Este trabalho faz parte das atividades de pesquisa da Rede CLIMA (sub-rede Desenvolvimento Regional), do Projeto ARTIMIX (Articulating policy mixes across scales & sectors to address adaptation to climate change challenges in vulnerable tropical agricultural landscapes – ANR-17-CE03-005), e do Projeto INCT/Odisseia (Observatório de Dinâmicas Socioambientais: Sustentabilidade e Adaptação às Mudanças Climáticas, Ambientais e Demográficas) do Programa Nacional de Institutos de Ciência e Tecnologia - Chamada INCT - MCTI/CNPq/CAPES/FAPs-n.16/2014). Agradecimentos à Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), à FAP-DF (Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal) e ao Ministério de Desenvolvimento Social (MDS) pelo apoio financeiro e parceria para a coleta de dados. Agradecimento especial aos técnicos de extensão rural e agências executoras do Cisternas pelo tempo despendido durante as entrevistas e acompanhamento ao campo.
1A ampliação do acesso à água tem sido o objetivo central das estratégias de desenvolvimento implementadas no Semiárido brasileiro. O paradigma de “convivência com o semiárido” emergiu como resposta à incapacidade das intervenções baseadas nas grandes obras de açudagem e transposição de bacias hidrográficas em reduzir a vulnerabilidade das populações rurais aos impactos da seca (Machado & Rovere, 2017). Tal paradigma foi consolidado a partir de um longo processo de aprendizagem e mobilização da sociedade civil que levou à formação da rede Articulação do Semiárido (ASA) nos anos 1990. Ele foi desenvolvido com base nas ideias de que os impactos da seca seriam agravados por fatores de ordem social e que seria possível viver e produzir no Semiárido a partir da manutenção da resiliência ambiental e de estoques de recursos a serem utilizados durante os períodos de escassez. O acesso à água passou a ser promovido segundo uma lógica descentralizada, caracterizada pela construção de cisternas de captação de água da chuva para consumo humano e atividades produtivas. Tal perspectiva foi institucionalizada como uma política pública do governo federal em 2003, com o estabelecimento do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC).
2O P1MC se insere em uma estratégia mais ampla de redução da pobreza e da insegurança alimentar, o Programa Fome Zero, que articula as ações sociais e de inclusão produtiva do governo federal (Lima, 2007; Nogueira, 2017). Coordenado pelo antigo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e executado pela ASA, o P1MC implementou iniciativas de formação, educação e mobilização de famílias rurais para construção de cisternas. Além das cisternas domiciliares de abastecimento humano (1ª Água), foram gradualmente consideradas outras tecnologias sociais para atender às diversas demandas de água para produção de alimentos (2ª Água), como cisternas modificadas e barragens, e outras para atendimento da demanda de água nas escolas (Santana et al., 2011). A disseminação de cisternas tem mostrado um papel catalizador na articulação de outros programas de desenvolvimento rural no Semiárido, o que justifica o foco deste artigo em tal estratégia.
3A partir do lançamento do Plano Brasil Sem Miséria (BSM), em 2011, o governo federal passou a promover a universalização do acesso à água nas zonas rurais, como base de sua estratégia de superação da extrema pobreza no país (Campos et al., 2014). A transversalidade do BSM abrangia a assistência técnica especializada, recursos de fomento, água e energia elétrica, além de apoio à comercialização por meio de compras públicas e privadas ao agricultor. Além de definir metas mais ambiciosas para instalação das tecnologias de 1a e 2a Água, o plano ressaltou a necessidade de se viabilizar uma ação mais coordenada do governo federal na redução da pobreza, um fenômeno multidimensional e multifacetado. O acesso à água foi inserido no eixo de inclusão produtiva do BSM por meio do Programa Água para Todos (APT), coordenado pelo Ministério da Integração Nacional (MI) e implementado por uma série de agentes públicos e privados. Tal mudança alterou o arranjo institucional de decisão e de disseminação de cisternas (Nogueira et al., 2020). Em 2013, o governo federal instituiu o Programa Nacional de Apoio à Captação de Água de Chuva e Outras Tecnologias Sociais de Acesso à Água (Programa Cisternas), implementado pelo MDS. Além do abastecimento humano, o Programa Cisternas buscou promover o acesso à água para produção alimentar por meio de cisternas produtivas (2ª Água). Vale notar que estas cisternas foram inicialmente disseminadas pela ASA, por meio do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), iniciado em 2007.
4Apesar de as políticas de acesso à água promoverem uma abordagem integrada com as políticas sociais, a multiplicação de arranjos institucionais e de programas com lógicas distintas de implementação tem aumentado o nível de fragmentação destas estratégias. Diferentes explicações são encontradas na literatura sobre as causas da fragmentação das políticas públicas. Uma primeira perspectiva mobiliza racionalidades administrativas, como as diferenças institucionais, dificuldades de comunicação, e falta de clareza sobre as competências de cada setor (Lundqvist, 2004; Reichardt & Rogge, 2016; Underdal, 1980). Por outro lado, uma série de estudos ressalta a necessidade de se analisar a incoerência entre políticas a partir dos processos de negociação entre grupos de interesse (Adelle & Russel, 2013; Allouche et al., 2014; Jordan & Lenschow, 2008; Reichardt & Rogge, 2016; Stevens, 2018). Segundo esta perspectiva, conflitos programáticos são considerados inerentes à ação pública intersetorial, e não apenas resultado de fragilidades administrativas (Weitz et al., 2017). O presente estudo baseia-se na segunda perspectiva e aborda a intersetorialidade como um processo político de coordenação entre programas e atores com diferentes percepções, interesses e práticas. Além disso, ele inova ao discutir o papel informal de gestores estaduais e técnicos extensionistas na coordenação de ações durante o processo de implementação dos programas.
5Para tanto, a análise combina os estudos sobre integração de políticas públicas com a literatura que discute a influência (e a discricionariedade) dos atores locais na implementação das políticas, ou burocratas de nível da rua (street-level bureaucrats) (Lipsky, 2010; Song, 2018). Lipsky (2010) argumenta que estes atores não apenas desempenham papéis-chave como implementadores, mas em muitas circunstâncias também agem como tomadores de decisão, influenciando os resultados da política. Além disso, os diferentes estratos burocráticos podem ter percepções distintas sobre as políticas, na medida em que vivenciam relações e desafios distintos no processo de implementação (Oliveira et al., 2019). Há uma série de avanços na compreensão sobre o papel dos burocratas de nível de rua na implementação de políticas de saúde (Lotta, 2014), educação (Novato et al., 2020) e sociais (Eiró, 2019) no contexto brasileiro. No entanto, a influência destes atores nos resultados das políticas de desenvolvimento rural ainda não foi discutida (Bonelli et al. 2019). Além disso, ainda que estudos recentes apontem para a influência da burocracia de médio escalão na promoção de intersetorialidade (Oliveira et al., 2019), o papel dos burocratas de nível da rua neste tipo de coordenação merece maior atenção em estudos sobre a integração de políticas públicas. O estudo preenche estas lacunas ao analisar a articulação do Programa Cisternas com outros programas de desenvolvimento rural no Semiárido.
6O texto está dividido em quatro seções. A introdução é seguida por uma seção que apresenta a metodologia utilizada e a localização do estudo. Foram entrevistados gestores federais, estaduais e municipais e técnicos envolvidos na implementação e execução do Programa Cisternas e outros programas de desenvolvimento rural no Semiárido. A terceira seção analisa criticamente os instrumentos de coordenação dos programas de redução da pobreza em nível federal. A quarta seção apresenta os mecanismos informais de articulação em nível local, considerando a percepção dos gestores federais do Programa Cisternas e o papel pragmático dos técnicos extensionistas na implementação e articulação dos programas. Discute-se ainda a importância do estabelecimento de espaços institucionalizados de coordenação territorial. As contribuições da pesquisa para os estudos sobre integração de políticas públicas são discutidas na conclusão do artigo.
7O estudo foi realizado em duas localidades do Semiárido brasileiro (Figura 1). Além dos impactos das secas recorrentes, as populações rurais da região enfrentam desafios relacionados à regularização fundiária e competição pelo uso da água para diferentes fins (energia, agricultura, abastecimento urbano, etc.) (Marengo et al., 2019; Milhorance, Mendes, et al., 2019). Entre 2012 e 2017, um longo período de estiagem causou impactos socioambientais e econômicos, como diminuição da produção agrícola, perda significativa de gado, e redução dos níveis em reservatórios de água utilizados para necessidades humanas, alimentação animal e geração de energia (De Nys & Engle, 2014). Neste contexto, a articulação das ações de disseminação de cisternas e outros programas rurais tem sido examinada como forma de reduzir as vulnerabilidades destas populações (Lemos et al., 2016; Milhorance et al., 2020). Os principais tipos de cisternas disseminados por estes programas são ilustrados na Figura 2.
Figura 1: Área de estudo no Semiárido brasileiro
Fonte: Carolina Milhorance, 2020
Figura 2 – Principais tipos de cisternas disseminadas pelos programas
Fonte: Patrícia Mesquita, Paulo Afonso – outubro/2017
8Um total de 59 entrevistas semiestruturadas foram realizadas em três etapas e municípios. A primeira etapa foi realizada nos municípios de Paulo Afonso, Juazeiro e Petrolina, nos estados de Bahia e Pernambuco (outubro de 2017 - outubro de 2018) enquanto a segunda foi realizada em Itapipoca, Santa Quitéria, Itatira e Quixeramobim, no estado do Ceará (setembro de 2018). Tais entrevistas foram realizadas pelos autores, em companhia de técnicos e/ou coordenadores de instituições responsáveis pela implementação dos programas analisados. Os questionários abordaram diversos temas, como mudanças patrimoniais, principais desafios enfrentados para a implementação, coordenação e conflitos entre instituições, situação da agricultura familiar na região, estratégias para a gestão das secas, processos de instalação de cisternas e impactos climáticos. A última etapa foi realizada em Brasília e consultou equipes gestoras do programa em nível federal e seus parceiros de execução (novembro de 2018). Além disso, documentos oficiais, como planos de governo e instrumentos de regulamentação dos programas, foram analisados de forma qualitativa.
9As políticas federais de combate à fome e à pobreza têm buscado promover uma abordagem intersetorial e integrada em sua elaboração e implementação. O programa Fome Zero favoreceu a coordenação das ações do governo federal para a segurança alimentar e nutricional, sendo a transversalidade e a intersetorialidade alguns de seus princípios fundadores (Tapajós et al., 2010). Em 2010, a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN) incorporou a promoção do acesso universal à água como uma de suas diretrizes e definiu como objetivo a articulação de programas e ações de diversos setores que promovam o direito humano à alimentação adequada (Decreto n° 7.272/2010). O BSM também incluiu em suas diretrizes a articulação de ações de garantia de renda com ações de melhoria das condições de vida, dentre elas a ampliação do acesso à água (Decreto n° 7.492/2011).
10Neste amplo arcabouço, uma série de instrumentos institucionais contribuiu para a coordenação de programas sociais. Estes incluem registros unificados de identificação do público alvo (como o Cadastro Único para Programa Sociais [CadÚnico] e o cartão magnético do Programa Bolsa Família [PBF]), espaços consultivos e deliberativos de coordenação (conselhos de segurança alimentar e nutricional nas três esferas de governo e comitês gestores interministeriais), e estratégias de articulação territorial, como o Programa Territórios da Cidadania, que visava aproximar as escalas administrativas e as organizações sociais, com o objetivo de integrar políticas públicas para reduzir as desigualdades (Reis, 2015). A transversalização do enfoque da segurança alimentar e nutricional, como por exemplo sua incorporação pelo Sistema Único de Saúde, são outros exemplos do esforço de integração de diferentes agendas de desenvolvimento social. Ainda assim, a capacidade de coordenação interministerial no que se refere ao conjunto de ações, metas físicas e recursos orçamentários permanece um desafio.
11No Programa Cisternas, o CadÚnico é um dos principais instrumentos de diálogo com outras estratégias de redução da pobreza e da insegurança alimentar. Gerido pelo próprio MDS, o cadastro é um instrumento de identificação e caracterização socioeconômica das famílias de baixa renda no país e tem sido utilizado como base informacional para o desenho de outros programas do governo federal. Este orienta a seleção dos beneficiários de uma série de programas, incluindo o Programa Cisternas, o PBF, o Programa de Fomento às Atividades Produtivas Rurais (Programa Fomento), e as ações de promoção da eletrificação rural, articulando uma rede de proteção social (Bartholo et al., 2010). O público alvo do Programa Cisternas são famílias da área rural com renda mensal de até meio salário mínimo por pessoa (ou até três por família), que se enquadrem nos critérios e elegibilidade do PBF. Portanto, ainda que o CadÚnico não seja condicional para a seleção das famílias que recebem as tecnologias de 2a Água, o MDS recomenda a coordenação dos gestores estaduais de ambos os programas para registrar ativamente as famílias ainda não incluídas no cadastro (Instrução Operacional 01/2009 Senarc/Sesan).
12Gestores federais do Programa Cisternas mencionaram o CadÚnico como instrumento de coordenação com o Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan), implementado pelo Ministério da Saúde, para a definição dos beneficiários das ações de fomento à produção agrícola (Programa Fomento) e de instalação de cisternas produtivas. Segundo um dos entrevistados, o Sisvan fornece um mapa da insegurança alimentar no país, utilizado para a priorização das famílias beneficiadas por ações de promoção da inclusão produtiva, incluindo a instalação de cisternas. No que se refere às cisternas de consumo, estes mesmos gestores mencionaram a tentativa de colaboração mais consistente com os agentes comunitários de saúde (ACS) para o monitoramento da qualidade da água armazenada nas cisternas. No entanto, estes objetivos não chegaram a ser alcançados, em razão de um envolvimento considerado insuficiente do Ministério da Saúde.
13Por fim, a criação do Programa APT em 2011 gerou mudanças na concepção e no arranjo institucional das ações do governo federal de promoção do acesso à água, dado o objetivo de ampliar significativamente a escala de disseminação de cisternas. Famílias em situação de vulnerabilidade não necessariamente registradas no CadÚnico foram incluídas. Neste contexto, houve uma ampliação do número de organizações executoras – e consequente pulverização dos recursos – e a diversificação de tipos de infraestrutura, incluindo cisternas de polietileno não produzidas localmente. Enquanto a operacionalização da construção das cisternas pelo P1MC era liderada pelas organizações da ASA, no Programa APT a operacionalização foi viabilizada pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) e pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), por meio de convênios com estados e licitação para contratar empresas privadas, nas quais duas multinacionais saíram vencedoras.
14Tais mudanças geraram críticas relacionadas à fragmentação das ações, sua menor capacidade de dinamização da economia local, além da inadequação da tecnologia priorizada às características produtivas da região (ASA, 2011; Pereira, 2016). Diante destes desafios, foi identificada a necessidade de atualização do modelo de contratação das entidades executoras, viabilizada por um novo marco legal para o Programa Cisternas (Lei n° 12.873/2013). Este buscou simplificar os processos de contratação e prestação de contas pelas organizações da sociedade civil. O Programa APT também foi atualizado. No entanto, dada a escala geográfica de implementação e a complexidade de seu arranjo institucional, os ajustes resultaram em uma bricolagem institucional - isto é, a elaboração de um ‘novo’ desenho metodológico inspirado em alguns componentes do P1MC, mas que na prática pouco guardou do seu conteúdo original e manteve baixo o nível de coordenação entre os dois programas (Nogueira et al., 2020).
15Este caso evidenciou diferenças políticas entre as próprias burocracias estatais e entre agentes executores. Segundo a literatura sobre a integração de políticas, divergências sobre as prioridades das políticas e suas estratégias de execução são os principais fatores de fragmentação institucional e programática, principalmente no que tange a programas de setores distintos (Biesbroek; Candel, 2019). Além destas, dificuldades operacionais também contribuem para os resultados de fragmentação, como será discutido a seguir.
16O Programa Fomento combina ações de acompanhamento social e produtivo e a transferência direta de recursos financeiros às famílias mais vulneráveis. Este programa é executado pela Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sesan), a mesma unidade que coordena o Programa Cisternas no MDS. As famílias selecionadas devem estar inscritas no CadÚnico e os recursos são repassados por meio da estrutura de pagamento do PBF. Além disso, as famílias a serem atendidas por instituições de assistência técnica devem possuir uma Declaração de Aptidão (DAP) ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), outro instrumento que atua como importante pré-requisito para uma série de programas de apoio ao desenvolvimento rural.
17Segundo os gestores consultados, o fato de os programas Cisternas e Fomento serem executados pela mesma secretaria favoreceu um esforço de articulação entre as duas iniciativas desde o lançamento do Programa Fomento. No entanto, as diferenças entre os procedimentos de execução dificultaram o alcance destes objetivos. Apenas em 2015 foi possível a elaboração de um edital que vinculasse a instalação de cisternas produtivas à prestação de assistência técnica e recursos para o desenvolvimento de projetos produtivos. Partia-se de uma lógica de complementaridade entre as iniciativas: acesso à água para consumo humano, seguido de acesso à água de caráter produtivo, de prestação de assistência técnica, e de transferência de renda para investimento em projetos produtivos. Definiu-se, por exemplo, que os beneficiários do Programa Fomento deveriam ser aqueles que tivessem acesso às cisternas produtivas ou a outra fonte de água para produção. Segundo um dos gestores federais:
“com a junção [do Programa Cisternas] com o Programa Fomento, a ideia é entregar a tecnologia e fazer o projeto de implementação e garantir assistência técnica por até um ano e meio. Às vezes [o beneficiário] recebe a tecnologia, mas se ele não tiver acompanhamento, se perde no caminho”. Com assistência técnica “a possibilidade que [os agricultores] tenham sucesso é maior. Passam a ser olhados por quem faz assistência técnica na região”.
18Trata-se, no entanto, de uma tentativa de integração ainda recente e com baixa cobertura, baseada em um projeto-piloto. De acordo com o entrevistado, alguns diagnósticos estão sendo executados para se avaliar os resultados deste esforço e os diferentes modelos de integração entre os programas.
19Por fim, observou-se dentro da própria Sesan uma percepção sobre a necessidade de se articular a distribuição de tecnologias sociais de abastecimento de água para produção com outras iniciativas de inclusão produtiva, principalmente no que se refere à comercialização dos produtos agrícolas. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) compram alimentos produzidos pela agricultura familiar, com dispensa de licitação, e os destina às pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional e às diversas instituições públicas como escolas e hospitais. Tais programas são considerados capazes de alavancar os resultados das ações de acesso à água para produção (Milhorance et al., 2019). Além disso, o PAA tem gerado impactos positivos na vida dos produtores do Semiárido (Mesquita & Bursztyn, 2016; Mesquita & Milhorance, 2019). De acordo com representantes da Sesan, o ideal seria estruturar um encadeamento de programas, garantindo que os produtos produzidos pelos agricultores atendidos pelos programas Fomento e Cisternas fossem fornecidos ao PAA e ao PNAE. Apesar de não haver ferramentas formais de articulação operacional entre estas iniciativas, tal coordenação vem sendo promovida de maneira informal em nível local, como será discutido na próxima seção.
20Apesar da percepção dos gestores entrevistados sobre a necessidade de se buscar a integração (e um encadeamento) entre as políticas sociais em nível federal, os mecanismos identificados de coordenação entre o Programa Cisternas e outros programas no âmbito da PNSAN e do BSM ainda são recentes ou pouco efetivos. Em se tratando de um processo de experimentação de parceria entre o governo federal e a sociedade civil (Piraux & Bonnal, 2011), tais dificuldades estiveram em parte relacionadas à estabilização do modelo de parceria (ex.: elaboração do projeto de execução, cotação dos itens utilizados em capacitações e material de construção, publicação de editais e formalização de contratos com entidades executoras). O novo marco legal do Programa Cisternas definiu a formalização de contrato de prestação de serviços com entidades privadas sem fins lucrativos credenciadas pelo MDS, a partir de edital de chamada pública e edital padronizado (com dispensa de licitação). A execução se daria por meio de tecnologias com metodologia e valor unitários padronizados (Santana & Arsky, 2016). Apesar dos objetivos de simplificação deste marco, a implementação do Programa Cisterna permaneceu complexa, envolvendo uma ampla rede de atores executores.
21Além disso, os recursos financeiros são notoriamente insuficientes para atingir os objetivos de universalização do acesso à água, principalmente no caso das cisternas produtivas. Observa-se, portanto, certo pragmatismo e autonomia dos atores locais na definição de critérios para ampliação e combinação dos benefícios. Neste contexto, os resultados da pesquisa indicaram que gestores municipais e técnicos de assistência técnica e extensão rural (Ater) têm mostrado um papel ativo na coordenação de instrumentos em nível local. A percepção de que a coordenação de fato entre os programas federais se dá em nível subnacional é compartilhada por diversos atores, inclusive gestores federais:
“Na minha interpretação é o governo [federal] que separa as coisas por tema: água, saúde, segurança alimentar e nutricional... Quando chega na ponta, o tempo [destes temas] é o mesmo. Eles estão em uma realidade só: as organizações, o conselho municipal, eles recebem todas as políticas e têm a percepção do município. As organizações que [garantem] ATER, água... elas fazem a junção porque estão na ponta. (...) quanto mais sobe [nos níveis governamentais], mais a articulação fica pouco concreta”
22A literatura sobre os burocratas de nível de rua discute o papel muitas vezes discricionário dos agentes locais na implementação das políticas públicas. Lipsky (2010) descreve a atuação de funcionários locais dos serviços públicos, professores, assistentes sociais, policiais, médicos, agentes de saúde e uma gama de atores em aspectos como a determinação de elegibilidade para a prestação de serviços. Este papel reforça os direitos de alguns cidadãos a bens e serviços públicos à custa de contribuintes gerais e daqueles cujas reivindicações foram negadas. Graus relativamente altos de discricionariedade e autonomia em relação à autoridade organizacional são as fontes de poder destes atores na tomada de decisão política. Muito do seu comportamento foi desenvolvido na forma de rotinas e simplificações para lidar com tarefas complicadas e com a insuficiência de recursos.
23No Semiárido brasileiro, os técnicos das entidades executoras mostram um papel ativo na definição de critérios de elegibilidade para diferentes programas (ATER agroecologia, cisternas produtivas, programas de comercialização), atuando como agentes diretos no processo de articulação em nível local (Milhorance et al., 2020). Há um protagonismo dos gestores e executores locais na tentativa mais concreta de juntar esforços e complementar as ações. Em alguns casos, o esforço se dá pela tentativa de selecionar beneficiários do Programa Cisternas para serem incluídos como público-alvo de outros programas. Este processo se dá por meio de diferentes mecanismos, que serão detalhados a seguir: i) orientação dos gestores municipais para combinação de ações consideradas complementares; ii) papel ativos de técnicos das entidades executores e de agentes de ATER na difusão de informações e apoio – muitas vezes informal – aos agricultores para participação em iniciativas correlacionadas; e iii) coordenação entre organizações locais e gestores nos conselhos municipais e colegiados territoriais.
24Uma estratégia que vem sendo observada ao longo dos anos tem sido a tentativa de gestores municipais em incluir o acesso às cisternas produtivas e de consumo como critérios para outros programas e projetos. Por exemplo, entrevistas indicaram que a ASA utilizou o mapeamento das cisternas produtivas como forma de seleção de beneficiários para um programa de ATER agroecológica. Na perspectiva dos gestores locais e dos técnicos das entidades executoras, o Programa Cisternas tem facilitado o acesso a outras políticas, como PAA, PNAE, Programa Fomento e outros programas estaduais de assistência técnica. Além disso, de acordo com um gestor entrevistado, o Programa Cisternas é considerado uma porta de entrada para outras políticas sociais e produtivas. Representantes das organizações executoras do Programa P1+2 em Pernambuco relataram a mesma experiência, tendo incluído oficialmente o PAA e o PNAE como oportunidades de comercialização no processo de elaboração dos planos de negócio do Programa Estadual de Apoio ao Produtor Rural (ProRural) (Milhorance et al., 2018).
25Iniciativas individuais também foram identificadas. Por exemplo, um gestor municipal do Programa Cisternas buscou financiamento específico do Programa de Microfinança Rural do Banco do Nordeste (Agroamigo) para os agricultores que receberam cisternas no estado de Alagoas. Outro entrevistado na Bahia destacou a tentativa de articulação com as ações da Superintendência Baiana de Assistência Técnica e Extensão Rural (Bahiater), ainda que de modo não-institucionalizado. Segundo este entrevistado, a articulação acontece em nível municipal dependendo da sensibilidade do gestor e dos secretários. No Ceará, o Programa Bioágua foi mencionado por ter selecionado apenas beneficiários que já possuíssem cisternas. Além disso, as entidades executoras deste programa direcionaram a organização de feiras semanais ao público beneficiado pelo Programa Cisternas.
26A necessidade de articulação entre as diferentes secretarias municipais constitui um importante desafio à coordenação intersetorial, que pressupõe o diálogo entre burocracias orientadas por diferentes referenciais, lógicas e modus operandi. De forma geral, a coordenação em nível municipal depende mais da capacidade relacional da burocracia do que da estrutura de atores que viabilize a articulação (Oliveira et al., 2019). No entanto, os resultados deste estudo mostraram a relevância das decisões dos gestores municipais em promover a coordenação entre programas. Segundo Lipsky (2010), gestores municipais apresentam certa autonomia na implementação das políticas públicas, ainda que em menor grau do que àquela dos atores posicionados na linha de frente, como os provedores de assistência técnica. Diferentemente dos extensionistas, a ação destes gestores é mais fortemente orientada pelos resultados dos programas. Ambos se comunicam em uma rede de implementação que extrapola as decisões normativas em nível federal e trata o processo de implementação como processo contínuo de elaboração e uma arena em que diferentes atores interagem e utilizam seus recursos (Song, 2018). Nesta rede, o papel dos conselhos locais é igualmente relevante e será discutido a seguir.
27Os técnicos extensionistas vinculados às entidades executoras da sociedade civil e da assistência técnica oficial dos estados também mostraram um papel relevante na articulação dos programas em nível local (Figura 3). Tal observação confirma os resultados de outros estudos, que mostraram como informações sobre as diferentes modalidades de crédito rural do Pronaf e sobre as regras de compra do PAA e do PNAE são difundidas por meio da assistência técnica. Em alguns casos, os programas de comercialização são incluídos nos projetos, elaborados pelos técnicos em conjunto com os produtores (Milhorance et al., 2019).
Figura 3 - Técnico extensionistas de entidade executora do Programa Cisternas
Fonte: Patrícia Mesquita, Petrolina, maio de 2019
28De acordo com gestores do Programa Cisternas, foram observados casos em que os agricultores produziam satisfatoriamente, porém não comercializavam seus produtos, um desafio que seria ultrapassado com o apoio da assistência técnica. No programa como um todo, mas especificamente na disseminação das cisternas produtivas, os técnicos desempenham um papel-chave devido à proximidade com os beneficiários durante os treinamentos obrigatórios. Entrevistas ilustram esta relação entre beneficiários e técnicos:
“Nas formações e nas assessorias técnicas foi construído com as famílias a importância do seguro safra, de que elas deveriam aderir ao seguro, junto às prefeituras, participar nos conselhos de desenvolvimento rural para cobrar das prefeituras a adesão ao seguro. Em alguns casos a gente elaborou o [projeto para o] Pronaf para que as famílias pudessem ter acesso ao crédito. Em outros casos, o acesso ao PAA e ao PNAE foram políticas que a gente lançou mão, no sentido de estimular e assessorar as famílias para garantir o acesso a essas políticas.”
29Outro ponto interessante neste contexto refere-se ao fato de o Programa Cisternas atuar como porta de entrada para a promoção de práticas agroecológicas, ainda que não
seja seu objetivo inicial, como ilustram as entrevistas com instituições executoras:
“Nós temos uma experiência muito interessante a nível de Semiárido como um todo, que foi as chamadas públicas de ATER para agroecologia. Nessas chamadas, as organizações que foram vencedoras dos lotes, aqui no Semiárido, essa foi uma das estratégias que nós montamos: trabalhar com aquelas famílias que já estão envolvias no processo de transição agroecológica [por meio do] P1+2. Ou seja, são famílias que já receberam a primeira água e passaram por todo processo de intercâmbio, de capacitação, formação e mobilização, depois receberam a 2a água com todo o processo de capacitação sobre gestão da água, sobre produção com sistemas de microirrigação, com intercâmbios para produção agroecológica e toda essa perspectiva. (...) Então a nossa expectativa é que estas famílias deem continuidade ao trabalho. (...) Isso assegurou para essas famílias todo um processo de assessoramento e acompanhamento técnico de continuidade daquilo que elas já tinham recebido na execução do projeto P1+2.”
30A mesma estratégia foi adotada por outras entidades executoras, como demonstrado por Milhorance et al. (2018). Por exemplo, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) lançou em 2014 um edital para prestação de assistência técnica agroecológica que não incluía ações de fomento. Uma das entidades executores em Pernambuco informou ter selecionado comunidades rurais que já haviam passado por formações de caráter produtivo durante a instalação de cisternas dos programas P1+2 e Pernambuco Mais Produtivo, o que facilitou o interesse destes produtores pelas práticas agroecológicas. Segundo relatos dos técnicos, a maior parte da produção fomentada com apoio da ATER agroecológica naquele momento era comercializada em feiras agroecológicas e por meio dos programas PAA e PNAE (Milhorance et al., 2018).
31No caso da agroecologia, mais do que uma estratégia individual e informal dos técnicos, o processo de articulação faz parte de um projeto político desenvolvido no âmbito da ASA e coordenado com a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Segundo um de seus representantes, “uma leitura no âmbito da ANA é essa perspectiva de que as chamadas de ATER para agroecologia foram contribuindo para a convergência de políticas públicas de desenvolvimento do território”. A ATER agroecológica tem o potencial de incluir discussões ainda mais amplas de caráter global. Foram citados casos em que as práticas de assistência técnica foram desenvolvidas tendo-se em mente as políticas nacionais de desertificação e de mudanças climáticas. Outros estudos também têm salientado sua importância, bem como das práticas agroecológica, diante de um contexto de mudanças ambientais e globais (Altieri & Nicholls, 2017).
32No caso do Programa Fomento, entrevistas indicaram que os técnicos articulam as políticas sociais e de inclusão produtiva e apoiam as famílias atendidas na elaboração dos projetos produtivos. O potencial de sinergia de um arranjo integrado entre os programas Cisternas, Fomento e de ATER foi mencionado por entrevistados, que assinalaram a inviabilidade de se apoiar ações no Semiárido que não incluíssem um componente de acesso à água.
33Vale notar que no caso do Programa Cisternas, a assistência técnica e os treinamentos para construção das cisternas e manutenção da qualidade da água são incluídos no desenho metodológico do programa, o que garante não apenas maior apropriação das tecnologias sociais e práticas agrícolas pelos beneficiários, como o potencial de articulação com outros programas devido ao envolvimento de longo prazo dos técnicos junto aos agricultores. Já no âmbito do Programa APT, cisternas de polietileno são distribuídas por outros operadores, incluindo atores privados. Neste programa, a componente de treinamento para construção e manutenção das cisternas e organização social está ausente. Neste cenário, além das críticas inicialmente levantadas no que se refere à sua menor capacidade de promoção das estratégias de convivência com o Semiárido e inadequação da tecnologia escolhida às características produtivas da região, reduz-se o potencial de coordenação em nível local com outros programas sociais. A tecnologia é entregue aos beneficiários, não havendo nenhum tipo de envolvimento ou treinamento sobre seu uso.
34Por outro lado, a extensão rural pública tem recursos humanos ainda mais escassos diante da demanda. Soma-se a isto a insuficiência de recursos financeiros para transporte até às comunidades. Neste contexto, a discricionariedade do técnico na definição da cobertura de sua atuação é ainda maior, sendo muitas vezes influenciada pelo grau de acesso destes técnicos aos agricultores e sua relação com as lideranças locais.
35Além do papel dos técnicos extensionistas e gestores municipais, destaca-se a importância dos conselhos municipais de desenvolvimento rural e dos colegiados territoriais na integração de uma série de ações em nível local. Estes contribuem para o estabelecimento de plataformas de coordenação de atores no território e de articulação das iniciativas de inclusão produtiva (assistência técnica, fomento e apoio à comercialização) com as de construção de infraestruturas de garantia da segurança hídrica (Milhorance et al., 2018). De acordo com relatos de técnicos entrevistados, todas as políticas com incidência territorial passam de alguma forma pelos conselhos, cujos membros têm uma percepção abrangente do município. Em Pernambuco, foi mencionado o fato de o Programa Cisternas contribuir para reforçar e empoderar o conselho municipal e os colegiados territoriais como uma instância de debate de políticas públicas.
36A criação de conselhos locais baseia-se na abordagem de desenvolvimento com enfoque territorial que, segundo parte da literatura, respalda-se na ideia de que os territórios são espaços de coordenação entre atores e que dimensionam os laços de proximidade entre agentes sociais nas iniciativas voltadas para o desenvolvimento (Bacelar, 2010; Caron, 2017). Concretamente, dada sua ancoragem no segmento rural constituído por agricultores familiares, a essência setorial das políticas territoriais no Brasil não chegou a ser ultrapassada (Echeverri, 2010). Estudos mostram que há mais justaposição do que integração de políticas públicas nos territórios (Lotta & Favareto, 2016). No entanto, a importância destes mecanismos para a coordenação das ações em nível local, ao menos na área de desenvolvimento rural, vem sendo demonstrada. Segundo técnicos do Programa Cisternas, um projeto executado com 1.500 famílias no sertão do Pajeú buscou articular um conjunto de outras iniciativas que incidiam no território, contribuindo para fortalecer uma perspectiva regional.
37Além disso, os conselhos contribuem para assegurar maior estabilidade e transparência ao trabalho dos burocratas de nível de rua, uma vez que torna público o direcionamento de alguns programas para determinadas regiões ou comunidades. Por exemplo, as cisternas de abastecimento humano têm a prerrogativa de universalização, enquanto as cisternas de produção não. Apesar de o acesso à água ter sido incorporado como um componente básico do direito humano à alimentação adequada, os recursos financeiros disponibilizados não foram suficientes para o alcance do objetivo de universalização até o presente momento. Neste contexto, a definição das regiões e comunidades beneficiárias baseia-se em métricas objetivas, como o mapa de insegurança alimentar e o perfil do público alvo estabelecido em decreto (9.606/2018). No entanto, também são usados critérios subjetivos, como o potencial produtivo das famílias.
38Lotta (2018) em um estudo sobre burocratas de nível de rua na área da saúde, demonstrou que a atuação discricionária dos ACS é altamente influenciada por suas trajetórias profissionais e perfil relacional com a comunidade onde eles trabalham e residem. Desta forma, os resultados da implementação das políticas podem ser parcialmente explicados pelas relações estabelecidas por esses burocratas. Nesse sentido, outro estudo demonstrou que beneficiários do PBF estão sujeitos aos julgamentos dos assistentes sociais para manutenção do seu cadastro no Programa. Esse julgamento de valor pessoal ultrapassaria às normas do PBF, que deveriam ser baseadas no perfil do beneficiário e outras condicionalidades. Deste modo, o direito social estaria sendo comprometido (Eiró, 2019). Portanto, os valores pessoais dos burocratas podem limitar a expansão dos potenciais benefícios dos programas sociais e por isso há de se considerar esses julgamentos na implementação de políticas públicas.
39O fortalecimento de conselhos locais como espaços de coordenação tem o potencial de garantir maior transparência à alocação de benefícios públicos e reduzir os efeitos negativos deste exercício de discricionariedade. Entretanto, estes conselhos têm enfrentado cortes orçamentários desde 2016 e muitos foram inviabilizados (Sabourin et al., 2020). Por fim, se por um lado este exercício pode levar a um processo de exclusão de alguns indivíduos, por outro lado, pode ser visto com uma capacidade de adaptar as políticas públicas às demandas locais, integrando as ações de maneira pragmática. Para avaliar como estas interferências acontecem na prática, é preciso considerar a dimensão da agência e dos julgamentos dos burocratas como elementos centrais no desenho, na análise e na gestão das políticas que pretendem promover a inclusão social e podem ser influenciadas por esses atores (Pires et al., 2018).
40O Programa Cisternas vem percorrendo um longo caminho de aprendizados e reformulações desde o seu lançamento como programa de governo em 2003. Desafios de implementação mostraram a necessidade de adaptá-lo em diversas das suas etapas, assim como ocorre em qualquer estratégia que abarque uma ampla área geográfica e objetivos ambiciosos como a promoção do acesso à água e a redução da pobreza. A perspectiva de multidimensionalidade da pobreza requer estratégias integradas que combinem ações de inclusão produtiva, comercialização, produção sustentável, segurança alimentar e acesso à água. Dentre os diversos desafios, a articulação do Programa Cisternas com outros programas sociais e de inclusão produtiva permanece limitada, apesar da ambição de fortalecimento da intersetorialidade, reiterada desde o estabelecimento do Programa Fome Zero até o lançamento do Plano Brasil Sem Miséria. Uma série de instrumentos de coordenação têm sido promovidos no âmbito nacional, porém seus resultados ainda são incipientes ou pouco efetivos.
41O estudo trouxe uma contribuição para este debate, ao discutir o papel dos gestores municipais e técnicos extensionistas no processo - muitas vezes informal - de articulação de programas e atores em nível local. Muitos destes atores definiram a participação das famílias rurais no Programa Cisternas como requisito informal para a participação em outras estratégias de assistência técnica, fomento, compras públicas, crédito, dentre outros. Se, por um lado, tal abordagem pode contribuir para alavancar os impactos do programa, por outro, existe o risco de se concentrar benefícios e excluir não-participantes do processo de desenvolvimento rural a partir de critérios subjetivos.
42Neste contexto, o conceito de burocratas de nível da rua mostrou-se útil para a análise dos resultados da implementação de estratégias intersetoriais. Enquanto a maior parte da literatura tem mostrado as contribuições deste conceito para a avaliação das políticas públicas de forma individual, este estudo enfatiza um aspecto menos abordado que é a sua contribuição para analisar a coordenação entre programas durante o processo de implementação. Foi discutida a influência, em certos casos discricionária, destes burocratas sobre o processo político e sobre a escolha os beneficiários. Além disso, foi possível articular as dimensões institucionais/ administrativas do processo de integração de políticas públicas com os mecanismos de tomada de decisão sobre sua implementação. O estudo mostra que a integração horizontal ou vertical de políticas públicas requer um exercício constante de construção durante a execução dos programas.
43Portanto, o nível de influência e a percepção dos atores locais sobre as decisões operacionais deve ser considerada no desenho, na análise e na gestão das políticas sociais de forma geral. Além disso, uma estratégia de redução da pobreza rural com base no fortalecimento de espaços locais de coordenação e, sobretudo com base em uma abordagem de garantia de direitos tem o potencial de mitigar os riscos de exclusão discricionária de beneficiários. Logo, em um cenário de mudanças climáticas, com previsão de aumento de períodos de escassez hídrica no Semiárido brasileiro, e especialmente diante dos recentes cortes orçamentários dos programas sociais, deve-se atentar cada vez mais para estratégias não-excludentes e com potencial de complementaridade, que garantam um maior impacto no longo prazo.