1O geógrafo Michel Lussault insiste em seus trabalhos que os espaços multifacetados de nossas vidas, tanto no plano coletivo quanto no individual, não foram adotados seriamente como objetos de reflexão e estão, por isso, obscurecidos:
(...) eles constituem um ponto cego de nossos discursos e de nossos conhecimentos. Nós os analisamos precariamente, nós nos contentamos frequentemente em privilegiar uma abordagem descritiva, ou de propor engenharias espaciais, aquelas do planejamento, do urbanismo, da promoção imobiliária, do comércio, do turismo, etc. todas utilitárias e positivistas. (LUSSAULT, 2003, p.7-8, tradução nossa)
2No entanto, o fato de os espaços ocuparem uma posição secundária no elenco dos objetos de estudo das ciências sociais não impede que nossa existência seja, cada vez mais espacial. Lussault mostra que as impressionantes modificações em nosso mundo serão melhor entendidas se dirigirmos nossa atenção para a dimensão espacial que as compõem:
(...) com efeito, as características mesmas da sociedade mundializada que se constrói sob nossos olhos são eminentemente espaciais: mobilidade, inflação telecomunicacional, mudança dos regimes de proximidade, co-espacialidade, constituição de hábitos politópicos [...], urbanização generalizada, aparição de grandes comutadores espaciais, como os aeroportos, especialização funcional dos espaços em torno de algumas figuras como o parque de lazer (temático), o centro comercial, a segregação social crescente, crescimento de identidades fortemente territorializadas, multiplicação de conflitos relacionados às intervenções do planejamento, progresso dos cuidados ambientais, etc. (LUSSAULT, 2003, p. 9, tradução nossa)
- 1 Cf. LÉVY, Jacques. Le Tournant Geógraphique; SANTOS, Milton. A natureza do espaço; SOJA, Edward. Ge (...)
3Embora Lussault tenha razão no geral, é preciso certo recuo nessa observação ao notar-se o surgimento de uma nova sensibilidade em relação às questões espaciais no âmbito das ciências sociais, que deve parte do seu despertar à renovação da ciência geográfica nas últimas décadas. Em resumo: a geografia vive um processo de renovação que a desloca para o campo de uma verdadeira ciência social. O espaço percebido como uma instância ou dimensão do conjunto social é a marca principal dessa renovação1. Essa marca é fundamental, pois a geografia, em muitos casos, ainda lidava com o espaço como externalidade concreta e natural. Trata-se, portanto, de uma virada dramática, como assinalou Paul Claval (apud BORD, 1997a, p. 5). No Brasil, a partir dos anos 1980, essa renovação teve na figura do geógrafo Milton Santos uma forte referência. Após esse marco, as discussões sobre o espaço como "um sistema de ações e sistema de objetos articulados indissociavelmente" (SANTOS, 1996) passaram a ser objeto de teorizações mais diretas e constantes. Vale lembrar a percepção de Edward Soja (1993, p.11), que aponta que, se a modernidade ocidental insistiu no controle do tempo, dando a este um lugar epistemológico mais eminente, na fase histórica atual, essa vantagem passou ao espaço.
- 2 A principal fonte deste artigo é o Relatório Técnico Final do Processo no 490732/2007-0 do Edital n(...)
- 3 É reconhecida a influência de Paul Vidal de La Blache sobre o historiador Fernand Braudel. Este últ (...)
4Neste artigo2 explora-se o ponto de vista espacial em um dos fenômenos fundamentais das sociedades contemporâneas: o processo de urbanização. Estudar o mundo urbano do ponto de vista espacial pode parecer óbvio. Não é! A própria ciência geográfica custou a adotar a cidade e o urbano como objetos centrais de suas preocupações, pois sua trajetória ligou-se a realidades menos dinâmicas. As realidades naturais e o mundo rural foram percebidos como ajustados a esse "programa", tal como preconizou Paul Vidal de La Blache3. As outras ciências sociais, com honrosas exceções, trataram as cidades como espaços que apenas registravam as lógicas das dinâmicas sociais; o espaço urbano como repositório de problemas e não ele próprio como uma realidade que também tem força heurística na produção e na interpretação das dinâmicas sociais. Atualmente a situação começa a se inverter. A geografia tem realizado novos e bem-sucedidos investimentos teóricos sobre o mundo urbano. Aqui empregaremos um dos resultados teóricos mais instigantes desse novo empenho na interpretação de um processo urbano contemporâneo que se dá na República de Cabo Verde, país insular vinculado ao continente africano.
- 4 Espacialidades são as práticas espaciais, as ações estratégicas dos atores sociais (coletivos e ind (...)
5O processo de urbanização nas proporções de grande monta em que se deu, marcou a vida de boa parte das sociedades no século XX e intensifica seu papel no século XXI. Ele pode ser descrito como uma verdadeira revolução sócio geográfica, tal a extensão e a profundidade das transformações nos modos de vida que ele produziu. Trata-se de uma reconstrução social cujo componente geográfico (a aglomeração de indivíduos, de atividades e de objetos diversos, buscando a distância geográfica-zero) é um elemento-chave. As espacialidades4 complexas que se constroem e são possibilitadas, contam significativamente nas avaliações qualitativas do mundo urbano, considerando a vida urbana em sua integralidade – aliás, contam mais do que as abordagens externas que concebem o objeto urbano apenas como desdobramento previsível da dinâmica capitalista e da divisão do trabalho que ela promove.
6O que urge, ao contrário, é o aperfeiçoamento de teorias críticas que brotem da própria interpretação do fenômeno urbano, visto que ele já é, em si, uma síntese da complexidade social e econômica. Com esse entendimento, adotamos uma postura teórica, extraída de modelos reais de urbanidade, que mergulha na lógica complexa dos espaços e das espacialidades internas do mundo urbano trazendo a vantagem (e a pretensão) de uma abordagem ontológica do urbano, visto como portador de uma lógica universal enquanto meio superior do viver junto, da condição social.
7É desse ponto de partida e com esse olhar que, a partir de observação direta de uma realidade urbana, experimentamos uma construção metodológica de diagnóstico, representação e interpretação da sociedade urbana da cidade da Praia, capital da República de Cabo Verde.
8Cabo Verde é um pequeno país insular, composto por dez ilhas que, para as proporções de seu território de 4.033 km2 e de sua população 531.239 hab. (INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA, 2016, p.29), vive atualmente um vigoroso e surpreendente processo de urbanização.
- 5 Além do entendimento consensual de que uma metrópole (e por decorrência a função metropolitana) é a (...)
9O caso principal é o da capital, cidade da Praia, a mais populosa e a de maior densidade demográfica do país (Ver Mapa 2). Ela exerce no país funções metropolitanas5 e vive uma importante reestruturação: crescimento veloz (população em 1990: 71.287,2 hab.; em 2017: 159.027 hab. Cf. o INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA, 2017, p.3), novo dinamismo econômico, novos segmentos comerciais e de serviços e novos empreendimentos e bairros para moradores de renda mais elevada. Tudo, segundo nossa metodologia de observação, com baixa urbanidade e pequena eficácia na inclusão da maioria da população, que permanece em áreas carentes de recursos urbanos. Aí está o problema. Esse modelo de reestruturação se dá como se fosse natural e inevitável, quando, na verdade, nos parece tributário de modelos e de escolhas sociais claras.
- 6 A obra desse geógrafo é nossa fonte principal para as elaborações sobre urbanidade.
10Como já mencionado, a referência teórica que orientou a observação na cidade da Praia pode ser enunciada como uma teoria extraída de modelos reais urbanidade (LÉVY, 1999, p.191-268)6. Nela, aborda-se a cidade a partir do entendimento de que o principal fundamento das configurações urbanas – condição que lhes projeta virtudes produtivas e integrativas no conjunto social – está no núcleo da própria aglomeração que aproxima e densifica indivíduos e grupos sociais, assim como múltiplas atividades e objetos, com um máximo possível de diversidade, de modo a colocá-la num regime de proximidade ajustado à escala humana. Em resumo: o par densidade e diversidade revela o sentido da cidade em termos teóricos e também expressa a condição aproximada do fenômeno urbano ao longo da História.
11As possibilidades são várias, e isso implica condições diferenciadas de urbanidade entre cidades e entre as partes de uma única cidade. As condições para a urbanidade são em boa medida espaciais e são detectáveis – logo, mensuráveis por métodos relacionados (e não autônomos) à complexidade da trama urbana e social.
12De modo mais direto e claro, os elementos constituintes da urbanidade numa área urbana são os que seguem:
1. Densidade residencial e de atividades, 2. Organização espacial compacta, 3. Acessibilidade entre todos os lugares, 4. Mistura de moradia/outras atividades, 5. Densidade informacional, 6. Presença e qualidades de espaços públicos, 7. Importância da marcha pedestre, 8. Diversidade sociológica, 9. Urbanidade em todos os pontos (para além da zona central), 10. Autovalorização dos lugares urbanos e da imagem da cidade; 11. Governo na verdadeira escala do urbano. (LÉVY, 1999, p.191-268)
13Nessa elaboração considera-se faces distintas da questão da urbanidade. A partir de seus elementos básicos, um segmento da cidade pode ser diagnosticado como possuidor de uma urbanidade potencial (a priori) de um determinado grau, mas é importante se ter uma visão da urbanidade a posteriori, de como ela se realiza de fato, já que essa depende de dinâmicas que ocorrem, por vezes de formas específicas e até imprevisíveis. Assim, tendo em conta essa “teoria da urbanidade” são constituídos os referenciais para a aplicação, por exemplo, do geoprocessamento para a construção cartográfica e para a análise e conclusões sobre os resultados em estudos numa cidade.
14O caso da cidade da Praia desperta interesse no seu estudo e na mensuração e interpretação da qualidade da reestruturação urbana, devido ao grande dinamismo desse processo que não se deixa revelar facilmente, mas que já torna explícito seu caráter excludente. Por exemplo, é difícil perceber quais as fontes de financiamento num país pequeno, insular, sem indústria, com uma agricultura de subsistência, onde se apregoa um potencial turístico cuja exploração ainda não é tão visível, embora esteja de fato crescendo. Vale, inicialmente, contextualizar esse centro urbano no conjunto do país.
15O arquipélago de Cabo Verde situa-se ao largo da costa oeste africana; por ser insular, seu território não tem fronteiras e nem conflitos com outros países do continente. Sua população não se formou, nem é comumente vista a partir do ingrediente étnico. E um fato mais relevante: há uma comunidade cabo-verdiana no exterior estimada em mais de 500 mil habitantes, portanto, similar à população local.
16As relações dessa população externa com o país são fortes, inclusive do ponto de vista financeiro, o que explica, em certa medida, a modernização que se verifica na atualidade. Isso faz do tema da "diáspora cabo-verdiana" uma questão de grande relevância, pois é comum sustentar-se a afirmação de que Cabo Verde "existe porque persiste a emigração" (SAINT-MAURICE, 1997, p. 47). Assim, a própria ideia de nação é, em alguma medida, supra territorial, um Estado-nação cuja formação e legitimação se apoiam na ideia de uma nação que existe e é também concreta e simbolicamente experimentada além-fronteiras. O subentendido é que os emigrados contribuem para que a ideia de nação cabo-verdiana se consolide e seja protegida dentro e fora do território do país.
Mapa 1
17Quando Cabo Verde se tornou independente em 1975, a emigração já fazia parte da história do país há pelo menos um século e as principais comunidades cabo-verdianas no exterior se encontravam instaladas em países como Estados Unidos, Portugal, França, Holanda, Bélgica, Angola e Itália (Ver Mapa 1). A história do país confunde-se com a história da emigração e grande parte das ações políticas orientadas para o projeto de autonomia e independência ocorreram na diáspora, por iniciativa de cabo-verdianos emigrantes (SAINT-MAURICE, 1997, p. 47). Após a independência, os governos encontram resistência quando as suas decisões não coincidem com as aspirações dos emigrantes. Estes ao enviarem a ajuda financeira aos seus familiares, contribuem significativamente para o equilíbrio econômico do país. Logo, não há discussão sobre Cabo Verde atual, nem da reestruturação urbana da cidade da Praia, que possa desconhecer essa realidade da nação que transcende seu território.
- 7 Sobre os investimentos da Tecnicil Imobiliária na Cidade da Praia e na Ilha do Sol, ver http://tecn (...)
18A "rede nacional", composta por locais e emigrados, possui uma dimensão econômica relevante e ela paira como uma das forças da modernização do país e da reestruturação urbana da cidade da Praia, capital do país. Porém, isso não basta para explicar certa pujança econômica, sem a qual os processos notados nas realidades urbanas do país não seriam possíveis. Atualmente, a grande novidade são os investimentos de capitais estrangeiros no turismo e na construção civil. A ilha do Sal, uma das poucas ilhas planas, é um foco importante de investimentos em hotelaria de resorts, cuja clientela é formada por europeus. Inclusive, uma das empresas que está atuando na reestruturação urbana (TECNICIL – Sociedade Imobiliária e Construções S.A.) da cidade da Praia possui vários investimentos na ilha do Sal7. Essa ilha, antes praticamente desabitada, se destacava apenas por abrigar o principal aeroporto internacional do país. Atualmente, a ilha do Sal é a terceira em densidade populacional do país, registrando 331,2 habitantes por km² (Ver Mapa 2) e percebeu o maior aumento absoluto do pessoal empregado em serviços hoteleiros do país, passando de 2.104 empregados no setor em 2012, para 4.070 em 2016 (INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA, 2016, p. 39-199).
19Além dos projetos turísticos associados ao binômio Sol/praia que já estão em andamento, o país, em razão de sua condição insular e de ser um arquipélago de origem vulcânica, possui outros potenciais sítios turísticos atraentes e passíveis de investimentos novos, e certamente eles já estão no horizonte de muitos empreendedores transnacionais desse ramo. São ilhas vulcânicas bem recentes (não ultrapassam os 250 milhões de anos), produtos geológicos de uma área de divergências das placas tectônicas. Algumas das ilhas, cujas paisagens impressionam, são intensamente montanhosas.
20Mas, a despeito da ascensão do turismo, o que a nova face econômica do país mais deixa perceber é a reestruturação urbana da cidade da Praia. Ali é notória a ascensão de uma classe média com acesso a linhas de crédito e um consumo de bens importados caros, o que a frota automobilística expressa de maneira surpreendente.
21O perfil do país está se alterando embora, como não poderia deixar de ser, seja discutível se os caminhos adotados irão construir uma sociedade integrada e justa. Mas é preciso notar que, no presente, Cabo Verde ostenta alguns dos indicadores sociais mais positivos do continente africano: expectativa de vida de 71 anos para os homens e 80 para as mulheres (INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA, 2016, p. 43), redução dos níveis de pobreza, de 58% em 2001 para 35%, em 2015 (BANCO MUNDIAL, 2016) e IDH de 0,648, também em 2015 (PNUD, 2017).
22Observando a distribuição da população cabo-verdiana no arquipélago, chamam a atenção as duas áreas de maior população e maior densidade demográfica. A primeira, ao norte, fica na Ilha de São Vicente. O outro ponto encontra-se no sul da Ilha de Santiago, a mais povoada do país, ilha na qual, para além da cidade da Praia, é possível observar outras áreas bem povoadas e com densidade demográfica elevada para os padrões do país (Ver Mapa 2).
Mapa 2
23Numa demonstração de que grandes densidades fecundam cidades as duas áreas mais povoadas e densas são aquelas onde, atualmente, se encontram as duas maiores cidades do país: ao norte, a cidade de Mindelo, na ilha de São Vicente (a segunda cidade do país), e, ao sul, a cidade da Praia, na ilha de Santiago (a capital de Cabo Verde). Mas, não é ocioso notar que o país ainda possui uma expressiva população rural, em especial na Ilha de Santiago, que pratica uma agricultura com trabalho intenso gerando áreas agrícolas com densidade elevada; uma área agrícola que abastece em parte o país e garante a sobrevivência da população rural, e nesse sentido se aproxima do que podemos denominar uma agricultura de subsistência (Ver Mapa 3).
Mapa 3
24O Mapa 4 mostra que as taxas de urbanização nas diversas ilhas do arquipélago são muito elevadas, com uma exceção relevante: Santiago, a ilha mais povoada do país tem ao mesmo tempo áreas extensas, cujas taxas de urbanização são baixas. Nota-se, inclusive, uma área (um vasto cinturão) em torno da cidade da Praia onde as taxas de urbanização são diminutas. Trata-se de um cinturão agrícola mencionado anteriormente, cuja população não é pequena e trabalha diretamente no abastecimento da cidade da Praia e, com muita interação frequente com essa área urbana, como os autores desse artigo, puderam constatar pessoalmente.
Mapa 4
25A cidade da Praia é o grande centro urbano do país. Considerando a população atual da cidade da Praia, estamos diante de um caso de primazia urbana moderada. Essa situação é fenômeno que se dá quando um único centro urbano representa sozinho cerca da metade da população urbana de um país. Um território constituído por 10 ilhas não tão próximas, cuja ligação por barcos não é simples e nem é barata e com ligações aéreas precárias e com acessibilidade econômica para muito poucos, sofre riscos e dificuldades para sua integração social e econômica. Fosse um território contíguo, é muito provável que observássemos uma primazia urbana clássica, que é quando uma única cidade concentra quase que toda a população urbana de um país. Mesmo assim, essa primazia moderada com um contingente de migrantes de outras ilhas do arquipélago é admirável. Nos últimos 30 anos, para as proporções territoriais e demográficas do país, a cidade vem vivendo um intenso processo de crescimento, multiplicando sua população quase 2,5 como mostra o Gráfico 1.
Gráfico 1
26O núcleo do que queremos destacar com nossa observação orientada pela teoria da urbanidade encontra-se nas características da organização do espaço intraurbano da cidade. Essa é a escala local, costumeiramente negligenciada nos estudos urbanos clássicos, mas que é a que define o padrão de interações sociais que uma sociedade urbana dada. E o perfil desse padrão segundo sua constância, intensidade e abrangência, por sua vez, é o solo que define o grau de integração social, de solidariedade e coesão da sociedade urbana. Por isso, com os mapas a seguir ingressamos no intraurbano da cidade da Praia onde pudemos identificar uma ordem espacial marcada pela produção (com base em grandes investimentos) de uma nova segregação espacial/social que compromete a integração social na cidade, que gera uma cidade de urbanidade rebaixada. O mapa 5 expressa temporalmente o ritmo de expansão e da produção de novos bairros no território do concelho/município.
Mapa 5
27O que se percebe nessa representação (NASCIMENTO, 2010) é uma urbanização cujos espaços, até os anos 1970, não tinham contiguidade com faixas históricas edificadas que continham entre si lacunas, o que foi uma adaptação às características bastante irregulares do sítio urbano, comuns numa ilha vulcânica como é a Ilha de Santiago. Porém, ao longo das décadas seguintes novos espaços foram produzidos gerando uma contiguidade e continuidade que poderiam integrar mais a cidade, favorecendo-a como espaço relacional, caso não fosse a lógica sócio-espacial dos novos bairros, em especial os que estão sendo construídos no século XXI que são justamente aqueles que nos chamaram a atenção na reestruturação urbana da cidade.
Mapa 6
- 8 Cidades norte-americanas, São Paulo e várias outras bem dinâmicas em termos econômicos seguem o mod (...)
28O Mapa 6 (uma coleção, na verdade) apresenta um perfil da população do concelho/município da Praia segundo sua distribuição nas diversas subdivisões da cidade, quantificando-a e ordenando-a, conforme as taxas de densidade demográfica. A evolução impressiona e nota-se que certos bairros ao sul que mal existiam nos anos 1970 estão agora entre os mais povoados, como o Palmarejo e o Vale do Palmarejo e com taxas de densidade demográfica que só perdem para as taxas na área central da cidade, chamada Plateau (Ver Mapa 5 e Imagem 1). Essa realidade já indicada no Gráfico 1 surge agora de forma mais explícita. Não são apenas novos contingentes urbanos que estão migrando para a capital, são contingentes que, pelo menos em parte, foram para a cidade da Praia diretamente para bairros novos que estavam, de certa maneira, orientando essa reestruturação urbana e se transformando no núcleo do modelo da "modernização cabo-verdiana". E é nessa área expansão demográfica e geográfica da cidade que vamos identificar uma nova ordem espacial, que nos permite avançar a hipótese (o olhar teórico adotado) de uma reestruturação com baixa urbanidade8, que pode ser traduzida como ausência aparente de estimular ações de integração social, de fomento de espaços públicos e sem um plano urbanístico que não caia na mesmice urbana de construir bairros separados e desiguais, marcados pela divisão de renda, por um lado, e, de outra parte, pela divisão social mais genérica. No caso, trata-se de uma severa e real segregação espacial, que a mera diferença entre bairros ricos e pobres não revela suficientemente.
29Para descrever a reestruturação urbana da cidade da Praia em Cabo Verde, é necessário introduzir alguns comentários teóricos para abordar a questão da segregação espacial. Michel Lussault define segregação espacial em diálogo com a ideia de urbanidade. Para esse autor, segregação é a separação espacial, em que se caracteriza: 1. Tendência à estabilização num segmento da cidade de frágil diversidade social; 2. A estabilização de uma "descontinuidade" externa, marcando nitidamente, para os indivíduos e os grupos, uma linha entre o interior do espaço segregado e o exterior; 3. Propensão, de ao menos uma parte dos atores sociais, em procurar e/ou valorizar a manutenção da distância de outros atores e/ou de outros objetos sociais, isto é, uma legitimação social desse processo. (LUSSAULT, 2003, p. 831)
30A segregação está muito longe de ser um fenômeno espontâneo ou guiado exclusivamente por estritas determinações econômicas, pois ela procede e participa de diversas estratégias espaciais dos atores sociais em relação à distância espacial. Assim como a opção pela urbanidade, postura antissegregacionista por excelência, também é uma escolha social:
Essa coincidência entra em coerência com o fato que a urbanidade (a densidade com diversidade) se caracteriza, por princípio, por uma exposição – e, em particular, por uma exposição do corpo no espaço público – à alteridade. O fato de que a preferência pela localização da habitação de um indivíduo depende cada vez menos de uma fatalidade e sim cada vez mais de uma escolha torna lógica a correspondência entre duas opções estratégicas: aquela de estar-no-mundo e aquela de estar-junto. (CHAVINIER; LÉVY, 2010, s/n, tradução nossa)
31Um caso bem familiar nas cidades brasileiras diz respeito a valorização imobiliária de áreas urbanas de baixa densidade e pequena diversidade social suscitam. Nessas, é notória a escolha de alguns atores sociais (“aqueles que podem”), e não uma opção do capital imobiliário, que talvez não se interessasse necessariamente por esse tipo de bairro.
32Desse modo, mais que uma relação mecânica entre os interesses capitalistas e a produção da cidade, deve-se enquadrar a definição de segregação num quadro maior de discussão sobre a organização espacial da sociedade e da cidade. É o caso de se considerar que os atores sociais, em seus contextos ideológicos – que certamente incluem seus pertencimentos classistas e de outros tipos – quando de suas ações no urbano, valorizam a maior ou menor densidade e a maior ou menor diversidade conforme diversas motivações sociais, históricas, econômicas e culturais. Assim, os segmentos urbanos segregados se opõem às áreas espaciais de forte heterogeneidade e com limites espaciais difusos, tenuemente marcados, localidades nas quais a mistura social e de atividades predomina – áreas que possuem urbanidade e espaços públicos ativos, onde a integração social supera a segregação. Opõem-se por quê? Porque a urbanidade não é fácil de ser construída, já que necessita produzir e ser ao mesmo tempo ser produzida por relações sociais de cooperação, o que implica um conjunto de políticas ativas e positivas e, consequentemente, despende muita energia. De outra parte, a urbanidade não é valorizada, de forma geral, como algo óbvio. A legitimidade social que a urbanidade potencialmente porta por seu poder de coesionar pode ser contestada por ideologias antiurbanas, que identificam a urbanidade com promiscuidade social, com um certo desejo anti-societal. Essa postura comum, pode levar a políticas e ações de homogeneização, visando a “depuração social”, de preferência em relação à integração da diversidade. Por isso, com a urbanidade contestada, o uso dos espaços públicos pela diversidade social é temido.
- 9 Ver PAQUOT, Thierry. Guettes des riches (2009).
33Deste modo, pode-se identificar uma segregação negativa quando as áreas segregadas espacialmente reúnem forte homogeneidade social e de atividades, com limites bem marcados (por vezes materialmente, com muros, arruamentos específicos, edificações destoantes do entorno, etc.), valorização negativa dos atores sociais interna e externamente (que, em geral, não têm alternativas de moradia por diversos motivos) e indiferença dissimulada das instituições políticas. Esse tipo de segregação tem forte repercussão na identidade pessoal do seu habitante, e pode mesmo ser denominada como gueto. Porém, no caso da cidade da Praia, em Cabo Verde, o que dá o tom de sua reestruturação urbana é uma vigorosa segregação positiva, aquela que é desejada, que, ironicamente, pode ser designada como “guetos de ricos”9, “gulags dourados”, “área de prisioneiros voluntários do sonho americano”, etc. São segmentos de bairros (por vezes bairros inteiros) de forte homogeneidade, com limites bem marcados, com valorização positiva dos atores sociais e legitimação também dissimulada das instituições políticas. Essa segregação positiva, como diz o historiador Tony Judt, “(...) indica pessoas que se reuniram em bairros e subúrbios afluentes das cidades, e se orgulham de sua suposta independência funcional do resto da sociedade” (JUDT, 2011, p. 122).
34“Guetos de ricos” estão se espalhando por toda parte: nos Estados Unidos, os conjuntos isolados espalharam-se por subúrbios distantes, mas, na Inglaterra e em outros países, eles surgiram até no centro das cidades, como no caso de São Paulo. A argumentação mais comum dos moradores, temerosos da mistura social, é que bairros do gênero são trincheiras contra a violação dos direitos deles enquanto moradores, que pagam por isso. Por isso, sua escolha seria socialmente legítima e eles estariam livres para viver entre os seus semelhantes segundo regras definidas privadamente e que nada impõem para fora dos portões. Segundo Judt, esses exercícios de privatização da vida cotidiana fragmentam e dividem o espaço social de um modo que ameaça a liberdade de todos nós: “(...) quando deixamos de valorizar o que é público em benefício do particular, sem dúvida, com o passar do tempo, encontraremos dificuldade para entender as razões para valorizar as leis (o bem público por excelência), e passaremos a privilegiar a força” (JUDT, 2011, p. 125).
- 10 Segmento que, como o nome indica, é uma pequena chapada próxima à zona portuária.
35O fenômeno da reestruturação urbana da cidade da Praia é um marco antiurbano no qual a segregação positiva orienta a essência da produção urbana. Para identificar os “guetos de ricos” na cidade da Praia e avaliarmos seu impacto na urbanidade, comecemos por descrever sucintamente os bairros mais antigos, que abrigavam quase a totalidade da população na década de 1970, e que podem ser visualizados no Mapa 5 e Figura 1. O centro histórico é o Plateau10. Nele se encontram atualmente várias sedes de órgãos públicos, sedes de serviços de saúde e de educação, um comércio cada vez mais dominado por mercadores chineses – o que não espanta em vista da relação histórica entre o governo chinês e o país após sua independência, já que Cabo Verde inicialmente adotou um regime que se orientava por posturas socialistas. O governo chinês construiu edifícios públicos e enviou trabalhadores para o país, dando início a um vínculo geográfico inusitado, com chineses migrando e comercializando num arquipélago da costa africana.
Figura 1
36Nos últimos 40 anos, o Plateau foi perdendo um pouco da função residencial que possuía, adquirindo algumas características semelhantes aos centros de outras cidades: especialização administrativa, comercial e de serviços, com uma queda da densidade demográfica noturna. O Plateau tende a ser um centro tradicional que começa a ser evitado pelos mais jovens, por exemplo. No geral, esse centro tradicional já não resume a sociedade da cidade, com suas contradições entre modernidade e tradição. Pelo contrário: trata-se de uma área que vem perdendo urbanidade, o que é muito sintomático numa cidade, pois o centro resiste sempre um pouco mais a essa perda. O futuro do Plateau encontra-se entre a recuperação da força anterior ou a degradação, ou, então, a modernização um pouco “megalomaníaca” que vem orientando a reestruturação urbana, tal como atesta a publicidade abaixo, que anuncia um futuro novo para a região do Plateau, que tudo indica, não vingará.
Imagem 1 – Anúncio publicitário do empreendimento imobiliário Praia Towers.
(Veja o link: Praia Towers Concept, Ilha de Santiago, Cabo Verde - YouTube
- 11 Na Imagem 1, o mercado está designado como Fazenda Sucupira.
37Saindo do Plateau, do lado contrário ao oceano, organizam-se alguns bairros tradicionais que estão entre os mais povoados da cidade. Vários deles são conhecidos como Achadas e Achadinhas e em meio a eles situa-se um grande mercado tradicional cujo nome remete às ligações de Cabo Verde com o Brasil: chama-se Sucupira11, a célebre cidade fictícia, centro da ação dramática da novela brasileira O Bem-Amado (Ver Imagem 1). À exceção do mercado tradicional, não estranharíamos, no Brasil, as características espaciais/sociais desses bairros: uma dominante residencial, muitas vezes com autoconstrução, uma miríade de atividades comerciais informais tradicionais que se espalham nas cercanias do mercado Sucupira, muita atividade nas ruas, integração entre as vizinhanças. Entretanto, é notório que avança o perfil associado à pobreza, visto que, de 1970 aos nossos dias, as famílias que prosperaram economicamente não investiram nesses bairros, na qualidade de suas habitações, no vigor do comércio. Pelo contrário: “progredir”, significou (e significa) sair dali e ir para os bairros novos. Como um filtro ao contrário.
38Esses bairros estão ficando homogêneos em termos sociais, e sofrem com a falta de novos investimentos. Para nós, a familiaridade se dá pelo cenário típico de periferia urbana brasileira que está se produzindo ali. As condições de urbanidade também estão se desfazendo na precariedade material e na perda de vigor social de uma área que tende a concentrar problemas sociais. Há periferias mais precárias, mas, nesse caso, trata-se de bairros, outrora centrais, que estão sendo "periferizados", algo que ilustra bem a ausência de políticas urbanas integradoras e a presença do fantasma da segregação espacial.
39Seguindo um modelo conhecido, muito comum no Brasil e em várias cidades do mundo (em especial, nas mais frágeis economicamente), a ascensão social de alguns segmentos da população urbana implica uma desagregação das cidades e uma organização quase natural (aliás, entendida dessa maneira) de bairros segregados, vedados e protegidos em relação àqueles que não ascenderam e vão permanecer na "cidade precária." A cidade da Praia vive esse processo, com novas áreas para segmentos afluentes. É quase que uma nova cidade surgindo.
- 12 Entre os membros dessa classe média emergente, contam-se muitos emigrantes que planejam o retorno a (...)
40Esse é o fenômeno que mais impressiona. Ele está exemplificado nos bairros Palmarejo de Baixo, Palmarejo de Cima e Palmarejo Grande (também conhecido como Cidadela). É possível visualizar essas localizações observando-se combinadamente o Mapa 5 e as Figuras 1 e 2. Trata-se de uma autoexclusão de uma classe média emergente12 com espaços exclusivamente residenciais, para um segmento de altos funcionários do estado e de algumas empresas privadas, cuja lógica de circulação é integralmente estruturada para o automóvel particular, tudo nitidamente segregador.
Figura 2
41A Figura 2 revela as condições dessas áreas que estamos destacando no começo do século XXI. Elas ainda vão se apresentar como espaços para a reestruturação urbana. São espaços de expansão conectados ao Palmarejo de Baixo que fica à beira-mar. Impressiona o Palmarejo de Baixo particularmente, pois nele há uma verticalização moderna, com edifícios que lembram os condomínios fechados de São Paulo, do Rio de Janeiro e de outras cidades brasileiras. Além da verticalização, uma quantidade enorme de casas bem amplas, que foi construída utilizando trabalhadores migrantes da costa africana, em especial vindos da Guiné Bissau. Relembremos a perplexidade que vem do fato de que não se vê na geografia da cidade uma economia concreta, que corresponda a esse dinamismo construtivo. Os materiais de construção empregados nas edificações dessa área são de excelente qualidade e o país não os produz, o que, em tese, encareceu as obras. Esse bairro tem características próprias da condição de baixa urbanidade, marcadas pela evidente homogeneização social, pela ausência de espaços públicos, transportes coletivos e pela solidão de suas ruas, apenas percorridas por automóveis grandes, caros e novos.
42O Palmarejo de Cima fica na vertente da elevação que continua imediatamente acima do Palmarejo de Baixo (a ilha é montanhosa, e o sítio urbano da Praia é uma combinação de pequenas faixas litorâneas, com pequenas achadas – áreas planas, o Plateau e zonas de morros suaves onde estão surgindo esses bairros novos). Sua formação é dos anos 1980 e já é um bairro mais completo, com um miolo verticalizado e um comércio, para os padrões da cidade e do país, elitizado e especializado. É marcado por um conjunto de casas grandes e boa qualidade, porém não tão grandes e luxuosas como as que se vê no Palmarejo de Baixo. As estruturas de bairro segregado e de baixa urbanidade ali estão: uso quase que exclusivamente residencial, ausência de mistura social e de atividades públicas, um desfilar de automóveis e pouca vida nas ruas. Em 2002, o bairro do Palmarejo Grande ainda é terra nua como mostra a Imagem 2. Veremos mais a frente como se dará a evolução da dinâmica urbana nessa direção, anunciando que o futuro da cidade da Praia parece apenas ter começado. E esse futuro combina verticalização de vários padrões, com casas de tamanhos avantajados, sempre de bom padrão, até padrões mais luxuosos. Para que se tenha a ideia do pretendido, eis a publicidade que foi veiculada na época do lançamento do empreendimento:
Imagem 2 – Anúncio publicitário do empreendimento imobiliário Palmarejo Grande
Fonte: Acervo pessoal
43Nesse empreendimento opera outra grande empresa empreiteira que se soma a TECNICIL, citada anteriormente. Trata-se de um bairro previsto, na origem, para 12.000 pessoas, algo que correspondia a 10% da população da Praia no momento do lançamento (início do século XXI). Um bairro planejado de grande porte que, acoplado aos seus dois “irmãos” que estão mais abaixo do relevo, formariam a moderna cidade da Praia, apartada do restante da sociedade urbana “anterior”. De onde vieram e virão essas 12 mil pessoas é algo que implica acompanhamento. Nota-se, no anúncio, que a empresa tem um escritório na Ilha de São Vicente, onde situa-se a segunda maior cidade do país.
44Permanecendo as tendências antiurbanidade, continuará o processo de exclusão por renda em dois sentidos: os que têm sua renda aumentada saem (autoexclusão) dos bairros populares (e isso de todas as cidades de Cabo Verde, pois a emigração de Mindelo e de outras “capitais” da ilha para a Praia é notória) e vão para a Cidadela (nome sintomático e alusivo às fortificações indevassáveis que servem de proteção contra os inimigos – no caso de Cabo Verde, quem seria e será o inimigo?), e também alguns emigrantes retornados estão fazendo esse “percurso elegante”. Enquanto isso, os pequenos atores sociais desprovidos dos mesmos vínculos econômicos e de influência vão construindo uma outra expansão periférica, sem infraestrutura e articulada ao centro da cidade por uma rede de transporte popular e fora da esfera da iniciativa do Estado. Nesse filme já conhecido, constrói-se uma nova pobreza que soma o econômico à vida em espaços desarticulados, segregados e sem políticas públicas de expansão de recursos urbanos. Essa é uma segregação negativa. O processo é semelhante ao que ocorre nas cidades brasileiras. As dimensões e os ritmos em que ele ocorre na cidade da Praia dão a ele uma condição didática para enxergamos nossas próprias realidades. Uma cidade que fosse orientada pela urbanidade não se reestruturaria assim.
45Finalmente, a Figura 3 vai nos permitir a comparação temporal da “colonização urbana” nessas áreas de expansão da cidade da Praia. Dois extratos de imagem de satélite do mesmo bairro, um de 2004 e outro de 2020 nos mostram a dinâmica da formação desses bairros. 16 anos foram suficientes para do projeto chegar-se à consolidação da Cidadela, como mostram as imagens da figura. Trata-se o que se convencionou designar-se na literatura dos estudos urbanos de uma produção monopolista do espaço. Não são pequenos atores sociais, mas um empreendimento com fortes investimentos e, como todo o empreendimento imobiliário de larga escala, ele tem como conteúdo um projeto urbanístico que é um dos seus atrativos. E o projeto urbanístico vende uma outra cidade, um outro espectro relacional, uma modernização excludente em dissintonia com a história da cidade e da sociedade até então existente. Não é apenas um fenômeno de reestruturação urbana, e sim uma reestruturação social. O fenômeno urbano encontra-se no coração da dinâmica social, como se observa no caso.
Figura 3
46Como temos insistido, no caso da cidade da Praia, são duas realidades extremas que ganham nitidez. Ao discutir o medo e a confiança nas cidades, Zygmunt Bauman considera que nesses “guetos de ricos” são rompidos os vínculos entre o mundo da vida de um e de outro tipo de cidadãos: o espaço da primeira fila (os “guetos de ricos”) está normalmente ligado às comunicações globais e à imensa rede de trocas, aberto às mensagens e experiências que incluem o mundo todo. Na outra ponta do espectro, encontramos as redes locais fragmentárias, muitas vezes de base étnica, que depositam sua confiança na própria identidade como recurso mais precioso para a defesa de seus interesses e, consequentemente, de sua própria vida:
O quadro que emerge dessa descrição é o de dois mundos de vida separados, segregados. Mas só o segundo é territorialmente circunscrito e, portanto, compreensível por meio de conceitos clássicos. Já os que vivem no primeiro dos dois mundo-de-vida – embora se encontrem, exatamente como os outros, “no local”– não são ‘daquele local': não o são idealmente (...), mas muitas vezes (todas as vezes que quiserem) também não o são fisicamente. (BAUMAN, 2009, p. 27)
47Uma das mais evidentes consequências dessa forma de realidade urbana (como negar que estamos diante de um elemento operador da própria maneira dessa sociedade se relacionar e se coesionar, ou melhor, de se fragmentar) é a que os grupos sociais que se auto segregaram não se identificam mais com o lugar integral onde moram à medida que seus interesses estão (ou melhor, flutuam) em outros locais. Seguramente, o interesse pela cidade em geral irá desmoronar. Conforme Bauman, os interesses que vão prevalecer serão os de serem deixados em paz, livres para se dedicarem completamente aos próprios entretenimentos e garantirem os serviços indispensáveis (não importa como sejam definidos) às necessidades e confortos de sua vida cotidiana. Eles não estão interessados, portanto, nos negócios de "sua" cidade: ela não passa de um lugar como outros e como todos, pequeno e insignificante, quando visto da posição de suas cidadelas de privilégios. (BAUMAN, 2009, p. 27). Essa postura é claramente anticidade e participa de uma cultura antiurbana também muito comum no Brasil, afinal, se
a cidade é entendida como uma reunião incontrolada de indivíduos livres em endereço aberto a todos, que se pode caracterizar ao menos por duas qualidades, a acessibilidade e a gratuidade (em todos os sentidos do termo), assim toda seleção, toda verificação, toda interdição, toda seleção ("da nata da sociedade") de cidadãos vêm contradizer esses princípios. (PAQUOT, 2009, p. 7)
48Podemos nos conformar que o processo de segregação tem envergadura global e que localidades como a cidade da Praia, sem poderem resistir, apenas reproduzem tendências contemporâneas irresistíveis, e, portanto, naturalizadas? Será que, como diz Eric Maurin (2009, p.7)
O princípio ativo da fragmentação territorial se encontra além, dissimulado nas dobras de uma experiência infinitamente mais geral, mas que permanece até hoje sem formulação política: a redução a todo preço da incerteza dos encontros aleatórios e a variedade de vizinhança que é o caminho por onde se definiria certo ideal contemporâneo de sociabilidade urbana.