A partir de 1980, porém, o processo de delimitação de Terras Indígenas passou a incluir outros órgãos governamentais além da FUNAI, julgada “vulnerável demais” às pressões políticas de índios e indigenistas. O grupo interministerial que assumiu essa função estava, então, sob a direção dos Ministérios do Interior e de Assuntos Fundiários, pastas controladas por atores historicamente refratários às reivindicações indígenas, o que inviabilizou o avanço de inúmeros processos (Albert, 1991).
- 5 Decretos 97.512 a 97.530, de 16 de fevereiro de 1989.
56De tal modo, apesar de a FUNAI ter encaminhado uma proposta de demarcação que previa a criação do Parque Yanomami em área contínua já em 1985, três anos depois, no auge da corrida pelo ouro, um conjunto de decretos interministeriais5 reedita o projeto de desmembramento do território Yanomami com a criação de 19 Áreas Indígenas (AI) circundadas por Florestas Nacionais (FLONA) (Ver mapa 2, onde elas aparecem em verde hachurado).
57Note-se que os decretos previam a redução da área de uso exclusivo indígena para cerca de 30% da área total, enquanto os demais 70% estariam sob o regimento das Florestas Nacionais, Unidades de Conservação (UC) cuja finalidade é a exploração econômica, nas quais a mineração é legalmente possível. Não por acaso, alguns autores consideraram as FLONAs como uma espécie de “cavalo-de-troia ambiental” (Albert & Tourneau, 2004), uma vez que buscava se legitimar em torno de um discurso conservacionista, enquanto seus objetivos reais eram diametralmente opostos.
58Pouco tempo depois, precisamente nas áreas das FLONA’s , três reservas de garimpagem foram criadas circundando as Áreas Indígenas: 1) Uraricoera, 2) Uraricaá‐Santa Rosa e 3) Catrimani‐Couto de Magalhães (Albert, 1991).
Mapa 2 – Proposta de desmembramento do território Yanomami (1985) e proposta de reservas garimpeiras (1985) em relação à área homologada em 1992.
Fonte: Elaboração própria. Dados utilizados: Limite Internacional, Cidades e hidrografia (RAISG, 2021); Projetos de Assentamento (Compilação das áreas de projeto de assentamento do INCRA em Roraima feita pelo autor); Reservas garimpeiras e propostas de Áreas Indígenas em “ilhas” (Desenhado pelo autor a partir de Le Tourneau (2020).
59Somente no governo Collor de Melo (1990-1992), em um contexto de crescente pressão da opinião pública e dos Bancos multilaterais credores do Brasil, é que a situação fundiária volta a ser favorável aos Yanomami. No dia 19 de abril de 1991, o presidente, agindo de acordo com as medidas iniciadas pelo Ministério Público e Justiça Federal em 1989, assina um decreto declarando insubsistentes os decretos do governo anterior e determina a revisão do processo demarcatório. O mesmo ato revogou também as três reservas garimpeiras criadas poucos anos antes.
60No semestre seguinte, após apresentação do estudo com um novo modelo de delimitação da Terra Indígena, finalmente o Ministro da Justiça assina uma nova Portaria, de nº 580, declarando como posse permanente dos Yanomami um território contínuo de 9 milhões de hectares nos estados de Roraima e Amazonas.
61A TIY só chegou a ser homologada, porém, no contexto da Conferência ECO-92 da ONU no Rio de Janeiro.
62Durante e após a demarcação, foram iniciadas diversas operações para a retirada dos garimpeiros da área. Esse processo foi longo e repleto de obstáculos. Nos primeiros anos após a Homologação, a FUNAI estimava a presença de aproximadamente onze mil garimpeiros atuando ilegalmente na Terra Indígena. Em 1993, novas operações de desintrusão foram realizadas e esse número foi reduzido para seiscentas pessoas. Todavia, a capacidade dos garimpeiros de recuperar as pistas dinamitadas pelas operações e retomar as atividades nas minas, associada à falta de vontade política para estabelecer programas de proteção permanente acabaram por transformar o garimpo e suas consequências em um problema crônico e cíclico na TI Yanomami.
63Dialeticamente, a tentativa de fragmentação e expropriação do espaço de vida yanomami acabou por produzir também as condições para a formação do seu território político.
64Entre os materiais produzidos nas línguas yanomami, tem sido comum encontrarmos propostas de tradução do termo território, geralmente apresentado como Urihi a. Esta tradução aparece no dicionário Yanomamɨ-Español / Espanõl-Yanomamɨ, organizado pela linguista Mattei-Muller (2007) com a colaboração de Jacinto Serowë, e também nas versões yanomamɨ e yanomae do Plano de Gestão Territorial e Ambiental da Terra Indígena Yanomami (Vieira & Lima, 2019).
65Da mesma forma, em algumas publicações das associações indígenas yanomami, como é o caso do mapa-folder “Território e Comunidades Yanomami: Brasil-Venezuela” (Tillett et al. 2014), é possível encontrar o termo território como sinônimo de Terra Indígena, ou Habitat y Tierra Indígena, para o caso da Venezuela.
66Essa aproximação entre território e Urihi a, apesar de impor limites à riqueza teórica da categoria indígena, pode ser interpretada como um exercício de “equivocação controlada” (Viveiros de Castro, 2018) realizado pelas lideranças yanomami, que entreviram no conceito de território o seu real significado para os “brancos”, ou seja, como algo essencialmente articulado à ideia de poder (Raffestin, 1993), e, a partir dessa compreensão, elaboraram uma estratégia para fazer frente ao processo de expropriação promovido pelo avanço da fronteira econômica regional.
67Não por acaso, a principal e mais atuante associação indígena da TIY é denominada Hutukara, nome xamânico do antigo céu que caiu para compor a terra-floresta de hoje. Para seus fundadores, esse é um nome que enfatiza o seu caráter de associação defensora da terra-floresta (urihi noamatima a wãaha) (Kopenawa & Albert, 2015).
68A Associação foi criada em 2004, na comunidade Watorikɨ, região do Demini, tendo Davi Kopenawa como presidente. Desde que começou os seus trabalhos de defesa dos direitos indígenas, ela tem desenvolvido ações principalmente nas áreas de proteção e gestão territorial, tais como: a sistematização de denúncias sobre a presença de garimpeiros para serem encaminhadas aos órgãos públicos; a construção de um programa de vigilância do Limite Leste da TI; e a elaboração do Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) da TIY.
69Mais recentemente, a Associação também tem se dedicado a projetos que buscam oferecer uma alternativa de renda para as comunidades a partir de suas atividades produtivas, como o apoio à venda de artesanatos, e à comercialização de castanhas-do-Brasil, produtos da roça e cogumelos. Nas oportunidades em que se pronunciam sobre esse apoio às comunidades, as lideranças fazem questão de destacar como as iniciativas procuram, de alguma forma, oferecer uma contra narrativa aos discursos de seus inimigos no campo da política nacional, que insistem em dizer que as Terras Indígenas são áreas improdutivas, ou repetir a velha máxima de que “há muita terra para pouco índio”.
70Outros destaques da Hutukura são as ações que ela estabelece visando à comunicação com as suas “bases”. Todos os anos, a Associação participa de uma série de reuniões em diferentes aldeias e promove encontros temáticos e regionais. A cada quatro anos, são realizadas assembleias gerais, que congregam muitas aldeias, quando é eleita a diretoria. Finalmente, há também o projeto para instituição de um sistema de radiofonia com frequência própria, com o objetivo de aprimorar a troca de informação entre as aldeias e a associação sobre questões variadas.
71De tal modo, considerando o escopo de atuação da Associação Indígena não seria demasiado propor que, de um ponto de vista mais amplo, o seu principal trabalho poderia ser interpretado como um contínuo exercício de construção e atualização do território político yanomami no Brasil, garantindo não apenas a sua integridade física, mas também a sua sustentação simbólica. O que não é nada trivial, tanto em função das pressões externas (invasões e manobras legislativas), quanto das dificuldades inerentes de se promover um englobamento étnico-territorial de centenas de aldeias que estabelecem relações intercomunitárias sempre contextuais e específicas.
72Note-se que essa estratégia não é uma particularidade do caso yanomami. Muito pelo contrário, trata-se de uma constante no processo do contato interétnico que, além de readaptações territoriais e territorializações, em muitos casos, também demanda aos povos indígenas a construção de novas identidades e historicidades (Alexiades, 2009; Gallois, 2004). Tampouco, trata-se um fenômeno recente, pois, para muitos povos o processo de disputa territorial remonta aos princípios da invasão europeia.
73No caso dos Yanomami, contudo, a intensidade da disputa territorial enfrentada nos últimos 50 anos torna ainda mais evidente a importância do contexto do contato para a construção do que viria a se tornar o seu território demarcado, tanto do ponto de vista físico quanto simbólico. Expandindo o sentido original do conceito de terra-floresta (Urihi a), por um lado, e reduzindo-o, por outro.