1Tradicionalmente associado à imigração italiana, o Bixiga é também um bairro da cidade de São Paulo marcado pela presença dos teatros de rua, por uma variedade de bens tombados e, atualmente, por sua diversidade cultural. As distintas identidades associadas ao bairro são resultado de ações culturais e políticas que vinculam narrativas específicas ao território, produzindo representações consolidadas no imaginário local ao longo do tempo.
2A representação do Bixiga como bairro italiano de São Paulo tem sido dominante desde os anos 1930, quando diversas narrativas começaram a ser produzidas (Grünspun, 1979). Com base nessa ideia de uma herança italiana, o distrito da Bela Vista passou a contar com territórios específicos protegidos pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental de São Paulo (CONPRESP) e com bens tombados individualmente na esfera estadual pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (CONDEPHAAT) e na esfera federal pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) (Mapa 1).
Mapa 1 Proteção patrimonial no distrito da Bela Vista
Fonte: Elaboração dos autores
3Essas ações governamentais ao mesmo tempo que legitimaram a representação do bairro como local tipicamente italiano de São Paulo, também criaram as bases jurídicas e simbólicas para determinados movimentos de contestação se oporem as decisões tomadas para o local pelas elites políticas e econômicas municipais. É o caso do grupo organizado para reivindicar a preservação do Teatro Oficina, que frente as investidas do poder privado busca, em um primeiro momento, consolidar a ideia do Bixiga como bairro dos teatros de rua através dos dispositivos de preservação patrimonial e, em um segundo momento, mobilizar o debate ambiental para a construção de um parque público, criando, assim, novas representações para a área.
4O presente trabalho tem como objetivo analisar como a representação do Bixiga legitimada pelo Estado orientou decisões governamentais de tombamento e a insurgência de grupos contrários as decisões das elites políticas e econômicas. O estudo é realizado a partir do Inventário Geral do Patrimônio Ambiental, Cultural e Urbano de São Paulo-Bela Vista (IGEPAC-Bela Vista) e dos diferentes documentos que envolvem o tombamento do Teatro Oficina e a mobilização para construção de um parque público no terreno adjacente ao teatro.
5Será considerado que as instituições públicas que formam o Estado têm sido importantes produtoras de representações das áreas urbanas através da produção de documentos técnicos. Representações são compreendidas neste trabalho como práticas discursivas realizadas por atores dominantes das estruturas de poder, através de legislações, relatórios, zoneamentos, atribuição de valor patrimonial, etc. Essas representações não compreendidas como o aspecto real do espaço geográfico, tampouco são vistas como um falseamento da realidade concreta. As representações são entendidas como maneiras de observar uma área da cidade que se tornam tão consolidadas ao ponto de serem pontas de lanças para a realização de determinas ações governamentais e também de grupos de contestação. Assim, o trabalho compreende a geografia política urbana contemporânea como a análise das representações construídas pelas elites para um espaço, das ações de governo realizadas e dos movimentos de contestação contrários às decisões estabelecidas (Rossi e Vanolo, 2012).
6Compreende-se neste texto que o estudo dos efeitos espaciais das ações públicas pode ser realizado com base na análise documental produzida pelas instituições que compõem as diversas instâncias do Estado. Se outros campos disciplinares já se voltaram ao estudo da administração pública a partir da análise da burocracia (Souza Lima, 2002, Teixeira e Souza Lima, 2010 e Castilho, Souza Lima e Teixeira, 2014), a geografia carece ainda de estudos nessa direção, superando perspectivas onde o Estado é uma entidade orientada por ideologias quase sempre perversas e destinadas a manter a posse dos meios de produção para as elites. O texto considera que as instituições que formam o Estado contemporâneo ao mesmo tempo que criam estratégias para atender às elites políticas e econômicas, também podem ser mobilizadas por grupos não incluídos nas decisões governamentais, analisados através da documentação gerada nesse processo.
7Diante da diversidade de ações realizadas pelos órgãos do Estado, do crescimento da participação popular nas decisões políticas e do reconhecimento da escala urbana como lugar do fazer político, a geografia política contemporânea busca analisar os conflitos manifestados como fenômenos urbanos. Rossi e Vanolo (2012) realizaram um esforço para compreender como os fenômenos ocorridos nos espaços urbanos podem ser pensados a partir da análise da tríade representação, governo e contestação.
8Segundo esses autores, as atuais políticas urbanas podem ser pensadas inicialmente pela análise das representações construídas sobre determinados espaços, isto é, das práticas discursivas consolidadas no imaginário local e orientadoras de ações por parte dos poderes instituídos e da população em geral. Tomando como base as reflexões a respeito da produção de ideias e narrativas sobre o Oriente (Said, 2008), as representações contemporâneas urbanas são compreendidas como construções das elites políticas e econômicas com o objetivo de justificar ações de investimento ou de esquecimento de determinadas áreas. A construção dessas representações envolve a distinção de áreas da cidade, classificando umas como estigmatizadas, degradadas ou perigosas e outras como valorizadas, dinâmicas ou seguras. Nesse processo, termos como revitalização, regeneração, conservação e dinamização, podem ser evocados para justificar ações das iniciativas públicas ou privadas em áreas apresentadas em documentos técnicos, literários, musicais, entre outros, como degradadas.
9As representações produzidas pelas elites político-econômicas para determinadas áreas podem gerar metonímias geográficas (Maciel, 2006), pois ao mesmo tempo que representam um todo por sua parte, se configuram como pontas de lança para outros processos. Construídas através da produção artística (musical, literária, pintura, teatro, etc...), intelectual (artigos, livros, coletâneas, seminários, etc...) ou técnica (relatórios, processos, documentação, inventário, etc...), as representações de áreas urbanas estabelecem as bases para outras esferas da geografia política urbana: as ações de governo e as contestações realizadas por grupos insurgentes.
10Para Rossi e Vanolo (2012) a construção de representações está relacionada às práticas de gestão das cidades, desenvolvidas por uma variedade de tecnologias e ferramentas que buscam a melhoria da qualidade de vida do ambiente urbano, adequação das cidades aos interesses globais, preservação da memória e do patrimônio ou para solucionar possíveis conflitos presentes no espaço urbano.
11Para gerir a cidade, a sociedade e o espaço, o governo desenvolve uma série de instrumentos intelectuais (relatórios, estudos técnicos, dados estatísticos, mapeamentos, censos, etc... ) e ferramentas de regulação territorial (zoneamentos, a elaboração de projetos urbanos, estabelecimento de padrões urbanísticos, o reconhecimento de bens patrimoniais, conselhos temáticos deliberativos ou consultivos, etc...), estabelecendo uma racionalidade governamental, chamada por Foucault (1992) de governamentalidade. É através dessas práticas do governo que as representações são mobilizadas, para justificar determinadas decisões sob um argumento apresentado como técnico e neutro.
12As instituições formadoras do Estado detêm através de inúmeros dispositivos a capacidade de estabelecer como uma região de um país ou um bairro de uma cidade podem ser imaginadas. No caso urbano, através dessas diferentes representações, são produzidos regimes de classificação das pessoas e das áreas por elas ocupadas, que podem orientar ações de preservação das formas materiais e das práticas culturais ou liberam determinados espaços para a transformação. Um exemplo significativo foi observado nas classificações dos espaços e da população da região portuária do Rio de Janeiro no contexto dos projetos de renovação urbana iniciados nos anos 2000, onde determinados grupos foram apresentados como guardiões da memória do lugar, sendo as áreas por eles ocupadas merecedoras de ações preservacionistas, enquanto outros foram invisibilizados das representações, relegando seus lugares de moradia para as práticas de reestruturação global (Guimarães, 2014).
13Representação e ação do governo estão, portanto, diretamente associadas, já que ambas são produzidas por grupos das elites. Porém, como comentam Rossi e Vanolo (2012), as cidades globalizadas atuais são marcadas pela atuação dos cidadãos em busca de seus direitos e desejos, estabelecendo muitas vezes cidades rebeldes (Harvey, 2014) ou lugares em guerra (Rolnik, 2015), aspectos das cidades globais formados por grupos articulados que contestam as decisões das elites. A política como contestação é pensada a partir da atuação de grupos que se insurgem contra as representações dominantes ou contra as decisões de governo.
14Os espaços da política de contestação são produzidos por atores marginalizados dos processos de construção das representações e das decisões governamentais. Eles tornam-se, assim, insurgentes, pois diante das decisões contrárias a seus desejos resistem, contestam e propõem alternativas aos meios de controle aplicados em seus bairros ou objetos de interesses. Em relação as ações que compõem a política como governo, a contestação busca evitar que decisões governamentais sejam aplicadas, utilizando estratégias variadas para fundamentar suas reivindicações, como a ocupação de espaços públicos, protestos, passeatas, etc. Já com relação às contestações das representações produzidas pelas elites sobre um bairro da cidade, os atores articulados nos espaços da contestação recusam as representações dominantes e marcam sua presença com a construção de novas representações sobre aqueles espaços.
15Como destacam Rossi e Vanolo (2012), as esferas da geografia política urbana não existem de maneira isoladas. Assim, não é incomum que práticas contestatórias, além de fundar novos espaços políticos (Castro, 2016), acionem espaços institucionalmente já estabelecidos, contestando tanto as representações já consolidadas como as decisões governamentais. Nesse sentido, torna-se fundamental compreender quais estratégias e recursos são utilizados para criar e acionar diferentes tipos de espaços políticos pelos movimentos de contestação.
16Dentre as diversas estratégias observadas, o recurso ao patrimônio como instrumento de garantia dos interesses de determinados grupos tem sido bastante utilizado. A evocação ao patrimônio cultural ou natural assume um papel significativo para grupos insurgentes nas contestações ocorridas nas cidades contemporâneas, indicando novos usos para um tema tradicionalmente vinculado à escala nacional e restrito ao conhecimento técnico dos experts e das elites políticas e econômicas.
17Se nas origens do conceito de patrimônio apenas as grandes construções isoladas eram consideradas merecedoras de proteção, agora áreas industriais, construções com materiais menos nobres, obras efêmeras, bairros afastados, paisagens, e mesmo danças e festas merecem ser protegidos (Choay, 2006, Heinich, 2009, Bortolotto, 2011). Essas transformações levaram alguns autores a chamar atenção para o processo de patrimonialização, entendido como o excesso de bens protegidos ao redor do mundo. Para Jeudy (2005), a “loucura patrimonial” produziu uma desvalorização dos bens pela apropriação do mercado global, já que o excesso os tornariam não excepcionais. Nessa perspectiva, o objetivo de patrimonializar seria sua utilização pela indústria cultural global, com destaque para o mercado turístico, deixando de lado a preservação de expressões culturais não atrativas para o consumo.
18Em uma perspectiva diferente, Melo Filho (2017) considerou que o patrimônio não é apenas apropriado pelos mercados turísticos, mas também pelos Estados e pela sociedade civil como um recurso político. Nessa linha de pensamento, a atribuição de valor para um objeto representaria mais uma questão política articuladora de diferentes dispositivos, espaços e atores, do que unicamente um aspecto destinado a atender o mercado. Já Nigro (2001) discutiu como o patrimônio tornou-se uma questão social no momento em que foi mobilizado por grupos na busca do reconhecimento de seus bairros pelo Estado. Braga e Castriota (2016) consideraram que a mobilização do patrimônio por grupos reivindicadores estabeleceu os patrimônios insurgentes, pois eles são utilizados para criticar os poderes representativos instituídos e as possibilidades de participação na decisão política. Apesar das diferentes perspectivas, se destaca nesses trabalhos a utilização da preservação institucional de objetos como um recurso político destinado a alcançar objetivos específicos. Assim, mais do que um processo prejudicial ao caráter de excepcionalidade dos bens, a explosão patrimonial possibilita uma maior participação política dos atores da sociedade ao envolver os diferentes grupos com base na reivindicação de sua memória.
19No caso do Bixiga, o conceito de patrimônio foi utilizado pelo governo para legitimar uma representação sobre a área através do Inventário Geral do Patrimônio Ambiental, Cultural e Urbano de São Paulo-Bela Vista. Como mostraremos a seguir, essa representação fundamentou diferentes ações governamentais, como o tombamento de conjuntos arquitetônicos considerados tipicamente italianos e a liberação ou proibição de novos empreendimentos imobiliários.
20O Inventário Geral do Patrimônio Ambiental, Cultural e Urbano de São Paulo-Bela Vista (IGEPAC-Bela Vista) pode ser analisado como uma representação produzida pelo Estado sobre o Bixiga. O documento consolida a narrativa da tradição italiana no bairro e indica as áreas onde essa identidade seria mais autêntica e, por isso, merecedoras do reconhecimento como patrimônio ambiental urbano de São Paulo.
- 1 O conceito desenvolvido por Ulpiano Meneses (1978), conselheiro do CONDEPHAAT em diversas situações (...)
21Os diversos inventários desenvolvidos pela prefeitura municipal de São Paulo após de 1983 representaram um esforço técnico da Divisão de Preservação do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) e foram baseados no conceito de Patrimônio Ambiental Urbano1 (Tourinho e Rodrigues, 2016). O documento pauta a história de formação do Bixiga sob a perspectiva da urbanização, considerando que esse processo teve início em 1880 com a chegada dos imigrantes italianos. Apesar de apontar a presença de negros libertos que deram origem a manifestações populares, como a escola de samba Vai-Vai, poucas referências são feitas aos grupos não italianos. No caso dos Nordestinos, por exemplo, chegados ao bairro partir dos anos 1940, eles são apontados pelo inventário como um problema que afeta “a alma do bairro” e contribui para a descaracterização do padrão construtivo local.
22Assim, uma primeira representação foi legitimada a partir desse documento: o Bixiga enquanto bairro Italiano de São Paulo, relativamente homogêneo, com construções com referências europeias e ameaçado de desconfiguração pelo grupo dos Nordestinos que transformam as relações tradicionais e os padrões construtivos selecionados como típicos. Nesse regime de classificação da população, os descendentes de italianos são apontados como os herdeiros, os nordestinos como uma ameaça e os negros e suas manifestações não seriam merecedores de qualquer reconhecimento.
23A construção da representação do Bixiga como bairro Italiano de São Paulo se consolida no IGEPAC-Bela Vista pela diferenciação do território (Figura 1). Nessa proposta, a área 3, chamada de área da Rua 13 de Maio, foi metonimicamente selecionada como local estruturante de todo o Bixiga, por concentrar restaurantes típicos, bares e teatros que utilizam os resquícios italianos para atração de público, devendo ser rigorosamente preservada. Dessa maneira, a narrativa do Bixiga como bairro Italiano foi legitimada por uma delimitação territorial, que vinculou uma parcela do bairro aos supostos herdeiros europeus, identificados por sua arquitetura e como portadores de certos hábitos considerados típicos.
Figura 1 Divisão das subáreas do IGEPAC-Bela Vista
Fonte: Processo de Tombamento do Bixiga, p.61
24A construção de uma representação metonímica do Bixiga italiano vinculada a um recorte territorial rejeitou outras áreas como significativas de proteção, inclusive aquelas identificadas no documento como mais homogêneas do ponto de vista arquitetônico e mais representativas da fase inicial de ocupação. É o caso da área 1, intitulada de Centro, que segundo o IGEPAC-Bela Vista apresenta imóveis de valores históricos e ambientais, ocupados, porém, por uma população de baixa renda. Caso semelhante se observa na área 2, intitulada de Maria José, apontada nas conclusões gerais como local que “conserva com maior intensidade os moldes originais do bairro” (IGEPAC-Bela Vista, 1987, p.107). Segundo o documento, ambas as áreas foram simbolicamente e arquitetonicamente preservadas por sua estagnação econômica, já que as populações de baixa renda, majoritariamente imigrantes Nordestinos, não tinham recursos financeiros para realizar transformações materiais e reproduzir as tradições selecionadas como características da narrativa italiana selecionada.
25Assim, a representação construída pelo IGEPAC-Bela Vista para a área do Bixiga reconheceu um grupo cultural como originário e herdeiro do bairro, delimitando um recorte territorial específico que deveria ser protegido de possíveis transformações. Com essa representação, o documento classificou outras parcelas da população como uma ameaça às tradições e as respectivas áreas de ocupação como locais onde iniciativas de revitalização poderiam ser realizadas pelo Estado ou por iniciativas privadas, apesar desses recortes manterem características arquitetônicas originais e com significativa homogeneidade.
26Conforme apresenta Somekh (2016), a proposta do IGEPAC-Bela Vista fundamentou a abertura do processo de tombamento do Bixiga, dividindo o bairro em quatros conjuntos distintos, integrantes do distrito da Bela Vista e descritos na resolução 01/93 do CONPRESP: A grande área do Bixiga restou formada por partes das poligonais 1, 2, 3 e 4 apresentadas no IGEPAC-Bela Vista, a área da Grota, se manteve idêntica à poligonal 5, uma área especial da Vila Itororó foi criada, além de conjuntos de imóveis isolados que totalizavam mais de 200 edificações.
27Considerando a proposta de tombamento aberta em 1993 e aprovada em 2002, a grande área do Bixiga e a área especial da Vila Itororó são consideradas notáveis por manterem o ambiente urbano o mais próximo daquele da primeira metade do século XX, momento em que passa a ganhar destaque a cultura italiana. Segundo o processo de tombamento, essas duas áreas deverão ser consideradas como de preservação integral, já que apresentam as principais qualidades históricas e culturais. Já área da Grota foi considerada importante por resguardar significativas qualidades paisagísticas que devem ser resguardadas frente a verticalização que ameaça o distrito da Bela Vista como um todo.
28Assim, nota-se que a representação construída no IGEPAC-Bela Vista pelo DPH orientou as ações de governo empreendidas pelo CONPRESP. A representação levou à ação do governo de preservar áreas e construções com características italianas, como os imóveis no entorno da rua 13 de Maio e na Vila Itororó, deixando de fora os espaços relacionados às culturas negras e nordestinas.
29Com o IGEPAC-Bela Vista a narrativa do Bixiga enquanto bairro italiano foi legitimada pela consolidação de uma representação e com a delimitação de um território. O fortalecimento dessa representação possibilitou ações de governo específicas, como o tombamento que passou a incidir sobre a área. Nesse processo, determinadas áreas, narrativas e grupos não foram incluídos nas ações de proteção institucional, tornando-se espaços disponíveis para investimentos imobiliários. Por outro lado, outro grupo, com suas tradições e território foram transformados numa metonímia geográfica do bairro, necessitando assim de ações de preservação rigorosa.
30A partir do momento que o tombamento foi reconhecido, novos parâmetros urbanísticos passaram a incidir sobre a área, impondo ao governo a intensificação na fiscalização e gestão das transformações planejadas. Como mostraremos em seguida, as representações construídas e as práticas de governo de tombamento vão ser mobilizadas por grupos não envolvidos nas decisões para a liberação ou restrição de novos empreendimentos, gerando conflitos na área e instituindo a esfera da política como contestação.
31A representação metonímica que vinculou áreas específicas do distrito da Bela Vista à narrativa da italianidade, levou ao reconhecimento de determinados conjuntos arquitetônicos do Bixiga como patrimônios de São Paulo. Reconhecidos como de valor histórico, ambiental e cultural, passaram a incidir nessas áreas novas normas e padrões urbanísticos destinados a orientar as práticas de governo e da população.
32Apesar desses dispositivos de controle, o Bixiga, em função de sua localização entre duas significativas centralidades da cidade de São Paulo, a tradicional da área central da Sé e República e a moderna da Avenida Paulista (Frúgoli Jr, 2000), manteve seu caráter de atração de investimentos, sendo alvo de constantes empreendimentos imobiliários. A decisão dos diferentes governos municipais de permitir ou negar novos empreendimentos, fundamentados nas normativas urbanísticas aplicáveis no bairro, geraram diferentes movimentos de contestação por parte daqueles afetados por essas decisões.
33Os casos envolvendo o Teatro Oficina são significativos e indicam como a esfera da política como contestação estabelece novas representações para a área e altera decisões governamentais a partir de estratégias distintas. Diante de pressões ocorridas em momentos diversos, o grupo da companhia de Teatro Oficina Uzyna Uzona insurgiu contra tentativas de compra e demolição de sua sede, fortalecendo uma nova representação do Bixiga, apresentado agora como berço do teatro brasileiro de rua.
34Projetada pela renomada arquiteta Ítalo-brasileira Lina Bo Bardi, a atual sede do Teatro Oficina foi tombada pelo CONDEPHAAT em 1983, pelo CONPRESP em 1991 e pelo IPHAN em 2010. Essas diferentes esferas de proteção patrimonial surgiram da demanda do grupo de artistas como estratégia para reverter às ações propostas pelo Grupo Silvio Santos, proprietário do terreno ao lado do Teatro.
35O conflito existente entre os representantes do Teatro e o Grupo Silvio Santos teve início em 1980 e se arrasta até os dias atuais, tendo início a primeira fase do conflito com a intenção do Grupo Silvio Santos de adquirir o imóvel do Teatro Oficina, visando sua demolição para construção de empreendimentos imobiliários. Para impedir a destruição do Teatro, José Celso Martinez, conhecido como Zé Celso, ator, diretor e líder do grupo, solicitou ao CONDEPHAAT o tombamento do imóvel, aceito em 1983 por seu valor histórico e cultural para o Teatro moderno no Brasil2. Insurgindo contra as pressões privadas e decisões governamentais que permitiram a compra do imóvel e sua futura demolição, o tombamento do edifício tornou-se uma estratégia de contestação do grupo.
36Chama a atenção nesse processo a estratégia utilizada para obter o tombamento do prédio, pautada na construção da narrativa da relevância dos teatros de rua do Bixiga para a arte brasileira e não na tradicional valorização arquitetônica do edifício. Na carta enviada ao CONDEPHAAT em que solicita a abertura do processo de tombamento, Zé Celso reconhece a arquitetura do Teatro Oficina como um representante dos tradicionais casarões do Bixiga, porém aponta que a maior relevância reside para o Teatro de Rua Brasileiro como um todo, sendo ali local de montagens inovadoras e únicas na história teatral nacional.
- 3 IMPERIO, Flavio. Parecer sobre o tombamento do Teatro Oficina. 23 nov. 1982. Arquivo do Condephaat, (...)
37O longo processo de tombamento só teve êxito em 1983, em virtude de modificações na composição do Conselho, presidido a época por Aziz Ab’Saber (Machado, 2016). No parecer desenvolvido por Flávio Império, destaca-se que desde a inauguração do Teatro Brasileiro de Comédia, já estava incorporado ao bairro do Bixiga a noção de área dos teatros de rua. Como o Teatro Oficina estava sediado em um desses “casarões típicos da arquitetura paulista dos anos vinte, construídos pelos imigrantes italianos” 3, ele poderia ser compreendido como a união de dois aspectos significativos da área: uma arquitetura típica Italiana e uma tradição teatral.
38Assim, a aprovação do tombamento do prédio pelo CONDEPHAAT impediu a construção de um novo empreendimento, ao mesmo tempo que estabeleceu uma nova representação ao Bixiga, agora visto como área significativa para a cena teatral. Nesse sentido, a contestação do grupo do Teatro Oficina mobilizou os dispositivos de preservação patrimonial disponíveis para legitimar uma nova narrativa para a área e evitar a decisão do governo de permitir a demolição do edifício.
- 4 Lei de Entorno sobre bens tombados passa a ser considerada em novos processos a serem construídos n (...)
39O tombamento isolado do prédio do Teatro Oficina pelo CONDEPHAAT criou novas regulações urbanísticas na área. Apesar da incidência de legislações sobre o entorno de bens tombados limitarem a construção de novos empreendimentos4, em 1997 o Grupo Silvio Santos obteve nova autorização da Prefeitura de São Paulo e do CONDEPHAAT para construir um Shopping Center ao lado do Teatro, no terreno tornado enorme pela compra de diversos pequenos lotes remembrados. Receoso com os limites da proteção conquistada em 1983, restritos à preservação das características históricas do edifício, e desejoso de evitar a incorporação do teatro a um shopping, o que alteraria sua característica de teatro de Rua, Zé Celso solicitou novamente o tombamento, agora em nível federal.
40No processo de tombamento junto ao IPHAN, nota-se que o Teatro Oficina passou a ser protegido em nível federal por seus valores históricos para o Teatro Brasileiro e também por seus valores artísticos, em função das características arquitetônicas adicionadas pelo projeto de Lina Bo Bardi. Em 2010, Zé Celso é vencedor da disputa, o Teatro é tombado pelo IPHAN e o grupo Silvio Santos é novamente impedido de construir seu empreendimento (Machado, 2016).
- 5 O parecer pode ser lido na a ata da reunião do conselho consultivo do IPHAN, disponível http://port (...)
41No parecer conclusivo para justificar a decisão, a conselheira do IPHAN Jurema Machado fortalece a representação do Bixiga como bairro teatral brasileiro, indicando a existência de outras companhias no bairro, como o Teatro Brasileiro de Comédia, o Teatro Maria Della Costa e o Teatro Ruth Escobar. Além disso, uma nova leitura para o Teatro é construída, reconhecendo-o também como uma obra de arte produzida por Lina Bo Bardi, justificando sua inscrição no Livro de Tombo de Belas Artes5. Assim, com o tombamento do IPHAN, o grupo do Teatro Oficina institui em definitivo uma nova representação para o Bixiga, que passa a ser reconhecido como bairro italiano de São Paulo e também como local significativo para o teatro de rua nacional.
- 6 De acordo com a Ata da Sessão Ordinária de 26/09/2016 do CONDEPHAAAT, relativo ao PROCESSO Nº71370/ (...)
- 7 Como o produzido por Sarah Feldman na condição de representante do Instituto de Arquitetos do Brasi (...)
42Em um novo projeto apresentado, o Grupo Silvio Santos planeja para o terreno localizado ao lado do Teatro a construção de três torres residenciais com mais de 100 metros de altura. Em 2016, o CONDEPHAAT recusou o projeto, alegando que as soluções propostas não consideraram as particularidades locais, tampouco a relação com o Teatro Oficina, que teria sua visibilidade interferida e alteraria a concepção do projeto de Lina Bo Bardi6. Em 2018, com o envio de projeto substitutivo, o empreendimento foi aprovado pelo CONDEPHAAT, apesar das intensas manifestações sociais e de diferentes pareceres contrários a construção7. Por fim, o CONPRESP também aprovou o projeto em dezembro de 2018, conforme consta na Ata de sua 686ª reunião extraordinária.
43Diante dessas novas decisões governamentais favoráveis ao grupo Silvio Santos, a estratégia do grupo do Teatro Oficina de recorrer aos dispositivos preservacionistas para contestar as decisões parece não mais surtir efeito no contexto de desregulamentação dos espaços políticos relacionados ao patrimônio. Para sair vencedor do conflito, a estratégia utilizada pelo grupo foi construir uma nova representação para a área: o Bixiga como bairro afetado por uma urbanização precária. O objetivo agora não seria mais um reconhecimento patrimonial, mas a construção de um parque urbano no terreno ao lado do Teatro Oficina, o que atenderia em definitivo os desejos do grupo insurgente.
44A contestação passou a articular atores políticos instituídos e estabeleceu um Projeto de Lei (PL) de autoria do Vereador Gilberto Natalini, do Partido Verde, como instrumento de insurgência. No PL 805/2017, o Bixiga é apresentado como bairro mais densamente ocupado de São Paulo, com a menor taxa de área verde por habitante, poucos espaços de lazer e um caráter multicultural que agrega italianos, nordestinos, grupos teatrais e imigrantes haitianos e africanos, além de possuir diversos bens reconhecidos como patrimônio histórico e cultural de São Paulo8.
45Analisando os debates realizados em audiências públicas sobre o PL 805/2017, nota-se que a discussão a respeito do Parque do Bixiga teve uma amplitude maior do que aquelas realizadas para o tombamento do edifício. Para defender a construção de um parque urbano, a participação de outros atores do bairro e mesmo da cidade de São Paulo é observada nas discussões. A estratégia de contestação das decisões de governo passou, portanto, pela ampliação da importância do terreno ao lado do Teatro Oficina. Não sendo apenas importante para um grupo teatral de bairro, mas para a toda a cidade de São Paulo, o conflito teve sua escala ampliada. Assim, o conflito pelo terreno passou a envolver movimentos sociais distintos, como a Ação da Cidadania, a Sociedade em Defesa das Tradições e Progresso da Bela Vista, a Rede Novos Parques, entre outros representantes de movimentos ambientais.
46A esfera da política como contestação no Bixiga se insurgiu contra decisões governamentais que permitiram a construção de empreendimentos imobiliários e buscou estabelecer novas representações para a área. O recurso aos instrumentos preservacionistas e aos aspectos ambientais tornaram-se soluções disponíveis do grupo insurgente, que mobilizou as instituições do Estado para contestar decisões e estabelecer o Bixiga como área dos teatros de rua e local urbanisticamente degradado que necessita de uma nova área verde.
47O presente trabalhou analisou como as representações sobre determinadas áreas do espaço urbano podem ser pontas de lança para ações de governo e movimentos de contestação. Compreendendo as instituições públicas constituintes do Estado como agentes transformadores do espaço, tanto simbolicamente quanto materialmente, foram analisados os documentos técnicos e legais que produziram representações sobre o Bixiga.
48Com o IGEPAC-Bela Vista, o Estado construiu uma metonímia geográfica que vinculou o Bixiga a matriz cultural europeia e italiana merecedora de proteção, excluindo outros grupos dos interesses públicos de preservação, como os descendentes de Africanos e Nordestinos e seus respectivos territórios.
49Essa representação fundamentou a aplicação do instrumento de tombamento em nível municipal, que reforçou essa narrativa ao definir a área do Bixiga em função da tradição italiana e apresentou os grupos de nordestinos como ameaças às estruturas materiais do bairro. A aplicação do instrumento do tombamento gerou novos indicies urbanísticos na área, influenciado nas ações de governo relacionadas a liberação ou restrição de novos objetos, como os diferentes empreendimentos imobiliários projetados para a área.
50Frente a essas representações e decisões de governo, uma esfera de contestação se opôs as elites políticas e econômicas de São Paulo. Utilizando de recursos institucionais e políticos, como o tombamento e a luta política pela criação de um parque urbano, o grupo do Teatro Oficina construiu novas representações para o Bixiga, tornando a área não apenas um local da imigração italiana, mas também dos teatros de rua e com intensa degradação urbana. Além disso, esse grupo efetivamente influenciou nas decisões do governo ao impedir, até o momento, a construção de empreendimentos imobiliários de grande porte no terreno adjacente ao edifício do Teatro.
51Os estudos dos conflitos ocorridos em espaços urbanos se mostram profícuos para reflexões sobre as relações entre espaço e política. O texto procurou mostrar que para compreender essas relações a análise dos documentos produzidos pela burocracia governamental pode ser uma alternativa válida. Em sociedades democráticas contemporâneas esses documentos registram os movimentos e estratégias realizados por representantes das instituições formadoras do Estado e também dos grupos que contestam as práticas dominantes pelas vias institucionais, servindo assim como fonte para analisar as transformações simbólicas e materiais ocorridas nos espaços urbanos.