1Para Jeffrey Weeks (1997) a sexualidade não tem uma história, se não muitas histórias, que precisam ser compreendidas na singularidade. Para o autor, o que conhecemos como "sexualidade" é o resultado de muitas influências e intervenções sociais. Não existe fora da história, mas um produto histórico, por isso, refere-se a uma “construção social da sexualidade” (Weeks, 1997, p. 31). Na história ocidental, uma certa permissividade das relações entre pessoas do mesmo sexo estão registradas na Grécia (entre homens e entre mulheres) na literatura (Winkler, 1990). Fone (2000) associa a uma interpretação equivocada da história da destruição de Sodoma escrita na Bíblia Sagrada pelos judeus e pelos cristãos a atribuição de aspectos pagãos, heréticos ou debochados aos homossexuais ou grupos sociais que praticavam relações homoeróticas. Segundo o autor, os escritos de São Paulo, nos primeiros anos da Cristandade consolidou a rejeição da conduta homossexual, sob a influência da filosofia neoplatonista.
2Na Renascença europeia (entre os séculos XIV e XVI), o caráter proibitivo das manifestações sociais se ampliaram no contexto de avanço da colonização no Atlântico, impondo a violência como estratégia basal das empreitadas coloniais e na dizimação dos povos indígenas originários. Nesse sentido, o projeto imperial europeu iniciado com o que a História denominou de Descobrimentos (a partir de 1492) foi bem sucedido sobretudo devido ao controle exercido através do poder sobre o sexo (Quijano, 2002) e da criação da categoria "raça" com aspirações biológicas e marcadora das diferenças, cuja categorização e hierarquização possibilitaram a escravização de indígenas e africanos, bem como da submissão secular das mulheres na violenta ordem colonial (Blunt, 1994).
- 1 Compreende-se tupi no sentido genérico, ou seja, o grupo indígena formado pelos caetés, guaranis, p (...)
3Em relação à história do homoerotismo, no período colonial, as leituras existentes sobre a sexualidade e a afetividade dos povos indígenas remete, em grande parte, aos escritos de padres e militares europeus no contexto colonizatório. Desde os escritos de Pero Vaz de Caminha (1450-1500) sobre a nudez e o fato dos índios deixarem à mostra “suas vergonhas” (Ministério da Cultura, 2020), a sexualidade se impôs de maneira irrevogável na formação do Brasil e outras colônias. As relações homoeróticas nas tribos de índios tupis1 são registradas na literatura (Fernandes, 2005; 2018) e apontam, a partir dos registros históricos elaborados por europeus, que em alguns casos as práticas eram socialmente aceitas, rechaçadas e, em algumas situações, intrínsecas a divisão social do trabalho.
- 2 Trevisan (1986) coloca que foram duas Visitações Inquisitoriais (em 1591-95 e 1618-20), na Bahia e (...)
4Alguns anais históricos (Trevisan, 1986; Novinsky, 2007) descrevem, ainda que com carência de dados, como o Tribunal Inquisitorial instalado em Portugal e operante também no Brasil colonial2, buscava vigiar e punir as práticas homoeróticas (compreendidas como o crime da sodomia), bem como outros crimes como a prática judaica, luterana e maometana, a heresia, a feitiçaria, a bruxaria e os costumes gentílicos (andar nu, pintar o corpo e tatuar-se, por exemplo). Esse panorama, forjado com os reflexos jurídicos e sociais desencadeados pela Revolução Francesa (1789-1799), provocou mudanças substanciais no arranjo jurídico europeu e das colônias. Em 1830, com a promulgação do primeiro Código Penal no Brasil, o crime de sodomia é removido e a homossexualidade passa a ser compreendida como crime por ofensa à moral e aos bons costumes (Novinsky, 2007). Em 1890, a interpretação passa a ser de crime contra a segurança da honra e da honestidade das famílias e, no caso do travestismo, a punição era de 15 a 60 dias de prisão, embora a exceção era a regra no mês de fevereiro, durante as festividades de carnaval.
5Foucault (2014), no estudo da genealogia das relações de poder ocidentais, sustenta que a sexualidade não foi reprimida com o capitalismo. Na construção da hipótese repressiva, sustenta que desde o século XVI e, principalmente, no século XIX, o sexo foi incitado a se manifestar, especialmente nos discursos biomédicos e jurídicos. Na interseção entre a técnica da confissão e do discurso científico, a sexualidade foi definida como sendo por natureza, um terreno penetrável por processos patológicos solicitando, neste sentido, intervenções terapêuticas ou de normalização (Foucault, 2014). Um processo incidente também sobre as relações de gênero, conformando determinadas identidades como abjetas e comportamentos como reprimíveis.
6Na virada para o século XX, no contexto do fim da escravidão e da independência do Brasil, com o conjunto das mudanças estruturais que a Revolução Industrial impunha, novas lógicas de organização política, econômica, social, cultural e espacial moldaram o ideal de uma Nação. A supremacia da técnica, amparada num viés higienista-positivista, logrou êxito no ordenamento nacional, com destaque para a contribuição do Direito e da Medicina (Schwarcz, 1993), forças científicas motrizes herdadas da colonização que contribuíram para a acomodação da Ordem e do Progresso anunciado no século que se iniciava. O controle dos corpos implicava também no controle da ocupação das cidades, sendo o comportamento e a moralidade elementos basilares para a concretização de um país “moderno”, já mundialmente subalternizado devido a miscigenação racial e a concepção de inferioridade intrínseca a mestiçagem, no auge do racismo ambiental (Schwarcz, 2011). A homossexualidade, na lógica médico-penal, foi encarada como homossexualismo, prática a ser coibida através da força policial e da aplicação de métodos médicos, em especial os psiquiátricos e os endocrinológicos.
7Esta interpretação médico-legal do que se convencionou a denominar de homossexualismo (inserida no Cadastro Internacional de Doenças em 1948) desencadeou, sobretudo no governo ditatorial de Getúlio Vargas, uma série de operações policiais em estabelecimentos e espaços públicos frequentados majoritariamente por homens gays e travestis, bem como as internações compulsórias de sujeitos “desviantes” por familiares que dispunham de condições financeiras para tratamentos psiquiátricos (cf. Green, 2000). A emergência do fascismo e do nazismo na Europa que ecoou em setores políticos do Brasil agravou a situação e os métodos de controlar e curar essa “doença social”. É um marco deste período o artigo do professor, médico e endocrinologista Leonídio Ribeiro “Homossexualismo e Endocrinologia” (Ribeiro, 2010 [1935]), resultado das ações empreitadas na Faculdade de Medicina e no Instituto de Identificação da Polícia do Distrito Federal, no Rio de Janeiro. Aclamado em eventos científicos internacionais em pleno auge do racismo científico (Gutman, 2010), Ribeiro utilizava da força policial nas suas operações no Instituto de Identificação para aplicar métodos controversos de pesquisa com resultados posteriormente refutados pela comunidade científica, já que não apenas os meios, mas os próprios instrumentos de coleta, análise e, por consequência, os resultados, eram duvidosos.
8Embora este contexto de exclusão e eliminação de homossexuais no Brasil tem sido historicamente remodelado, é notável as faces contraditórias das relações homoeróticas no país. Desde o período colonial, ainda que legalmente proibida, tais relações permearam locais públicos e privados nas principais cidades brasileiras como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Salvador, Niterói, Brasília e Manaus. A permissividade sexual promovida no período de Carnaval faz, há mais de um século, a imagem do Brasil como um país aberto a comportamentos considerados desviantes do padrão heteronormativo e branco (Polidoro, 2019). A partir da década de 1950, no contexto do avanço do feminismo e da revolução sexual, a sociedade ocidental passou a flexibilizar a aceitabilidade das relações homossexuais, sobretudo nos países da Europa Ocidental e na América do Norte. No Brasil, isso não foi diferente, principalmente em razão da agência de movimentos da sociedade civil organizada, na reivindicação de direitos para a comunidade LGBT no final do século XX.
9Coincidentemente ao avanço dos direitos LGBT, o surgimento da aids na comunidade gay de Nova York e São Francisco, na década de 1980, fez com que a sociedade associasse não apenas os gays, mas os bissexuais, as travestis e as pessoas trans como os portadores da “praga gay”. Este estigma que até hoje não foi superado (Ferreira & Miskolci, 2020) determina para muitos homossexuais o modo de viver e morrer e influencia como os grupos LGBT e de homens que fazem sexo homens (nomeado pela Epidemiologia de HsH) exercem a sua sexualidade nos espaços públicos e privados das cidades e imprimem materialidade na organização dos espaços urbano e regional.
10Este artigo busca, na próxima seção, resgatar as abordagens, na Geografia, sobre a homossexualidade e, posteriormente, mapear os dados existentes sobre esta população nos sistemas de informação do Brasil, trazendo à tona a predominância da invisibilidade que, aliada ao avanço conservador em curso, podem representar riscos sem precedentes, não apenas aos homens gays e às mulheres lésbicas, mas a toda a comunidade LGBT.
11As discussões sobre sexualidade no âmbito da Geografia não são recentes e remontam, em larga medida, produções da década de 1980, em especial no âmbito da Geografia Urbana e Cultural. Weightman (1981) sobre os homossexuais coloca que:
- 3 O mundo dos homossexuais recebeu pouca atenção dos geógrafos. No entanto, é cada vez mais aparente (...)
The world of the homosexual has received little attention from geographers. Yet it is increasingly apparent that this sizeable population is having an impact upon the landscape through a variety of spatial expressions. Although psychologists and sociologists have studied the gay community extensively, they have devoted only minimum attention to spatial characteristics. Therefore much awaits the investigative techniques of geographers. (Weightman, 1981, p. 106,)3
12Ford (1979) em análise sobre a preservação urbanística no contexto das transformações urbanas da década de 1970 nos Estados Unidos apontava o processo de mudança da paisagem de alguns bairros de cidades da costa leste e mencionava os esforços da comunidade gay, negra e de grupos de contra-cultura na preservação do patrimônio enquanto a gentrificação promovida por grupos “chiques” forjava a urbanização guiada pelo mercado imobiliário. Peake (1993) em uma análise crítica de como a sexualidade e a raça desafiava a estruturação do espaço urbano e social em cidades norte-americanas indicava a guetização gay de São Francisco e de Nova York e, sobretudo, alertava para a hipervisibilidade dos homens gays em detrimentos das mulheres lésbicas. Aqui é importante salientar a completa invisibilidade da população travesti e trans nas análises geográficas realizadas até o final dos anos 1990.
13O contexto da revolução sexual dos anos 1980, sobretudo nas principais metrópoles do norte global, teve atenção de geógrafos britânicos como Mort (1995) que avaliou as mudanças nas estruturas materiais e simbólicas do espaço social de Londres e indicou a centralidade de gays nessa transformação. Mort (1995), a partir de uma análise dos locais de consumo de gays na capital inglesa, expôs a importância da organização de grupos e diferentes atores socioeconômicos na mudança do padrão de consumo londrino e ressaltou a predominância de um eixo binário de normalidade e dissidência sexual, aproximando-se da crítica de Peake (1993) sobre a hipervisibilidade de homens gays. Knopp (1990) segue a tendência crítica de Mort e Peake ao centralizar os homens gays de Nova Orleans no Mississipi como agentes da gentrificação local e vislumbrando a necessidade de trazer à tona outras formas de manifestação sexual e de gênero.
- 4 “Certamente é hora de divulgar abertamente as geografias de gays e lésbicas, a fim de entender comp (...)
- 5 Segundo Pereira (2015, p. 412) a teoria queer surgiu como crítica aos efeitos normalizantes das for (...)
14Para Bell (1991, p. 328), apesar da Geografia reconhecer que grupos marginalizados dão formas à organização do espaço e da sociedade, afirma que a sexualidade tem sido negligenciada quando comparada com os extensivos estudos existentes sobre a classe, o etarismo, a raça e a etnicidade. Segundo a autora é surely time to bring gay and lesbian geographies out into the open, in order to fully understand the role of sexuality and sexual preference in shaping social space4. No final da década de 2000, Brown (2008) reiterava os alertas de Bell (1991) em relação aos problemas de pesquisas guetificadas, ou seja, as leituras geográficas da sexualidade que centralizava as análises em pequenas áreas e de cidades específicas do norte global e o pressuposto universalizante/homogeneizante de tais experiências. Neste sentido, Binnie (2014) argumenta a necessidade da realização de um urbanismo queer5 de comparação relacional entre as políticas de sexualidade entre cidades.
15Na análise de Silva & Vieira (2014) sobre a sexualidade na Geografia brasileira, as autoras argumentam que a partir dos anos 2000 as produções se intensificaram, inicialmente, com a leitura das experiências das travestis a partir do conceito de territorialidade (Ornat, 2008). Vale ressaltar, todavia, que o corpo teórico e analítico desenvolvido pelo geógrafo Benhur Pinós da Costa desde o início do século XXI, primeiro sobre a diversidade cultural e sexual em Porto Alegre (Costa, 2004) e, posteriormente, com a sua tese de doutoramento (Costa, 2007) sobre homoerotismo parece, de fato, inaugurar novas aproximações na ciência geográfica no Brasil com um diálogo disciplinar junto à antropologia e a psicanálise.
16Diferente da experiência do norte global, cujo processo de urbanização e metropolização teve em maior ou menor grau um protagonismo homossexual (em especial dos homens gays) ou que ao menos mereceu atenção dos(as) geógrafos(as), no Brasil a produção da sexualidade na Geografia tem sido mais tímida em relação ao países anglófonos como ressaltou Silva & Vieira (2014):
- 6 É notável que várias palavras-chave como 'queer', 'interseccionalidade', 'reflexividade' e 'corpore (...)
It is notable that several keywords such as ‘queer’, ‘intersectionality’, ‘reflexivity’ and ‘corporeity’, commonly used in Anglophone literature, do not form a central part of Brazilian geographical literature and are only used marginally. The term ‘queer’, for example, only appears to articles published in Brazil by English authors or by other writers in the social sciences and humanities that have incorporated the term culturally. Another characteristic is the absence of the word ‘transgender’, common in Anglophone literature, and not yet culturally absorbed by the Brazilian geographic community. (p.771)6
17A emergência da discussão sobre a temática tem sido significativa e avançado com o uso de metodologias tradicionais como os Sistemas de Informação Geográfica. A indisponibilidade ou insuficiência de dados que corrobora com os obstáculos de produções, entretanto, podem ser superadas por abordagens e prospecções de investigação qualitativas que, conforme recomenda Walker (2010), encontram nas técnicas de SIG inúmeras possibilidades de aplicação.
18Neste contexto, encontramos em Almeida (2019) a proposta de uma cartografia queer a partir do mapeamento de dados da violência na cidade de São Paulo. Na pesquisa, o autor faz a aliança de métodos de mapeamento tradicionais com os mapas mentais produzidos por partícipes da pesquisa. Almeida (2018), por sua vez, recorre a cartografia como forma de representar as espacialidades homossexuais masculinas temporalmente em São Paulo e Paris. Salinas (2008) também se utiliza da cartografia para apresentar os graus de visibilidade gay no mundo por meio de critérios de sociabilidade e disponibilidade de serviços específicos para homossexuais e se junta ao corpo de produção em ascensão sobre a sexualidade na Geografia.
19Geografias gays do Rio Grande do Sul
20A construção do exercício que aqui denominamos de Geografias gays do Rio Grande do Sul é de identificar e mapear os dados existentes sobre gays e lésbicas nos sistemas de informação do Brasil. Com o histórico de invisibilização, permeado de perspectivas patologizantes ou criminalizantes, o interesse do Estado nesta população é recente, em especial no âmbito da promulgação de uma política específica para a saúde LGBT (Brasil, 2013). No quadro 1 buscamos sintetizar as variáveis exploradas neste estudo. Excluímos dessa sistematização os dados do cadastro de usuários(as) do SUS (E-SUS AB TERRITÓRIO, 2020) que contém o campo orientação sexual, mas possui severas restrições de qualidade.
21Quadro 1 - Dados disponíveis sobre homossexuais nos sistemas de informação do Brasil, 2020
Variável
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Nível do dado
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Base do Dado
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Fonte
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Disponibilidade temporal
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pessoas de 10 anos ou mais de idade, residentes em domicílios particulares, que viviam em união conjugal, por natureza da união conjugal
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Agregado por município, não diferencia sexo e identidade de gênero
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Censo Demográfico (amostra)
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IBGE
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2010
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Categoria da exposição ao hiv/aids: homossexual
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Agregado por município, não diferencia sexo e identidade de gênero
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Sistema de Informação de Agravos de Notificação - SINAN
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DATASUS
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1986 a 2019
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Violência interpessoal e autoprovocada - orientação sexual - homossexual (gays/lésbicas)
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Agregado por município, permite diferenciar sexo e identidade de gênero
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SINAN
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DATASUS/Centro Estadual de Vigilância em Saúde do RS
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2014 a 2018
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Organização: Maurício Polidoro (2020)
22Como apontado, a existência de uma política de saúde dedicada as LGBT e a articulação do movimento social apoiou na inserção, embora que tímida, da variável de orientação sexual e identidade de gênero nos sistemas de informação. No caso dos dados de hiv/aids e da amostra do IBGE, não é possível a distinção entre homens gays e mulheres lésbicas pois o dado encontra-se agregado na categoria “homossexual” e a sua extração nos sítios eletrônicos não permitem a filtragem por sexo ou gênero. Ressalta-se que a identidade de gênero permanece invisível nos sistemas de informação, com exceção da violência interpessoal e autoprovocada. A observada subnotificação gera implicações para a formulação e implementação de políticas públicas, em diferentes áreas, visto que mantém desconhecidas essas informações, comprometendo a visibilidade de segmentos populacionais.
23Outrossim, a partir da inclusão de novos campos de coleta nos sistemas de informação ou de novos critérios de notificação, é fundamental preparar os profissionais da linha de frente dos serviços públicos ou privados para o adequado preenchimento dos registros e eliminar o viés moral e religioso predominante nas práticas de profissionais de saúde (Silva et. al. 2019; Moretti-Pires et. al., 2019; Gomes, et. al. 2018). A qualidade da informação é outra questão de preocupação, pois se há problemas desde a coleta, o prejuízo na descrição e na análise das informações pode corroborar com as dificuldades para o planejamento de ações e políticas públicas fidedignas com a realidade social.
24Embora seja reconhecida a subnotificação da violência no Rio Grande do Sul (Polidoro & Canavese, 2018) e os desafios impostos para qualificar as informações de orientação sexual e identidade de gênero, não deixa de ser importante visualizar os dados disponíveis que podem subsidiar reflexões e agendas futuras de pesquisa. No caso do hiv/aids, um agravo de notificação compulsória que, diferente da violência, implica em processos clínicos e de cuidado específicos, que tornam as notificações mais verossímeis, especialmente por se tratar de uma doença contagiosa, ainda que se realize o registro da categoria de exposição ao vírus, ou seja, se a relação foi heterossexual ou homossexual, o cálculo da taxa por diferença de contágio é problemático devido a inexistência de um censo ou inquérito que mensure a população homossexual. Para sanar esse problema, ainda que de forma arbitrária, buscamos na literatura as estimativas de homossexuais na população.
25Silenzio et. al. (2007) em um estudo Nacional Longitudinal da Saúde de Adolescentes nos Estados Unidos encontrou que 3,2% de jovens adultos de 18 a 26 anos de idade se descreveram como exclusivamente homossexuais ou bissexuais, sendo que este percentual foi de 3,6% entre os homens e 2,6% para as mulheres. O Inquérito Nacional de Saúde e Vida Social, também nos EUA, reportou que 2,8% dos homens e 1,4% das mulheres afirmaram possuir comportamento sexual com pessoas do mesmo sexo e 7,7% dos homens e 7,5% das mulheres revelaram possuir atração sexual por pessoas do mesmo sexo (Laumann et. al., 1994). Black (2000) estimou em 0,71% o total de casais de homens gays que residiam juntos nos EUA e em 0,62% para casais de mulheres lésbicas. No Brasil, pesquisa Datafolha (Folha de São Paulo, 1998) constatou que 15% dos homens e 13% das mulheres sentiam atração sexual por pessoas do mesmo sexo. No Brasil, Beloqui (2008) estimou em 3,5% a proporção de homens que fazem sexo com homens para avaliar o risco relativo para Aids em homens bissexuais e homossexuais. Observa-se, assim, que não é consenso um valor a ser utilizado no denominador do cálculo da taxa de hiv/aids para a população homossexual. Apesar disso, utilizaremos o valor de 3% como estimativa de população homossexual (gays e lésbicas), no interstício das previsões de Laumann et. al., 1994 e Beloqui (2008) conforme a fórmula da taxa de hiv/aids.
26Os dados foram processados no software SPSS e os mapas elaborados no software ArcGIS 10.3, licenciados pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os dados da amostra do IBGE e de hiv/aids referem-se ao ano de 2010 e, na violência interpessoal e autoprovocada, utilizamos a somatória dos anos disponíveis, de 2014 a 2018. Consideramos importante adicionar nos mapas a distribuição de alguns níveis da hierarquia urbana do estudo REGIC/IBGE (2007).
27A primeira pesquisa na história do Brasil que tratou de quantificar o contexto social de homossexuais foi o Censo 2010 do IBGE que recenseou, no nível municipal, a união de pessoas do mesmo sexo. A Tabela 3496 do Sistema IBGE de Recuperação Automática (SIDRA/IBGE) disponibiliza, por agregados de municípios, estados e regiões do Brasil, informações da amostra sobre as pessoas de 10 anos ou mais de idade, residentes em domicílios particulares, que viviam em união conjugal.
28O estado do Rio Grande do Sul possuía, em 2010, 3.990 pessoas em união conjugal do mesmo sexo. A Figura 1 indica a distribuição da variável de pessoas de 10 ou mais anos de idade em união com pessoas do mesmo sexo por municípios do Rio Grande do Sul.
29A partir dos anos 2000 foram realizadas reformas nas normativas administrativas de interesse para as uniões de mesmo sexo. Em maio de 2011, através da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 4277 (BRASIL, 2011) e da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132 (BRASIL, 2014), o Supremo Tribunal decidiu por estender o regime jurídico da união estável às pessoas de mesmo sexo em todos os estados da federação. Para essa inclusão, a ADI nº 4277/2011 e a ADPF nº 132/2011 se fundamentaram em princípios constitucionais afirmando que o não reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo implicaria em violação dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proibição de discriminações odiosas, da igualdade, da liberdade e da proteção à segurança jurídica.
Figura 1 - Pessoas de 10 anos ou mais em união com pessoas do mesmo sexo, 2010, Rio Grande do Sul
Fonte das informações: IBGE (2010) e REGIC/IBGE (2007). Organização do mapa: Maurício Polidoro (2019)
30Autorizado o registro da união estável, permanecia a insegurança quanto à conversão desse instituto em outro – o do casamento civil. Tais conflitos foram apaziguados pela Resolução nº 175, de 14 de maio de 2013, aprovada durante a 169ª Sessão Plenária do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a qual estabeleceu que os cartórios de todo o país não poderiam mais recusar-se à conversão da união civil em casamento. Assim, possibilitou a celebração de casamentos civis entre pessoas do mesmo sexo.
31O reconhecimento do instituto do casamento civil para pessoas de mesmo sexo ainda gera polêmicas, pois a base sociocultural hegemônica do casamento é a do casamento católico-romano e heteronormativo que impõe o binarismo entre os sexos para conceber a união e a necessidade de procriação. Além disso, a garantia da proteção às uniões decorre hoje de uma interpretação jurídica e não de norma expressa, o que pode gerar decisões contrárias à garantia desse direito. Contudo, princípios como o da laicidade e do pluralismo cultural incumbem ao Estado o dever de afastar de suas decisões a influência religiosa e moralidades sobre as uniões de qualquer espécie.
32Em 1995, a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Social, da Organização das Nações Unidas realizou, em Copenhague, uma conferência sem precedentes na História e trouxe à tona o combate à violência como preponderante para o engajamento global em busca do desenvolvimento social. Este evento representou o progresso das principais nações do mundo ocidental que passaram, a partir dos anos 1990, a incluir na agenda de discussões a importância de um desenvolvimento humano e ambiental mais equilibrado e amparado na paz. Remetem a este contexto histórico a Conferência Internacional sobre a População e Desenvolvimento (Cairo, 1994), a Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres (Pequim, 1995) e a Terceira Conferência Mundial sobre Prevenção e Controle de Maus Tratos (Melbourne, 1996).
33Tal contexto de mudanças globais de entendimento em relação às diferenças entre os sujeitos e a assunção da violência enquanto produto histórico do colonialismo representou um passo importante para a consolidação dos direitos humanos, embora a reparação pela escravidão aos africanos e descendentes de escravizados não tenha sido exigida (Alves, 2002). A Resolução da Organização Mundial da Saúde publicada em 1996 declarou a violência como problema mundial de saúde pública e conclamou aos Estados signatários a conduzirem o dimensionamento deste agravo.
34Embora a homossexualidade havia sido removida da lista da Classificação Internacional de Doenças em 1990, a despeito da manifestação de cientistas da época (c.f Laurenti, 1984), foi apenas na Conferência de Durban em 2001 que, no debate sobre o racismo, que a discriminação em virtude da orientação sexual também foi trazida à baila, naquela oportunidade, pela delegação brasileira (Alves, 2002). Desde 2001, o Brasil tem se envolvido, no âmbito das relações internacionais, em debates sobre a população LGBT em fóruns da ONU. O país apoiou e participou da elaboração dos Princípios de Yogyakarta, produzidos pela Federação Internacional dos Direitos Humanos e alterados em 2017 em Genebra (Yogyakarta, 2006). O documento salienta reiteradas vezes a necessidade de eliminar as diferentes formas de violência em virtude da identidade de gênero e da orientação sexual.
35A OMS tipifica a violência como autodirigida (comportamento suicida e autoabuso); interpessoal (família e parceiro íntimo; comunidade) e coletiva (social, política e econômica) (Dahlberg & Krug, 2006; OMS, 2015). O Ministério da Saúde através da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências define a violência como um evento representado por ações realizadas por indivíduos, grupos, classes ou nações que ocasionam danos físicos, emocionais, morais e ou espirituais a si próprio ou a outros – por exemplo: agressão física, abuso sexual, violência psicológica, violência institucional.
36A notificação da Violência Interpessoal e Autoprovocada está prevista em normativas do Ministério da Saúde e faz parte da linha de cuidado e atenção da pessoa em situação de violência. A partir de 2014, a ficha de notificação passou a contemplar a motivação da violência (sexismo, LGBTfobia, racismo, intolerância religiosa, xenofobia, conflito geracional, situação de rua, deficiência, outros, não se aplica e ignorado), a orientação sexual (heterossexual, homossexual, bissexual, ignorado e não se aplica) e a identidade de gênero (travesti, mulher trans, homem trans, não se aplica e ignorado). Embora não se constituam de campos obrigatórios e, postos os desafios relacionados à autodeclaração numa sociedade marcada pela violência estrutural racista e homofóbica, as informações constantes no SINAN podem contribuir para mensurar a situação do agravo da violência contra esta população, ainda que a subnotificação prevaleça.
- 7 Os dados são oriundo de projeto financiado pelo Ministério da Saúde e Fundação de Amparo à Pesquisa (...)
37Neste sentido, o mapa apresentado na Figura 2, elaborado partir de dados cedidos pelo Centro Estadual de Vigilância em Saúde do Rio Grande do Sul (CEVS-RS)7 permite, mesmo que parcialmente, identificar a taxa de violência interpessoal e autoprovocada notificada no SINAN a cada 10 mil habitantes. A leitura é parcial pois a violência, enquanto um fenômeno complexo e relacional, tem as suas manifestações interpretadas distintamente a depender da localização e do contexto. Uma série de dificuldades se enrolam na alimentação dos dados de violência no país e podem ir desde a dificuldade dos profissionais de observarem uma situação de violência e fazer o seu registro, o não cumprimento da notificação compulsória até o consenso das comunidades que determinadas práticas de violência são aceitáveis.
38Neste cenário, se soma os obstáculos vividos diariamente pela população homossexual, em realidade todos LGBT, de revelar a sua identidade no atendimento em saúde ou em qualquer outro serviço, o “sair do armário” (Corrigan & Matthews, 2003). O medo do estigma e do preconceito faz tanto os usuários(as) do SUS a não revelarem a sua identidade de gênero ou orientação sexual como o próprio profissional, a partir das suas concepções morais e religiosas, não questionar algo que ainda é visto como do âmbito do espaço privado da vida (Silva et. al., 2019). Assim, a violência contra a população LGBT pode ser constatada apenas a partir do pressuposto da severa subnotificação.
Figura 2 - Taxa de violência em homossexuais (gays e lésbicas), 2014-2018, Rio Grande do Sul
Fonte das informações: CEVS/DANT/SES/RS e REGIC/IBGE (2007) Organização do mapa: Maurício Polidoro (2019)
39Os resultados indicam uma taxa média de 194 notificações de violência interpessoal e autoprovocada a cada 10.000 habitantes homossexuais no período de 2014 a 2018. Dos 497 municípios, 27,5% notificaram violência nesse período. Encontram-se acima da média 49 municípios e, alguns, com certa relevância na hierarquia REGIC/IBGE, o caso de Marau (centro de zona A) com a taxa de 975 e Passo Fundo (capital regional B) com uma taxa de 472. O município de Garibaldi, na Serra Gaúcha, obteve uma taxa de 1.231 e o seu limítrofe, Carlos Barbosa, a taxa é de 858. Na capital, Porto Alegre, a taxa registrada foi de 165 notificações a cada 10 mil habitantes, ou seja, abaixo da média estadual.
40O discurso da associação de patologias às LGBT se acirrou no final do século XX, a despeito da descriminalização e da despatologização da prática homoafetiva (Laurenti, 1984) a partir da década de 1980. Persiste o medo coletivo ao homossexual, em especial ao homem gay, que ainda é visto como pedófilo (Miskolci, 2007). O descobrimento clínico do vírus da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (hiv) e a persistência científica em modelar a trajetória da doença e associá-la aos homossexuais masculinos (Auerbach et. al., 1984), recentemente associada à África (cf. Faria et. al., 2018), contribuiu para reforçar o estigma contra esta população no imaginário popular. Na atualidade, a construção de um novo estereótipo, do homem “malhado”, frequentador assíduo de academias, forjado num caráter tecnobiopolítico de uso de hormônios, se deu a partir da década de 1990 e acelerou-se no contexto de disseminação das tecnologias de informação (Miskolci, 2017) numa tentativa de se afastar da imagem do “sangue ruim” (Bayer, 1983).
41O primeiro caso de aids notificado no Brasil ocorreu em 1981, no estado de São Paulo (Galvão, 2000). No estado do Rio Grande do Sul o primeiro caso de aids foi notificado à Secretaria de Saúde em 1983 (Ferreira & Loureiro, 2008). As primeiras notificações de aids no Rio Grande do Sul foram realizadas em Porto Alegre a partir de laudos causa mortis de dois usuários com achados compatíveis com o diagnóstico de aids. Atualmente, Porto Alegre ostenta a maior prevalência nacional de infecções por hiv/aids e mortalidade por aids (Brasil, 2019).
42No Brasil, os primeiros casos de aids foram registrados nos serviços de saúde de São Paulo em 1982 e, no ano seguinte, no Rio de Janeiro e, em 1985, o Ministério da Saúde reconheceu a aids como problema emergente de saúde pública e instalou um sistema formal de vigilância epidemiológica (Marques, 2002).
43A ficha de investigação de hiv/aids, também presente no SINAN, com obrigatoriedade de notificação semanal, embora não identifique a orientação sexual dos(as) usuários(as) contempla a prática sexual as relações sexuais entre homens; relações sexuais entre mulheres e; relações sexuais com homens e mulheres, permitindo dimensionar parcialmente a realidade deste agravo em homossexuais e bissexuais, excluindo as travestis e as(os) transexuais deste panorama.
44Na Figura 4 estão apresentadas as taxas de hiv a partir da categoria de exposição homossexual. Dos 497 municípios do estado, 49 tiveram notificações em 2010 e a média da taxa foi de 19 notificações a cada 10 mil habitantes. Foram mapeados 10 municípios que estão acima da média, o caso de Canudos do Vale (com 1.716 habitantes) com uma taxa de 202 e Fazenda Vilanova com 98, ambos limítrofes de Lajeado. No município de Muçum, também nas proximidades de Lajeado, a taxa foi de 67; em Cristal a taxa foi de 47 e na capital, Porto Alegre o valor encontrado foi de 28 notificações de exposição ao hiv por homossexuais, indicando a interiorização do fenômeno do hiv/aids.
Figura 4 - Taxa de hiv na categoria de exposição homossexual, 2010, Rio Grande do Sul
Fonte das informações: SVS/MS/SINAN/DATASUS (2010) e REGIC/IBGE (2007) Organização do mapa: Maurício Polidoro (2019)
45Apesar de Porto Alegre apresentar as maiores taxas (Brasil, 2019), há uma concentração elevada de casos na região norte, sul e centro-oeste. Outro aspecto a ser observado é que, dada as diferentes espacialidades da epidemia de hiv/sids no RS, com taxas elevadas no interior do estado, questiona-se como a epidemia incide na população gay, em relação à escolaridade, raça/cor, renda, entre outros marcadores. A insuficiência dos dados, como já apontado, prejudica o conhecimento e a formulação de políticas públicas.
46Neste texto, buscamos apresentar como a exclusão histórica de gays por meio de mecanismos de patologização e/ou criminalização contribuíram para a consolidação desta população à margem da ciência geográfica. Além dos gays, o grupo LGBT na sua totalidade: as lésbicas, os(as) bissexuais, as travestis, as pessoas trans e as intersexo tem empreitado visibilidade as suas demandas e particularidades, as suas contribuições epistemológicas, além do fomento ao respeito à diversidade sexual e a eliminação do preconceito e da discriminação.
47Na Geografia, observamos que a discussão sobre a sexualidade se deu, inicialmente, em nos estudos urbanos e culturais. Em consonância com as estruturas de poder e opressões oriunda do patriarcado, permitiu maior protagonismo de homens gays nas produções. Atualmente, uma miríade de abordagens tem incluído cada vez mais as diferenças nas análises geográficas para além do gênero e da sexualidade, contemplando outros marcadores relevantes como a raça, a etnia, a origem geográfica e as deficiências. Argumentamos, entretanto, que há muito o que se avançar na inclusão e visibilidade da população LGBT.
48Ainda que devamos celebrar a inserção da orientação sexual e identidade de gênero nos sistemas de informação em saúde, a subnotificação e o medo de “sair do armário” junto aos profissionais são obstáculos a serem vencidos para a qualificação dos dados e, como consequência, a sua interpretação e proposição de políticas e ações específicas para a população LGBT dependem da eliminação da discriminação e do preconceito, construídos historicamente pela sociedade ocidental e incrustado nas instituições. No caso da demografia, especialmente no âmbito do IBGE, há muito a se avançar para a coleta de dados dessa população, para além da união civil, sem considerar os riscos desse tipo de pesquisa nas mãos de governos extremistas e homofóbicos, como ocorre atualmente no Brasil, na Polônia e na Hungria.
49No âmbito da Geografia este artigo contribuiu, de forma inédita, ao sistematizar e mapear as parcas informações existentes, para a compreensão da configuração espacial da população LGBT, exemplificando como o fato urbano-metropolitano é de extrema relevância já que a fuga do interior, das pequenas cidades, às vezes tão arraigadas em pré-conceitos, é a única escolha de pessoas LGBT que tentam (sobre)viver numa sociedade permeada pelo ódio à diferença. Para a Geografia, por sua vez, cabe encarar a sua história de constituição arraigada e centralizada no homem branco e heterossexual e se deslocar para às margens que muito tem a nos revelar sobre as dinâmicas sociais, em múltiplas escalas.