1A relação campo-cidade sempre foi objeto de muitas pesquisas acadêmicas, que evidenciaram períodos de completa distinção entre o que seria o campo e a cidade, o urbano e o rural; a predominância da cidade sobre o campo; a aproximação dessa relação, as novas formas de entendimento das ruralidades e urbanidades. Enfim, trata-se de uma relação que teve uma trajetória complexa e carregada de interpretações constantes.
2Considerando que o campo e a cidade são espaços onde as relações pessoais acontecem, os mesmos estão sujeitos a transformações constantes que ocorrem em diferentes intensidades em cada localidade. Daí decorre a importância de entender alguns aspectos dessa relação e de seu histórico, para compreender de forma mais efetiva a transformação de um bairro rural que se torna um distrito, no contexto de um município pequeno com uma ruralidade muito evidente.
3A complexidade de estudar o campo e a cidade, o rural e o urbano, e a elasticidade de suas definições, reside no fato de que suas relações se estabelecerem desde os pequenos povoados aos grandes centros urbanos. Independentemente do limite físico ou populacional, essas relações devem ser compreendidas à luz da realidade local, de modo que sejam atendidas suas necessidades específicas, desconsiderando as generalizações.
4Antes de tudo, é fundamental que se compreenda os caminhos que envolvem a relação campo-cidade de uma maneira ampla, o que configura cada espaço, como se diferenciam, se existe uma aproximação, como se comunicam, de que maneira um distrito se insere entre esses espaços, a intensidade do rural que há na cidade e de urbano que há no campo. Ou seja, existem ruralidades na cidade e urbanidades no campo, o não significa que cada espaço perca suas características e especificidades.
5Todos esses pressupostos levaram ao estudo do distrito de Moçambo, no município de Muzambinho-MG, que até 2015 era a sede de um bairro rural, que embora recebendo influências da urbanização, sobretudo pela proximidade com a cidade (distrito-sede) mantem-se, naquele espaço, fortes manifestações da ruralidade, sobretudo no modo de vida da população. Na verdade, essa ruralidade se justifica pelo fato de tratar-se de um município cuja economia é movida pelas atividades agrícolas, especialmente a cafeicultura. Portanto, é natural que a cidade de Muzambinho também tenha essas características.
6Nesse processo de transformação houve mais interesse político do que vontade da população local, uma vez que uma das primeiras decisões da prefeitura foi a cobrança de IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), estendendo a arrecadação de um imposto urbano sobre uma população que, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), torna-se urbana por residir na sede de um distrito. Em contrapartida, as melhorias na infraestrutura urbana deveriam ser implementadas, fato que não estava ocorrendo época dessa pesquisa (2016), nem 3 anos após sua realização, quando uma das autoras desse trabalho visitou o local novamente (2019).
7Nesse sentido, esse trabalho teve como objetivo, compreender como a relação campo-cidade se estabeleceu na transformação do Moçambo, de bairro rural em distrito, no contexto de um município, cuja sede é pequena e que, por conta do predomínio das atividades agrícolas, possui manifestações da ruralidade bastante acentuadas.
- 1 ARAÚJO, Letícia Almeida. Moçambo: implicações socioespaciais e culturais de um bairro rural transfo (...)
8O texto é parte dos resultados da pesquisa de Trabalho de Conclusão do Curso, apresentado no curso Geografia Licenciatura na Universidade Federal de Alfenas pela primeira autora desse trabalho e orientado pela segunda, em 20161 e está dividido em procedimentos metodológicos da pesquisa, com a caracterização geral do distrito do Moçambo, sua contextualização na abordagem da relação campo-cidade e os resultados da pesquisa.
9Conforme já mencionado, a área estudada nesse trabalho é o Povoado do Moçambo que, no início de 2015, deixou de ser bairro rural e tornou-se distrito do município de Muzambinho, que possui com cerca de 21.017 habitantes (IBGE 2015) e está localizado na mesorregião Sul/Sudoeste de Minas (mapa 1). O distrito está localizado às margens rodovia BR-491, que o liga à sede de seu município (aproximadamente a 6 km de distância) e a outros municípios vizinhos, como Juruaia e Guaxupé.
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Mapa 1: Localização geográfica do distrito de Moçambo no município de Muzambinho/MG.
Fonte: IBGE; IGTEC-MG. Org. André Luiz da Silva Bellini (2020).
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10Destacam-se na sua paisagem o antigo prédio da Estação Moçambo, atual Escola Municipal do Povoado no Moçambo, além de estabelecimentos comerciais e a presença de infraestrutura urbana (asfalto, água encanada, luz elétrica telefonia, etc.). Essa concentração populacional ocorreu, de acordo com as informações publicadas pela Prefeitura Municipal de Muzambinho (2000), a partir da implantação do ramal Moçambo da estação ferroviária da Companhia Mogyana em 1912, principal meio de transporte no auge da produção cafeeira. Muitas casas e comércios surgiram acompanhando o movimento e o fluxo grande de pessoas, passageiros e mercadorias. A estação estabelecia relações diretas com a Estação Muzambinho, na sede do município, e com a Estação Guaxupé, no município vizinho de mesmo nome.
11Com a evolução e a modernização nos meios de transporte, a ferrovia foi desativada em 1966. A estrada de terra que cruzava o bairro e também o ligava ao distrito-sede de Muzambinho e município vizinho de Guaxupé-MG e foi pavimentada, sinalizada e passou a integrar a rodovia BR-491, marcando um período de transformações econômicas e demográficas no Moçambo. Dessa maneira, entende-se que os acontecimentos políticos, econômicos e sociais que ocorrem de forma global acabam por interferir, em diferentes intensidades no local.
12De acordo com dados declarados pelo Registro Geral da Vigilância Sanitária de Muzambinho (2015), existem 237 habitantes, embora o relato oral de representantes do poder público municipal declare aproximadamente 400 moradores. No projeto de elaboração da lei para criação do distrito, só existe a documentação que consta o número de 100 moradias, não se tem nenhuma referência oficial no projeto, do número de moradores. Essa divergência ocorre porque existem pouca documentação, dados quantitativos, estatísticos ou de representação espacial e social do distrito. Nesse sentido, os dados pesquisados em campo, permitiram traçar o perfil da população do distrito.
13Para a elaboração desse trabalho foram realizados levantamento e revisão bibliográficos referentes, sobretudo, à relação campo-cidade, às definições de ruralidades, urbanidades, bairro rural e distrito.
14A etapa seguinte foi a coleta de dados secundários sobre o distrito, que foram encontrados na Prefeitura Municipal de Muzambinho-MG (lei de criação do distrito e o mapa impresso, que orientou a elaboração dos mapas digitais de localização do distrito), na Câmara Municipal de Muzambinho, (documentos apresentados na elaboração da lei de criação do distrito) e no Museu Municipal Francisco Leonardo Cerávolo (histórico de Muzambinho e da construção da Estação em Moçambo). Além disso, também foram feitas consultas a sites como do IBGE e instituições como a Vigilância Sanitária do município de Muzambinho (dados estatísticos).
15Para coleta dos dados primários, foram realizadas visitas de campo e entrevistas com 5 moradores antigos do bairro, para ajudarem no resgate histórico da vida no Moçambo. Ali também foi aplicado um questionário semiestruturado para 30 famílias residentes (19 homens e 11 mulheres), com o objetivo de avaliar aspectos do modo de vida, cultura, fonte de renda, infraestrutura, mudanças e opinião dos moradores sobre a transformação em distrito. Além disso, 10 jovens (entre 15 e 24 anos, representados por 6 mulheres e 4 homens), com o intuito de compreender a relação deles com o lugar e suas perspectivas sobre o futuro do distrito. Após a análise, organização e tabulação dos dados coletados, juntamente com o conteúdo teórico, ocorreu a elaboração desse trabalho.
16Uma nova visita em campo ocorreu no início de março de 2019, na qual constatou-se que nenhuma das pautas reivindicadas pelos moradores foi atendida.
17De início, é importante destacar que os conceitos de “campo” e “rural” muitas vezes utilizados como sinônimos, possuem atribuições diferentes, assim como os conceitos de “cidade” e “urbano”, conforme explica Biazzo (2007, p.17),
urbano e rural nada mais são do que construções simbólicas, manifestações ou criações culturais concebidas, sim, a partir de hábitos, costumes. Ao contrário do campo e da cidade, ou melhor, de espaços campestres e citadinos, urbano e rural não podem ser mensurados ou delimitados, porque não são substantivos.
18É como se o campo e a cidade correspondessem a materialidades, ao que pode ser concreto e identificável, e o rural e o urbano a imaterialidades, ligadas aos costumes, modos de vida e culturas de cada território. Assim, o campo sempre esteve relacionado à produção de alimentos e de sustentação dos povos, sendo pensado como algo que se opõem a cidade. E a cidade, vista como o meio de progresso. A diferenciação entre os dois espaços, ainda continua nessa linha de oposição e exclusão, feita através da delimitação do que é urbano, sendo o restante considerado como rural (ibidem).
19Dentro dessa perspectiva, as cidades passam a ter o poder de comandar a organização dos territórios, incluído os espaços rurais. Esse viés de análise, de origem marxista, enxerga a homogeneização dos espaços urbanos e rurais, ou seja, declara o fim do rural (AFONSO E PEREIRA, 2011). E esse protagonismo da cidade sobre o campo passou a ser questionado por autores como Veiga (2003) que trabalha no fato de que existem muitos outros municípios no Brasil que são definidos como urbanos, sem que sejam levados em conta características como os modos de vida e outras importantes características de suas populações, sendo uns dos primeiros autores a colocar em evidência a questão da territorialidade.
A vigente definição de cidade é obra do Estado Novo. Foi o Decreto-Lei 311, de 1938, que transformou em cidades todas as sedes municipais existentes, independentemente de suas características estruturais e funcionais. Da noite para o dia, ínfimos povoados, ou simples vilarejos, viraram cidades por norma que continua em vigor, apesar de todas as posteriores evoluções institucionais” (VEIGA, 2003 p. 2).
20Em um dado momento, não foi mais possível determinar que o campo e a cidade eram realidades opostas, isso devido as mudanças de ordem capitalista que atingiu os dois espaços e fez com que a distância entre eles fosse alterada (Veiga, 2003).
21Nesse sentido, as definições do que seria considerado campo e cidade e rural ou urbano é complexa, e percorreu um longo caminho de ideias dicotômicas dessa relação até chegar a uma aproximação desses espaços, com intensa troca entre eles, mas com a manutenção de suas especificidades, visão defendida nesse trabalho e em concordância com as considerações de Rua (2005, p.48) :
Rural torna-se, cada vez mais, diferente de agrícola. Ao mesmo tempo, distingue-se cidade e urbano explicitando a crescente complexidade que marca tais relações. Rural e urbano interagem-se, mas sem se tornarem a mesma coisa, já que preservam suas especificidades.
22As visões acadêmicas são múltiplas, mas não se pode negar a relação de interdependência entre os dois espaços e nem que um seja mais importante que outro. Porém, o campo, de espaço produtivo e gerador de renda, passou a ser por muito tempo considerado como um lugar arcaico para se viver e trabalhar, um lugar atrasado, de minorias que cultivavam tradições diferentes das impostas pela nova ordem capitalista dominante. Enquanto isso, a cidade passou a ser sinônimo de progresso e desenvolvimento (ibidem).
23No entanto, campo e cidade não podem ser ambientes excludentes, porque é no seu complemento que as mudanças efetivas acontecem. O que é evidente é que “o meio rural brasileiro tende a manter suas funções e agregar outras, e que isso pode não ser bom nem ruim, apenas um sinal das transformações do capitalismo, que sempre encontra novas formas de exploração do espaço para atender ao mercado” (VALE; BARBOSA; OLIVEIRA, 2014, p. 11).
24O campo e a cidade, o mundo rural e o urbano possuem diferenças que não implicam em colocar um espaço contra o outro, ou atribuir uma importância maior para um em detrimento de outro. Menos ainda, essas diferenças não vão permitir que esses espaços se relacionem ou mantenham suas especificidades (RUA, 2005).
25Essa integração dos dois espaços sem perda de suas particularidades é ressaltada também por Wanderley (2000), ao considerar a necessidade de uma intermediação na relação entre rural e urbano, diante da existência de vários elementos que dariam continuidade entre esses dois aspectos. Esse seria continuum rural-urbano, no qual, embora as particularidades de cada um dos espaços sejam mantidas, eles se relacionam e se integram, seja nas formas de vida e trabalho rurais ou urbanas.
26Dessa maneira, é possível compreender a importância de analisar cada território dentro de suas singularidades e dentro das diferentes intensidades de ruralidade ou urbanidade que sofre. “Nesse sentido, não se pode falar de ruralidade em geral; ela se expressa de formas diferentes em universos culturais, sociais e econômicos heterogêneos” (CARNEIRO, 1998, p. 53).
27Uma visão do que pode contrapor os dois espaços é colocada por Alves e Vale (2013, p.38) que trazem que “o que vai diferenciar o urbano do rural é a intensidade da territorialidade, pois o primeiro representa relações mais globais, mais deslocadas do território, enquanto o rural reflete uma maior territorialidade, uma vinculação local mais intensa”.
28Outra questão importante é compreender também a relação entre município, cidade, distrito e vila, conforme explica Pinto (2003, p. 29) apud Pina, Lima e Silva (2008, p. 135).
[...] o município é a menor unidade territorial brasileira com governo próprio, é formado pelo distrito-sede, onde acha-se localizada a cidade, que é a sede municipal e que leva o mesmo nome do município e, que corresponde à zona urbana municipal e; também, pelo território ao seu entorno, a zona rural municipal, que pode ser dividida em distritos, cuja maior povoação recebe, geralmente, o nome de vila.
29No caso dos distritos, todavia, existe uma complexidade em sua definição, pois os distritos brasileiros podem ser considerados como híbridos rurais-urbanos, em que há uma dialética entre rural e urbano, uma vez que geralmente se situam na área rural, mas o poder público os considera como pertencentes à zona urbana. Isso se explica pelo fato do que o que importa, de acordo com a lei municipal de 1º de agosto de 2000, é a localização de domicílio, urbana ou rural.
Em situação urbana consideram-se as pessoas e os domicílios recenseados nas áreas urbanizadas ou não, correspondentes às cidades (sedes municipais), às vilas (sedes distritais) ou áreas rurais isoladas. A situação rural abrange a população e os domicílios recenseados em toda a área situada fora desses limites, inclusive os aglomerados rurais de extensão urbana, os povoados e os núcleos. Esse critério também é utilizado na classificação da população urbana ou rural (IBGE, 2000, p. 20).
30Portanto, ao considerar os moradores das sedes dos distritos como urbanos, a eles são aplicados impostos urbanos, sobretudo o IPTU. Esse hibridismo pode causar, no entanto, confusões acerca das identidades dos moradores, pois ao mesmo tempo em que se percebem como moradores do campo, eles mantêm vínculos com o distrito-sede para suprirem necessidades do cotidiano (SILVA, 2014).
31Isso é o que ocorre com Moçambo, que se tornou um distrito, mas mantém seu caráter rural muito evidente, ainda preservando características de um bairro rural.
Os bairros rurais se organizam como grupos de vizinhança, cujas relações interpessoais são cimentadas pela grande necessidade de ajuda mútua, solucionada por práticas formais e informais, tradicionais ou não; pela participação coletiva em atividades lúdico-religiosas que constituem a expressão mais visível da solidariedade grupal; pela forma específica de ajustamento ao meio ecológico, através do trabalho de roça, executado pela família conjugal como unidade econômica e utilizando técnicas rudimentares; pela interdependência visível entre o grupo de vizinhança e núcleos urbanos, locais e regionais, para os quais se dirigem os lavradores, seja para vender seus produtos e comprar mercadorias, seja em romarias religiosas, seja para tratar das poucas atividades administrativas e políticas que estão ao seu alcance. (QUEIROZ, 1973 apud PINA; LIMA; SILVA, 2008).
32Esses autores também ressaltam que o então distrito não pode ser considerado um campo que foi urbanizado, pois em diferentes intensidades sempre esteve indiretamente ou até diretamente conectado com a cidade e todos instrumentos tidos como urbanos, mas não perdeu sua identidade rural, seu apego ao local, e o modo de vida familiar de um bairro rural (ibidem). Porém conforme já sinalizado, apesar de ter se tornando um distrito, direitos básicos de bem-estar social da população do Moçambo como a infraestrutura para o recebimento de água encanada, o asfaltamento de ruas, a reforma no trevo de entrada do distrito, na escola, e a criação de áreas de lazer, ainda não foram atendidos.
33Para Manaia (2009, p. 14), “muitos célebres pensadores trabalharam com a urbanização, suas hierarquias e intercomunicações, porém não se aprofundaram na discussão sobre a interface entre o campo e a cidade, da qual os distritos são a melhor expressão”. Nesse sentido, o estudo sobre o distrito é uma possibilidade de se entender ou aprofundar os apontamentos da relação campo-cidade que são vastos e complexos.
34Uma das justificativas utilizadas na elaboração do projeto de criação do distrito, segundo Freitas (2016), foi justamente a localização próxima à sede do município, o que realmente facilita em termos financeiros que os moradores do Moçambo frequentem mais a cidade do que moradores de bairros rurais mais afastados da sede. O que acaba contribuindo para que mais características e costumes do modo de vida dos dois espaços sejam trocadas, não implicando que o recente distrito assuma o modo de vida urbano, e nem que apenas o fator localização seja considerado em uma transformação como essa, que envolve a cultura, a questão econômica e política.
35Há que se considerar também, que o distrito-sede do município de Muzambinho é pequeno, no qual a ruralidade manifesta-se tanto em termos culturais quanto econômicos, uma vez que sua economia gira em torno das atividades agrícolas, sobretudo a produção de café, geradora de empregos e renda para população, seja rural ou urbana.
36Além disso, “a respeito da espacialidade do território de Muzambinho, o IBGE divide 33 setores, sendo 11 rurais e 22 urbanos. A prefeitura municipal considera a existência de 41 comunidades rurais. Ou seja, o território de Muzambinho é significativamente rural” (GUIDA, 2011, p. 30). A autora também relatou a existência do alto número de pequenas propriedades no município, o que demonstra a forte presença da agricultura familiar, predominante na cafeicultura do Sul de Minas (ibidem).
37Considerando que o distrito apresenta muitas características de um bairro rural, Lindner (2008) aborda as ruralidades nos pequenos municípios marcadas pelas festividades, pelo contato próximo de seus habitantes e pelo seu modo de vida, características também bem próximas ao que se pode observar em Muzambinho.
38Desse modo, a visão de que mesmo com a aproximação do campo e da cidade cada local preserva suas especificidades, é também a visão adotada neste trabalho ao estudar a realidade de um bairro rural em um município pequeno, que sofre influências da cidade, foi transformado recentemente em distrito, mas preserva suas especificidades e características de um modo de vida rural, exemplificando tão intensa e complexa é a relação campo- cidade e a relação rural-urbano.
39Os resultados apontados pelos dados coletados em campo permitiram constatar a existência de uma população composta por muitos aposentados e moradores que residem há mais de 20 anos no distrito de Moçambo, assim como a presença de poucos jovens. Também mostraram que a principal fonte de renda dos moradores está relacionada à produção de café e que há uma forte ruralidade no distrito, marcada pela expressiva religiosidade dos moradores, pelas relações interpessoais e de vizinhança, típicas do mundo rural, pela dependência com relação à sede do município e pela forte ligação com o campo.
40As análises dos dados mostraram que a transformação do bairro rural Moçambo em distrito cumpriu todas as exigências legais, em um processo no qual se espera que todo bairro rural se torne um distrito e, quem sabe, futuramente, em um município. Isso, dentro de uma visão que muitas vezes permanece de que o campo não pode fazer com que uma população se desenvolva ou que o modo de vida rural é arcaico. Por isso, não basta apenas analisar as condições legais, que são generalizadas para vários territórios. É importante que se estude cada realidade, que se priorize a visão de seus moradores e que haja uma clara comunicação entre os governantes e os atores envolvidos em transformações de qualquer ordem em uma localidade.
41Sobre a transformação do bairro rural em distrito, todos moradores entrevistados responderam que foram consultados previamente. No entanto, isso não significa que todos compareceram à reunião de votação do plesbicito, ou que se inteiraram das possíveis implicações causadas por essa transformação. Eles relataram que obtiveram informações sobre o assunto, por meio de recados na igreja ou em conversa com vizinhos sobre a data da reunião na qual ele seria discutido. Todavia, disseram não ter participado de nenhum das reuniões que a prefeitura afirma ter realizado no bairro.
42Ainda assim, quando questionados sobre a transformação do Moçambo em distrito, a totalidade dos entrevistados se mostrou favorável. A justificativa desse posicionamento, na maioria das falas, foi a esperança de benefícios para a população na condição de distrito, como melhorias na infraestrutura do bairro. Nenhum dos moradores citou algum tipo de implicação negativa ou desvantagem nesse processo.
43Desse modo, quando questionados sobre o atendimento médico no distrito, todos moradores responderam que o consideram “ruim” porque, na realidade, ele não existe, pois não há nem posto de saúde e nem médicos para atende-los no local. Foi citado que existe apenas uma caixa de primeiros socorros comunitária, no salão dos moradores, que funciona como uma associação comunitária. Nesse caso, quando necessitam de consulta, exames e outros tipos de atendimentos médicos, são obrigados a busca-los na sede do município ou na cidade de Guaxupé, a mais próxima e maior que Muzambinho. Argumentaram também que apesar da pequena distância do distrito com relação à sede, isso implica em custos nesse deslocamento.
44Sobre a infraestrutura urbana do distrito, a maioria dos entrevistados (83%) consideraram como regular, uma vez que existe a energia elétrica, a coleta de lixo é semanalmente. Entretanto, acreditam que ainda são necessárias muitas melhorias, sobretudo com relação ao tratamento da água, que provém de minas e de poços artesianos, e de esgoto. Outra demanda dos moradores está relacionada à pavimentação das ruas, uma vez que apenas a rua de acesso ao distrito e a rua principal do mesmo, que passa em frente da escola, da igreja e do salão de eventos são asfaltadas. Sendo assim, na seca o problema é poeira levantada pela passagem de carros (figura 1) e nos períodos de chuva, o problema é a lama (figura 2). Em um retorno em campo no início de março de 2019, constatou-se que essa situação não se alterou, e que todas as demais reivindicações dos moradores também ainda não tinham sido atendidas, mesmo com a mudança da gestão municipal.
Figuras 1 e 2: Ruas sem pavimentação no distrito de Moçambo, município de Muzambinho-MG.
Fonte: Acervo fotográfico pessoal, 2016. Pesquisa de campo.
45Os moradores antigos entrevistados e alguns de seus familiares mostram seu descontentamento com relação às melhorias na infraestrutura urbana do local, após ter deixado de ser bairro rural, com é possível observar na fala de um deles:
Moçambo virou distrito, mas por enquanto não mudou nada. Por enquanto, só está no nome. Infraestrutura não melhorou nada. Nem a água, que era o nosso objetivo, a nossa luta, não chegou. A Copasa ainda não se manifestou também. Até ajeitar né, está tudo lá, na mão do deputado, na mão do governo. Nós já tivemos reunião com deputado, com engenheiro da Copasa, mas está tudo parado (J. R. B. S., 57 anos).
- 2 Ivan Antônio de Freitas (Gestão 2013-2016).
46A respeito dessa questão, em entrevista, o então prefeito de Muzambinho2 confirmou que realmente não haviam ocorrido mudanças na infraestrutura urbana, mas que acreditava que, com o crescimento populacional do distrito, surgirão reivindicações dos moradores e é o papel da prefeitura apoiá-los.
Não, ainda não houve nenhuma transformação de infraestrutura para população. Nós já fizemos pedidos em Belo Horizonte no DER (Departamento de Estradas e Rodagem) para já caracterizar ali, então as placas de caracterização (como distrito) já foram colocadas. Mas investimentos no distrito ainda não houve, até porque a questão não é necessariamente o investimento, é permitir ao distrito crescer, não é a prefeitura que vai lá fazer, é o distrito que vai crescer! Porque, por exemplo, antes como zona rural eles não podiam vender terreno menos que 3 hectares, hoje eles podem vender de 175 metros. Então, as pessoas têm que fazer loteamentos, a iniciativa tem que ser da população. Agora a prefeitura não vai deixá-los estarrecidos, não! A prefeitura vai apoiar, vai ajudar (I. A. FREITAS, 10 maio 2016).
47O que se percebe então, é que para transformações de intensidade socioespacial e cultural como essa, não basta considerar que por um bairro rural e se localizar próximo à área urbana ou até mesmo por se tratar de uma vila com traços de urbanidades, pode assumir o caráter de um distrito, sem que haja ações efetivas do poder público para tanto.
48Sobre o modo de vida encontrado no Moçambo, conforme foi relatado pelos entrevistados, existe uma intensa relação de vizinhança. Aliás, essa foi uma das vantagens de viver no Moçambo, ou seja, o fato de “todos se conhecerem”, faz toda diferença. “Tenho relação boa com meus vizinhos, pelo menos eu converso muito. Tenho uma amizade imensa com eles. Ás vezes a gente não vai na casa, mas gosta de ir no portão perguntar se estão bem” (J. R. S. B., 57 anos).
49Os entrevistados destacaram também o sossego, a tranquilidade, a calma, o contato com o campo, como algo que chega a atrair novos moradores para o Moçambo, com relata esse morador:
Já veio bastante gente de fora, de cidade aqui de perto (morar no distrito). Ás vezes até de São Paulo mesmo ou gente que fez a vida lá e aposentaram e agora compraram terra aqui, de novo. Uma prima minha mesmo, que casou e passou a vida em Monte Belo, agora que eles aposentaram, compraram uma chácara aqui, e assim tem muitos que vieram buscando sossego (J. S., 75 anos).
50A religiosidade claramente é a marca de muitas manifestações culturais no distrito, sobretudo nas atividades festivas, sendo que a Igreja Católica funciona como um ponto de encontro e difusão de informações. Por conta disso, a maioria dos entrevistados respondeu que cultiva as tradições locais (70%), sobretudo, frequentando terços e rezas em casas de outros moradores, participando de festas e atividades religiosas católicas, indo à missa toda semana, além de viagens anuais para cidades que promovem o turismo religioso, como Aparecida-SP e Trindade-GO. Vale ressaltar que o principal templo religioso deles é Igreja Nossa Senhora do Rosário que, segundo moradores, corresponde ao prédio mais antigo do distrito e está localizada na rua principal dele. Ao andar pelas ruas do distrito, é comum visualizar casas com uma capela construída na entrada, representando assim, o forte caráter religioso dos moradores de Moçambo (Figura 3).
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Figura 3: Residência com capela na entrada no distrito de Moçambo, município de Muzambinho-MG.
Fonte: Acervo fotográfico pessoal, 2016. Pesquisa de campo.
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51No que se refere às atividades de lazer no distrito, a totalidade dos entrevistados consideraram como “ruim”, justificada pela falta de diversidade, uma vez que existe apenas um campo de futebol, localizado próximo a escola que recebe jogadores do distrito e de bairros rurais vizinhos para jogos aos finais de semana. Ao seu lado está localizada a única venda do distrito, que funciona somente aos domingos, justamente por conta dos jogos, o que torna esse estabelecimento comercial um ponto de encontro semanal da população. Porém, como foi relatado pelos moradores, esse “ponto de encontro” não envolve toda família, uma vez que seus frequentadores são apenas os homens, jogadores ou que assistem aos jogos e que ao final deles, consomem bebidas alcoólicas. Portanto, é tido como um local “inadequado” pra mulheres, crianças e idosos, que apenas podem “observar a movimentação”, de longe. Já o campo, pode ser frequentado pelas crianças durante a semana.
52Diante da inexistência de um espaço adequado para realização de atividades físicas, os moradores relataram que a única alternativa são as caminhadas. O cuidado com a horta, com os animais e a própria conversa com vizinhos ou amigos durante o trabalho no campo, foram citados como forma de distração e lazer.
53Para os jovens, a falta de opções de lazer no distrito é ainda pior. Além dos jogos de futebol nos finais de semana, os entrevistados relataram que buscam o divertimento no uso da internet, sobretudo, acessando as redes sociais e nos filmes e séries na TV a cabo. Nesse sentido, o celular e a televisão tornam-se as principais ferramentas de lazer para esses jovens, o que denota o quanto as urbanidades já se fazem presente no distrito e, nesse caso específico, muito semelhante às grandes metrópoles. Por outro lado, também contaram que frequentam bares e festas na cidade. Essa situação, aliada ao fato a única escola do distrito (Escola Municipal do Povoado no Moçambo) oferece apenas o ensino fundamental até o sexto ano, fazendo com que esses jovens tenham que continuar seus estudos na cidade, no entanto, os entrevistados não demonstraram desprezo pelo local. Ao contrário, percebeu-se que há muita afetividade e prazer em viver no Moçambo, por parte deles. Mesmo sem expressar com exatidão os motivos, todos de maneira geral, demonstraram orgulho em ser um morador do distrito e argumentaram, inclusive que, caso tenham que se mudar dali, por algum motivo, pretendem sempre manter o vínculo com o distrito.
54Quando questionados sobre a vida no passado e a atual no Moçambo, a maioria dos moradores (60%) considerou que antigamente era melhor, remetendo-se aos tempos em que a estação ferroviária ainda estava ativada, quando o bairro assumia uma função importante e reconhecida e havia mais comércios e atividades festivas. Nesse caso, tratam-se moradores aposentados saudosistas da época exclusiva da ferrovia. Os demais moradores que consideraram que hoje é melhor, argumentaram que atualmente existem de mais recursos financeiros, maior facilidade de acesso aos municípios vizinhos, mais tecnologia e condições de ter bens materiais equivalentes aos de um morador da cidade. Essas pessoas, em geral, são filhos que viram os pais passarem por dificuldades financeiras no passado e acreditam que as condições atuais são mais igualitárias do que as de quando crianças.
55Todos os moradores entrevistados revelaram que não sentem vontade de se mudar do distrito, por motivos diversos: apego, identidade com o local, questões de trabalho (na agricultura), tranquilidade encontrada no local, ou ainda, por estarem acostumados ao modo de vida rural, como se pode constatar nesse depoimento:
Eu não saio daqui não! Sair daqui para quê né? Eu estou bem aqui, para que eu vou para cidade? Eu já morei um tempo em São Paulo, morei em Guaxupé, só que gosto de ficar aqui mesmo. Aqui eu tenho minhas galinhas, cuido do bar, distraio, converso com o pessoal, e a família que mora fora, gosta de vir aqui todos os domingos (M. N. F., 69 anos).
56Sendo assim, não se pode considerar equivocada a visão daqueles que não identificaram o Moçambo ainda como distrito, porque de acordo com todas as informações fornecidas pelos moradores, realmente ele preserva características muito próximas às apresentadas pelos autores do que seriam as encontradas em um bairro rural. Nesse sentido, é importante que as políticas públicas trabalharem com informações mais próximas da realidade de cada localidade, principalmente em casos de definição do que seria o urbano e o rural. É necessária uma completa análise sobre a intenção de alguns municípios em aumentar as áreas urbanas sob o comando deles, buscando uma maior arrecadação de impostos (PINA, LIMA E SILVA, 2008), ou seja, na maioria das vezes, somente o interesse fundiário ou fiscal é levado em consideração (RESENDE, 2007).
57Realmente existe um a linha tênue entre o bairro rural e o distrito, sobretudo, quando estão muito próximos à sede urbana do município, que mesmo sendo representada por uma cidade pequena os influencia em termos de urbanização, com é o caso de Moçambo com relação à cidade de Muzambinho.
58No que se refere à crença nas mudanças que poderão ocorrer no Moçambo por ter se tornado um distrito, seus moradores se dividiram entre aqueles que acreditam que nada mudará, que a transformação foi “só no nome” e os que acham que “vai demorar para essas mudanças serem percebidas”, inclusive para alguns deles, essas mudanças já estão acontecendo, mas “a passos lentos”. Sobre o papel do poder público deveria desempenhar nesse processo, a grande maioria, citou o melhoramento na infraestrutura urbana, acelerando o encanamento da água e esgoto, calçando todas as ruas, a instalando uma torre para sinal de celular e investindo na coleta regular de lixo, paisagismo e criação de áreas de lazer.
59A compreensão do histórico da relação campo-cidade, das diferenciações dos conceitos, do entendimento da imaterialidade do rural e do urbano, são temas que não podem deixar de ser considerados em estudos que envolvam as transformações de territórios, principalmente em países com dimensões continentais como o Brasil. E, no caso desse estudo, essa análise se torna ainda mais importante por tratar de um bairro rural que se transformou legalmente em distrito. O Moçambo possui ainda características muito fortes do primeiro (ruralidades), mas sendo forçado a incorporar características do segundo (urbanidade), sobretudo porque seus moradores passaram a ser classificados como população urbana.
60Apesar de seu passado ter se constituído de fatos que estiveram estreitamente ligados com a história do Brasil, especialmente a cafeicultura no século XIX e a ferrovia, no início do século XX, existe pouca documentação ou estudos sobre o Moçambo. Talvez a situação fosse diferente se o distrito, atualmente, correspondesse a uma área economicamente importante dentro de uma escala regional ou nacional.
61Essas considerações são válidas de serem pensadas, porque fazem enxergar que essa lógica econômica, ou de defesas de interesses e poderio, também se faz presente nas várias instituições que cuidam das políticas públicas do país: leis, planos, intervenções, são criadas sem que seus redatores conheçam a realidade de cada lugar, as políticas em sua maioria são muito generalizadoras ou excludentes, e a vontade, o modo de vida, as identidades dos moradores acabam sendo apagadas.
62Esse olhar voltado apenas às áreas que ofereçam algum tipo de interesse, financeiro, comercial ou político, não pode ser justificativa para que em pequenos municípios, distritos ou povoados se deixe de pensar o que é melhor para sua população, porque todas essas áreas possuem diferentes potencialidades e tipos de riqueza, que muitas vezes não envolvem o material produtivo, mas o humano.
63As melhorias prometidas à população do distrito de Moçambo ainda não foram atendidas, em contrapartida à cobrança de impostos sim. Os interesses políticos visando uma maior arrecadação financeira para o município em uma nova área considerada urbana, se sobressaíram às necessidades de desenvolvimento do distrito.
64O que se percebe então, é que para transformações de intensidade socioespacial e cultural como essa específica do bairro rural Moçambo para distrito, não basta apenas a mudança legal, uma vez que a realidade mostrou que, embora os moradores não tenham apontado desvantagens nesse processo, também não se iludem com relação a melhorias locais. Na verdade, o que tudo indica é que eles querem infraestrutura de cidade, mas com modo de vida rural. Eis o velho dilema entre cidade e campo, urbano e rural, agora em um novo distrito.