- 1 Uma primeira versão deste texto, em francês e com mapas em preto e branco, foi publicada na revista (...)
1Pode-se falar de terrorismo no Brasil? Para responder a esta pergunta, podemos examinar os dados relativos a este país no Global Terrorism Database (GTD) e visualizá-los com mapas comentados. Este banco de dados tem o grande mérito de existir e permitir comparações com outros países do mundo, mas obviamente não pode reivindicar dar contas da diversidade de situações locais. Entretanto, analisando os casos que aparecem no banco de dados, é possível mostrar que eles se baseiam em várias lógicas diferentes e construir uma tipologia que as reflita. Esta observação nos leva a explorar fenômenos relacionados, tais como o número de homicídios, dos quais o terrorismo é apenas uma das causas1.
2A Global Terrorism Database registra eventos considerados como terrorismo em todo o mundo desde 1970. Está sediada na Universidade de Maryland, e é mantida pelo consórcio START com o apoio direto do governo dos EUA. Seus dados, derivados de relatórios da imprensa sobre incidentes, foram resumidos desde 2012 no Global Terrorism Index, um relatório produzido em colaboração com o Institute for Economics and Peace (Sydney).
Figura 1 O Global Terrorism Index (GTI) dos países do mundo
3Nesta base de dados, o Brasil aparece em uma situação média, com 284 casos de atos terroristas registrados, o que o coloca na 59ª posição mundial, muito atrás das dezenas de milhares de casos no Iraque, Paquistão e Afeganistão, mas muito mais do que em muitos outros países como as pequenas ilhas do Pacífico do Caribe ou - mais curiosamente - a Coréia do Norte...
4Tabela 1 Número de casos: Brasil entre os países mais e menos afetadosRanking
Ranking
|
País
|
Casos
|
|
|
|
1
|
Iraque
|
26.057
|
2
|
Paquistão
|
14.847
|
3
|
Afeganistão
|
14.509
|
4
|
Índia
|
12.853
|
5
|
Colômbia
|
8.515
|
59
|
Brasil
|
284
|
196
|
Andorra
|
1
|
197
|
Antígua e Barbuda
|
1
|
201
|
Coréia do Norte
|
1
|
204
|
Cidade do Vaticano
|
1
|
5Se analisarmos sua distribuição no Brasil, podemos ver uma predominância – esperada – das duas grandes metrópoles, São Paulo e Rio de Janeiro e de seus subúrbios, mas outras ocorreram em todas as regiões do país com algumas concentrações na Amazônia ou no interior do estado de São Paulo
Figura 2 Número de casos por município
6Uma análise da distribuição dos casos por período mostra que a época da ditadura militar (1965-1985) é aquela em que eles são mais numerosos, nas principais metrópoles e nas guerrilhas localizadas em áreas remotas do país. Neste período, surgiram figuras da luta armada contra o regime, como Carlos Marighella, um dos principais organizadores da luta armada contra a ditadura e considerado o inimigo número um do regime. Ele foi cofundador da Ação Libertadora Nacional, em novembro de 1969, e foi morto em São Paulo numa emboscada por agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). Outra grande figura foi Carlos Lamarca: capitão do exército brasileiro, que desertou em 1969, tornando-se um dos comandantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), uma organização guerrilheira armada. Perseguido pelas forças de segurança de todo o país, comandou vários assaltos a bancos, montou um grupo guerrilheiro na região do Vale do Ribeira, no sul do estado de São Paulo, e liderou o grupo que sequestrou o embaixador suíço Giovanni Bucher no Rio de Janeiro em 1970, em troca da libertação de 70 presos políticos. Perseguido por mais de dois anos pelos militares, ele foi localizado e morto no interior da Bahia em 17 de setembro de 1971. Mas muitos outros atos ocorreram após o retorno da democracia, antes e depois de Luís Inácio "Lula" da Silva e o Partido dos Trabalhadores (PT) terem chegado ao poder em 2003
Figura 3 Número de casos por período e por município
7A lista de perpetradores de eventos classificados como terroristas no GTD mostra suas limitações: quase 70% são desconhecidos. Entre aqueles cujos autores são conhecidos, os mais numerosos são esquadrões da morte (13 ações), o Movimento dos Camponeses Sem Terra (MST, 7), a Vanguarda Revolucionária Popular (VPR, 5), a Aliança Anti-Comunista Brasileira (AAB, 4), os Comandos de Caçadores de Comunistas (CCC, 3), extremistas neonazistas e extremistas de direita (3 cada).
Tabela 2 Principais tipos de perpetradores (mais de 2 casos)
|
Número
|
%
|
Desconhecido
|
197
|
69,4
|
Esquadrões da morte
|
13
|
4,6
|
Movimento dos Camponeses Sem Terra (MST)
|
7
|
2,5
|
Vanguarda Revolucionária Popular (VPR)
|
5
|
1,8
|
Aliança Anti-Comunista Brasileira (AAB)
|
4
|
1,4
|
Comandos de Caçadores de Comunistas (CCC)
|
3
|
1,1
|
Agricultores
|
3
|
1,1
|
Neo-Nazistas extremistas
|
3
|
1,1
|
Extremistas de direita
|
3
|
1,1
|
8Outros casos pertencem a categorias que não parecem qualificar como terroristas: partidos e movimentos políticos, grupos sociais (garimpeiro, funcionários públicos, sindicalistas), organizações criminosas e povos indígenas.
-
Movimentos políticos: Frente de Libertação do Amazonas, Partido da Mobilização Democrática Brasileira (PMBD), manifestantes de esquerda, extremistas, neofascistas, grupo de apoio palestino, extremistas pró-palestinos
-
Movimentos sociais: garimpeiros, funcionários públicos e sindicalistas, indivíduos alegadamente policiais, skinheads
-
Organizações criminais: Máfia chinesa, Comando Vermelho, Terroristas ligados às drogas, Primeiro Comando da Capital (PCC), pistoleiros, narco-terroristas
-
Povos indígenas: tribo Guajajara, índios Guaycaipuro, índios Kaingang, tribo Korubo, índios Krikapi, índios Pareci, índios Pataxo, índios Terena
9Para explicar esta diversidade, optamos por uma Classificação Hierárquica Ascendente (CAH). Neste tipo de análise, os grupos são formados de acordo com sua similaridade nas variáveis analisadas. A representação gráfica abaixo do mapa indica, para cada variável, se o grupo está acima da média (barras horizontais à direita) ou abaixo (barras horizontais à esquerda). A cada grupo é atribuída uma cor e no mapa cada município é atribuído uma cor de acordo com o grupo ao qual pertence, aplicada a um círculo de tamanho proporcional ao número de casos no banco de dados.
Figura 4 Número de casos por responsável e por município
10Deve-se notar que a base inclui como terroristas ações que não parecem enquadrar-se no âmbito do terrorismo, e que não são de forma alguma comparáveis: as de organizações criminosas que lutam, muitas vezes com armas em mãos, pelo controle do comércio de drogas e “seus” territórios, e as de povos indígenas que protegem seus territórios ou reivindicam sua demarcação: as primeiras estão localizadas principalmente nas grandes metrópoles e as segundas na Amazônia.
Figura 5 Atos de organizações criminosas e povos indígenas
11A diversidade e a localização dos alvos das ações registradas também sugerem causas muito diferentes: autoridades civis e militares ou infraestruturas sensíveis só vêm depois do mundo dos negócios (21,5%) e dos “cidadãos comuns” (17,3%).
Tabela 3 Tipos de alvos
|
Número
|
%
|
Empresários
|
61
|
21,5
|
Cidadãos comuns
|
49
|
17,3
|
Governo
|
44
|
15,5
|
Jornalistas e mídia
|
38
|
13,4
|
Diplomatas
|
22
|
7,7
|
Figuras religiosas
|
11
|
3,9
|
Transporte
|
11
|
3,9
|
Desconhecido
|
10
|
3,5
|
Militares
|
9
|
3,2
|
Policiais
|
9
|
3,2
|
12Sur la figure 6 la CAH et apparaître des classes définies de la victime principale des actes terroristes, dont la couleur est reportée sur la carte : militaires pour le groupe 1, journalistes pour le groupe 2, figures et institutions religieuses pour le 3, citoyens ordinaires pour le 4, gouvernement pour le 5, police pour le 6 et milieux d’affaires pour le 7.
13Na Figura 6, a CAH mostra classes definidas pelos tipos de vítimas de atos terroristas, que são coloridas no mapa: militares para o grupo 1, jornalistas para o grupo 2, figuras religiosas e instituições para o grupo 3, cidadãos comuns para o grupo 4, governo para o grupo 5, polícia para o grupo 6 e empresas para o grupo 7.
Figura 6 Número de casos por alvo e por município
14A lista dos tipos de ataque e dos meios utilizados é clássica, sendo os principais os assassinatos (25,4%), o uso de explosivos (22,9%), ataques com armas (19,4%) e a tomada de reféns (15,5%). Esta última categoria foi utilizada em particular durante a ditadura militar, no Rios e em São Paulo, e é digno de nota o uso generalizado de armas de fogo, em um país onde sua circulação é pouco controlada
Tabela 4 Tipos de ataques
|
Número
|
%
|
Assassinato
|
72
|
25,4
|
Explosivos
|
65
|
22,9
|
Assalto à mão armada
|
55
|
19,4
|
Tomada de reféns
|
44
|
15,5
|
Ataque à infraestrutura
|
21
|
7,4
|
Desconhecido
|
17
|
6
|
Tabela 5 Tipos de armas usadas
|
Número
|
%
|
Armas de fogo
|
121
|
42,6
|
Explosivos
|
72
|
25,4
|
Desconhecido
|
56
|
19,7
|
Incêndio
|
22
|
7,7
|
Figura 7 Tipo de ataque por município
15A distribuição do número de vítimas está de acordo com o número de casos registrados, com predomínio das duas grandes metrópoles. A maior proporção de mortes na Amazônia e de feridos nos Estados do sul e do sudeste é quase imperceptível.
Tabela 6 Vítimas (mais de 5)
Cidade
|
Mortos
|
Feridos
|
Total
|
Rio de Janeiro
|
83
|
45
|
128
|
São Paulo
|
52
|
31
|
83
|
Amambai
|
0
|
28
|
28
|
Salvador
|
3
|
12
|
15
|
Tabatinga
|
3
|
9
|
12
|
Baixada Fluminense
|
9
|
0
|
9
|
Campinas
|
5
|
4
|
9
|
Distrito de Sandovalina
|
0
|
8
|
8
|
Francisco Morato
|
5
|
2
|
7
|
Curitiba
|
0
|
6
|
6
|
Total geral
|
213
|
168
|
381
|
16Uma das maiores diferenças entre os casos brasileiros e outros no Oriente Médio e na Ásia é a nacionalidade das vítimas, com predominância absoluta (mais de 80%) dos nacionais: no Brasil o terrorismo, como entendido no GTD, é um fenômeno interno: os únicos estrangeiros em número significativo são nacionais dos Estados Unidos (12,5%) e Alemanha (1,1%), devido à tomada de reféns por grupos de esquerda durante a época da ditadura militar. Os cidadãos de todos os outros países representam menos de 1% do total (Reino Unido, Israel, Japão) ou mesmo 0,5% (Bolívia, Chile, Iraque, Nigéria, Paraguai, Espanha, Suécia, Uruguai).
Figura 8 Nacionalidade das vítimas
17A partir destes elementos analíticos, pode-se começar a construir uma tipologia produzindo tabulações cruzadas que reúnem dois elementos, e depois levá-los todos em consideração ao mesmo tempo, para que grupos com perfis similares surjam, novamente usando um AHC.
18Tabulações cruzadas destacam que as principais vítimas são homens de negócios e cidadãos comuns (sugerindo extorsão e “danos colaterais”) ou funcionários do governo, vítimas de assassinato ou tomada de reféns. Estes últimos são mais raros para outras categorias, exceto para os diplomatas, incluindo os dos Estados Unidos sequestrados por grupos revolucionários durante a ditadura militar. O uso de armas de fogo e explosivos contra essas três categorias representa a maior parte do total, estando o restante disperso com porcentagens muito limitadas.
19Para construir uma tipologia que leve em conta as principais variáveis do banco de dados, escolhemos utilizar novamente uma CAH, e este método revela grupos com características muito distintas:
-
A primeira, que inclui quinze municípios, é marcada principalmente pelo assassinato de jornalistas no período 2003-2018;
-
A segunda está ligada aos conflitos fundiários entre os membros do Movimento dos Camponeses Sem Terra (MST) e grandes latifundiários do Sudeste;
-
A terceira refere-se a outros conflitos fundiários na Amazônia, resultando em ataques à polícia ou à infraestrutura de transporte;
-
A quarta é a que mais tem causado mortes e ferimentos de todas as causas, particularmente em Salvador da Bahia;
-
A quinta é de longe a mais complexa e extensa, com 24 casos em uma série de cidades, principalmente no Rio de Janeiro e São Paulo, sem predomínio claro de qualquer variável;
-
A sexta é caracterizada por ataques a instituições, "figuras religiosas" e infraestruturas por meio de explosivos, no período mais recente;
-
No sétimo, estes meios foram bastante utilizados contra o pessoal militar, no período em que estavam no poder, antes de 1985.
-
A oitava e última reúne casos de ataques contra o governo causando ferimentos, logicamente centrados na capital federal, Brasília, e em algumas capitais estaduais.
Figura 9 Tipologia por município
20Os casos registrados neste banco de dados estão obviamente longe de representar toda a violência no Brasil, e as 213 mortes listadas (durante um período de quase 50 anos) são pouca coisa em comparação com o número de homicídios no país, que só muito raramente são causados pelo terrorismo: são muito mais numerosos e fazem dele um dos países mais violentos do mundo. Nos dados globais disponíveis, o Brasil estava em segundo lugar em 2018 com quase 60.000 mortes, superado apenas pela Nigéria. Em termos de homicídios por 100.000 habitantes, o Brasil ocupa apenas o décimo sexto lugar, mas atrás de países com populações muito menores, principalmente (exceto Lesoto, África do Sul, Nigéria, Venezuela e México) países pequenos da América Central e do Caribe.
Tabela 10 Número absoluto de homicídios e taxa por 100.000 habitantes
Pais
|
Número
|
População
|
Homicídios
|
|
de homicídios
|
2020 (milhões)
|
por 100 000 hab..
|
Por número absoluto
|
|
|
|
Nigéria
|
71 168
|
206,1
|
34,5
|
Brasil
|
58 204
|
212,6
|
27,4
|
Índia
|
42 494
|
1 380,00
|
3,1
|
México
|
37 482
|
128,9
|
29,1
|
África do Sul
|
21 292
|
59,3
|
35,9
|
Estados Unidos
|
16 408
|
331
|
5
|
Colômbia
|
12 896
|
50,9
|
25,3
|
Rússia
|
11 980
|
145,9
|
8,2
|
Venezuela
|
10 432
|
28,4
|
36,7
|
Por 100.000 habitantes
|
|
|
|
El Salvador
|
3 374
|
6,5
|
52
|
Jamaica
|
1 299
|
3
|
43,9
|
Lesotho
|
933
|
2,1
|
43,6
|
Venezuela
|
10 432
|
28,4
|
36,7
|
África do Sul
|
21 292
|
59,3
|
35,9
|
Nigéria
|
71168
|
206,1
|
34,5
|
México
|
37 482
|
128 ,9
|
29,1
|
Brasil
|
58 204
|
212,6
|
27,4
|
Fonte: Banco Mundial. Número de homicídios recalculados a partir da taxa, que é o único dado disponível.
Figura 10 Homicídios no mundo em 2018
21Como a análise mostrou, no caso do Brasil, entre as ações classificadas como terroristas no GTD, algumas são de natureza mais criminosa, com muito mais homicídios de todos os tipos do que aqueles causados por elas. Isto é verdade em outros países, e podemos tentar concluir reunindo três geografias: terrorismo, homicídio e crime. Isto não só situa melhor o caso do Brasil, como também abre perspectivas para análises semelhantes de outros países.
22Um última CAH é a base da figura 11, na qual os países são divididos em grupos com perfis semelhantes, onde predomina o crime, o homicídio ou o terrorismo (e um quarto, de países sobre os quais não há informações suficientes). Eles são classificados em uma escala a partir de 100 para as taxas maiores. O primeiro grupo é o mais numeroso, com 94 países. O Brasil está no segundo, com 23 países, a maioria dos quais são muito pequenos para serem visíveis no mapa. O terceiro, o terrorismo, tem 35 países, onde seria interessante pesquisar de forma semelhante à análise feita sobre o Brasil.
Figura 11 Uma tipologia mundial