- 1 Agradecemos ao Igor Catalão (Docente do Curso de Geografia da Universidade Federal da Fronteira Sul (...)
1A pandemia da COVID-19, mais do que um fenômeno biológico de graves implicações para a saúde humana, revela-se como um fenômeno social com intensas inter-relações entre lugares1. Estamos diante de grande dispersão do vírus e de contaminações, de repercussões distintas do quadro de doenças anteriores em diferentes países em função da capacidade de resposta dos estados e dos aparatos dos sistemas de saúde, mas também de repercussões singulares em contextos sociais específicos. A pandemia revela-se como um fenômeno geográfico e multiescalar (do corpo biológico ao corpus social, do local ao global).
- 2 Conceito tomado de empréstimo de Swyngedouw (2001) para quem a socionatureza é o resultado de um pr (...)
2Para compreensão da difusão dessa doença no espaço geográfico, deve-se reforçar o entendimento de que habitamos em um mundo significativamente urbanizado. Isso possibilita verificar como o vírus se espalha, quais as ações possíveis para enfrentar a crise e proteger a vida das pessoas. A urbanização marcada por intensos fluxos de pessoas, mercadorias e informações, a rápida circulação por sistemas de transportes velozes que conectam diferentes cidades, a dependência das relações econômicas, políticas e culturais entre as regiões do globo, enfim, todos esses elementos inauguram um fato novo na história socionatural2: a pandemia motivada por um agente viral globalizado, acompanhada de uma tentativa planetária de contenção de disseminação em meio às projeções galopantes de contágio e morte.
3A China foi o primeiro país a informar a OMS sobre um vírus desconhecido que estava se espalhando por diversas cidades chinesas, ainda em dezembro de 2019. A cidade de Wuhan foi o primeiro epicentro da doença. Até o dia 24 de outubro de 2020, segundo dados da Universidade Johns Hopkins (EUA), foram registrados 42.395.907 casos de COVID-19 e 1.146.596 mortes no mundo. O ritmo de cada país/região é diferente. No início da pandemia, o Japão, Hong Kong e Singapura viram crescer as infecções de maneira paulatina desde janeiro. Na Europa, os casos dispararam rapidamente. Os Estados Unidos registraram 8.519.830 casos com 224.301 óbitos, enquanto no Brasil eram 5.353.656 casos confirmados e 156.471 mortes.
4Diante desta pandemia, a ciência busca compreender e dar respostas às demandas da sociedade. É nesse sentido que a Geografia pode contribuir, ou seja, a partir do enfoque integrado do componente territorial em suas análises, a escala do lugar de ação dos indivíduos para uma possível integração entre as esferas da Natureza, da Técnica e da Saúde. Tal integração pode possibilitar análises simultâneas da dinâmica espacial dos fenômenos, como as doenças, uma vez que o espaço geográfico é resultado das relações sociais nele presentes, capazes de impactar até mesmo a saúde humana. Nesse contexto, queremos discutir o posicionamento da Geografia diante desta realidade. O que podemos dizer a partir da perspectiva geográfica? O que pode ser proposto?
5As respostas para tais perguntas admitem inúmeras possibilidades, formas distintas de pensar e de intervir no atual contexto. Nossa forma de responder a tais perguntas parte, portanto, de olhares geográficos em tempos de crise, refletindo a escolha de analisar nosso lugar de pesquisa e também de vida, a cidade de Erechim, norte do Rio Grande do Sul. O contexto geográfico erechinense apresenta importantes elementos socioespaciais para entender e antecipar possíveis desdobramentos de um espalhamento do novo coronavírus e seus impactos na saúde pública.
6Assim, o texto está estruturado a partir de dois eixos de discussão. Em um primeiro momento, tratamos de algumas linhas teóricas e possibilidades epistêmicas que esta nova década aponta como promissoras de uma novíssima Geografia para as temáticas planetárias. Consideramos o novo coronavírus como expoente de pulsações comuns das dinâmicas da Natureza dentro de localidades específicas, pois, se não existissem portos, aeroportos, estradas, automóveis, navios e aviões, não haveria pandemia. Mas esses aparatos tecnológicos existem, e a globalização do problema é uma realidade. A Natureza também continua existindo e pode, inclusive, colocar outras cepas de doenças de rápida difusão a ameaçarem a humanidade. Como reagimos/reagiremos nós, geógrafas e geógrafos?
7Na segunda parte, tratamos da diferenciação dos cenários de maior e menor inclusão/exclusão social. Diversamente distribuída no tecido urbano, a doença poderá se desenvolver em pessoas com mais riscos em função não apenas da idade, de sua exposição, de doenças associadas, mas também por viverem em condições econômicas de maior vulnerabilidade. Como é se proteger do vírus em condições de vida que permitem o isolamento social com relativa tranquilidade? O que é a tentativa de proteção em condições de miserabilidade? Com este estudo, propomos uma primeira cartografia de situações possíveis em Erechim, com o intento de dimensionar o sentido da Geografia neste atual momento de perplexidade.
8O período atual é amplamente desafiador para todas as esferas do conhecimento. Do ponto de vista científico e filosófico, a existência humana é relevada em um cenário de riscos e catástrofes que nos ameaçam enquanto espécie, enquanto corpos, enquanto sociedade.
9A globalização de uma doença e sua letalidade coloca o ser humano diante da potência sublime da natureza. Todos devem se conscientizar de que a disseminação e contaminação pela COVID-19 estão diretamente relacionadas com viagens motivadas pelos negócios transnacionais, realização de acordos comerciais, turismo e intercâmbios culturais que impulsionaram a difusão planetária deste vírus que desafia a humanidade.
10O SARS-CoV-2 é um fenômeno global, tecnificado e metabolizado pelas relações comerciais, ao mesmo tempo em que se metaboliza e se replica na corrente sanguínea e no sistema respiratório dos seres humanos. Essencialmente, trata-se de coisas naturais que existem independentemente das pretensões humanas. Por mais que se negue a Natureza no mundo altamente tecnificado, ela existe e se define pela simples realidade de se constituir indiferente aos desígnios sociais. O vírus existe e seu comportamento ainda é, em grande medida, desconhecido. Malgrado todos os avanços científicos, a humanidade ainda não está totalmente munida de recursos e organicidade política para solucionar um problema derivado de uma dinâmica não intencional da Natureza e ativado como um desafio de saúde pública para as pessoas ao ser incorporado no tecido da sociedade global.
11A Natureza mostra-se imprevisível perante a tentativa de ordem técnica da sociedade (Souza, 2018). No atual período de nossa história, a Geografia se coloca como uma ciência desafiada a produzir conhecimento sobre um evento que questiona suas mais profundas bases teóricas de compreensão da realidade. O espaço geográfico, conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações (Santos, 1999), agora conta com um fator surpreendente a funcionar mais como um curto circuito dentro desses sistemas do que qualquer outra coisa. Geógrafas e geógrafos estão inquietos com o fato de que nem sempre as dinâmicas do natural são suprimidas pelos objetos e pelas ações da sociedade (Santos, 1999). A presciência de algo invisível, porém, letal, é inquietante para todas as esferas sociais.
12Cogito ergo sum (Descartes, 1996) é a marca de uma clara fronteira entre o ser humano e o inumano. Existir é um fenômeno racional que, agora, é atormentado todos os dias com a rápida expansão de uma res extensa que não pensa, mas faz adoecer e morrer aqueles que pensam. Vivemos em um mundo marcado pela globalização fantasiosa – que mais exclui do que inclui as pessoas na sonhada aldeia global. Por isso, tem-se a urgência de, efetivamente, construir a mudança de percepção de valores que sejam capazes de colocar todos os seres humanos em um mesmo patamar de importância, quando se trata de vencer a crise e garantir a saúde coletiva.
13Nesse sentido, embora se tenha grande necessidade de estabelecer estratégias rápidas para contenção do novo coronavírus, também é mais do que relevante uma inflexão epistêmica em todos os campos científicos. No caso específico da Geografia, tal inflexão se direcionaria para a revisão da concepção de Natureza como conteúdo do espaço geográfico. A exigência do hoje nos chama a fazer tal reflexão sobre para qual ciência e para qual tipo de Geografia somos convidados a desenvolver conhecimento, a partir de um cenário mundial de ameaça concreta às nossas vidas.
14Aqui, levantam-se três leituras iniciais acerca da embrionária Geografia da Natureza no/do século XXI, inaugurada por esta pandemia que parece ser o divisor de águas entre um sistema desgastado de percepção da realidade e outro, mais incerto em sua estrutura de entendimento, porém, irreversível enquanto tendência para construção de novas apreensões teóricas e metodológicas das temáticas planetárias. São elas:
15i) A Natureza não está suprimida ou controlada pelos entes técnicos. A racionalidade da técnica conforta o pensamento, porque nela não há incertezas, e a dinâmica cósmica da repetição (o movimento de rotação, os dias, as noites, as estações do ano), ao incorporar-se nos mecanismos das linhas de produção, não são ilusões, são realizações. Contudo, ao tentarmos transpor tal segurança cognitiva para criar regras de funcionamento à Natureza, erramos. A Natureza não é suportada pelos regimentos da nossa compreensão.
16ii) A Natureza é, antes de tudo, uma experiência estética esquecida. Todos ainda são capazes de apreciar a bela natureza enquanto representação da ordem cósmica. Porém, muitos não conseguem mais experienciar a sublimidade (Kant, 2011) dos fatos naturais enquanto presciência da pequenez humana sobre a Terra. Essa experiência estética deveria ser vista como uma chance para que a humanidade busque ser mais humana e, portanto, que seus membros se respeitem uns aos outros em um contexto no qual somos todos regidos por forças que ultrapassam os limites da compreensão.
17iii) Em um contexto de temor com a escassez de recursos, elabora-se a necessidade de respeitar o meio ambiente com vistas à salvaguarda da Natureza. Mas a Natureza é inumana (Besse, 2014) – no sentido de não conhecer o conhecimento – e, prescindindo da presença humana para que continue a existir, dispensa qualquer tipo de salvaguarda ou salvação. Logo, seria melhor que todos nós temêssemos mais a própria vulnerabilidade do que algum suposto dano que se causa à Natureza (Souza; Lindo; Kozenieski, 2020).
18As três hipóteses citadas perfazem algumas reflexões sobre aquilo que aqui estamos chamando de uma embrionária revisão da Natureza no século XXI, a qual, talvez, sinalize outro modo de pensar o bem-estar e a saúde de todas as pessoas nas diversas localidades habitadas deste planeta. O pressuposto de que os limites da compreensão humana não comportam integralmente as dinâmicas naturais poderia ser o ponto de partida para nos conformarmos diante da evidência de que a finalidade da história da Natureza não é criar a vida humana de maneira especial ou exclusivista.
19Por sua vez, na hipótese de a Natureza nos demandar a experiência estética com sua sublimidade, aceitaríamos a condição da desordem, da incerteza e dos acontecimentos inesperados que podem, inclusive, suprimir o pensamento, a res cogitans da cena global. Assim, o comprazimento negativo do sublime (Kant, 2011), dado pelo inevitável confrontamento com o descontrole da Natureza, seria a chance para finalmente entendermos que o modelo de sociedade a ser buscado deve ser aquele em que há valorização do elemento humano e toda sua potência e pulsão de vida. No futuro, a Natureza já nos matou. No presente, o que podemos fazer para amenizar a democrática condenação natural à morte?
20Se, no futuro, a Natureza já nos matou, no presente, o SARS-CoV-2 está acelerando esse processo. O risco de morte por essa doença se realiza na maioria dos países por meio de um padrão democrático de constituição de paisagens do medo (Tuan, 2005), sobretudo, nos tecidos urbanos. O isolamento social como estratégia para evitar o aumento galopante das contaminações apresenta-se como a saída mais adequada durante este período em que a medicina encontra sérias dificuldades para minimizar seus impactos, seja em função da temporalidade de produção de medicamentos, seja pela insuficiência dos sistemas de saúde pública para acolher todos os acometidos mais gravemente pela síndrome respiratória.
21Mas o isolamento social vem expor que a forma de lidar com a pandemia não é democrática. A sociedade do risco pode ser a mesma para todos, porém, a economia opera de modo hierárquico dentro dessa sociedade (Beck, 1998). A disseminação do novo coronavírus iniciou-se pelos fluxos de viagens internacionais entre pessoas que tinham e têm condições de realizar esses deslocamentos. Posteriormente, a circulação local do vírus acometeu outros cidadãos, que não fizeram viagens internacionais, incluindo aqueles sem condições de permanecer em situação de quarentena por não ter suprimentos, não poder deixar seus postos de trabalho, estar em situação de informalidade trabalhista ou na busca por empregos. Essa desigualdade não é uma questão de ordem natural, mas, eminentemente, social.
22Logo, a terceira hipótese é corroborada pela concretude dessa situação de vulnerabilidade das pessoas que não têm recursos para se resguardar do risco de contágio e consequente sofrimento pela escassez de leitos em hospitais e acesso aos aparelhos respiradores, tão necessários ao processo de cura da infecção. Partimos da consideração de que esta pandemia está inaugurando o século XXI e se apresenta como possibilidade para uma virada epistêmica, por exigir mobilização de cientistas em todo espectro de áreas e aplicações.
23A nosso ver, para a Geografia está colocado um novo horizonte epistêmico, que é de explicar os antecedentes socioespaciais responsáveis pela globalização dessa doença e também de se rever o significado das dinâmicas naturais em um quadro de situações não necessariamente marcado pela supressão dos fatos naturais. Na atualidade, o que nos desafia é revisar a Natureza como elemento de desordem técnica, econômica, política e cultural e suas reverberações na mais básica condição humana para gozar da vida e usufruir do próprio espaço geográfico: a Saúde.
24Essa virada epistêmica da Geografia residiria na conjunção/síntese de todo o seu variado instrumental teórico-metodológico para compreendermos como a Natureza abala o conjunto indissociável de sistemas de objetos e ações. A novíssima Geografia do século XXI encontra-se em processo de gestação – ativado por um agente viral – e pode ser marcada pela teorização, representação cartográfica, diagnósticos e prognósticos do caos socionatural impulsionado pela ordem tecnológica comunicacional vigente: uma verdadeira Geografia da Perplexidade.
25Diante dessa problemática tão presente em nossos últimos dias, semanas e meses de isolamento, paralisia de parte de nossas atividades laborais e limitação dos percursos em nossos bairros e cidades, direcionamos estas reflexões mais abrangentes sobre o cenário global de pandemia para uma estratégia metodológica a fim de tratarmos de suas possíveis repercussões no tecido urbano de Erechim, norte do Rio Grande do Sul. Quais seriam os desafios desta cidade com a sua inserção na rede global do SARS-CoV-2?
26A representação cartográfica deve ser concebida como instrumental primordial, porém, não único, para elaboração de saberes sobre os territórios onde o vírus se espalha. Assim, com a pandemia da síndrome respiratória aguda grave, pretendemos demonstrar como as representações cartográficas podem auxiliar na leitura do impacto da doença e, possivelmente, oferecer elementos sobre o território para ações do poder público.
27Neste estudo, olhamos para a cidade de Erechim. Três indicadores sociais foram selecionados – i) população, ii) densidade e iii) circulação/equipamentos urbanos – e sete variáveis: i-a) população de 50 a 59 anos; i-b) população de 60 a 69 anos; i-c) população acima de 70 anos; ii-a) densidade da população; ii-b) quantidade de residências com 6 ou mais moradores; ii-c) áreas de exclusão social; e iii-a) a localização de hospitais, UBS, CRAS, loteamentos sociais Minha Casa minha Vida (MCMV) faixa 1, rodoviária, Distrito Industrial, principais vias de acesso, via férrea e rodovias.
28A espacialização dessas informações permite que a sociedade e o poder público se organizem e produzam ações efetivas para lidar com a COVID-19. Assim, elaboramos mapas temáticos e um mapa-síntese da organização espacial para auxiliar na produção de ações para prevenção da expansão do vírus.
29A partir do desafio que assumimos para produzir as representações sobre a cidade e a síntese da organização espacial, cabe questionar: a partir de quais fontes podemos produzir as informações para o município de Erechim? Quais estudos podem ser utilizados para definirmos áreas prioritárias para atuação do poder público e identificação de grupos populacionais com maior suscetibilidade?
- 3 A pesquisa a respeito das áreas de exclusão social referencia-se nos dados e nos setores censitário (...)
- 4 O censo demográfico registra informações da população residente em determinado domicílio. O IBGE (2 (...)
- 5 O setor é uma unidade territorial de coleta das operações censitárias, definido pelo IBGE, com limi (...)
30Em nossa proposta, optamos por utilizar os dados do censo demográfico de 20103 do IBGE, por tratar-se de um estudo que registra informações de toda população em seu local de residência habitual4, não sendo, desse modo, um estudo amostral ou projetivo. O censo demográfico disponibiliza dados nas unidades territoriais dos setores censitários5, que possuem dimensões menores que as dos bairros da cidade.
31A título de exemplo, em 2010, o município era composto por 158 setores (exemplo de unidades territoriais), considerando os setores do distrito de Capoerê e de Jaguaretê. A área urbana da sede municipal de Erechim está dividida em 139 setores censitários, dos quais se encontram dados do perfil dos residentes e dos domicílios. Ao longo da análise, também trabalhamos com uma divisão de bairros estabelecida pela Secretaria de Planejamento do município.
- 6 As projeções foram produzidas tomando como referência os dados demográficos e os setores censitário (...)
32Utilizar os dados do censo demográfico de 2010 impõe um limite ao nosso estudo que diz respeito à atualidade das dinâmicas territoriais e da organização do espaço. No entanto, fizemos dois movimentos para acessar dados mais atualizados: consulta às secretarias municipais e estudo de projeção da população do município a partir dos dados de 2010 e número de óbitos6. Após os dois movimentos, concluímos que os dados de 2010 seriam os mais adequados para um primeiro exercício analítico. Assim, assumimos em nossa análise que a organização do espaço (distribuição do perfil populacional e domicílio nos setores censitários) não sofreu alterações significativas desde o último levantamento.
33Segundo os dados, a população total de Erechim, em 2010, era de 96.087 habitantes, sendo que 90.552 residiam na área urbana, ou seja, 94,23% da população total, sendo que destes apenas 400 habitantes estavam distribuídos na área urbana dos distritos, localizados ao sul e norte do município, a uma distância de aproximadamente 14 km da sede.
34Os dados em si, entretanto, não são suficientes diante do vivido se não forem contextualizados. Então, buscamos compreender a inter-relação entre a disseminação da COVID-19 e a organização urbana de Erechim, onde, como em qualquer outra cidade, morar, trabalhar, buscar e usufruir de determinados serviços (lazer, educação, transportes e saúde) e estabelecer relações de pertencimento ao lugar contém variáveis geográficas complexas que necessitam ser compreendidas, já que vivenciamos um problema de ordem social.
35Sobre os grupos de risco à COVID-19, as informações indicam que pessoas idosas e pacientes de doenças crônicas são aqueles que apresentam maior taxa de letalidade após contaminação (Lana et al., 2020). Nesse sentido, distinguir e localizar a população com 60 anos ou mais se torna importante para definição de ações prioritárias.
36Primeiro, coletamos dados dos grupos populacionais a partir dos residentes com 50 a 59 anos de idade, que, atualmente, é o grupo que compõe a população na faixa etária de 60 a 69 anos. O grupo etário de 50 a 59 anos, em 2010, representava 10.609 pessoas, distribuídas de maneira homogênea em praticamente todos os setores censitários e bairros, conforme podemos observar no Mapa 1 "Erechim-RS: população de 50 a 59 anos por setor censitário". O mapa destaca uma situação de maior equilíbrio da distribuição da população, visto que, dos 139 setores, 37 concentram mais de 90 pessoas no grupo etário. Enquanto que, entre 60 e 69 anos e na faixa etária acima de 70 anos, há apenas um setor com mais de 90 pessoas (prancha 1).
- 7 Com base nos dados de população residente total e da população residente na faixa etária em tela, o (...)
37Destaca-se que 12,45% da população erechinense tinha mais de 60 anos em 2010, ou seja, aproximadamente 12 mil pessoas se enquadravam na condição de idosos. Se destacarmos apenas os residentes que possuíam de 60 a 69 anos, encontramos 6.387 pessoas. Ao observarmos a distribuição desta população nos setores censitários, no Mapa 2, verifica-se relativa dispersão em diversos bairros. Contudo, a dispersão é menor do que a situação da faixa etária de 50 a 59 anos. Cabe destacar que 36 setores censitários possuem de 8,7 a 14,4%7 dos seus residentes nesta faixa etária, abrangendo o bairro Ipiranga e áreas do Centro e José Bonifácio (prancha 1).
- 8 Aplica-se o mesmo princípio utilizado para população residente com 60 a 69 anos.
38O mesmo procedimento aplicado à faixa etária de 70 anos ou mais indica a presença de 5.576 pessoas. Com relação à sua distribuição, verifica-se maior concentração, ou seja, é possível observar uma redução da quantidade de pessoas mais idosas na periferia da cidade. A população nesta faixa com mais idade reside principalmente em alguns bairros nas imediações do centro da cidade (Mapa 3). Identificam-se também 36 setores censitários em que esse grupo perfaz de 9 a 14,9%8 da população total residente, referentes ao bairro Ipiranga e, majoritariamente, às áreas do Centro e Morro da Cegonha.
Prancha 1: Erechim, mapas da população de 50 anos ou mais por setor censitário
Fonte: IBGE - Censo demográfico (2010).
39Considerando as três faixas etárias (prancha 1) que destacamos e os mapas apresentados, novos questionamentos surgem: o que justifica a maior concentração destes residentes nos bairros centrais conforme aumenta a faixa etária? Por que se identificam poucos moradores das maiores faixas etárias nos bairros periféricos? A população idosa prefere mudar-se para bairros centrais? Ou as condições socioeconômicas dos moradores da periferia influenciam significativamente na expectativa de vida ao ponto destes citadinos entrarem em óbito com menor idade? Essas perguntas são exemplos de problemáticas geográficas que, se respondidas em outros estudos, permitem à sociedade e ao poder público compreender com mais propriedade a organização socioespacial de Erechim.
40A cidade revela-se, em um primeiro momento, como conjunto de diferentes usos justapostos entre si, que podem resultar em fragmentação espacial, na delimitação de áreas distintas, em espaços de desigualdades. Porém, essas porções da cidade se articulam por meio dos fluxos de pessoas, mercadorias e informações. Por sua vez, aglomerações são propícias à propagação do vírus. Então, buscamos informações sobre distribuição e concentração da população sem distinção de faixa etária.
41Detectamos 12 bairros cujo número de população é superior a 3 mil habitantes. O bairro Centro, por exemplo, o mais populoso, concentrava mais de 7.300 domicílios em 2010, totalizando aproximadamente 18.500 moradores. O segundo mais populoso era o Atlântico com 5.430 pessoas, seguido pelos bairros Koller, Linho, Cerâmica, Três Vendas, José Bonifácio, Progresso, Aeroporto e Cristo Rei (Lindo, 2018).
42Essa informação permite compreendermos quantos somos e onde estamos. Entretanto, mais do que a quantidade de pessoas, é necessário saber como elas se aglomeram, já que evitar aglomeração é uma das recomendações da OMS para que o vírus não se propague.
43A variável densidade populacional foi selecionada para compreender a distribuição dos moradores de Erechim e encontramos um índice resultante da divisão entre o número total de habitantes e a área ocupada. A divisão foi classificada em muito densa (25.210 - 33.613 hab/km²), densa (16.807 - 25.209,99 hab/km²), média densidade (8.405 - 16.806,99 hab/km²) e baixa densidade demográfica (2,2 - 8.404,99).
- 9 Para mais informações, ver “II cadernos de mapas de Erechim” (Kozenieski, 2018), especificamente: “ (...)
44O Mapa 4 "Erechim-RS: densidade demográfica por setor censitário (2010)" expõe um setor muito denso no bairro Centro, mais especificamente onde se localiza o presídio estadual. O segundo setor, classificado como denso, fica no bairro Industrial (que abriga o conjunto habitacional Estevão Carraro, da década de 80, e novos loteamentos, pós anos 2000, elementos que explicam a densidade). Na sequência, há 12 setores de média densidade, distribuídos pelos bairros: Centro (onde há uma significativa quantidade de prédios residenciais – verticalização), Atlântico (estruturado, inicialmente, para abrigar trabalhadores do setor industrial), São Vicente de Paula, Parque Lívia, Progresso e Cristo Rei (bairros distantes do centro, cuja população é de menor renda, com terrenos, imóveis e aluguéis de menor valor)9.
Mapa 4 - Erechim-RS: densidade demográfica por setor censitário (2010)
Fonte: IBGE – Censo demográfico (2010) – elaborado pelos autores.
45Nestes bairros – São Vicente de Paula, Parque Lívia, Progresso e Cristo Rei – há uma grande quantidade de moradores compartilhando uma mesma área. Esse aspecto pode contribuir para disseminação do vírus se não houver estratégias de controle. Não é por acaso que os bairros mais distantes da área central sejam mais densos, pois resultam de um modelo de desenvolvimento urbano que é desigual. Moradores com menor poder aquisitivo tendem a se deslocar, obrigatoriamente, para áreas cujos valores dos terrenos ou imóveis sejam mais acessíveis.
46Seguindo o caminho para identificação de aglomerações, optamos por mapear os domicílios com seis moradores ou mais, visto que essa situação de compartilhamento de uma mesma habitação, por muitas pessoas, facilita a transmissão do vírus (Mapa 5).
Mapa 5 - Erechim-RS: Domicílios com 6 ou mais moradores por setor censitário (2010)
Fonte: IBGE – Censo demográfico (2010) – elaborado pelos autores.
47A área urbana de Erechim-RS possui 33.097 domicílios (IBGE, 2010); destes, 1.200 estão na condição em que residem, pelo menos, 6 moradores. Apenas os 15 setores censitários com maiores valores de domicílios, com seis ou mais moradores, possuem juntos 416 casos, ou seja, 35% dos domicílios com seis ou mais moradores.
48Ao avaliar a quantidade de domicílios que possuem seis ou mais moradores em comparação com valor total de domicílios que existem em cada setor censitário, verificamos que nove setores possuem entre 10,3% a 20,7% de seus domicílios na referida situação. Tanto essa medida quanto os dados anteriormente apresentados indicam situações de concentração de domicílios com 6 moradores ou mais em poucas unidades territoriais.
49Observa-se que os nove setores censitários destacados anteriormente estão localizados nos bairros Presidente Vargas, Cristo Rei, Progresso, Industrial, Amizade e Parque Lívia. Ao contrário dos mapas que retratam a localização da população idosa (que indicava concentração de residentes nas áreas centrais), o Mapa 5 indica a maior localização de residências com mais de seis moradores na periferia da cidade.
- 10 Para maiores informações sobre a metodologia deste mapeamento, verificar: CEMESPP - CENTRO DE ESTUD (...)
50Essa leitura nos leva, portanto, a novos questionamentos: quais são os motivos que explicam a existência de alguns bairros da periferia com alta concentração de moradores num mesmo domicílio? Por que essa situação não está presente na área central da cidade? A densidade demográfica e a densidade de moradores na mesma habitação estão relacionadas a situações de vulnerabilidade (exclusão) social? Tais perguntas também são exemplos de problemáticas geográficas com potencial contribuição para sociedade. Não vamos respondê-las neste estudo, no entanto, resgataremos o Mapa 6 “Erechim: inclusão/exclusão (2010)10” para correlacionar as áreas de alta exclusão, que indicam alto grau de vulnerabilidade social da população urbana do município, com os mapas apresentados até aqui.
51O mapa 6 resultou da sobreposição de indicadores econômicos, educacionais, infraestrutura e demográficos, de modo que os setores censitários são hierarquizados das melhores para piores situações por meio de cores que permitem um ordenamento visual – cor mais clara (amarela), cores intermediárias (amarelo escuro e laranja) e cor mais escura (vermelho). Ao destacar as áreas com média e alta exclusão, que se constituem fonte de especial preocupação em função da situação de vulnerabilidade dos residentes, destacamos os seguintes bairros: Progresso, Victória, São José, Cristo Rei, Presidente Vargas e São Vicente de Paula.
Mapa 6 - Erechim-RS: Exclusão/inclusão social, 2010
Fonte: IBGE – Censo demográfico (2010) – elaborado por Lindo e Martinuci (2012).
52Os seis mapas apresentados demonstram características da organização espacial da cidade. Há necessidade de ir além da localização, o que significa superar a produção de uma cartografia descritiva. Nesse caminho, torna-se fundamental a busca pela compreensão de determinados processos espaciais, ou seja, condições espaciais que favorecem, por exemplo, a disseminação do vírus e de doenças correlatas. Há de se reconhecer a contribuição dos mapas de localização, todavia, compreendemos que a busca por sínteses espaciais para oferecer sentidos à organização do espaço é um caminho para qualificação desta visão.
53Aqui não enfatizamos a espacialização da doença (COVID-19) no contexto urbano de Erechim-RS, porque buscamos compreender a organização do espaço e a distribuição de pessoas sensíveis à propagação da doença. Até o momento de elaboração destes mapas, ainda não havia casos/dados da disseminação da doença na cidade. A partir disso, o resultado foi uma representação cartográfica de síntese (Mapa 7), visando ações futuras para auxiliar no controle da doença na cidade.
Mapa 7 - Erechim-RS: Áreas prioritárias para ações contra o COVID-19
Fonte: Síntese elaborada pelos autores.
54O Mapa 7 resgata indicadores expressos nos mapas anteriores e elementos de circulação e equipamentos urbanos, que, devido ao seu caráter de agrupamento de pessoas, são sensíveis à propagação do vírus. Os primeiros pontos que destacamos na representação são hospitais, Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), os quais representam pontos sensíveis para o acolhimento e atendimento dos enfermos da COVID-19. Trata-se de referências para a população em situações relacionadas à saúde e à assistência social e também são suportes para qualidade de vida das pessoas pertencentes ao grupo de risco.
55Evidenciamos também outros equipamentos urbanos com potencial para acelerar a circulação do vírus nos bairros da cidade e nos municípios dos quais Erechim é polo regional. Eles têm características que concentram grande quantidade de pessoas em um mesmo período do dia (horários de início e fim de aulas, horários de pico, saída e entrada de trabalhadores da indústria e comércio). Por isso, localizamos os terminais de ônibus intermunicipal e interestadual, que recebem passageiros de vários municípios do estado e do Brasil; as universidades e o instituto federal (UFFS, URI e IFRS), que têm fluxos diários de estudantes vindos de Erechim e de municípios da região; o terminal de ônibus urbano, ponto de convergência e integração do transporte público municipal; e o distrito industrial e frigorífico, ponto de concentração de trabalhadores e de fluxos regionais de pessoas.
56No que se refere à circulação, estão em destaque as rodovias estaduais e a federal, que são as vias de comunicação com outras localidades, ou seja, caminhos pelos quais a disseminação do vírus salta as escalas geográficas (Smith, 2000). Foi o deslocamento que possibilitou a disseminação do vírus de modo rápido e amplo, devido às redes urbanas, como destacado por Monteiro et alii (2020) no mapa “Incidência do Covid19 e rodovias”, em cujas vias estão as linhas de infraestrutura que integram outras cidades médias (Passo Fundo e Chapecó), metrópoles (Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba e São Paulo) e aeroportos com voos nacionais (Passo Fundo e Chapecó). Além disso, estão em destaque as principais vias de circulação intraurbana, ou seja, avenidas e ruas que viabilizam os fluxos de pessoas, especialmente por meio do transporte público, que as direcionam para os bairros.
57Após a análise e correlação de temáticas, foi possível elaborar o Mapa 7, que indica áreas prioritárias para ação contra o COVID-19. A pesquisa aqui apresentada faz parte de um processo datado no período inicial da pandemia e de seus desdobramentos no interior do Rio Grande do Sul. Enquanto processo, este estudo poderá ser transformado em pesquisas futuras para comparação das variáveis aqui abordadas com a efetivação dos casos de contaminações e mortes na cidade.
58A COVID-19 comparece, no atual cenário global, como um desafio às sociedades para preservação de vidas humanas. As ciências estão sendo demandadas a apresentar contribuições que possam ajudar no entendimento das dinâmicas de transmissão do vírus, tratamento, cura e, no caso da Geografia, a compreensão dos contextos socioespaciais que podem bloquear ou acentuar a cadeia de espalhamento.
59Este artigo iniciou com a provocação sobre a possível viragem epistêmica a ser pensada. Há evidências de que os sistemas de objetos e ações artificiais dos diferentes países não são totalmente capazes de impedir a difusão de uma matéria advinda da espontaneidade do mundo biológico. O medo cresce a cada nova notícia sobre aumento de números de infectados e mortos. A abordagem da pandemia acontece no cerne da Geografia da Perplexidade em múltiplas escalas: do corpo ao mundo.
60Nesse contexto de globalização e pandemia, quais são as contribuições que a Geografia pode oferecer? Não há dúvidas de que as possibilidades são muitas, especialmente definidas a partir das orientações dos geógrafos que a produzem.
61Este estudo identificou um perfil de distribuição da população entre os residentes das maiores faixas etárias, na cidade de Erechim-RS. Em 2010, as pessoas de 50 a 59 anos (hoje, de 60 a 69 anos) apresentaram ampla distribuição ao longo da área urbana e observamos maior concentração destes nos bairros centrais da cidade.
62Verificamos que as áreas com maior densidade, tanto populacional como também de moradores em um mesmo domicílio, estão distribuídas em bairros periféricos. Ao correlacionar esses locais com outros indicadores, como exclusão social, verificamos que eles estão associados a bairros em que a população apresenta situações de vulnerabilidade social.
63Os indicadores de população e densidade contribuíram para definição de áreas prioritárias para o combate dos efeitos da COVID-19. O Mapa 7 destacou a síntese espacial a partir de tais indicadores, demonstrando uma lógica de organização do espaço urbano de Erechim, com destaque para duas situações: i) para se evitar mortes e ii) para evitar transmissão. Portanto, o indicador populacional, especialmente população idosa, define área prioritária na qual há maior suscetibilidade a óbitos em decorrência do agravamento da doença, ou seja, locais na cidade onde são necessárias restrições para evitar contaminação dos residentes idosos.
64Já o indicador densidade revelou áreas que possuem maior possibilidade de disseminação do vírus devido ao adensamento populacional e à proximidade entre os residentes. As áreas adensadas também são aquelas que possuem uma condição socioespacial que merece atenção devido às condições de vulnerabilidade social (do ponto de vista econômico, educacional, habitacional e sanitário) de parcela significativa da população.
65A intenção do mapa-síntese foi demonstrar que se trata de um instrumento a ser utilizado para além da localização de pontos e áreas. É possível antecipar e planejar ações que são de saúde pública, pois garantir a vida é um dever e um direito social. O vírus não escolhe quem infectar, mas a sociedade escolhe quem proteger. É necessário proteger os grupos em situação de vulnerabilidade social. É necessário pensar estratégias territoriais para evitar mortes.
66Acreditamos que a Geografia deve ir além da descrição e da localização dos fenômenos. Daí a importância de investir em pesquisa básica, produzir conhecimento sobre o território, fortalecer parcerias entre poder público municipal (planejamento urbano, saúde, assistência social, educação) e universidade pública. Certamente, é neste cenário que a novíssima Geografia da Perplexidade tem o potencial de cambiar espaço para uma ciência mais próxima do real significado dos impactos da Natureza na ordem técnica mundial e seus desdobramentos locais. Isso poderá redimensionar a importância da saúde humana acima de quaisquer guerras econômicas ou políticas.