1Os movimentos reivindicatórios de apropriação e livre utilização do espaço urbano são, na cena contemporânea, importantes alavancas de transformação social e refletem, em sua prática, uma grande parcela daquilo que se estudou teoricamente a partir do conceito de “direito à cidade”. Nascido nos anos 1960, a partir dos estudos do sociólogo francês Henry Lefebvre, o conceito foi intensamente debatido dentro da literatura científica sobre as cidades e notadamente utilizado quanto à análise de movimentos sociais. É nesta perspectiva que este artigo examina o caso brasileiro do movimento conhecido como Praia da Estação, em Belo Horizonte, o qual reivindicou, em seu início, o direito à cidade através das modalidades de ação renovadas pelas redes sociais e organizações sociais não hierarquizadas.
2Belo Horizonte é a capital do estado brasileiro de Minas Gerais (Figura 1). Fundada em 1897, a cidade foi planejada segundo uma concepção higienista de espaço que deu lugar de destaque à circulação e às praças situadas nos cruzamentos das artérias principais. Entre elas, a Praça da Estação apresenta uma condição peculiar: ela se situa no centro da zona histórica da cidade (Figura 2), por onde chegaram os materiais de construção através das linhas férreas até a estação ali localizada. A Praça é, portanto, desde sempre, um espaço público importante: embora em parte ocupada por um estacionamento entre 1980 e 2004, ela sempre se apresentou como um lugar de trocas e encontros de todos os tipos. A região da Praça da Estação é, em si, um lugar de caráter popular para onde convergem os diferentes modais de transporte coletivo: os ônibus municipais e metropolitanos, o metrô de superfície e até mesmo o trem, mesmo que este ofereça apenas um destino a partir de Belo Horizonte. Frequentada diariamente por uma população diversificada de usuários de transporte público, pequenos comerciantes, moradores em situação de rua (Bosredon e Dumas, 2013), a região nunca está deserta (ao contrário das regiões centrais de outras cidades brasileiras, cf. Rivière d’Arc e Memoli, 2006), mas, apesar disso, sofreu um processo de degradação e não fazia parte das prioridades municipais até os anos 1990 (Trevisan, 2012). A Praça da Estação se tornou objeto de reflexão da prefeitura no início dos anos 2000, quando esta buscou revalorizar a região de sua histórica estação ferroviária, em particular o patrimônio construído que a caracteriza, e lhe transformar em um distrito cultural vivo, de maneira a encarnar a irradiação do centro de Belo Horizonte. Em 2009, no momento em que o processo de regeneração da área se encontrava em curso, os interesses da prefeitura convergiram com os do Museu de Artes e Ofícios, de caráter privado, que obtivera, desde 2001, a concessão para ocupação do edifício tombado da Estação Central: a prefeitura decidiu, por decreto, a proibição de eventos que regularmente ocupavam a praça. Dessa decisão resultou a organização do movimento “Praia da Estação”, um movimento de contestação original quanto à sua forma (a praça sendo ocupada como se fora uma praia junto ao mar) e onde a reivindicação principal era o acesso livre e total ao espaço público para todos, bem como a participação de todos na vida da cidade e de seu espaço urbano. O direito à cidade estava, portanto, subjacente aos discursos e práticas da Praia da Estação. Na sequência temporal, um certo número desses ativistas passou a participar de reuniões públicas organizadas pela municipalidade e integrou algumas estruturas participativas de debates públicos como o Conselho Municipal de Cultura, o qual se apresenta como uma estrutura colegiada e consultiva, constituída por metade de membros indicados pela sociedade e por metade de membros indicados pelo executivo municipal.
- 1 Para compreender quais atores estão aqui participando: a prefeitura envolvida nos fatos examinados (...)
3Partindo deste contexto, o artigo propõe uma leitura de diferentes aspectos que caracterizam hoje a reivindicação de direito à cidade de Belo Horizonte, desde as mobilizações de rua até às estruturas institucionais de participação. Ele é resultado de uma pesquisa conduzida entre os anos de 2014 e 2017, baseada em uma observação participante e entrevistas qualitativas conduzidas em português com os principais atores dos eventos estudados: os líderes ativistas, os conselheiros municipais e os principais representantes do governo municipal1. Após contextualizar a mobilização dentro do quadro dos movimentos sociais do Brasil nos anos 2010, a primeira parte apresentará a mobilização na Praça da Estação, seus atores e seus papéis com relação às questões de cultura e acesso ao espaço público. A segunda parte abordará as consequências da pressão cidadã, isto é, a criação, por parte da prefeitura, de novos canais de negociação com a população. Nos interessa notadamente examinar a comissão responsável pela implementação do “Corredor Cultural da Praça da Estação”, da qual participou um dos líderes do movimento da Praia da Estação, e que consiste em um amplo programa de intervenções urbanas destinadas a transformar a praça e seus arredores em um grande distrito cultural local. Na terceira parte do artigo, tentaremos apresentar algumas lições destes eventos, no que concerne à noção de cultura, verdadeira ferramenta de construção de uma identidade coletiva e de resistência à dissolução do tecido social, noção que não pode se restringir às suas manifestações, às indústrias criativas e ao divertimento. Ao final, ainda que o discurso oficial da prefeitura apontasse para um diálogo com os habitantes, mostraremos como se torna difícil integrar os dispositivos participativos às decisões políticas, ainda mais quando a equipe municipal crê, sobretudo e cada vez mais, na captação de recursos privados para acelerar seus projetos. No caso de Belo Horizonte, as estruturas de participação cidadãs postas em prática não teriam apenas criado uma ilusão de reconhecimento das reivindicações trazidas pela Praia? A institucionalização da contestação tendeu, outrossim, a enfraquecer a riqueza dessas formas alternativas de organização e expressão.
Figura 1. Localização da cidade planejada de Belo Horizonte (estado de Minas Gerais, Brasil).
Fonte : Pauline Bosredon, 2017.
Figura 2. Localização da região da Praça da Estação, Belo Horizonte.
Fonte: Pauline Bosredon, 2017.
4O momento de Belo Horizonte caracterizado pelo movimento de contestação da Praia da Estação se insere em um contexto singular na escala do Brasil. O país foi, efetivamente, marcado, na década de 2010, por uma série de movimentos sociais relacionados a questões importantes, em eco a uma dinâmica global: “a crítica das hierarquias, a busca de novas formas de legitimidade democrática e, ainda mais profundamente, uma renovação da política” (Cohen, Santana, 2015). Esses movimentos se caracterizaram pela ocupação das ruas (Bautes, 2013) e, mais amplamente, do espaço público, particularmente das praças (nos referimos a Occupy Wall Street e às manifestações da praça Tahrir a partir de 2011). Essas ocupações se filiam às novas formas de ação nos espaços públicos, massas críticas relacionadas com o movimento Reclaim the Streets, fenômeno mundial, que se difundiu em numerosas metrópoles americanas e, em seguida, nas europeias, nos anos 1990 (Bosredon, 2014). Esses movimentos se caracterizavam pela ausência de lideranças, pelo caráter horizontal e autônomo, todas essas características também presentes na Praia da Estação.
5A Praia da Estação se inscreve também em um contexto local. Na virada dos anos 2000 e 2010, a estratégia da prefeitura de Belo Horizonte era efetivamente a de fazer da região da Praça da Estação um lugar especial de patrimônio e de lazer cultural na capital de Minas Gerais. Para isso, ela se apoiava no Plano de Reabilitação da Região Central de Belo Horizonte que a qualificou, em 2007, como um setor urbano de vocação patrimonial e cultural. A prefeitura desejava transformar a paisagem da mais antiga região da cidade para que ela encarnasse, a um só tempo, sua história e sua modernidade, acolhendo artistas e equipamentos culturais contemporâneos (Figura 3). A implementação dessa estratégia conheceu uma primeira etapa relativamente precoce: trata-se da patrimonialização da esplanada da praça, tombada em 1988 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Geras (IEPHA/MG), seguido da sua requalificação em 2004. A segunda etapa foi a instalação das atividades culturais nos vários edifícios industriais e antigas instalações industriais ou ferroviárias próximas à estação. Um dos primeiros equipamentos culturais abertos ao público foi o Museu de Artes e Ofícios que se instalou no edifício histórico da Estação Central (Figura 4), em parceria com o Instituto Flavio Gutierrez, fundação privada proprietária de uma importante coleção de objetos referentes à história das artes e dos ofícios brasileiros. O Museu de Artes e Ofícios foi inaugurado em dezembro de 2005 e aberto ao público no início do ano de 2006. A ele se seguiu um número importante de equipamentos culturais variados, como a FUNARTE (Fundação Nacional das Artes), um equipamento federal que recebe exposições de arte contemporâneas e artistas em residência, o espaço CentoeQuatro, espaço privado instalado em 2009 na antiga fábrica do 104 Tecidos, apoiado pela municipalidade, e o Centro Cultural da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais)
Figura 3. Os equipamentos culturais da Praça da Estação.
Fonte: Pauline Bosredon, 2017.
Figura 4. O Museu de Artes e Ofícios (antiga estação).
Foto: Roberto Staino, 2015.
6A transformação da região estava, portanto, em marcha, quando a prefeitura de Belo Horizonte decidiu, em dezembro de 2009, proibir, por decreto “a organização de eventos de qualquer natureza que se deem na Praça da Estação”. O decreto se refere às práticas até então existentes contra as quais se indispuseram as autoridades municipais, cujos interesses coincidiam com aqueles do Instituto Flavio Gutierrez, proprietário da coleção e gestor do Museu de Artes e Ofícios. Exatamente como a prefeitura, este último não desejava mais o retorno, na praça e no entorno do museu, dos habituais encontros populares de todos os tipos, espetáculos musicais, teatros de rua, encontros políticos ou assembleias religiosas organizadas por igrejas evangélicas. A regulamentação de usos da praça era uma questão de imagem para uma região destinada a ser o coração patrimonial e cultural da cidade; subtendia-se uma questão de segurança relevante de ordem pública: a prefeitura desejava reafirmar seu controle sobre um espaço onde a apropriação por um público não desejável era julgada excessiva. O decreto se justificava, ainda mais, pela “dificuldade de limitar-se o número de pessoas e de garantir a segurança pública decorrente da concentração de pessoas [na ocasião dos encontros], e, ainda, da degradação do patrimônio público verificada em decorrência dos últimos eventos realizados na Praça da Estação em Belo Horizonte” (preâmbulo do decreto no. 13.798 de 09 de dezembro de 2009).
7O decreto suscitou a indignação de um grupo de belorizontinos que organizaram uma primeira manifestação no dia 7 de janeiro de 2010. Com numerosos participantes, e a cada sábado, por quase um ano, o movimento transformou a praça em uma praia de centro de cidade (Figura 5), um espaço simbólico apropriado de maneira diversa: a praia é provavelmente o espaço público mais livre de diferenças sociais, o espaço comum por excelência, mas também um tipo de espaço que falta em Belo Horizonte, uma das poucas capitais brasileiras interioranas e que, portanto, não dispõe de uma região costeira. O movimento foi apelidado de Praia da Estação e reuniu cada vez mais pessoas em meio a uma multidão bizarra de banhistas trazendo seus utensílios de praia, seus instrumentos musicais e seus slogans: “A Praça é de tudo e para todos”: efetivamente, tratava-se de reivindicar, para todos, o direito de ocupação do espaço público e de acesso ao patrimônio comum (Bosredon, 2014 ; Bosredon e Dumas, 2014). Além do evento festivo da Praia, o primeiro folheto de divulgação convidava os participantes a um debate sobre a “revitalização por decreto”: acompanhando a contestação quanto à privatização dos espaços, portanto, havia, desde o início, a reivindicação da participação dos habitantes quanto às transformações urbanas que diziam respeito a todos. Essas reivindicações dos ativistas traziam problemas de uma classe social de maior poder aquisitivo (ou, pelo menos, possuidora de um forte capital cultural): eram jovens, intelectuais, militantes, artistas, mas que se viam, apesar de tudo, como os porta vozes do conjunto dos frequentadores da região, incluindo os sem-teto que são relativamente numerosos em “situação de rua” na área.
Figura 5. A Praia da Estação em 2011.
Foto: ConjuntoVazio, 2011.
- 2 « Fora, Lacerda ». Lacerda é o nome do prefeito de Belo Horizonte a partir de 2009 e que foi reelei (...)
- 3 A FMC, instituída pela Lei Municipal n°9011 de 1o. janeiro de 2005, tem a finalidade de planejar e (...)
- 4 O COMUC foi criado em 2008 pela Lei n°9577 regulamentada em 2011 por um decreto do Prefeito Lacerda (...)
8Ignorando o decreto, e sem uma intervenção repressiva da polícia, os manifestantes da Praia passaram a instalar uma nova modalidade de ação pública e de relação com o político (Melé, 2012): a Praia se tornou rapidamente uma tribuna para reivindicações múltiplas e variadas, como aquelas de “Fora Lacerda”2 que contestavam genericamente a política da equipe municipal no poder, ou daquelas associações de suporte aos “sem-teto”. Muito presente nas mídias, o movimento conquistou lugar dos debates públicos. Rafael Barros, reconhecidamente uma das figuras carismáticas do movimento, passou a participar de várias reuniões e consultas públicas onde ele pôde levar as mensagens da Praia. A partir do movimento, ele passou a fazer parte do Conselho Municipal de Cultura, representando a sociedade civil. Os temas da contestação passaram então a ser pautados no debate público, sem uma oposição frontal das autoridades municipais, e a explicação para isto reside no fato de que Rafael Barros e a Praia serviram, ao final, à estratégia inicial da prefeitura: sistematizadas, ritualizadas, as “praias” pareciam cada vez mais a happenings lúdicos que não prejudicavam o projeto municipal de renovação da imagem da região para a cultura. Com efeito, viu-se surgir o projeto “Corredor Cultural Estação das Artes”, apresentado a debate pela prefeitura. A proposta desse corredor cultural foi lançada ao final de 2012 pela Fundação Municipal de Cultura (FMC)3: o projeto foi apresentado como uma transformação negociada da região, na qual participam o Conselho Municipal de Cultura (COMUC) que é uma estrutura colegiada, consultiva e deliberativa, constituída por membros designados pelo poder executivo municipal4.
9Tendo em conta os intensos protestos gerados pelo movimento Praia da Estação e o descontentamento da população contra o decreto que restringia as atividades na praça, a prefeitura de Belo Horizonte rapidamente procurou criar novos canais de negociação com a população. O que tornou possível a implantação dessa participação institucionalizada foi a Lei Federal brasileira de 2001, conhecida como “Estatuto da Cidade” (Lei 10.057 de 10 de julho de 2001) que precisava as disposições da Constituição Federal de 1988 relativas à política urbana (Artigos 182 e 183) e “delega aos municípios e a seus planos diretores a tarefa de definir as condições de implementação da função social das cidades e da propriedade urbana” (Brunet, 2002). Em seus princípios gerais, a lei tem por objetivo assegurar o desenvolvimento sustentável das cidades e o respeito ao direito imobiliário urbano, à habitação, ao saneamento, às infraestruturas urbanas, aos transportes e serviços públicos e ao lazer. Entende-se que a lei se refere a uma “gestão democrática das cidades” através de uma participação direta dos cidadãos e de suas associações representativas quanto ao desenvolvimento urbano, bem como uma cooperação entre governantes, atores privados e outros setores da sociedade, dentro do interesse coletivo.
10Um certo número de decisões tomadas pela municipalidade de Belo Horizonte em resposta às reivindicações da Praia decorre diretamente do Estatuto da Cidade. A primeira delas trata das operações urbanas consorciadas (entre os setores público e privado) e ao instrumento denominado de “certificados de potencial adicional de construção” (CEPAC) cujo objetivo é estimular o investimento de capital privado em trabalhos de interesse público: o investimento do agente privado é recompensado pela outorga de uma permissão de construção além dos limites fixados em lei e que podem ser utilizados em outras zonas urbanas. A crítica que se faz desse instrumento é que ele permite aos poderes público delegar ao agente privado uma parte do desenvolvimento urbano. No caso da Praça da Estação, ela estava incluída em uma vasta operação urbana de reabilitação dos espaços públicos municipais denominada “Nova Belo Horizonte” que se estendia ao longo dos eixos norte-sul e leste-oeste dentro das zonas onde os potenciais construtivos eram majorados como compensação ao investimento privado. A segunda decisão diz respeito à criação de conselhos municipais como forma de gestão democrática das cidades. O ativismo social dos anos setenta e oitenta no Brasil (Avritzer, 2010) contribuíram de maneira decisiva à inscrição na lei dos artigos que incentivam tal forma de gestão colegiada da política urbana e que fornecem os instrumentos para tanto em diversas escalas (debates, audiências públicas, conferências sobre questões urbanas de interesse coletivo, projetos de lei de iniciativas populares). Esta forma de participação se desenvolve em paralelo à tripartição tradicional dos poderes executivo, legislativo e judiciário.
- 5 Citação traduzida do inglês pelos autores.
11Em nosso caso, convém sublinhar que a cidade de Belo Horizonte havia criado desde 1989 o Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município (CDPCM) e, em 2011, o Conselho Municipal de Cultura (COMUC). A crítica principal que se tem feito a estes conselhos diz respeito à sua composição, definida pelo governo municipal e que tende a contribuir para reforçar ele mesmo na medida em que a maior parte dos membros são efetivamente os representantes do próprio poder público, além do que a maior parte dos membros escolhidos representando a sociedade civil são também alinhados com essa mesma administração. Em Belo Horizonte, como nas outras cidades brasileiras, “a ênfase é colocada na colaboração e nos espaços de participação por convite, e não nos espaços reivindicados ou produzidos pela própria sociedade civil” (Belda-Miquel et al., 2016, p. 3285). No caso da Praça da Estação, pelo fato de seu tombamento e por sua vocação cultural contemporânea, toda intervenção física deve ser examinada pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município e os projetos mais genéricos pelo exame do Conselho Municipal de Cultura, onde tem assento Rafael Barros como conselheiro representante da sociedade civil.
- 6 Aproximadamente 4 milhões de euros (segundo a taxa de janeiro de 2016)
12A terceira decisão se refere, enfim, a um investimento do governo federal dirigido aos centros urbanos históricos: o PAC-2 (Plano de Aceleração do Crescimento, segunda fase). Nos centros históricos, os fundos são dirigidos à reabilitação dos espaços e edifícios públicos. Quarenta e quatro cidades foram escolhidas para compartilhar um valor total de 1,6 bilhão de reais entre 2013 e 2015, dentre elas a cidade de Belo Horizonte. Nestes recursos, 17 milhões de reais6 foram destinados à Praça da Estação.
13Essa combinação de fatores conduziu o presidente da Fundação Municipal de Cultura, que respondia, na prática, à época, à função de secretário municipal de cultura, a discutir no âmbito de seu conselho (COMUC) a maneira como seriam utilizados os recursos. A indicação expressa pelo COMUC foi a de se proceder a uma ampla consulta à comunidade, conduzida pelo conselheiro Rafael Barros, a qual teve início nos primeiros meses de 2013. Essa consulta deveria conduzir ao estabelecimento de diretrizes sobre a grande intervenção prevista pela prefeitura para a região da Praça da Estação, provisoriamente batizada de “Corredor Cultural da Praça da Estação”. Seguiram-se diversas reuniões públicas que desembocaram em março de 2013 à criação de uma comissão de acompanhamento do corredor cultural da praça, representativa da diversidade dos diversos atores que operavam na região e no campo da cultura, afim de evitar qualquer exclusão social. A comissão foi assim composta por representantes da Fundação Municipal de Cultura, do Conselho Municipal de Cultura (Rafael Barros), dos equipamentos culturais, dos movimentos sociais, da classe artística, dos comerciantes, dos moradores da região, dos arquitetos e urbanistas (Flavio de Lemos Carsalade), dos esportes urbanos, dos sem-teto, da mobilidade e acessibilidade.
14A comissão se reuniu durante dois meses em apoio à equipe de arquitetos escolhida pela prefeitura para a concepção do projeto de reabilitação urbana da área. Torna-se importante esclarecer que ela não se limitava apenas à questão das intervenções físicas, mas se estendia à proposição de uma série de iniciativas e inovações para o corredor como a implementação de uma política de auxílio aos moradores em situação de rua, a instalação de banheiros públicos, a instalação de iluminação pública onde ela estivesse deficiente, ao melhoramento dos abrigos de ônibus, a revisão do decreto de regulamentação do uso da Praça da Estação, ao prolongamento do horário de funcionamento do Parque Municipal (situado em continuação à praça), a definição de ações culturais através de incentivos à participação de todos, etc. Rafael Barros pontuou constantemente o debate a partir de três pontos: sobretudo, seria indispensável que o projeto devesse partir do pressuposto que existem múltiplas maneiras de se viver a cidade e que todas elas deveriam ser levadas em consideração; em consequência, o projeto deveria levar em conta a necessidade de se construir um espaço de autonomia e de capacitação cidadã para reforçar o poder de ação dos habitantes; enfim, todos deveriam poder seguir a implantação do projeto.
15A apresentação do projeto (não mais um plano diretor) teve lugar no dia 28 de maio de 2013, em um dos equipamentos culturais da região (o 104), em sessão aberta ao público. Na sua abertura, Rafael Barros reafirmou os objetivos principais da comissão, isto é a garantia das liberdades de circulação, expressão e manifestação. Enfatizou questões não apenas restritas aos edifícios, mas também sobre as ações culturais e particularmente aos moradores em situação de rua. A cultura, entendida em uma acepção mais ampla, deveria efetivamente integrar todo o campo de valores compartilhados por uma mesma comunidade que lhe assegurasse sua coesão. “Herdada do passado e enriquecida de tudo que o presente lhe aporta, a cultura oferece o meio de se projetar ao futuro e de oferecer um sentido à existência individual e coletiva” (Claval e Staszak, 2008, p. 3). Instrumento essencial à compreensão do real, a cultura é a base das identidades coletivas e uma arma de resistência às convulsões sociais contemporâneas. No cruzamento das ideias de permanência e transformação, ela nos ajuda a identificar as formas sociais estáveis em uma realidade dinâmica e cambiante. Neste sentido, o valor de permanência trazido pelos centros históricos é reforçado, assim como sua capacidade de manter uma certa coesão dentro de um tecido social que se esgarça e se transforma de maneira rápida e frequentemente abrupta (Carsalade, 2005). A despeito disso, nem a concepção arquitetônica nem as ações finalmente propostas pelo escritório de estudos escolhido pela prefeitura se apresentaram de acordo com as proposições da comissão. A proposta arquitetônica do escritório de projetos se apresentou baseada em hipóteses consideradas exóticas (geometria sagrada, acupuntura da terra e feng-shui) e estetizantes (trabalhos de padronização de calçadas, decoração urbana), propostas que suscitaram receios de gentrificação da região, agravadas pelo caráter confidencial dos estudos preliminares da operação urbana.
16O projeto se mostrou, de fato, representativo de uma tendência atual dos projetos urbanos das metrópoles brasileiras, onde a cultura é limitada somente às suas manifestações e ao patrimônio dito cultural, notadamente o patrimônio construído e no que concerne às manifestações culturais, especialmente aquelas que que nos últimos anos se convencionou chamar de “indústria criativa”, isto é, as atividades econômicas ligadas ao lazer e divertimento, a parte produtiva da cultura. É forçoso contatar que a cultura não é, ainda, considerada, nas estratégias de desenvolvimento, como uma dimensão de projeto a se examinar, apesar de suas características e de seus efeitos quanto ao espaço urbano. O que mais frequentemente se vê é um cenário urbano estetizado, considerando o centro histórico antes como uma atração turística do que como base da memória e da identidade coletiva. A utilização do patrimônio arquitetônico e urbano como lugar de “espetáculo”, no sentido que Guy Debord designou nos idos de 1967 como a “dominação da economia sobre a vida social” (Debord, 1992, p. 12) já afirmava que “a cultura se tornou integralmente mercadoria” (Debord, 1992, p. 113), distanciando, portanto, o patrimônio da população local à qual deveria se referir e tendendo a transformar as cidades em pastiches delas próprias.
17Ainda que o discurso dos poderes públicos municipais seja favorável ao diálogo participativo, observamos que permanece uma grande dificuldade de se integrar na realidade essa participação nas decisões administrativas. Para começar, os canais de participação não são acompanhados de instrumentos de tomadas de decisão correspondentes. Um bom exemplo disso é o da comissão de acompanhamento do Corredor Cultural da Praça da Estação, dissolvido em julho de 2014: a versão oficial é que ela “havia terminado seu trabalho”, mas a realidade é que as diretrizes propostas pela comissão não encontraram apoio no âmbito da equipe executiva municipal, apesar do apoio da Fundação Municipal de Cultura. A propósito, certos governantes, qualquer que seja sua escala de atuação, consideram a participação popular como um obstáculo à realização de seus projetos: certamente é o caso da equipe de Lacerda, eleito prefeito de Belo Horizonte em 2008 e reeleito em 2012, e que suscitou o movimento de oposição “Fora Lacerda”. Para Lacerda e sua equipe municipal, o importante não era que a cidade fosse a vontade de seus habitantes, mas, sobretudo, de lhes fazer compreender o que seria melhor para eles: a participação não seria, então, nada mais do que uma operação de sensibilização destinada a convencer a população dos bons propósitos da política municipal e de seus projetos. As grandes manifestações de rua que tiveram lugar no Brasil em 2013, na ocasião da Copa das Confederações (torneio que serve de preparação para as copas do mundo) já haviam denunciado essa questão e, mais globalmente, a própria crise da democracia representativa do Brasil, focando sobre a dificuldade de aplicação de uma democracia direta.
18Uma das principais características desses recentes movimentos sociais populares do Brasil é sua forma bastante livre de organização que une grupos heterogêneos em torno de reivindicações também diversas. Alguns desses movimentos têm como estratégia a ocupação de imóveis vagos ou de terrenos urbanos vazios. Se caracterizam por formas de luta que evidenciam a sua distância com relação à legislação em vigor, onde os instrumentos são julgados como ineficazes. Seu impacto na sociedade depende, então, da maneira como as suas reivindicações são progressivamente incorporadas ao modelo institucional. Assim que a administração vigente reconhece, por bem ou por mal, a força dessas reivindicações e as integra a seu quadro institucional, quase sempre termina por lhes esvaziar de sua substância de maneira a arrefecer fortemente as alternativas propostas.
19O fato que certas lideranças do movimento da Praia tenham se tornado membros do Conselho Municipal de Cultura, combinado aos esforços da comissão de acompanhamento do Corredor Cultural, criou a ilusão de que o sistema havia reconhecido a legitimidade de sua luta. Na realidade, ele a esvaziou de sua substância ao integrar seus líderes em um quadro institucional impermeável às questões de fundo colocadas pelos movimentos sociais. Prova disso são os magros resultados dos trabalhos da comissão e as dificuldades encontradas por tornar visíveis as proposições emanadas do Conselho Municipal de Cultura à alta esfera do poder. Uma das principais reivindicações da comissão era a criação de um plano diretor para a região da Praça da Estação que não fosse apenas um plano de agenciamento e embelezamento, mas que se dirigisse à todas as dimensões do espaço: um plano de regeneração da região que apresentasse uma atenção particular aos problemas sociais e favorecesse as expressões da cultura urbana e do esporte. Mas os poderes públicos municipais substituíram essa proposição por um projeto de desenho urbano por empreendedores privados e sem aderência aos debates que tiveram lugar na comissão. A segunda reivindicação era que o plano diretor deveria ser realizado de maneira participativa até a sua etapa final, isto é, sua adoção, e que ele deveria ser votado como lei municipal na Câmara de Vereadores. O plano era adotar por decreto, seguindo uma prática de forte centralização de decisões, bastante pouco democrática.
- 7 Citação traduzida do inglês pelos autores.
20As evoluções institucionais são sempre lentas quando elas se dão pela via democrática, mas podemos sublinhar aqui o problema da institucionalização das posições contraditórias que tendem a diminuir a riqueza de sua espontaneidade e de suas formas alternativas de organização e expressão. Isto prova mais uma vez ainda que “os movimentos sociais devem continuamente se reinventar, suas estratégias, suas táticas e finalmente sua linguagem, para evitar a colonialização dos slogans e dos conceitos radicais (como aqueles de “direito à cidade) e fazer face aos novos e velhos desafios” (Lopes de Souza, 2010, p. 3307).
21Segundo Belda Miquel et al. (2016), quando Lefebvre criou o ideal do direito à cidade, se tratava de um “chamado além tanto do capitalismo quanto do socialismo de Estado: ‘o direito à cidade se anuncia como chamado, como exigência [...], um direito à vida urbana, transformada, renovada’(Lefebvre, 1996, p. 158) » (Belda Miquel, 2016, p. 322). Mesmo que muito já se tenha dito sobre a concepção desde uma um ponto de vista marxista, em particular quanto às contribuições de David Harvey, o direito à cidade não pode ser reduzido a problemas apenas como habitação e gentrificação. Iluminado pelos novos movimentos urbanos, ele deve ser alargado em direção a outras arenas.
22Como sublinhou Lopes de Souza (2010), é igualmente verdadeiro que nós devemos tomar cuidado de não sucumbir ao excesso inverso, aquele do trivialismo e da redução do conceito de Lefebvre à uma luta por uma vida melhor, aceitando o contexto da cidade capitalista e da sociedade capitalista.
- 8 Citação traduzida do inglês pelos autores.
« ‘O direito à cidade’ deveria ser considerado (ao menos pelos movimentos sociais de emancipação e pelos intelectuais radicais) como uma espécie de ‘território de contestação’, na medida em que é real o perigo de uma vulgarização e de uma domesticação da frase de Lefebvre pelas instituições e pelas forças do status-quo” (Lopes de Souza, 2010, p. 316).8
- 9 « Um SMO [social movement organization] é uma organização única – que pode fazer parte de um movime (...)
23A Praia da Estação se revela assim não apenas como um movimento à mais por uma cidade mais humana e como a expressão de um desencantamento pela política, mas como uma ação eficaz e coordenada de ocupação do espaço urbano em reação a medidas coercitivas contra o caráter público desse espaço. O movimento pode se enquadrar dentro da categoria denominada pela literatura como “organizações de movimentos sociais”9, sem qualquer líder identificável e sem hierarquia clara, mas com uma presença poderosa da internet e das redes sociais.
24O movimento da Praia da Estação não parece ser uma simples expressão de descontentamento, nem a proposição de uma nova organização democrática e de representação popular. Não se trata aqui de inventar modalidades de autogestão da cidade (ninguém procurava substituir uma forma de gestão por outra), nem de ter uma experiência socialista do urbanismo, mas somente de fazer com que a concepção dos espaços públicos seja a mais democrática possível. É claro que por detrás do movimento está uma insatisfação com relação à administração então vigente e uma preocupação com o que se representava a utilização dos espaços urbanos como meio de obtenção de lucros, na ausência de uma participação pública. Contudo, essas questões absolutamente não se centraram apenas no movimento - e isso se constitui em um ponto importante que enriquece o conceito: trata-se da abordagem de uma luta coletiva pelo direito ao uso dos espaços públicos. Em consequência, o que está em jogo aqui não é a defesa de uma região, de um território de uma comunidade, mas a defesa mais geral da cidade e da prática do espaço público urbano, em todos os sentidos do termo.
25Embora tenha nascido sob a égide de protesto, o processo da Praia poderia, naturalmente, concluir-se de duas maneiras diferentes: o grupo faria parte do sistema ao final ou se radicalizaria. Qualquer uma dessas possibilidades não fazia parte das ambições iniciais do movimento, mas a sequência dos fatos finalmente levou o movimento a participar do sistema oficial de tomada de decisões. Isto é o que ocorre quando o poder experimenta dialogar com um movimento de protesto em sua institucionalização. Essa via de “diálogo” poderia ser um meio deliberado de esvaziar o movimento em sua substância, ao inclui-lo em uma agenda de institucionalização a longo prazo ou cooptando seus líderes, incluindo-os nas instituições oficiais, como já é sublinhado pela literatura:
- 10 Citação traduzida do inglês pelos autores.
« As novas ideias institucionalizadas sobre o direito à cidade parecem se inspirar em uma perspectiva essencialmente legalista e técnica (Evans, 2005) dentro de uma moldura democrática liberal (Purcell, 2014). Parta certos autores (Mayer, 2009 ; Lopes de Souza, 2010 ; Purcell, 2014), esses processos de institucionalização implicaram em uma perda de conteúdo originalmente radical de direito à cidade, bem como a cooptação dos movimentos sociais” (Belda Miquel et al., 2016, p. 321)10.
26A experiência da Praia, mostra, então, muito bem, a importância dos novos movimentos sociais urbanos dentro da reivindicação do direito à cidade, particularmente aqueles tornados possíveis pelas redes sociais, sem liderança identificada e não hierarquizadas, mas também certas consequências desses movimentos que poderiam trazer prejuízo à sua eficácia. Sua atuação se situa em um quadro específico de organização urbana caracterizado por Henri Lefebvre como de representações do espaço (o espaço projetado), de práticas espaciais (o espaço de percepção, o espaço vivido) e dos espaços de representação (espaços recebidos através de imagens e símbolos). Esta triplicidade espacial nos permite compreender como a forma urbana dialoga com diferentes atores do ambiente urbano (Lefebvre, 2000): o espaço é projetado pelos desenvolvedores, os técnicos e os atores políticos que fazem a gestão da cidade; a prática espacial se refere à apropriação cotidiana do espaço por diferentes grupos sociais que o habitam; o espaço de representação é o resultado das dinâmicas cotidianas de apropriação popular e das relações de poder e de produção. “Habitar” a cidade, segundo a concepção lefebvriana, está, assim, profundamente ligada à noção de apropriação que remete a um conjunto de ações ligadas às três dimensões do espaço:
« Habitar, para o indivíduo, para o grupo, é apropriar-se de algo. Não como sendo dono, mas fazendo sua obra, fazendo suas coisas, isto é apropriar-se de algo. Isso é verdade para os indivíduos e para os pequenos grupos como as famílias, é verdade para os grandes grupos sociais como aqueles que habitam uma cidade ou uma região. ” (Lefebvre, 1977, p. 222).
27Os conflitos se produzem quando as restrições se opõem à apropriação e surgem as contradições entre as três dimensões do espaço, dos conflitos entre os desejos e necessidades:
“Habitar, isto é, apropriar-se de um espaço, é também estar constrangido, isto é, estar em um lugar de conflito, frequentemente agudo, entre os poderes de restrição e as forças de apropriação. Esse conflito sempre existe, quaisquer que sejam os elementos presentes. ” (Lefebvre, 1977, p. 223).
28A cidade se funda nessas contradições e em uma transformação permanente ligadas à diversidade de seus atores, às motivações múltiplas, à multiplicidade de suas formas de apropriação, como aquelas que decorrem da cultura e do patrimônio, do meio ambiente, da habitação ou da mobilidade, além das tradicionais lutas de lutas de classe provenientes das assimetrias das formas de produção. Na prática, entretanto, essas diferenças são tratadas por normas e leis uniformizantes que consideram como iguais situações e pessoas diferentes e reproduzem as diferenças sociais. Esta pretensa neutralidade da administração, a qual é corolário conceitual da homogeneização, produziu no Brasil um aparato legislativo que reforça a exclusão social historicamente inscrita na colonização do país e que falhou na produção de cidades mais justas e que agrava suas contradições. Esta constatação faz eco à crítica radical da urbanização feita por Lefebvre em A Revolução Urbana, 1970: se habitar se constitui em uma demanda social e uma necessidade, esta necessidade nunca poderia se tornar um ordenamento social. “O urbanismo [...] não consegue criar senão um espaço urbano político e repressivo enquanto não se tratar da implementação de uma prática de apropriação para o ser humano do tempo e do espaço, isto é, de sua liberdade”. (Souyri, 1970, p. 1204)
29A solução para resolver a complexidade urbana não está, então, em seu tratamento homogêneo disfarçado por detrás de esquemas de urbanismo rígidos ou considerando a população de maneira genérica. Lefebvre se pergunta como ocorre essa rigidez e apresenta uma resposta ao problema:
“Não podemos [...] definir o urbano por um sistema (definido), por exemplo de desvios em torno de invariâncias. Ao contrário. Sua concepção impede a prescrição daquilo que reduz ou suprime as diferenças. Implica, sobretudo, a liberdade de produzir diferenças (de notar e de inventar o que difere). ” (Lefebvre, 1970, p. 229-230).
30Ao contrário da proposição de Lefebvre, o que nós vemos na gestão dos arranjos convencionais das cidades brasileiras são métodos e legislações que tendem a congelar as cidades e desdenhar a profunda fratura social que caracteriza a sociedade brasileira, ainda que tudo seja motivado pelas diversas lutas pelo direito à cidade (Souza e Rodrigues, 2004). As políticas urbanas são frequentemente desconectadas de políticas sociais mais amplas; a produção do espaço urbano se resume à aplicação de regras como coeficientes e taxas de ocupação do solo ou se limita às atividades “economicamente produtivas”. Nesse sentido, o direito à cidade não é somente o direito de habitar o centro ou o acesso à uma parte qualquer da cidade. Na realidade, o direito à cidade levanta questões mais complexas, aquelas da justa distribuição dos custos e benefícios gerados pela cidade, a reversão das barreiras sociais invisíveis que segregam os espaços, a possibilidade de diversas formas de apropriação de seus espaços, a garantia da mobilidade urbana. Mas, para garantir esses direitos, é necessário que se garantam os meios que lhe permitam ser exercidos.
31Após a promulgação do Estatuto da Cidade, talvez em razão do atraso de sua aplicação ou da sua incapacidade de alcançar as verdadeiras causas das desigualdades e das injustiças urbanas, observamos que a maior parte dos movimentos tradicionais de contestação continuam existindo, mas agora reforçados pelo poder da internet e das redes sociais.
32Um exemplo mais recente, além da Praia da Estação: as manifestações populares massivas de junho de 2013 no Brasil. O estopim teria sido o aumento do preço das tarifas de transporte coletivos nas grandes cidades brasileiras e vimos, nessa ocasião, a adesão da oposição radical de diversos grupos de jovens em todo o país. Esses grupos se insurgiram quanto às decisões decorrentes da organização da Copa do Mundo no Brasil, além dos Jogos Olímpicos de 2016, e protestaram contra a enorme carga que representava para o país a construção e reforma de estádios, obras consideradas inúteis diante das enormes urgências sociais do conjunto da nação brasileira. As reivindicações eram diversas e tendiam, na verdade, a criticar a forma de organização do Estado brasileiro (Bautes, 2013). O perfil dos manifestantes era bastante diversificado, as manifestações reuniram, a uma só vez, jovens e velhos, famílias e grupos radicais praticando a “ação direta”, vandalismo e violência.
33O país observou, perplexo, essa grande convulsão social e, pelo caráter difuso das manifestações, ainda não assimilou totalmente seu conteúdo. No entanto, elas apareceram como uma nova forma de ativismo social e foram consideradas como uma nova estratégia de participação em busca de novas formas de governança. Desde então e ainda hoje, esses movimentos, de grandes manifestações de rua, facilmente convocados graças às redes sociais, se tornaram parte integrante da vida política do país. Eles certamente contribuíram para a destituição da Presidente Dilma Roussef e se constituem como um reflexo da opinião pública que “se batem pela democracia participativa, diferentemente dos antigos movimentos que lutavam pela cidadania dentro de uma democracia representativa” (Santos, 2004).
- 11 Palavras da canção Rep (Gilberto Gil), retomadas por Gilberto Gil quando era Ministro da Cultura em (...)
34Chega a ser paradoxal que após tantos movimentos de reivindicação e participação democrática direta, o país tenha elegido um presidente de extrema direita, Jair Bolsonaro. Parece que o desejo de mudança era tão forte que pendeu para o outro lado extremo da balança, de forma mais reativa do que propositiva, o que nos faz refletir sobre as palavras do cantor Gilberto Gil, ex-ministro da cultura do governo Lula, de esquerda: “o povo sabe o que quer, mas às vezes quer o que não sabe”11. Passados pouco mais de um ano do governo Bolsonaro, os movimentos pró e contra novamente ganham as ruas, ainda que amainados pela pandemia, mas a agenda local agora parece ter se distanciado das reivindicações face à necessidade de se buscar novamente certos princípios básicos mais gerais de defesa da democracia.