1No Brasil, a moradia popular tem sido produzida de diferentes maneiras ao longo do tempo, ainda que algumas características permaneçam e diversos tipos coexistam. Das casas de aluguel e cortiços localizados nas áreas centrais das cidades, bastante comuns nas primeiras décadas do século XX, desenvolveram-se as formas de autoconstrução nos loteamentos periféricos, a partir da década de 1940, até a produção dos conjuntos e condomínios populares implantados através dos programas habitacionais, desde os anos de 1960, intensificada na última década. Em conjunto a essas formas produzidas no âmbito do mercado formal, não menos importantes para a provisão de moradia das pessoas com menores rendimentos estão as favelas e os loteamentos clandestinos e irregulares.
2No entanto, apesar dos inúmeros tipos de moradia popular produzidos formal e informalmente, o presente texto se debruça sobre o que se refere aos condomínios populares, em especial, os horizontais fechados. Nos últimos anos, esse tipo tem se sobressaído em algumas cidades brasileiras pela quantidade de empreendimentos implantados e por tentar se diferenciar comercialmente dos tradicionais projetos vinculados a programas habitacionais, mesmo que seja totalmente dependente deles e que reproduza inúmeras de suas características.
3Nessa perspectiva, os condomínios populares horizontais fechados são um produto imobiliário criado por incorporadores e construtores que, embora o produzam no âmbito de programas habitacionais, sobretudo o Minha Casa Minha Vida, e que, por isso, são destinados para um segmento muito específico (popular, econômico), buscam, muitas vezes, fazer referências a modelos habitacionais desenvolvidos originalmente para pessoas de maior poder aquisitivo. Ao ideal da casa própria, procura-se se somar os de segurança, lazer e liberdade, por exemplo, como supostos diferenciais de tais empreendimentos em comparação a outros.
4Condomínios desse tipo têm sido produzidos em algumas cidades da Região Metropolitana de Curitiba (Paraná/Brasil), principalmente naquelas de maior integração metropolitana e que ainda possuem áreas com o preço do metro quadrado não tão elevado. Dentre elas, destaca-se Fazenda Rio Grande, que há décadas vem apresentando elevado crescimento populacional associado à produção e à oferta de empreendimentos residenciais populares. Se desde o final da década de 1970 Fazenda Rio Grande se caracterizava pela produção de loteamentos para a autoconstrução, nos últimos anos, com o desenvolvimento do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), as casas em condomínio horizontal têm se sobressaído nessa cidade, por isso, sua abordagem no presente texto (Mapa 1).
Mapa 1 – Localização de Fazenda Rio Grande (Paraná/Brasil)
5A importância dessa alteração não fica restrita à tipologia dos empreendimentos residenciais, mas também implica na transformação da paisagem, na expansão metropolitana e em mudanças no próprio cotidiano da população. Diante disso e a partir da análise de Fazenda Rio Grande, o presente texto tem como objetivo principal compreender algumas transformações espaciais decorrentes da inserção e expansão dos condomínios populares horizontais fechados na periferia metropolitana. A opção por essa cidade se justifica na medida em que é uma das que mais apresentam empreendimentos desse tipo na Região Metropolitana de Curitiba, o que tem favorecido consideravelmente a expansão metropolitana.
6Para atingir o objetivo e apresentar informações sobre este tipo de produto imobiliário, o texto foi construído tendo como base atividades de campo realizadas em condomínios da cidade, análise de materiais publicitários, levantamento de legislação urbanística, mapeamento dos condomínios e entrevistas com moradores. Esse último tipo de informação permitiu constatar as alterações no cotidiano da população, enquanto que os demais favoreceram a compreensão a respeito das características e transformações espaciais decorrentes da implantação dos condomínios populares horizontais fechados em Fazenda Rio Grande.
7Este texto divide-se em duas partes além dessa introdução e das considerações finais. Na primeira, apresentam-se elementos para compreender a produção dos condomínios fechados na periferia, aqui considerada como as áreas mais carentes de infraestrutura e serviços e ocupadas predominantemente por pessoas de menor renda. Na segunda, indicam-se as características desse tipo de produto imobiliário, em Fazenda Rio Grande, e os impactos relativos à sua inserção.
8De um modo geral, os condomínios fechados podem ser definidos como empreendimentos imobiliários que possuem basicamente as seguintes características: acesso controlado ao seu interior, espaço coletivo (ruas, calçadas, áreas de lazer, etc.) privatizado, forma jurídica da copropriedade (Goix, 2006). Outras características podem ser acrescentadas conforme o empreendimento ou a sua localização, destacando-se, em várias situações, a existência de amplas áreas verdes e os investimentos consideráveis em segurança (Caldeira, 2011).
9Muitos trabalhos têm se dedicado a discutir e analisar esse tipo de empreendimento, tais são os casos de Goix (2006), a respeito das comunidades fechadas (gated communities) na região metropolitana de Los Angeles, nos Estados Unidos; Caldeira (2011), sobre os enclaves fortificados na cidade de São Paulo, Brasil; ou ainda, Roitman (2003), com os bairros fechados (barrios cerrados) na área metropolitana de Mendoza, na Argentina, apenas para citar alguns exemplos. Essas análises, além de demonstrarem os aspectos relacionados à implantação dos empreendimentos, evidenciam dois outros elementos essenciais dos condomínios fechados: o perfil dos compradores dos imóveis e a segregação decorrente.
10Conforme demonstram essas pesquisas, grande parte dos empreendimentos se destina aos segmentos da sociedade com rendimentos alto ou médio-alto, o que favorece a conformação de ambientes socialmente homogêneos. Os que moram nos condomínios fechados optam por viver em locais com pessoas do mesmo grupo social e distante das interações cotidianas existentes na cidade. A difusão desse tipo de empreendimento residencial implica na separação das pessoas no espaço de acordo com suas possibilidades econômicas e seus hábitos de consumo (Sposito, 2004), acentuando a segregação urbana já existente.
11Ainda que os condomínios fechados possam ser horizontais e/ou verticais, salienta-se que os primeiros, quando destinados aos segmentos da sociedade com rendimentos mais elevados, se caracterizam por ofertar residências espaçosas, amplos terrenos, áreas verdes e equipamentos de lazer e de uso coletivo. Geralmente se localizam distantes das áreas centrais, pois é em tais locais que há a existência de terrenos mais amplos com preços menores (uma característica considerada por incorporadores), além da vegetação que é utilizada como um diferencial de valorização. Dada essas características, a disseminação desse tipo de empreendimento tem implicações diretas na expansão urbana, na valorização diferenciada da terra e, em certos casos, na mudança de legislação urbanística. Não são raros os casos no Brasil em que a legislação foi alterada para que tais empreendimentos pudessem ser implantados.
12A lucratividade deste tipo de empreendimento já foi discutida em vários trabalhos desenvolvidos no Brasil. Tais são os casos de Koch (2008) para Porto Alegre, Santos e Amora (2015) a respeito de Fortaleza ou ainda Mendes (2018) sobre Belém, apenas para citar alguns. Nesses, e em outros estudos, demonstra-se como a incorporação de novas áreas, geralmente mais distantes, associada ao discurso de segurança, ao uso de amenidades e à disseminação de modelos de moradia definidos como diferenciados e exclusivos, torna lucrativos esses empreendimentos. Ainda que os condomínios, por toda a infraestrutura associada, tenham um custo elevado de produção, isso é compensado pelo menor preço da terra urbana (haja vista sua localização), pela especulação e pelo elevado preço da mercadoria final. Entende-se que se tais produtos imobiliários não fossem lucrativos, não teriam se disseminado em inúmeras cidades brasileiras, das metrópoles às cidades médias.
13Além do discurso da segurança, utilizado por incorporadores imobiliários como um diferencial dos condomínios horizontais fechados (mesmo que tais empreendimentos também apresentem situações de conflitos, crimes e violência), outro aspecto é o da vinculação desse tipo de empreendimento a um pretenso símbolo de status social (Caldeira, 2011). Em razão disso, os condomínios fechados são vendidos como um símbolo de diferenciação social e é por isso que sua produção, cada vez mais, não tem ficado restrita aos segmentos da população com renda elevada, disseminando-se para outros estratos. Valores e modelos de habitação pensados originalmente para um grupo social são difundidos para outros em uma evidente estratégia de reprodução do capital imobiliário por meio da disseminação de ideologias.
14Isso se torna claro quando se constata que crescentemente os condomínios horizontais fechados não são produtos imobiliários exclusivos e voltados unicamente para a população de renda mais elevada. No Brasil, nos últimos anos, esse modelo de habitação tem sido disseminado para outros estratos de renda, da média à baixa, sendo sucessivamente transformado, alterado, adaptado e reduzido. Diminuem-se as áreas privativas e comuns, reduzem-se as áreas de lazer, adensam-se as áreas construídas, simplificam-se os projetos arquitetônicos, alteram-se os materiais construtivos, de modo que o condomínio fechado passou a se configurar como um produto imobiliário de grande lucratividade para empresas construtoras e incorporadoras, inclusive as que se dedicam aos segmentos popular/econômico.
15Para tanto, entende-se que foi fundamental o desenvolvimento do PMCMV, na medida em que o programa, pelo modo como foi elaborado, permitiu a produção habitacional em grande escala e para vários estratos de renda. Criado em 2009, através da Lei Federal n. 11.977, o PMCMV é segmentado por modalidades e faixas de renda. Dentre as modalidades, a com maior quantidade de moradias produzidas é a PMCMV-Empresas, na qual o financiamento, o subsídio e os juros praticados se relacionam com a renda do adquirente. Atualmente são quatro faixas de renda, sendo que somente a primeira é voltada para a população com menores rendimentos (renda mensal de até R$ 1.800,00). A produção de moradias para essa faixa está condicionada à contratação por municípios e Caixa Econômica Federal (CEF), baseada em cadastros municipais de demanda por habitação. Nesse caso, a quantidade, o tamanho e a localização serão definidos pelos órgãos públicos; a empresa contratada irá produzir conforme o contrato estipulado, repassando o empreendimento à CEF, instituição que, junto com o município, procederá a todas as demais etapas.
16No entanto, nas demais faixas, ainda que haja a atuação da instituição bancária na liberação de crédito para produção e aquisição e fiscalização dos empreendimentos, a contratação é realizada diretamente entre empresa responsável pelo empreendimento e comprador. Isso garantiu liberdade para incorporadores e construtores produzirem conforme seus interesses, pois, observando-se os tetos de financiamento, os padrões construtivos mínimos requeridos e as legislações municipais, escolhem a localização, o projeto arquitetônico, o tamanho dos imóveis e o tipo de empreendimento (casas unifamiliares, blocos de apartamentos, etc.).
17Nessa perspectiva, tem se destacado em algumas cidades brasileiras os condomínios horizontais fechados como um tipo de empreendimento desenvolvido no âmbito do PMCMV (nas faixas 1,5 a 3), mas que busca referenciais de habitação em outros modelos. Em muitos casos, procura-se desvincular a imagem desses projetos dos tradicionais conjuntos produzidos por programas habitacionais, trazendo o discurso da segurança, da liberdade, da qualidade de vida, etc. (Figura 1), ainda que, como se demonstrará no próximo item deste texto, pouco se tenha de diferente, a não ser os muros no entorno do empreendimento.
Figura 1 – Anúncios publicitários de condomínios populares horizontais fechados em Fazenda Rio Grande (Paraná/Brasil)
Fonte: Folhetos de propaganda distribuídos em feirões de imóveis (Curitiba/2017 e Fazenda Rio Grande/2018)
18Se nos casos dos empreendimentos de padrão elevado áreas mais distantes são requeridas, no caso dos condomínios populares horizontais fechados a localização é um fator essencial, pois é ela que determinará o preço da terra e a viabilidade do projeto. Nesse sentido, a implantação desses empreendimentos, sobretudo os de maior porte, tem ampliado as áreas urbanas e metropolitanas ao incorporar novas porções ao espaço construído. Em razão do preço da terra ser um elemento primordial, isso ocorre em áreas distantes e com uma série de problemas em relação à infraestrutura e serviços essenciais, mormente nas periferias urbanas e metropolitanas. Vale lembrar que, em se tratando de empreendimentos populares, os moradores são altamente dependentes da cidade e dos seus serviços. Como afirma Caldeira (2011), as pessoas mais pobres não querem deixar a cidade e tudo o que ela oferece, pelo contrário, querem fazer parte da sociedade urbana e serem incorporadas a ela. Nesse caso, por mais que o discurso relacionado aos condomínios horizontais fechados seja assimilado e favoreça a escolha por esse tipo de empreendimento, o cotidiano impõe uma realidade bastante distinta.
19As contradições decorrentes dessa adaptação e redução de modelo de moradia também são evidenciadas nas propagandas dos condomínios populares horizontais fechados. Ao mesmo tempo em que se exaltam os discursos da qualidade de vida, da segurança, etc., tal como já citado, do mesmo modo é destacada a proximidade dos empreendimentos em relação a escolas, unidades de saúde e/ou pontos de ônibus, etc., além de referência explícita à obtenção da casa própria e da possibilidade de fim do aluguel, por meio do financiamento através do PMCMV. Aos símbolos de status (propriedade, transporte individual) se somam as demandas da população que vive na periferia, geralmente não atendidas plenamente, na medida em que infraestrutura e serviços são muitas vezes deficitários (poucos horários de ônibus, escolas próximas às residências somente para alguns níveis de ensino, etc.).
20Por fim, compreende-se que a disseminação dos condomínios populares horizontais fechados se relaciona, além da adaptação e redução de modelos pensados originalmente para a população com estratos mais elevados de renda e existência de financiamento, à versatilidade construtiva deste tipo de empreendimento. Por mais que se destaquem os condomínios maiores, em grande parte responsáveis pela expansão urbana/metropolitana em áreas periféricas, não são incomuns aqueles com uma quantidade menor de casas. Nesse sentido, incorporadores e construtores podem desenvolver projetos tanto em áreas grandes quanto em menores, dependendo da oferta de terras, bem como da quantidade de capital disponível para investimento. Tal situação não é exclusiva de áreas com características metropolitanas e ocorre em outras porções do país. Em trabalho sobre Feira de Santana, na Bahia, por exemplo, Macário (2013) evidencia a representatividade dos pequenos condomínios fechados no total produzido na cidade, sobretudo em bairros mais consolidados.
21Os empreendimentos menores, ainda que se localizem geralmente em áreas urbanas um pouco mais consolidadas e, por isso, com preços da terra urbana mais elevados, permitem não somente que pequenos incorporadores e construtores desenvolvam este tipo de empreendimento, mas também que outras frações de capital invistam no imobiliário. Embora o presente texto não tenha o objetivo de discutir a Economia Política relacionada à produção dos condomínios, é necessário ressaltar, assim como demonstrou Lefebvre (2008), que para o imobiliário podem afluir outras frações de capital, seja em momentos de crise do circuito produção-consumo, seja como meio de investimento especulativo em momentos de crescimento do setor. Assim, no período de maior produção do PMCMV (de 2009 até aproximadamente 2014), não foram raros os investimentos realizados por advogados, médicos e outros profissionais na produção de moradias em condomínios residenciais menores, fato que contribuiu para a expansão deste tipo de empreendimento nas periferias urbanas e metropolitanas.
- 1 Atualmente são 29 municípios integrantes.
22Fazenda Rio Grande faz parte da Região Metropolitana de Curitiba (RMC) desde 1990, ano em que a sua criação foi aprovada, através da emancipação de Mandirituba, naquele momento, um dos catorze municípios integrantes da RMC1. Ainda que a emancipação de Fazenda Rio Grande seja relativamente recente, sua integração com a metrópole de Curitiba é anterior a isso, afinal, desde o final da década de 1970 já havia se iniciado a implantação de loteamentos populares nesta localidade. Distante a aproximadamente trinta quilômetros do centro de Curitiba, Fazenda Rio Grande mostrou-se como uma alternativa de moradia economicamente mais viável para a população que trabalhava na capital, mas não possuía rendimento suficiente para morar nela.
23Dessa forma, a partir de então, em Fazenda Rio Grande, se estruturou um mercado imobiliário pautado na produção e comercialização de terrenos em loteamentos populares. Embora se tratassem de empreendimentos comercializados no mercado formal, possuíam inúmeros problemas, tais como precariedade de infraestrutura e carência de serviços básicos, resultado da omissão e conivência de determinadas gestões municipais, bastante interessadas na ocupação urbana da área. É importante destacar que, ao final da década de 1970, uma série de elementos convergiram para que Fazenda Rio Grande apresentasse elevado crescimento populacional, dentre os quais se destacam, além do interesse municipal, a disposição de empresas loteadoras em produzir uma nova área de expansão urbana periférica e o intenso fluxo migratório para a região de Curitiba de uma população de baixos rendimentos, expropriada de seus meios de sobrevivência no meio rural.
24Assim como em outras partes do Brasil, a obtenção do terreno se relacionava à possibilidade de parcelamento de seu preço direto com as empresas loteadoras e a provisão da moradia ocorria através do sistema de autoconstrução. Nesse sistema, tal como demonstra Maricato (1982), a construção da casa fica sob responsabilidade dos moradores, que, com ajuda de amigos e/ou familiares, trabalham em finais de semana e horas de folga nesta atividade.
- 2 As taxas de crescimento das populações total e urbana de Fazenda Rio Grande são as seguintes, respe (...)
25O fato é que, desde o final da década de 1970, Fazenda Rio Grande apresenta elevadas taxas de crescimento populacional, geralmente situando-se entre as maiores da RMC, grande parte sendo resultado da estruturação de um mercado formal de moradias populares2. A produção de loteamentos perdura até os dias atuais, no entanto, diminuiu sua velocidade com a criação e implementação do PMCMV, a partir de 2009. Desde então, passou a se destacar a produção e comercialização de moradias já concluídas, obtidas através de financiamento bancário. Essas moradias são produzidas em áreas condominiais, as quais podem conter de duas a várias centenas de unidades habitacionais.
26Para os moradores, a obtenção da moradia pronta mostra-se mais viável do que a de um terreno, pois evita a necessidade de se dedicar à construção da casa e todas as atividades correlatas que demandam tempo, energia, conhecimento. Representa a possibilidade de obter uma casa concluída que vai demandar apenas algumas adaptações ou modificações em sua planta original para se adequar, mesmo que minimamente, às necessidades de seus moradores. Nesse sentido, o tempo dispendido com obras será muito menor, podendo os moradores o utilizarem para a realização de outras atividades.
27No contexto da RMC, Fazenda Rio Grande é a terceira com maior quantidade de moradias contratadas no âmbito do PMCMV, com 17,1% do total, ficando atrás somente de Curitiba (26,9%) e São José dos Pinhais (17,4%), cidades de maior porte e diversidade de atividades econômicas. Salienta-se que, se se consideram somente os empreendimentos da faixa 2 (a que tem subsídios e a contratação é realizada diretamente entre comprador e incorporador), o percentual de Fazenda Rio Grande se eleva para 20,7% do total da RMC, atrás apenas de Curitiba (22,9%). Vale destacar a relevância dos empreendimentos desta faixa, pois eles representam 86,1% de tudo o que foi produzido no âmbito do PMCMV até fevereiro de 2020 em Fazenda Rio Grande (MDR, 2020). Isso evidencia dois aspectos importantes da produção de moradias nessa cidade. Primeiramente, a produção do espaço urbano continua vinculada à ação de promotores imobiliários, afinal, a faixa 2 possibilita um forte protagonismo de construtores e incorporadores. Em segundo, a cidade, através deste novo produto imobiliário, amplia sua relevância como um importante vetor de expansão urbano-metropolitana na RMC, caracterizado pela produção de moradias voltadas ao segmento popular.
- 3 Por uma questão metodológica, a pesquisa considerou somente os condomínios com dez ou mais unidades (...)
28Em relação à essa expansão urbano-metropolitana que ocorre em Fazenda Rio Grande, é necessário explicitar uma particularidade. Nos outros dois municípios da RMC com maior quantidade de unidades contratadas pelo PMCMV, destacam-se os empreendimentos multifamiliares (apartamentos). As pesquisas desenvolvidas por Martins (2020) e Santos (2020) atestam essa característica e evidenciam uma parte da RMC em que a verticalização tem um papel importante na estruturação do espaço metropolitano. Diferentemente, em Fazenda Rio Grande, sobressaem-se os empreendimentos unifamiliares (sobretudo casas), demonstrando a relevância da ocupação horizontal nessa porção da RMC. Do total de 237 condomínios com dez ou mais unidades3, 91,6% eram unifamiliares. Se se leva em conta a quantidade total de unidades em condomínios (14.777), 87,5% delas estavam em empreendimentos horizontais/unifamiliares.
29Uma das consequências desse tipo de produção habitacional, em Fazenda Rio Grande, é a conformação de uma paisagem que, cada vez mais, torna-se homogeneizada. Ainda que aqui o sentido atribuído por Lefebvre ao termo de homogeneização seja muito representativo para explicar o processo, afinal, a produção do espaço lhe atribui um valor de troca que permite que suas partes sejam intercambiáveis (Lefebvre, 2008), do mesmo modo, pode-se atribuir o sentido da padronização das formas. Se antes, com os loteamentos e a autoconstrução, havia uma diferenciação entre as construções das moradias, com o desenvolvimento de um mercado de casas prontas e em grande escala, passou a imperar a padronização. Os projetos arquitetônicos são muito similares entre si, mesmo quando se tratam de empreendimentos distintos e/ou de empresas diferentes. Como os empreendimentos são voltados para uma população de menores rendimentos, empresas construtoras e incorporadoras procuram reduzir todos os custos e isso inclui economia em todas as etapas de construção, inclusive no projeto. O resultado é a produção de moradias muito parecidas, conforme pode ser observado na Figura 2, tornando-se isso ainda mais evidente com os empreendimentos de grande porte.
Figura 2 – Padronização arquitetônica dos condomínios populares horizontais fechados em Fazenda Rio Grande (Paraná/Brasil)
Fonte: Patricia Baliski / arquivo pessoal (2017)
30A redução de custos na produção de moradias do mesmo modo envolve a diminuição do tamanho das casas. Mesmo que existam casas um pouco maiores, predominam as que possuem, em média, 42 m². Isso implica também na padronização da disposição interna dos cômodos, afinal, a metragem reduzida não permite grandes diferenciações entre projetos de empresas ou empreendimentos distintos. O resultado é a produção de moradias muito parecidas tanto por fora quanto por dentro.
31Essa é uma característica bastante diferente dos empreendimentos voltados à população de maiores rendimentos (Shimbo, 2010). Conforme explica Caldeira (2011), no Brasil, a única homogeneização valorizada nos condomínios horizontais fechados de padrão elevado é a social; a do projeto não é. Como indica a autora, diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos, por exemplo, esse tipo de empreendimento, no Brasil, possui como característica a diferenciação entre os projetos das residências de um mesmo condomínio. A padronização é incomum e desvalorizada, pois é uma característica marcante dos programas de moradia popular, que, tradicionalmente, produzem casas idênticas e em série, algo que foi mantido nos empreendimentos do PMCMV, sendo condominiais ou não. O levantamento efetuado por Thery (2017) evidencia como a padronização arquitetônica é uma característica comum a inúmeros empreendimentos realizados no âmbito do PMCMV no país.
32A produção dos condomínios populares horizontais fechados se relaciona também com a ocupação máxima da área, outra característica comum de programas de moradia. Se em vários empreendimentos destinados às pessoas de maiores rendimentos destacam-se os amplos espaços entre as moradias, as áreas verdes e as comuns dotadas de uma série de equipamentos, no caso dos condomínios populares horizontais fechados, busca-se o aproveitamento máximo da gleba, com a construção de casas muito próximas umas das outras, ampliando-se consideravelmente a ocupação e o adensamento urbano, como pode ser observado na Figura 3. Em Fazenda Rio Grande, essa situação decorre da própria legislação urbanística municipal que permite frações de, no mínimo, 100 m² e testada de seis metros em determinados tipos de condomínio. Obviamente, com esses e outros parâmetros construtivos estabelecidos pelo município, construtores e incorporadores procuram ocupar o máximo possível com casas as áreas de empreendimentos de condomínios, resultando em paisagens urbanas homogêneas. Isso fica ainda mais explícito nos condomínios maiores; alguns possuem mais de quatrocentas casas.
Figura 3 – Ocupação da área interna de condomínios populares horizontais fechados em Fazenda Rio Grande (Paraná/Brasil)
Fonte: MM Arruda (2018), LMM Obras (2018)
33Ainda que o adensamento seja considerado importante para o aproveitamento da infraestrutura urbana, no caso dos condomínios populares horizontais fechados isso pouco se aplica, afinal, os maiores são implantados geralmente no limite da ocupação urbana, em áreas muitas vezes não dotadas de redes de água, esgotamento sanitário e outros serviços à população. Importante destacar que, pelo fato de em Fazenda Rio Grande a ocupação ser predominantemente horizontal, amplia-se consideravelmente a área urbanizada quando são implantados grandes empreendimentos residenciais. Considerando-se somente os condomínios com mais de dez unidades residenciais, os implantados em glebas ainda não parceladas representam 78,6% do total da área ocupada por este tipo de empreendimento (Mapa 2).
Mapa 2 – Fazenda Rio Grande (Paraná/Brasil): localização dos condomínios com dez ou mais unidades residenciais
34É importante destacar que a implantação de loteamentos em Fazenda Rio Grande, ao longo do tempo, ocorreu sem preocupações com a continuidade da malha urbana, pois atendia sobretudo aos interesses de loteadores e proprietários fundiários, por isso, a existência de áreas sem uso entre eles. Dessa forma, embora alguns dos condomínios tenham ocupado esses vazios urbanos, tal como pode ser observado no Mapa 2, reforça-se que vários foram implantados nos limites da ocupação já existente, em função do menor preço da terra. Em levantamento efetuado em anúncios de grandes áreas à venda em Fazenda Rio Grande constatou-se que o preço do metro quadrado das áreas mais periféricas pode chegar a ser quase sete vezes menor quando comparado ao daquelas localizadas nas porções mais centrais. O resultado tem sido a contínua expansão do espaço metropolitano, com consequências diretas para a ampliação da infraestrutura urbana e da oferta de serviços básicos e nos deslocamentos cotidianos da população residente para trabalhar, estudar, realizar atividades diversas e até para o lazer. Apenas para exemplificar, em um dos bairros em que foram implantados inúmeros condomínios (o Estados – sudoeste da área urbana), não há colégios com oferta de ensino médio, o que obriga estudantes a se deslocarem diariamente para outras áreas da cidade em busca deste nível de ensino.
35Em relação às áreas de lazer, sua oferta no município é pequena para o conjunto da população. Assim, diferentemente do que poderia se supor ou do que alguns anúncios publicitários fazem crer, os condomínios não suprem essa deficiência. A ocupação excessiva da área de um condomínio implica na redução de outros espaços comuns, tais como os de lazer. Assim como em outras pesquisas desenvolvidas no Brasil, como a de Shimbo (2010), verificou-se que, em Fazenda Rio Grande, além das áreas de lazer serem reduzidas e insuficientes para atender a população residente dos condomínios, são inseridas em locais em que a construção de casas não seria viável ou possível. Tal é o caso de áreas com árvores em que o corte não foi permitido, como araucárias, ou com topografia que demandaria maiores custos com terraplanagem ou aterro, apenas para citar alguns exemplos. Dessa forma, nos condomínios populares, os espaços de lazer não compõem o todo do projeto ou são parte distintiva dele, são apenas inseridos nas áreas não ocupadas e também para o cumprimento de uma exigência de legislação urbanística municipal, que, em Fazenda Rio Grande, se resume atualmente a 6 m² por unidade em condomínios com mais de seis habitações.
36Como a legislação exige a destinação da área apenas, há diferenças no tipo de áreas de lazer existentes nos condomínios. Enquanto alguns possuem playground, salão de festas, academia ao ar livre e/ou quadra poliesportiva, mesmo que em quantidade insuficiente, outros têm somente campo de areia ou ainda apenas a área destinada às atividades de lazer, sem qualquer tipo de estrutura ou equipamento. A vegetação de grande porte, quando existente, geralmente refere-se a Áreas de Preservação Permanente, que não puderam ser suprimidas para a construção de casas. As imagens presentes na Figura 3 permitem ter uma noção a respeito disso.
37Muitas das diferenças observadas na oferta das áreas de lazer se relacionam com o tamanho e o tipo de condomínio em que estão inseridas. A análise dos condomínios existentes em Fazenda Rio Grande permitiu identificar a pluralidade de adaptações efetuadas por incorporadores e construtores na produção desse tipo de empreendimento, quando voltada ao mercado popular, e que se distanciam dos modelos originais deste tipo de moradia a que constantemente fazem referência. Assim, há desde condomínios com todas as casas de frente para a rua, cada uma com uma entrada independente (geralmente com seis ou menos moradias), até os que possuem centenas de casas, com entrada controlada à área do condomínio, com uma série de variações entre esses dois tipos citados.
38Para além da produção daqueles com as casas voltadas para a rua, portanto, abertos, os próprios condomínios fechados demonstram uma série de adaptações e reduções que culminaram em produtos imobiliários bastante peculiares e que se diferenciam consideravelmente dos empreendimentos voltados à população de maiores rendimentos ou até populares desenvolvidos em outras cidades, como os indicados por Macário (2013) e Oliveira (2014), para as cidades de Feira de Santana, Presidente Prudente e São Carlos, por exemplo, também desenvolvidos no âmbito do PMCMV. Assim, em Fazenda Rio Grande, há aqueles fechados com e sem acesso controlado (portaria) e os definidos como mistos, em que uma parte das casas é cercada e há outras de frente para a rua, podendo ter acesso controlado ou não por porteiro (Figura 4).
Figura 4 – Fazenda Rio Grande (Paraná/Brasil): condomínios total ou parcialmente fechados, com e sem acesso controlado por porteiro
Fonte: Patricia Baliski / arquivo pessoal (2017)
39É nesse sentido que não se pode falar de uma tipologia única de condomínio popular horizontal fechado, pois as adaptações e reduções são tamanhas que o modelo original se transforma consideravelmente. Embora isso ocorra, a comercialização faz apelo aos discursos tradicionais vinculados a este tipo de empreendimento, sobretudo o da segurança, explícito nos muros e no controle de acesso. Aliás, essa é uma característica comum à maioria dos empreendimentos deste tipo no Brasil, independente a que tipo de segmento econômico se destine. Segundo Caldeira (2011), ainda que os condomínios brasileiros procurem referências nos modelos suburbanos estadunidenses, têm como diferença o fato de serem murados e com acesso controlado, algo presente em somente 20% dos empreendimentos similares daquele país (gated communities).
- 4 Os condomínios com mais de cem unidades são também os que mais concentram unidades residenciais. Em (...)
40Os empreendimentos maiores, com mais de cem unidades residenciais, são os que mais tentam aproximar seu produto, mesmo que em uma versão adaptada e reduzida, dos empreendimentos voltados para a população de maiores rendimentos4. Nesse sentido, são os que possuem portaria 24 horas, áreas de lazer equipadas, sistema de monitoramento, etc., no entanto, são também os que geralmente apresentam maior adensamento, afinal, são compostos por unidades residenciais menores. O que nas propagandas aparece como um diferencial (sobretudo as áreas de lazer e a segurança), no cotidiano, mostra-se insuficiente para atender a população residente. Concernente ao lazer, é comum moradores utilizarem também as vias internas para este tipo de atividade, favorecendo, muitas vezes, o desenvolvimento de conflitos entre vizinhos. Essa situação se agrava naqueles em que não há qualquer tipo de equipamentos voltados à essa atividade. Em relação à segurança, há situações de roubos, tráfico de drogas, abrigo de veículos roubados e até assassinatos no interior de condomínios fechados. Dessa forma, esses empreendimentos não atendem aos anseios da população no que se refere à resolução de problemas urbanos, pelo contrário, os reproduzem e os agravam.
41Além de conviver com esses problemas, morar em um condomínio popular fechado impõe também uma série de transformações cotidianas, sobretudo para as pessoas que moravam em outros tipos de empreendimento, tais como as casas em loteamentos, por exemplo. Dessa forma, é a necessidade de se adaptar à proximidade excessiva das casas vizinhas, compartilhar os espaços comuns com vários outros moradores, atender as novas regras de convivência e ainda tentar viver em áreas privativas reduzidas e padronizadas. Concernente a esse último ponto, são bastante comuns as transformações nos projetos originais das casas. Assim, as reformas realizadas respondem à necessidade de uma garagem, um outro cômodo, uma lavanderia ou ainda uma churrasqueira. Note-se, são coisas bastante comuns, presentes em qualquer empreendimento que não seja popular, mas que nos condomínios analisados, representam os esforços (financeiros, materiais) dos moradores para acrescentar elementos que atendam às suas necessidades cotidianas. São poucos os condomínios que possuem convenções um pouco mais rígidas que impedem essas modificações.
42Pelo exposto, fica evidente que as transformações, além de ocorrerem na vida cotidiana, também são econômicas, não somente em função das reformas nas casas, mas de todos outros dispêndios que se somam ao pagamento do financiamento da moradia, dentre os quais se destacam as taxas de condomínio. É importante ressaltar que grande parte dos moradores não tinha esse tipo de dispêndio, afinal, vivia em moradias não condominiais. Dessa forma, ao morar em um condomínio fechado, passam a arcar com os custos de segurança (sistemas de monitoramento, vigias), manutenção, fundo de reserva, empresa que faz a gestão do condomínio, porteiros, etc. Quanto maior o empreendimento e a quantidade de equipamentos e serviços presentes, maior a taxa. Como isso pode comprometer significativamente o orçamento de algumas famílias, há moradores que, mesmo considerando o condomínio fechado mais seguro, optam em morar naqueles mistos, nas casas de frente para a rua, pois os dispêndios com as taxas são menores ou até inexistentes em certos empreendimentos. Aliás, essa diferenciação é uma informação utilizada por empresas imobiliárias como estratégia de venda dessas moradias.
43Os condomínios populares horizontais fechados se disseminaram na última década como um novo produto imobiliário em áreas periféricas metropolitanas. Esses empreendimentos buscam fazer referências a modelos de habitação pensados e produzidos originalmente para pessoas de maior rendimento. Por isso, são comuns as alusões à segurança, à qualidade de vida, dentre outras características. No caso da Região Metropolitana de Curitiba, uma cidade que concentra consideravelmente esse tipo de empreendimento é Fazenda Rio Grande que, há décadas, se caracteriza pela produção da moradia popular.
44A análise dos empreendimentos em Fazenda Rio Grande revelou que os condomínios populares horizontais fechados são produtos que passaram por inúmeras adaptações, modificações e reduções, por isso, o produto final é completamente distinto do que alguns anúncios publicitários fazem crer. Isso evidencia que, apesar da nova roupagem, tratam-se de empreendimentos de habitação popular que não alteraram as características reproduzidas exaustivamente em projetos dessa natureza: padronização das formas, localização distante das áreas urbanas mais consolidadas e com infraestrutura e serviços, grandes empreendimentos que podem conter centenas de casas, etc. Um agravante nesse tipo de empreendimento é que, apesar de estar atrelado a um programa habitacional, seu desenvolvimento ocorre segundo interesses de mercado. Como se viu, a maior parte dos empreendimentos em Fazenda Rio Grande diz respeito à faixa 2 do PMCMV, a qual permite forte protagonismo dos agentes privados (incorporadores, construtores).
45Nesse sentido, como o PMCMV ocorre em escala nacional, muitas das características observadas em Fazenda Rio Grande, indicadas ao longo do texto, são reproduzidas exaustivamente em vários empreendimentos pelo país, como atesta a ampla literatura existente sobre o programa. No entanto, a análise também permitiu demonstrar que, embora a produção da moradia se situe em um processo mais amplo, há especificidades locais que a diferenciam em relação a outras cidades, mesmo que minimamente, e que vão desde a predominância de empreendimentos horizontais até os modelos híbridos. Dessa forma, os estudos de caso permitem constatar as similaridades e diferenças relativas à produção da moradia e por isso são importantes para averiguar as estratégias locais que levam ao limite as adaptações e reduções, mas que ainda assim, fazem referência a modelos originados em lógicas distintas.
46Por fim, a introdução e a disseminação desse produto imobiliário, em Fazenda Rio Grande, têm impactos consideráveis em várias escalas, do indivíduo à metropolitana. Na do indivíduo, representa à adaptação a um novo modelo de moradia que impõe uma série de alterações na vida cotidiana, das novas regras de convivência ao confinamento em uma área que reproduz e acentua determinados problemas urbanos. Na escala urbana, além da própria expansão da cidade, representa a necessidade de ampliação de infraestrutura e serviços, o tráfego intenso em determinadas vias de acesso, a homogeneização da paisagem. E na metropolitana, é a gradual e constante expansão da metrópole, através do espaço produzido, que amplia os deslocamentos, insere novas áreas no circuito de valorização da terra urbana e fortalece a metropolização como processo espacial e representativo do atual momento.