1Reterritorialization and aboriginal right as a means to recover the land and territories of indigenous peoples of the Médio rio Solimões (AM)
2Os povos indígenas, ao longo do processo de invasão e colonização, estabeleceram diversas formas de resistência e reexistência. A diversidade de formas tanto do processo colonial como das culturas e agências dos povos indígenas frente à violência dos não indígenas resultou em múltiplos processos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização.
3As relações dos povos indígenas com seus territórios, especificamente no rio Solimões, foram influenciadas pelas explorações extrativas de produtos locais, como borracha, sorva, balata, juta, entre outros, assim como pelo avanço de uma sociedade capitalista, que tem trazido consequências devastadoras, como a perda da língua, a marginalização social, os deslocamentos dos seus territórios e a integração cultural à sociedade nacional.
4Os povos indígenas do Médio rio Solimões (AM) passaram por processos de desterritorialização quando expropriados de suas terras e levados a se integrar à sociedade regional sob outras denominações identitárias em função da discriminação e da marginalização que sofreram ou porque lhes eram negadas as suas identidades como povos originários. Muitos se assumiram como ribeirinhos e caboclos, pois a discriminação era menor, embora ainda constante para os povos indígenas. Nesse sentido, tiveram que se reterritorializar seja ocupando outras terras e territórios, seja permanecendo nas suas, confinados a terrenos ou lotes, possibilitando o surgimento de novas territorialidades, porém, alicerçadas nas suas culturas.
5Essa negação cultural que os povos indígenas sofreram por várias décadas viu-se influenciada pelo reconhecimento de direitos dos povos conquistados por meio da luta do movimento indígena organizado e, pouco a pouco, foram ressurgindo identidades que pensavam ter sido esquecidas. Assim, vários povos, entre eles Kokama, Kambeba e Miranha, que mais sofreram com esse processo, começaram a se autodeclarar e a reivindicar suas identidades e demarcação de suas terras.
6A morosidade e a ineficiência do Estado para a demarcação das Terras Indígenas (TIs) nessa região são marcantes, há casos em que solicitações feitas há mais de 10 anos ainda não tiveram sequer a etapa dos estudos de delimitação e de identificação. A violação dos direitos territoriais dos povos indígenas que não têm demarcadas as suas TIs intensifica a vulnerabilidade destes, pois seus territórios são invisíveis para o Estado, não aparecem nas bases cartográficas, não estão referenciados no Sistema de Gestão Fundiária do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (SIGEF-INCRA) ou da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), sendo propícios a todo tipo de invasão, utilização ilegal dos recursos e tentativas de expropriação.
7Este artigo, pretende demonstrar a reconquista da terra e do território pelos povos indígenas do Médio rio Solimões por meio dos processos de reterritorialização e de etnogênese como estratégia de resistência para manutenção da vida como povo. Ao longo do trabalho, também são apresentadas as características sui generis do caráter originário dos direitos territoriais indígenas, pontuando como estes devem ser interpretados nesse contexto. As análises são resultado do levantamento de dados em sites oficiais da FUNAI, Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Instituto Socioambiental (ISA) e em livros; em trabalho de campo desenvolvido por meio de metodologias participantes; em oficinas de gestão do conhecimento; e em mapeamento participante, de 2018 a 2019, durante a realização do Estudo Ambiental da Área Sedimentar do Solimões (EAAS).
8O mapeamento participante teve como meta identificar os territórios tradicionais dos povos indígenas para dar visibilidade aos processos de retomada tanto da sua identidade como desses territórios.
9Neste artigo, considerou-se apenas os povos indígenas do Médio rio Solimões, onde os processos de reterritorialização e etnogênese são mais evidentes. Discutiu-se a importância e a concepção da terra e do território para os povos indígenas, o direito originário fundamental para entender a relação com a terra; demonstrou-se a invisibilização da desterritorialização pelo colonialismo, a etnogênese como resistência e retomada da identidade pelos Kambeba, Miranha, Kokama e Mura, e a luta pela reconquista dos territórios por meio da reterritorialização, das novas territorialidades pelos povos indígenas do Médio Solimões.
10O conceito de território na geografia pode ter várias concepções em função de suas escolas. Porém, sempre relacionado ao poder (Raffestin, 1993; Haesbaert, 2010), sendo resultado das relações culturais e do meio definido pelos diferentes sujeitos sociais que dele se apropriam. É um conceito da sociedade ocidental, mas que existe na prática desde primórdios da ocupação do planeta pela humanidade. No entanto, para muitos povos indígenas, habitantes, em particular, do Alto rio Negro e do Médio rio Solimões, no Amazonas, esse conceito não existe no universo linguístico, sendo apropriado pelo contato com a sociedade nacional (Faria, 2003, p. 105).
11Território se confunde com a visão indígena de terra. Seria uma extensão do conceito de terra, que adquiriu um cunho político conjuntamente com a ideia de limite. Em tempos passados, os povos indígenas não precisavam pensar em limites para caçar, pescar, coletar ou fazer roça. A terra não tinha limite, agora tem. Nasce, então, a concepção de território, terra com limites. Portanto, houve a apropriação diante da necessidade pelo contato com a sociedade ocidental do termo território pelos povos indígenas com o significado de terra com limites. Não há diferença entre a terra e o território para os povos indígenas, passando a ter o mesmo significado e importância.
“(...) na concepção tradicional, original não existia o termo território. Não teria sentido discutir isso. O sentido de território só existe após o contato. Antes do contato, o índio podia ir e vir, ele definia sua própria vida, seu destino sem tutela, sem nada e sem pré-condições. Depois do contato, há pré-condições. Estas são impostas pela dominação, pela exploração, pela violência. E você precisa afirmar-se. Antes não, a natureza te garante isso. A terra te garante isto. Por isto a terra é tudo. Depois a terra já não é tudo. Você precisa de elementos políticos. Aí você tem um conceito de território, que tem sentido de poder, sentido de domínio e de limite. Território é limite. É você limitar o espaço. A terra é uma coisa ilimitada, ilimitável. Ela é tudo. Como você vai considerar limite numa concepção ilimitada de terra que seria o território! Não tem como fazer a relação. Só é possível pensar o território depois do contato porque você limita as coisas. Na visão tradicional posso estar em qualquer ponto do universo, eu estou no mesmo espaço, com os mesmos direitos, com os mesmos deveres, o que não acontece hoje” (Santos, 1996 apud Faria, 2003, p. 105-106).
12Para os povos indígenas que habitam o Brasil, terra é tudo, passado, presente e futuro. Casa dos espíritos, da memória, dos ancestrais e de suas descendências. Não há como desvincular a origem da humanidade da terra. Humanidade e todos os seres, vivos ou não, fazem parte da terra numa visão integrada de mundo. Terra e território não são mercadorias e não têm preço, mas são e estão ligados diretamente à existência desses povos.
“A demarcação da terra contínua significa para os índios o futuro de suas gerações. Por que nós estamos lutando por isto? Porque nós percebemos que estamos perdendo espaço dentro da nossa própria terra com invasões, grandes projetos econômicos e penetração de políticos e empresários. (...) o governo acha que determinada extensão de terra é suficiente para certo grupo. Isto não é verdade porque nós vivemos na terra, andamos na terra, usamos a terra. A terra é atividade cultural, ritual para outros tipos de sobrevivência. (...) o índio sobrevive da terra. A terra é quem dá sustentação. Por isto é preciso ampliar, é preciso que a terra seja suficiente para manter esta sobrevivência. A terra significa vida” (França, 1996, apud Faria, 2003, p. 97).
“Terra também não serve de lucro para a gente. Terra é onde moramos, nascemos e vivemos. Não é igual à dos brancos, que quando estão cansados de viver nela, procuram outra, vendem e vão embora para outro canto. Para o índio não existe isto. Terra é muito mais que um pedaço de chão” (José, 1996 apud Faria, 2003, p. 102).
13Em tempos atuais, a terra e o território são discussões associadas à autonomia e ao direito de sobrevivência física e cultural dos povos indígenas no Brasil. Não se trata de trazer a concepção de território do Estado Nacional vinculada à visão weberiana e tampouco a concepção de terra associada à visão capitalista com valor de troca, que é considerada como mercadoria, apenas uma porção da superfície na qual lhe é atribuída um valor como propriedade privada e limites de poder ou mesmo da ciência ocidental e da academia. Trata-se de reconhecer e aceitar as epistemologias próprias desses povos.
14É difícil para a sociedade capitalista entender essa concepção de terra e território dos povos indígenas, pois não a consideram como mercadoria e propriedade privada. O uso e a posse da terra e do território são coletivos. Não há a necessidade da propriedade privada por cada família, clã, pois eles sabem os limites de seus usos pois a terra é tudo.
15Cada aldeia ou comunidade é delimitada por marcas naturais como curvas de rios, afloramentos rochosos e igarapés. A mata é repartida entre as diversas famílias para estabelecerem suas roças. O território para a caça e a pesca não é limitado, podendo cada um pescar e caçar onde quiser, dentro dos limites dos espaços que definem como aldeia e comunidade (Buchillet, 1993, p. 23).
16Na visão do Estado, terra é apenas uma categoria jurídica, uma porção superficial do território, cabendo aos povos indígenas apenas o direito ao usufruto e não à sua propriedade, sem a possibilidade de geri-la como decidirem.
17A categoria espacial jurídica Terra Indígena (TI) reconhecida pela Constituição Federal de 1988 (CF/1988), mesmo sendo um avanço para os povos indígenas por ser reconhecida esta como um direito fundamental, e sua demarcação ser apenas um ato administrativo, limita e reduz o tamanho real da terra e do território na concepção indígena. O que se demarca não é a terra ou o território, mas apenas uma parte porque a maioria da sociedade nacional é preconceituosa e discriminatória em relação aos povos indígenas enquanto os políticos, os latifundiários, as mineradoras, os garimpeiros, os madeireiros afirmam ser “muita terra para pouco índio”.
“Acho que o governo, ao demarcar estas ilhas, continua tendo uma visão simplista de que o índio e um pedaço de terra sobrevive. (...) só é capaz de admitir hoje a coexistência da própria terra enquanto elemento único para a questão da vida indígena hoje” (Santos, 1996 apud Faria, 2003, p. 101).
18À luz do Estado Nacional Moderno, só pode haver uma Nação e um Território, negando a existência de mais de 305 povos e nações nesse território. Os Indígenas são reconhecidos como grupos culturais ou etnias, tirando-lhes o status político e social de serem povos, nações (Faria, 2003, p. 108).
19Na prática, TI só é reconhecida após o processo administrativo de regularização fundiária realizado pela FUNAI. De forma geral, os preceitos constitucionais, no que se refere à proteção e à inviolabilidade das TIs, estão sendo desrespeitados por grupos econômicos (madeireiras, mineradoras, latifundiários) e políticos, incluindo o próprio Estado Brasileiro (ISA, 2020; CIMI, 2021).
20Para efeitos do estudo realizado na mesorregião do Médio rio Solimões, Amazonas, foi necessário discutir a concepção de TI do Estado Brasileiro trazida pela CF/1988 e pelos procedimentos administrativos promovidos pela FUNAI para posteriormente definirem-se as categorias TI demarcada e TI Sem Providência a fim de fundamentar a existência das TIs mesmo não sendo regularizadas para que possam ser protegidas de futuras explorações.
21O direito dos indígenas ao território é reconhecido pela legislação desde o século XVII, por meio das Cartas Régias de 30/07/1609 e de 10/09/1611, promulgadas por Felipe III, que reconheceram o domínio sobre seus territórios e as terras onde estão as aldeias.
22Na atualidade, o direito à terra ou ao território pelos povos indígenas encontra-se regulamentado no artigo 231 da CF/1988, que estabelece que: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. (...)” (Brasil, 1988). Isto nos traz um novo entendimento do direito dos povos indígenas sobre suas terras.
23Este reconhecimento representa um importante instrumento para a luta dos povos indígenas, pois deixa atrás a ideia de assimilação dos povos, que vinha se reforçando na legislação brasileira que lhe antecedeu. Depois dos povos indígenas verem suas terras invadidas, suas culturas discriminadas e seus direitos negados, a constituinte reconheceu a importância que a organização social, o costume, as línguas, as tradições e as crenças assim como os direitos sobre suas terras têm na sobrevivência física e cultural desses grupos sociais.
24O direito originário sobre suas terras representa o fundamento para uma retomada de suas terras/territórios que uma vez foram usurpados. O direito originário é sustentado pelo reconhecimento expresso do artigo 231, que por sua vez traz uma instituição do direito lusitano do ano de 1680, para constituir a teoria do indigenato.
“(...) E para que os ditos Gentios que assim decerem e os mais que ha de prezente milhor se conservem nas Aldeas, Hei por bem que sejão senhores de suas fasendas como o são no Certão sem lhe poderem ser tomadas nem sobre elles se lhes fazer molestia, e o Governador com parecer dos ditos Religiosos assignará aos que descerem do Certão logares convenientes para nelles lavrarem e cultivarem e não poderão ser mudados dos ditos logares contra sua vontade, nem serão obrigados a pagar foro ou tributo algum das ditas terras, ainda que estejão dadas em sesmaria a pessoas particulares por que na concessão destas se reservaria sempre o prejuiso de terceiro, e muito mais se entende e quero se entenda ser reservado o prejuiso e direito dos Indios primarios e naturaes Senhores dellas (...)”.
25Assim, desde 1680, já se reconheciam aos povos indígenas como os primários e naturais senhores das terras que ocupavam. Cabe ressaltar que esse reconhecimento tinha um objetivo: dominar e aldear os povos “selvagens”, “incivilizados”. Para isso foi necessário que as companhias religiosas, os comerciantes e a coroa portuguesa se unissem para que o território da Amazônia formasse parte dos domínios da coroa portuguesa, e os povos que lá habitavam fossem evangelizados, com inúmeros deslocamentos forçados, cujas consequências ainda na atualidade são visíveis (Buchillet, 1993).
26É essencial ressaltar a importância que o direito originário dos povos indígenas tem, mesmo com posicionamentos em contrário, na fundamentação das novas territorializações que os povos indígenas no Médio Solimões vêm experimentado.
27A CF/1988, ao reconhecer o direito originário dos povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam, reconhece também todo esse processo de deslocamentos, invasões e violência que vêm sofrendo desde a colonização. Esse reconhecimento conseguiu-se pela luta de grandes lideranças do movimento indígena organizado, lideranças das bases, acadêmicos, movimentos sociais, ambientalistas e indigenistas. Além desse reconhecimento expresso do direito originário, encontramos no artigo 231 que o constituinte define o que são terras indígenas tradicionalmente ocupadas:
“§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes (Brasil, 1988).
28A CF/1988 reconhece não somente os direitos originários (art. 231) sobre as terras tradicionalmente ocupadas, mas também o direito de propriedade, ao afirmar no artigo 20 numeral XI, que essas terras são bens da União. Esse direito de propriedade num sentido não do direito civil, mas específico, permite o usufruto exclusivo dos povos indígenas e o exercício da autodeterminação nesse território delimitado. A propriedade dessas terras corresponde à União, não para fazer uso delas, mas para protegê-las e permitir sua utilização pelos povos por várias gerações. Essa propriedade não é exercida de forma ilimitada para União, pois uma vez demarcada e utilizada de forma tradicional e permanente pelos povos indígenas, possuem o direito de usufruto exclusivo, não podendo, assim, a União dispor da sua propriedade (Silva 1998, p. 5).
29Nesse sentido, surgem dois elementos importantes no artigo 231, que são a tradicionalidade e o caráter permanente da TI.
30Para entender o que se estabeleceu por “caráter permanente” das terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, precisamos esquecer o sentido que o direito civil nos traz de possessão e propriedade. Esse esquecimento permite entender o fato de que as TIs sejam de propriedade da União, pois procura-se proteger o direito originário sobre estas, precisando lhe outorgar uma ideia atemporal (Silva, 2016, p. 16). Portanto, quando a constituição afirma que os povos indígenas têm direito às terras que tradicionalmente ocupam com caráter de permanência, se refere a uma permanência sem a ideia de uma data específica de ocupação e sua continuidade através do tempo, e sim de presente, passado e futuro.
31Quando a CF/1988 reconhece que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios se destinam à sua posse permanente, isso não significa um pressuposto do passado como ocupação efetiva, mas, especialmente, uma garantia para o futuro, no sentido de que essas terras inalienáveis e indisponíveis são destinadas, para sempre, ao seu habitat. Esse aspecto é muito importante, pois os indígenas, durante muito tempo, ficaram impossibilitados de ocupar seus territórios por vários motivos, como deslocamentos forçados, invasões, genocídios.
32Já sobre o elemento da tradicionalidade, encontramos que este não se refere a uma questão temporal, isto é, não se exige que as terras sejam ocupadas desde tempos imemoriais, nem que exista uma data de ocupação:
“A Constituição Federal de 1988 manteve o instituto constitucional brasileira do indigenato, reconhecendo aos povos indígenas o direito territorial sobre as terras tradicionalmente ocupadas. Contudo, o texto constitucional foi além, desvinculou direito das comunidades indígenas da perspectiva arqueológica e da linearidade temporal, não exigindo uma posse imemorial e nem a sua datação, mas a sua tradicionalidade (Viegas, 2015, p. 56)”.
33O termo de “terras tradicionalmente ocupadas”, que foi o produto de um embate político entre povos indígenas, organizações indigenistas e os constituintes, pois existia conflito de interesses, representou uma vitória para os povos indígenas no reconhecimento do seu direito ao território. Ao falar de tradicionalidade, a CF/1988 refere-se à forma como os povos indígenas se relacionam com a terra, não o tempo durante o qual estes o habitam e sim os costumes e as tradições que desenvolvem para habitá-la:
“O tradicionalmente refere-se, não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional de como eles se relaciona com a terra, já que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm espaços mais amplos pelo qual se deslocam et. Daí dizer-se que tudo se realize segundo seus usos, costumes e tradições (Silva, 2005, p. 856)”.
34Portanto, segundo a CF/1988, pode-se concluir que TIs são aquelas ocupadas pelos povos indígenas de forma tradicional, com caráter de permanência, que correspondem a áreas suficientes para que possam se desenvolver física e culturalmente, e é responsabilidade da União demarcá-las.
35A demarcação é um ato administrativo que outorga segurança jurídica aos povos indígenas, não sendo um ato constitutivo do direito, pois este é originário. Entra-se aqui num outro conflito, pois são muitos os adeptos a acreditar que TIs são somente aquelas demarcadas, que concluíram todo o processo administrativo.
36O respeito e efetivo cumprimento desse direito representa uma batalha tanto no âmbito jurídico como na luta social dos povos indígenas. No âmbito jurídico, porque existem interpretações afastadas do espírito da norma, que seguem interesses de setores anti-indígenas, e que tentam aplicar aos direitos dos povos indígenas concepções do direito civil. E, no âmbito da luta social, existem muitas TIs tradicionalmente ocupadas que, somente depois que são demarcadas, finalizando com a homologação e registro, são reconhecidas e respeitadas como tal. Em muitos casos, a homologação não libera essas terras das invasões para explorar os recursos que nelas existem.
37Se o artigo 231 estabelece o que são TIs, e que a demarcação destas representa uma segurança jurídica para os povos e seus territórios, podemos afirmar que existem vários tipos de TIs, segundo o momento em que estas se encontram no processo demarcatório, ou fora dele (quadros 1 e 2).
38O conceito de TIs tradicionalmente ocupadas dado pela constituição é lato sensu, o conceito dado pela FUNAI é stricto sensu e se refere à categorização administrativa de uma das modalidades de regularização fundiária das TIs tradicionalmente ocupadas. Ou seja, adota essa nomenclatura para se referir a um tipo de TI, as que passam pelo processo administrativo disciplinado pelo Decreto n.º 1.775/96 (Em estudo/identificação; Delimitação; Declaração; Homologação; Regularização), considerando que existem outros processos possíveis para a assegurar o direito originário sobre as TIs.
Quadro 1 Terras indígenas conforme Constituição de 1988
Fonte : ISA, MPF, 2020
Quadro 2 Terras indígenas conforme estágio do processo demarcatório
Fonte : ISA, Funai, 2020
39São as TIs de que trata o art. 231 da CF/1988, cujo processo de demarcação é disciplinado pelo Decreto n.º 1.775/96 (FUNAI, 2020). Assim, o procedimento administrativo demarcatório é uma forma adotada pelo Estado para proteger os povos indígenas diante de ameaças e riscos à sua sobrevivência física e cultural. O ato de demarcação é de natureza declaratória e não constitutiva.
40O direito à terra é um direito fundamental dos povos indígenas, essencial para o exercício do direito à vida, da dignidade humana e para o exercício dos direitos culturais. O direito à terra dos povos indígenas é originário e anterior à formação do Estado brasileiro. Portanto, TIs são aquelas ocupadas pelos povos indígenas, estejam regularizadas ou não.
41Para fins do EAAS, denominam-se TIs demarcadas aquelas que constam na base de dados georreferenciados disponibilizada no portal oficial da FUNAI. São incluídas nessa categoria TIs tradicionalmente ocupadas em várias fases do processo administrativo demarcatório a partir da sua delimitação até a regularização. Inclui tanto TIs com o processo demarcatório concluído, como TIs sob demarcação, mas que já foram delimitadas e tiveram seus limites amplamente divulgados, de forma que logram a subsidiar relativa proteção territorial e amplo reconhecimento administrativo da ocupação tradicional.
42Consideram-se TIs Sem Providência aquelas ocupadas e reivindicadas pelos povos indígenas, mas que ainda não tiveram os limites definidos a partir de relatório de identificação e delimitação publicado pela FUNAI. Portanto, estão aguardando o estudo de identificação e delimitação, ou seja, sem garantia dos direitos territoriais. São TIs reivindicadas com processo junto às associações indígenas, ao CIMI ou à FUNAI (neste último caso, os processos encontram-se ainda em estudo ou paralisados na etapa inicial de recebimento da demanda e instauração do Grupo de Trabalho de identificação e delimitação da TI).
43A mesorregião do Médio rio Solimões é território de aproximadamente 11 povos (Kokama, Kambeba, Mura, Arara, Miranha, Kanamari, Kulina, Tikuna, Mayoruna, Munduruku, Kaixana), alguns com terra demarcada e outros, não. Esses povos vêm sofrendo processos de violência física e simbólica e muitos deixaram de falar a língua materna, de fazer seus rituais e práticas culturais que os definiam como povo por receio da discriminação e da violência.
44O Solimões foi alvo de intenso processo de exploração extrativista da borracha, da sorva, da balata, da juta, entre outros produtos. Os indígenas foram utilizados como mão de obra nessa cadeia produtiva, mesma atividade executada pela população ribeirinha que já habitava essa região e por migrantes nordestinos que vieram em meados do século XIX. A relação de trabalho era desumana e semiescrava e o processo colonial de integração está documentado por vários pesquisadores e viajantes (Barbosa, 1998; Reis, 1966).
45Nesse sentido, os povos Kambeba, Kokama, Miranha e Mura foram os que mais sofreram com o processo colonial civilizatório e acabaram por perder a língua materna e deixaram de praticar muitas de suas tradições. Assim, com a garantia e o reconhecimento dos seus direitos na CF/1988, esses povos estão retomando suas identidades étnicas e, ao mesmo tempo, conquistando suas terras.
46Ressalta-se que as expressões culturais de um povo, como língua, costumes, formas próprias de aprender, tecnologias sociais, tradicionais orais são de fundamental importância para a manutenção de sua memória, sua identidade cultural e suas territorialidades a partir da relação com o território. Muitos povos indígenas mantêm suas tradições apesar do forte movimento da sociedade ocidental e das políticas governamentais implementadas para a integração à sociedade nacional.
47O processo colonial implementado pela Coroa portuguesa, por meio dos aldeamentos e da pacificação associados à imposição de um novo sistema econômico, promoveu o início da negação de suas identidades étnicas e a desterritorialização desses povos, uma vez que foram obrigados a deixar (invasões e expulsões) ou a reorganizar seus territórios conforme modos de vida e cultura alheios aos seus.
48É importante entender que a desterritorialização ocorre quando há mudanças socioespaciais na relação dos sujeitos com o território, promovendo uma reterritorialização e a produção de novas territorialidades. Pode ocorrer tanto com ou sem o deslocamento dos sujeitos de seus territórios. Nesse sentido, a etnogênese pode ser entendida como parte desse processo, ao mesmo tempo que se configura como a resistência desses povos face ao processo colonial.
49Com a mudança na legislação e a revalorização recente das culturas indígenas no final do século XX e XXI, desencadeou-se o fenômeno da etnogênese como um movimento de resistência e autoidentificação dos povos indígenas principalmente na região do Solimões. Dentre os grupos que vêm solicitando a identificação étnica constam os Kambeba, Miranha, Kokama, Mura e Mayoruna, que historicamente foram levados a negar e esquecer suas raízes culturais e identitárias face ao processo colonial civilizatório e a discriminação da sociedade nacional contra os povos indígenas de forma geral.
50O termo etnogênese passou a ser usado na análise dos recorrentes processos de emergência social e política dos grupos tradicionalmente submetidos a relações de dominação (Hill, 1996). Em alguns casos, identificam-se elementos comuns que se referem à dinamização e à atualização de antigos grupos étnicos cujos membros foram induzidos ou obrigados a renunciar suas identidades étnicas, mas que se recuperaram, em um processo de resistência, por esperarem potenciais benefícios coletivos. Às vezes, isso ocorre devido à desestigmatização da filiação étnica, mas frequentemente também às novas legislações que conferem direitos antes negados, como o acesso à terra ou a programas de apoio social ou econômico (Bartolomé, 2006). Porém, é melhor evitar o entendimento de que os povos indígenas estejam renascendo ou ressurgindo conforme afirmam alguns pesquisadores, pois não se trata disso, mas de resistência travada pelos povos face a CF/1988, que lhes garantiu autonomia sobre suas terras e suas vidas.
51É um fenômeno histórico decorrente de um direito e de uma mudança de percepção frente aos povos indígenas, antes muito mais estigmatizados. Está presente em toda a bacia do rio Solimões, principalmente no Médio Solimões, entre os municípios de Anori a Jutaí, tendo menor incidência nas calhas do rio Juruá e do Vale do Javari.
52A etnogênese vem explicar a surgimento de processos de demarcação de várias terras, que neste estudo estão representadas no grupo terras tradicionalmente ocupadas sem providência (reterritorialização) com processo registrado na FUNAI ou nas associações de base ao longo principalmente das áreas de várzea das calhas dos rios Coari, Solimões e Tefé. Inicialmente, há a autoidentificação coletiva de uma comunidade que envia solicitação à FUNAI e, posteriormente, ocorre o processo de reivindicação de demarcação do território que ocupam como TI.
53Diferentemente do que acontece na maioria dos casos, em que as TIs são demarcadas por povo, nos últimos anos, no Médio rio Solimões, algumas foram demarcadas com ocupação e posse por povos diferentes como: a TI Cajuhiry Atravessado, homologada em 2015, de posse dos Kambeba, dos Miranha e dos Tikuna; a TI Barreira da Missão, homologada em 2010, de posse dos Kambeba e dos Kokama; a TI Rio Biá, homologada em 1997, de posse dos Katukina, dos Kulina e dos Kanamari. Esse fato expressa o processo de reterritorialização e a construção de novas territorialidades pelos quais os povos habitantes dessa região vêm passando.
54Esse processo de identificação étnica promove conflitos interétnicos entre alguns povos que não reconhecem a solicitação do outro grupo étnico; o aumento da discriminação da sociedade nacional em relação aos resistentes; fragilidade das suas organizações comunitárias e as dificuldades ainda maiores para acessar as políticas públicas específicas para indígenas, como o Registro Administrativo de Nascimento de Indígena (RANI), a educação indígena, os postos de saúde do Distrito Sanitário Indígena, as ações afirmativas, como vagas por cotas nas universidades e outros programas governamentais de acesso a financiamentos e projetos.
55Os indígenas em processo de resistência estão em situação de vulnerabilidade tanto social quanto territorial, por um lado, por não serem totalmente reconhecidos como indígenas por uns e por não conseguirem a efetivação da proteção legal referente às políticas públicas específicas e à demarcação de suas terras.
56As metodologias participantes, são práticas metodológicas não extrativistas, fundamentadas numa visão decolonial e democrática/comunitária, em uma construção conjunta e contínua que reúne vários sujeitos sociais envolvidos diretamente nos projetos ou atividades que se querem realizar significa construir junto, permitindo a formação e a qualificação dos “atores” considerados como sujeitos, protagonistas do processo histórico. Estas têm como pressupostos o envolvimento dos povos/comunidades como sujeitos, visando legitimá-los, dando-lhes visibilidade, e maximizar o impacto social tanto do resultado da pesquisa quanto dos processos pedagógicos e da partilha dos conhecimentos ao longo do processo promovidos pela leitura crítica de suas sociedades.
57Não se trata de elaborar e desenvolver projetos e atividades para eles, de forma exógena e alienígena, de fora para dentro. Mas, com eles, coletivamente, de dentro para fora, em uma relação sujeito-sujeito, que possa promover a autonomia, a emergência de epistemologias próprias e uma formação crítica tanto com povos indígenas e demais sociedades no/do sul.
“As oficinas participantes, denominada de gestão do conhecimento parte do conhecimento pré-existente dos sujeitos sociais envolvidos, valorizando suas tradições culturais que, associadas ou não a outros conhecimentos e tecnologias sociais, podem produzir um outro conhecimento coletivo, ou evidenciar um conhecimento já existente, porém, posto em esquecimento. Não pode haver indução ou imposição de outros conhecimentos ocidentais ou não sobre os conhecimentos próprios. O outro conhecimento vem à medida em que houver necessidade e não pode se sobrepor ou inferiorizar aquele. Temos que deixar de lado o sentimento colonial de consumidores do saber e, por meio da participação nas atividades e experiências próprias, apoiar que construam ou reconstruam seus conhecimentos, evidenciando suas epistemologias (Faria, 2015, p. 121; 2018, p. 135)”.
58Utilizaram-se, também, os procedimentos da problematização, partindo sempre de perguntas e da escuta sensível, em que aprendemos a ouvir mais e falar menos como forma de não intervenção nas respostas e nas suas cosmologias. Nessa forma de problematização, segue-se o princípio de não responder às perguntas, mas de fazer outra pergunta que os leve a pensar tanto sobre a resposta quanto sobre a pergunta, ao mesmo tempo que o problema é contextualizado.
59Permite criação de espaço de construção dialógico e coletivo, capaz de identificar as compreensões e proporcionar ambiente fecundo para a geração de novas ideias e propostas. Os trabalhos em grupo, que foram fundamentados nesse princípio pedagógico, também permitiram aos próprios membros dos grupos a mediação da aprendizagem aos “parentes”. As oficinas (reuniões) de gestão do conhecimento promovem a interculturalidade ao mesmo tempo que fortalecem e valorizam as epistemologias e as formas de aprendizagens próprias, a organização social, política e cultural, demonstradas na maneira coletiva de produção e troca de conhecimentos e dos aprendizados durante a realização das atividades e experiências.
60As oficinas para realização do mapeamento participante ocorreram em 2018 e 2019 em Tefé e Coari (Médio Solimões), com duração de três dias e contaram com a participação de representantes dos povos Kokama, Kambeba, Mura, Arara, Miranha, Kanamari, Kulina, Tikuna, Mayoruna, Munduruku, Kaixana, oriundos dos municípios de Alvarães, Tefé, Fonte Boa, Jutaí, Juruá, Uarini, Maraã e Coari.
61O mapeamento objetiva dar visibilidade à ocupação territorial pelos povos indígenas (reterritorialização e novas territorialidades) a fim de antecipar e evitar futuros conflitos de uso e possibilitar o processo de reconhecimento de suas terras pelos órgãos competentes. Possibilitou aos participantes demonstrar graficamente seus territórios tradicionais e suas formas de uso. Foi realizado em duas etapas, a primeira consistiu na elaboração de cartogramas, em que os participantes construíram os elementos da legenda, delimitaram seus territórios e identificaram suas formas de uso sobre um mapa-base contendo a hidrografia, limites municipais e áreas protegidas. Na segunda etapa, foram utilizados os softwares de mapeamento em SIG (Qgis e ArcGis) para elaborar mapas dos territórios tradicionais. Elaborado em conjunto, é a representação de um grupo social/povo/comunidade sobre um território concreto e nunca individual e subjetivo (Faria, 2015, p. 15,109)
62Essa metodologia permite a construção de um processo coletivo, centrado no conhecimento social sobre o território, que resulta em elaboração cartográfica na qual os sujeitos sociais detêm autonomia para determinar os toponímios e delimitar seus territórios, contrapondo, assim, a colonialidade expressa na cartografia oficial que invisibiliza suas territorialidades e expõe a violação de seus direitos diante da morosidade dos processos de demarcação das TIs.
63São identificadas, na Figura 1, 47 TIs tradicionalmente ocupadas, das quais 25 são demarcadas e 22 sem providência que tiveram seus limites geográficos identificadas pelo CIMI ou por nós nas oficinas de gestão do conhecimento e mapeamento participante durante o trabalho de campo, entretanto, sem nenhuma providência pela FUNAI com vistas à sua regularização.
Figura 1 - Terras indígenas tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas na região do médio Solimões.
Orgs.: Osoegawa, Diego; Faria, Ivani; Castro, Carla; Santos, Cirlene - Laboratório Dabukuri/DEGEO/UFAM, 2021
64Vale destacar que a maioria das TIs sem providências estão localizadas no médio e baixo rio Solimões, onde ocorre o fenômeno da etnogênese, principalmente nas terras reivindicadas pelos povos Kokama, Kambeba, Mura e Miranha.
65Para identificar as TIs Sem Providência no processo de reterritorialização, utilizou-se oficinas de gestão do conhecimento e mapeamento participante, por meio dos quais os participantes localizaram previamente seus territórios.
66É importante esclarecer que os polígonos referentes às TIs sem providência não apresentam os limites exatos e não são decorrentes dos estudos realizados pela FUNAI. As TIs sem providência e sem áreas identificadas foram atribuídas a partir de informações transmitidas pelas associações indígenas e indigenistas (CIMI) ou pelas lideranças indígenas presentes nas oficinas de gestão do conhecimento e mapeamento participante realizadas ao longo do estudo.
67As TIs representadas oferecem um panorama da situação atual dos territórios indígenas no Médio Solimões, sendo importante ressaltar que as identificadas no mapa não representam a totalidade de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, pois, mesmo com o esforço de mapeamento nas oficinas, ainda há terras que não foram incluídas.
68Também há de se considerar que o processo de retomada do autorreconhecimento (etnogênese) está em curso e que identidades coletivas que estavam adormecidas estão sendo reassumidas, levando à reivindicação de TIs, como reconquista de seus territórios.
69O processo de territorialização ocorre quando uma sociedade ocupa uma porção do espaço, delimitando-o por meio de seus usos conforme sua cultura e sua tradição, resultando na territorialidade, que é uma identidade criada a partir da relação recíproca entre as formas de usos culturais de um povo em um território. A cultura de um povo influencia na organização do território assim como o território influencia no modo de vida e na organização sociocultural de um povo/nação ou sociedade. As formas de caçar, pescar, coletar e cultivar e o modo de vida, a organização sociocultural estão intrinsecamente relacionados à cultura e à forma de como um povo usa e ocupa o território (Faria, 2003).
70O processo de reterritorialização promoveu a criação de novas territorialidades e o compartilhamento do território entre povos de diferentes culturas, antes não experimentado por questões culturais, políticas e sociais próprias. Mas o que se compartilha é o território e não as territorialidades porque há o respeito mútuo entre eles e autonomia para continuarem sendo quem são com seus costumes, expressões culturais, formas de aprender, de uso de território a partir de estratégias de resistência e sobrevivência física e cultural. Uma terra demarcada com culturas diferentes e outrora territórios diferentes são exemplos de interculturalidade, com respeito às diferenças e igualdade de direitos. Forma de resistência ao processo de desterritorialização.
71Como exemplo do processo de reterritorialização, destacamos as TIs a seguir, nas quais a reivindicação pela demarcação representada nos cartogramas (Figuras 2 a 5) sugerem a ocupação e posse do território por vários povos com identificação das áreas de uso tradicional, conflitos existentes demonstrando as novas territorialidades construídas.
Figura 2 – Tis Sem Providência Mapi, Porto Praia II, Laranjal et Borá Borazinho
Fonte : Oficina Gestão do Conhecimento e Mapeamento Participante, Tefé 12 a 14/01/2019
Figura 3 – TIs Sem Providência dos povos Kokama, Kanamari, Miranha
Fonte : Oficina Gestão do Conhecimento e Mapeamento Participante, Tefé 12 a 14/01/2019
Figura 4 – TIs Sem Providência dos povos Kanamari, Miranha
Fonte : Oficina Gestão do Conhecimento e Mapeamento Participante, Tefé 12 a 14/01/2019
Figura 5 – TIs Sem Providência dos povos Tikuna,Kambeba e Miranha
Fonte : Oficina Gestão do Conhecimento e Mapeamento Participante, Coari, 3 a 5/12/2018
72A luta do movimento indígena no Brasil e, notadamente, no Médio rio Solimões parte das reivindicações pela reconquista das terras indígenas que foram e estão sendo usurpadas desde a chegada dos colonizadores e, sobretudo, estabelece, nessas terras, a sua organização social e política, conforme a CF/1988, visando à sustentabilidade e ao bem viver para as gerações presentes e futuras.
73A etnogênese é consequência do processo colonial civilizatório principalmente nessa região do Solimões; em parte, devido à existência dos produtos extrativistas, como borracha, balata, sorva, à existência de vários seringais onde foram usados como mão de obra, em parte, devido ao preconceito da sociedade envolvida, que resultou na integração de parcela desses povos à sociedade nacional, na ocultação da sua identidade, na perda da língua e que, agora, como um movimento dialético, aparece como um fator de fortalecimento de suas identidades e povo. Lembra-se que, mesmo sob efeito da etnogênese, esses povos já estavam nessas terras e ocupavam-nas, hoje, território nacional, antes da chegada dos colonizadores portugueses e dos seringalistas.
74Assim, os povos do Médio rio Solimões, por sofrerem violentamente com a desterritorialização, ao reivindicarem a demarcação de suas terras, estão se reterritorializando e criando novas territorialidades. As TIs Sem Providência, reivindicadas com proposição de posse e uso comum do mesmo território por diferentes povos indígenas por meio da regularização de uma única terra, vêm demonstrar uma reterritorialização face ao fenômeno de etnogênese ou de resistência ao processo colonial civilizatório ainda em prática pelo atual governo.
75É importante que se respeitem e se reconheçam essas reterritorializações, que provocam novas territorialidades dos povos indígenas. Estas surgiram a partir dos processos de desterritorialização e territorializações forçadas, a que foram e são submetidos os povos indígenas no Brasil por parte do Estado e por alguns segmentos da sociedade.
76Vale destacar que a ausência de regularização fundiária das TIs reivindicadas sem providência as tornam totalmente vulneráveis territorialmente devido aos conflitos enfrentados, como invasões por pescadores comerciais, madeireiros, garimpeiros, caçadores e com proprietários particulares e empresas. Além disso, tal ausência dificulta o combate à discriminação social e cria obstruções para acessarem as políticas públicas diferenciadas e os problemas sociais decorrentes das invasões, da migração e do contato com a cidade.
77Socializar a discussão realizada pelos povos que estão reivindicando identidade étnica nos últimos anos é importante para entender os conflitos sociais e processos de discriminação da sociedade envolvente e entre indígenas, e identificar as TIs reivindicadas sendo um elemento que caracteriza a vulnerabilidade social desses povos diante dos constantes ataques pelo atual governo brasileiro e por empresários anti-indígenas.
78O processo colonial e civilizatório promoveu a desterritorialização dos povos indígenas no Brasil, responsável pelo genocídio, etnocídio e epistemicídio dessas sociedades. Estas encontraram formas e estratégias de resistência para manterem suas culturas e tradições asseguradas pelo direito originário, pelas legislações nacionais e internacionais, garantindo-lhes a vida, a terra e o bem viver.