1Este artigo tem como objetivo questionar como os processos decisórios baseados na participação pública e que permitem a expressão de divergências podem levar a uma exacerbação de antagonismos entre indivíduos ou grupos sociais. Trata-se de estudar os processos de tomada de decisão por meio dos antagonismos que surgem entre as partes envolvidas. Por essa razão, esses processos são questionados a partir da noção de negociação como uma modalidade de tomada de decisão fundamentada em um arranjo das preferências das partes para chegar a um acordo (Thuderoz, 2010, Kuty, 2004). Esses processos de tomada de decisão são analisados como negociações a fim de estudar o papel do conflito na elaboração da decisão.
2A análise baseia-se na comparação de dois processos decisórios negociados para permitir a implantação das duas áreas protegidas, uma no Brasil e outra na França. Nesses países, há duas e, agora, há três décadas, inúmeras decisões públicas assentam-se em uma fase de negociação entre as partes envolvidas.
3Para tanto, o artigo é composto de três partes. A primeira é dedicada ao esclarecimento das noções, a de negociação com relação ao conflito, a fim de definir o papel que ele desempenha em uma negociação. A segunda visa a comparar os processos de tomada de decisão dos dois campos, francês e brasileiro, com base nas observações feitas, sobre o lugar da expressão dos conflitos. Finalmente, a terceira parte dedica-se à análise do papel do conflito na negociação de acordo com a organização do espaço público de cada país em relação à das negociações.
- 1 C. Thuderoz (2010), ampliando a análise de William Zartman, identifica quatro modos de tomada de de (...)
- 2 Esse modo de decisão é também distinguido da barganha (bargaining), em que se trocam as posições pa (...)
4A ligação entre negociação e conflito foi analisada de diferentes formas. Graciela Mota (2006), por exemplo, enfatiza que a negociação pode ser, do ponto de vista político, uma ferramenta para persuadir e lidar com conflitos. Perspectiva retomada por Christian Thuderoz (2010), para quem uma negociação é prevista como um mecanismo de gestão de conflitos no qual as partes ajustam suas preferências para chegar a um acordo que não ocorra às custas das posições de uma ou de mais partes envolvidas. O conflito, concebido como um antagonismo entre grupos sociais ou indivíduos (Riu, 2011), está, portanto, na origem de qualquer negociação1. A peculiaridade da negociação como modalidade de gestão de conflitos é que ela requer a participação das partes envolvidas pelo conflito para desenvolver um acordo integrando suas posições. As partes entre si não são, portanto, nem adversárias nem parceiras, mas ambas ao mesmo tempo. De fato, o acordo só pode ser obtido se um negociador conseguir concomitantemente afirmar suas preferências, alinhando-as com as expectativas de seus interlocutores, tais como as percebe (Freidberg, 2009). Para tal, as partes devem construir uma estrutura de comunicação regrada pela troca recíproca, que lhes permita organizar suas preferências. Nessa perspectiva, a análise da negociação destaca as modalidades de tomada de decisão, quer sejam estudadas por meio de uma leitura estratégica da negociação (Walton et al., 2000), das relações de poder entre negociadores (Zartman, Rubin, 2002), dos contextos de negociação (Strauss, 1978), ou do objetivo da negociação definido entre criação e reivindicação de valor (Lax, Sebenius, 1995)2.
5Até agora, o conflito nas negociações foi tratado de forma unívoca. No entanto, de acordo com as análises, existem diferentes formas de olhar para esses conflitos e interpretar seu papel nas negociações. Mais concretamente, nas publicações dedicadas à negociação coexistem dois tipos de conflitos, que não se excluem mutuamente. Por um lado, a questão do conflito pode estar relacionada tanto aos valores quanto à articulação dos valores envolvidos nas negociações (Kuty, 1998), opondo frequentemente, nas negociações ambientais, valores sobretudo econômicos aos relacionados à proteção do meio ambiente. Nesses casos, a questão do conflito remete a antagonismos sobre formas de conhecer o ambiente natural (Van Tilbeurgh, 2007). Por outro lado, a administração desse primeiro conflito no processo de negociação pode gerar um segundo, desta vez com relação ao processo de tomada de decisão, acrescentando, assim, um conflito organizacional.
Área protegida: Várzea do Rio Tietê e Parque marinho no mar de Iroise
6Na bibliografia sobre negociações, o conflito organizacional pode assumir muitas formas. Assim, é frequentemente retomada a oposição descrita por David Lax e James Sebenius (1995) entre negociações cooperativas (integrativas) e outras mais conflituosas (distributivas). Em seu trabalho, esses autores correlacionam esses dois segmentos de negociação à tensão entre a criação e a reivindicação de valor. Quando a negociação está em uma fase de criação de valor, os negociadores concordam em organizar suas preferências em uma abordagem integrativa, ao passo que a distribuição do valor, como a modificação de uma atribuição, leva mais frequentemente a negociações competitivas (distributiva). Em outras palavras, as negociações são cooperativas quando os negociadores se coordenam em torno de uma única e mesma ação, buscando um acordo sobre objetivos comuns. São competitivas quando os objetivos da negociação são divergentes entre os negociadores. Em um mesmo processo decisório, essas duas formas de negociação, cujos antagonismos entre as partes são explícitos de forma distinta, podem coexistir sucessivamente, mas, em qualquer segmento de negociação, todas as partes concordam que a decisão deve ser negociada.
- 3 Frequentemente se estabelece um vínculo, aliás, entre a menor pregnância de um princípio externo de (...)
- 4 Esses meios de imposição compreendem, simultaneamente, técnicas de comunicação (ameaças, pressões, (...)
7Em alguns casos, o conflito resulta na transgressão da estrutura da troca recíproca por uma das partes que, então, impõe suas preferências, forçando uma decisão imposta no lugar de uma decisão. Essa situação é tão frequente que alguns autores chegam a considerá-la consubstancial à negociação, vendo nela o prolongamento da negociação por meio do exercício de relações de dominação (Thuderoz, 2010, Mermet, 2009, Strauss, 1978). Certamente, a imposição modifica a legitimidade da decisão, fazendo-a repousar mais na autoridade da instância decisória do que na co-construção pelas partes envolvidas da decisão. Essa imposição pode construir um novo antagonismo em torno da legitimidade da decisão se a autoridade da instância que impõe suas preferências for questionada pelos negociadores3. A decisão será então imposta em relações de força4, participando de uma escalada na expressão do conflito (Pruitt, Rubin, 1986).
8Têm sido buscados fatores para explicar essas transiçoes entre negociação e imposição. Segundo alguns autores, os fatores estão relacionados ao contexto da negociação, como a experiência dos negociadores, por exemplo (Strauss, 1978). No entanto, essa transição é explicada pelo fato de que as partes podem obter um benefício imediato do desrespeito à troca recíproca sem que seu comportamento seja diretamente sancionado na ausência de normas explícitas que condenem essa atitude. Assim, para explicar tal transição, também foram buscados fatores no contexto global da negociação. Vários pesquisadores enfatizaram, em particular, o vínculo entre decisões públicas na França, que envolvem pouca decisão negociada, e o tipo de contrato social baseado no interesse geral definido e representado pelo Estado (Mermet, 2000; 2006, Thuderoz, 2010).
9É essa transição geradora de antagonismos que interrogamos no artigo. Nas negociações observadas, tal transição foi realizada pela administraçao ou pelos politicos locais, questionando a capacidade de legitimar a decisão pública com base na participação do público. Ou seja, essa transição questiona o processo de legitimação da decisão pública quando não pode mais se assentar exclusivamente em relações de autoridade.
10Os dois processos comparativos de tomada de decisão dizem respeito a áreas protegidas: o Parque Natural Marinho Mar de Iroise (Bretanha, França) e a área protegida da Várzea do Rio Tietê (São Paulo). Analisamos os processos de tomada de decisão que levaram à criação do Parque Marinho francês e a elaboração do plano de gestão da área protegida que orienta o planejamento e o uso de uma unidade de conservação brasileira. A análise do conflito no processo de tomada de decisão concentra-se na transição de negociação para imposição e nas reações que ela desperta para discutir seu papel na decisão pública. A hipótese é que essa transição gera sua própria dinâmica conflituosa, que se expressa de forma variável na França e no Brasil conforme o contexto das negociações e, mais especificamente, de acordo com a organização do espaço público e das negociações. Analisaremos, simultaneamente, os fatores que contribuem para a transição de troca recíproca para imposição, bem como aqueles que explicam as reações a essa transição.
11Na França, os dados foram coletados entre 2000 e 2009; no Brasil, em 2011. Essas diferentes temporalidades na coleta de dados referem-se aos processos estudados. De fato, a situação francesa foi palco de uma mobilização coletiva desafiando a decisão e ampliando o processo de tomada de decisão, o que não foi o caso no Brasil, onde a decisão foi estabilizada muito mais rapidamente. Em ambos os casos, foram realizadas observações participativas (seminários, oficinas, reuniões, visitas de campo) e entrevistas semi-diretivas foram realizadas com negociadores diretos e agentes envolvidos nas negociações. No total, foram realizadas mais de 80 entrevistas: cerca de 60 referentes ao Parque Marinho e 20 ao APA (Área de Proteção Ambiental), devido a um procedimento de decisão mais limitado em termos de duração e número de agentes envolvidos. Além disso, inúmeros documentos administrativos, resenhas e relatórios foram consultados.
- 5 Os dispositivos ambientais estudados têm o objetivo principal a proteção da biodiversidade. Como an (...)
12O Parque Natural Marinho Mar de Iroise está localizado a oeste da Bretanha e abrange uma área de 3.500 km25. As principais atividades econômicas incluem pesca costeira, coleta de algas marinhas, turismo e atividades náuticas de lazer. O processo de acordo entre as partes para criar uma área protegida em uma perspectiva de gestão integrada levou 18 anos. Os principais agentes envolvidos nessas negociações foram políticos locais, representantes das secretarias interessadas, agentes socioeconômicos, representantes de associações de usuários, gestores de áreas já protegidas e peritos.
Localização do parque marinho no Mar de Iroise
Fonte: https://vertigo.revues.org/170
- 6 Esse contrato resulta de uma compensação ambiental da empresa Transportadora de Gás/TAG/ Petrobrás.
13A Área de Proteção Ambiental (APA) de Várzea do Rio Tietê compreende 12 cidades em torno de São Paulo, incluindo a metrópole, e ocupa uma área de 74 km2. Esta área desempenha um papel na conservação da biodiversidade local, mesmo que constituída principalmente de áreas urbanizadas. Ela deve possibilitar a conservação de zonas não urbanizadas às margens do Rio Tietê. Os principais problemas levantados são a criação de aterros não autorizados e a apropriação privada ilegal de terras adjacentes ao rio, causando a inundação de propriedades durante as cheias. Essa área protegida, criada em 1987, não possuía plano de gestão até 2011, quando uma equipe de aproximadamente dez pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP)6 acompanhou o responsável pela gestão da área protegida (Fundação Florestal) na realização de um plano. Os principais agentes que participaram da negociação foram representantes das secretarias locais, agentes econômicos (industriais, construtoras, agricultores), representantes das associações ambientais e associações de bairro, gestores da APA e peritos.
Localização da APA Várzeas do rio Tietê
As cores representam as áreas censitárias incluídas na APA, os nomes são os dos municípios dos quais fazem parte dela
Fonte: Hervé Théry 2012
14Esses dois dispositivos ambientais não são equivalentes. Trata-se de uma área marinha e uma urbanizada de superfície variável. Além disso, a preparação dos planos de gestão é uma operação anterior à da realização dos estatutos. O que justifica a escolha dessas áreas a transição, em ambos os casos, de uma decisão negociada para uma decisão imposta, trazendo para tal a comparação sobre as negociações e não sobre o próprio dispositivo ambiental. Essas negociações têm, além disso, outras características comuns: exigência da participação pública e mobilização dos mesmos tipos de agentes. Enfim, a decisão discutida terá impacto direto no cotidiano dos moradores. Esses elementos traçam convergências entre os processos de decisão estudados quanto ao papel, às características e ao envolvimento das partes.
15O projeto do Parque Marinho começou a ser discutido na década de 1990; desde então, o Ministério do Meio Ambiente impôs que os estatutos do Parque fossem co-construídos com as partes interessadas, em um comitê de direção, dividido em grupos temáticos. O processo de negociação não é linear, três projetos que englobavam outros três projetos territoriais se sucederam e foram apoiados, um por vez, por um jogo de alianças específico entre os atores. O objetivo do primeiro projeto era proteger o meio ambiente em torno de espécies animais emblemáticas. O segundo visava implementar ferramentas de conservação para todo o ecossistema do Mar de Iroise. Os objetivos do terceiro projeto, que foi finalmente estabelecido, são mais diversificados, incluindo a proteção da biodiversidade, a gestão dos riscos ambientais, a preservação das paisagens e do patrimônio cultural, a partir de uma perspectiva de gestão integrada. Os dois primeiros projetos falharam devido a protestos de atores locais para quem a decisão foi imposta.
16O processo de elaboração do plano de gestão da APA no Brasil baseou-se, desde o início, na participação social (imposta pela legislação brasileira). Em 2011, foram realizadas atividades de formação (seminários e fóruns) e oficinas participativas. Enquanto os seminários foram abertos à população em geral, a participação nas oficinas foi limitada aos conselheiros da APA, que representam o governo, a sociedade civil e a comunidade local.
17Seja nas negociações sobre os estatutos da área protegida ou em torno do plano de gestão, o arranjo de preferências foi guiado pela ecologia científica. Realmente, tanto os planos de gestão como os estatutos de proteção deviam possibilitar a identificação de indicadores, em sua maioria, resultantes da ecologia científica. O princípio geral dessa abordagem era considerar que a melhoria do desempenho do indicador refletiria uma melhoria da biodiversidade local ou uma estabilização da dinâmica dos fluxos de água, que são os objetivos das negociações. Esses indicadores foram, então, transformados em padrões de gestão que transformam a regulação das atividades humanas, integrando restrições elaboradas a partir da ecologia científica. As operações concretas discutidas nas negociações diziam respeito a esses indicadores ou às ações que eles requeriam.
18Outro ponto comum a ambos os campos foi a organização das negociações: foram concebidas e tuteladas pela estrutura administrativa ambiental, com exceção daquelas organizadas em torno do primeiro projeto de Parque Marinho, que tiveram o auxílio das autoridades locais. Desenvolveram-se principalmente em oficinas ou grupos temáticos. A abordagem adotada foi criar um espaço dentro desses grupos que permitissem debates para organizar as preferências das partes. Essas preferências divergiram em torno de dois eixos: um desles confrontando as preferências dos ambientalistas (ativistas ou experts) às dos agentes econômicos, os primeiros privilegiando as ações de proteção ambiental e os segundos, a exploração dos recursos naturais; o outro eixo tensionando as preferências das comunidades locais ou dos políticos locais com os das administrações, os primeiros querendo perpetuar os costumes locais, enquanto que, para os segundos, essa perpetuação dependia de seu impacto no meio ambiente.
19Em ambos os casos, as negociações se desenvolveram sob o controle de uma das partes envolvidas, os políticos locais ou a administração do meio ambiente. O controle da negociação mudou em cada projeto de parques marinhos. No primeiro projeto, as negociações foram assumidas pelos políticos locais e pela administração descentralizada do meio ambiente. No segundo, foi a administração central do meio ambiente que liderou as negociações, delegando um representante para a negociação. No terceiro, a organização das negociações repousava, ao mesmo tempo, nos políticos locais e na administração central. Os acordos dos dois primeiros projetos ratificaram o ponto de vista dos organizadores das negociações, enquanto aquele que permitiu a criação do parque foi mais inclusivo. No caso do Brasil, todo o processo de negociação se desenvolveu sob o controle da Fundação Florestal. Todas as decisões foram tomadas com o apoio do órgão ambiental do governo, embora ele sempre tenha mantido um discurso inclusivo.
20O que diverge entre os dois campos é a maneira como a mudança ocorreu. Nas negociações sobre o estatuto do parque marinho, as discussões do primeiro projeto foram dominadas pelas preferências das partes organizadoras (um pequeno perímetro para o parque marinho), que conseguiram sufocar as vozes discordantes. Uma vez que as partes dominantes impuseram suas preferências, elas apelaram para a administração central do meio ambiente para que fosse aberta uma missão encarregada de instruir o processo. O responsável dessa missão reuniu-se com cada negociador, que pôde expressar-se livremente, registrou as divergências e propôs um segundo perímetro mais amplo, que correspondia melhor às expectativas dos ministérios do meio ambiente e do mar. Gradualmente, esses dois projetos foram construídos como antinômicos (um pequeno contra um grande perímetro de proteção). As negociações confrontaram então as duas opções apoiadas por duas coalizões, cada uma delas querendo impor seu projeto até que o ministério impôs o seu, operando uma segunda transiçao entre negociação e imposição. Em ambos os projetos, a decisão final foi imposta, gerando conflitos que dificultaram a operacionalização da decisão. Os agentes envolvidos justificaram essas duas mudanças recorrendo à noção de interesse geral, que legitima a política (local ou central) de impor suas escolhas. Diante dos protestos gerados por suas imposições, uma terceira rodada de negociações foi aberta com base na inclusão das preferências das partes. Todavia, como esses conflitos deixaram sua marca, essa nova rodada de negociações não permitiu que o projeto fosse cumprido e as partes se opuseram a ele com mais vigor. O perímetro do parque foi redesenhado para excluir o epicentro do protesto, enquanto a administração teve de abandonar seu projeto de parque nacional pelo de parque natural marinho, menos restritivo.
Extração de areia no leito maior do Tietê
21[Image non convertie]
Fonte: Hervé Théry 2012
22No caso do Brasil, os agentes econômicos que não concordavam com o projeto ameaçaram usar seus suportes institucionais para fazer ouvir suas vozes, seja através de suas relações políticas pessoais, seja usando suas estruturas e conhecimentos jurídicos. Por outro lado, os grupos minoritários (as associações ambientalistas e as comunidades locais) tinham como único meio de expressão os debates, embora seus argumentos fossem frequentemente eliminados pelo discurso técnico-legal mantido pela organização responsável. Representantes da comunidade local e de associações ambientais fizeram pouco para mobilizar as populações locais para pressionar os responsáveis da área protegida.
23Nos dois casos, as negociações permitiram a expressão das preferências das partes, mas nenhum procedimento para integrar essas preferências na decisão foi posto em prática, exceto nos debates sobre o terceiro projeto, transformando-o radicalmente. Em outras palavras, as negociações colocaram antagonismos entre as partes no espaço público. A transição para uma decisão imposta permitiu fechar o debate no Brasil, mas ampliou-o na França, obrigando-o a uma transformação radical do projeto. É essa divergência entre as duas situações que é analisada na terceira parte a partir da organização diferenciada dos espaços públicos.
24Os gestores da APA estavam particularmente preocupados com a dimensão participativa do procedimento imposto por lei. Os gestores buscaram trazer, portanto, um grande número de pessoas, adotando uma interpretação quantitativa da participação (quanto maior a participação nas oficinas, mais participativo era o processo), o que condicionou a organização de oficinas e atividades públicas. Além disso, essa participação foi concebida como uma resposta a um procedimento administrativo e não como uma ação coletiva de tomada de decisão. Assim, os participantes puderam expressar seu ponto de vista, mas, em caso de divergências com as posições dos gestores, estes adotavam um discurso normativo para minimizá-las a partir da mobilização de dados científicos ou do quadro jurídico do processo. Os participantes tendiam a se submeter a esse contra-argumento e o conflito frequentemente se dissipava. Quando persistiu, foi mantido por um grupo de atores com interesses econômicos e influência política na região. Nesse caso, os gerentes da APA reabriram o debate, mantendo a mesma estratégia: deixar os participantes se expressarem, mas insistindo em sua posição baseada em argumentos científico-legais. A partir de entrevistas com gestores, essas discordâncias pareciam ser um fardo, um obstáculo a ser superado e não parte de um processo decisório coletivo.
Parque Ecologico do Tietê
Fonte: Hervé Théry 2012
- 7 O historiador José Murilo de Carvalho (2001) explica essa característica do espaço publico pelo fat (...)
25Essa estratégia que leva à aceitação de decisões impostas refere-se, de forma mais ampla, à estruturação do espaço público no Brasil. Ela baseia-se na hierarquia das relações sociais em que a palavra do Estado – que tem autoridade – se impõe em nome do interesse geral7. Da mesma forma, as desigualdades sociais, culturais e políticas, bem como as relações políticas caracterizadas pelo clientelismo e pela personalização das relações políticas (Baquero, 2001, 2012) explicam a dificuldade de mobilização e engajamento em confrontos políticos (Demo, 1999, 2001, Gohn, 2005, 2011).
26A situação na França foi diferente. Durante as negociações sobre o primeiro projeto de Parque Marinho, o conflito foi entre uma rede local (formada por seu líder, político local com muitos mandatos, experts, responsáveis da administração descentralizada do meio ambiente e vários prefeitos) e outros agentes, diretores administrativos e experts, menos integrados localmente. A transição entre negociação e imposição era legítima para o líder da rede local, que se tinha como o portador do interesse geral. Em uma segunda etapa, a missão da administração do meio ambiente tirou o projeto de sua ancoragem local, pois o gabinete do ministro do Meio Ambiente impôs o novo perímetro de proteção. Essa decisão imposta foi imediatamente contestada, inclusive dentro do próprio comitê diretivo do Parque Marinho. Por trás da imposição era questionado o papel desse comitê: alguns de seus membros consideraram que a administração central lhe confiscava a decisão, transformando a negociação em uma negociação-álibi para legitimar sua ação.
27A decisão da administração central também foi contestada por agentes não diretamente envolvidos nas negociações. Essa contestação foi organizada por uma associação que reúne usuários da área marítima, essencialmente pescadores não profissionais (aposentados). Essa associação investiu no espaço público (ocupação de um lugar, manifestações, slogans à beira da via pública, etc.) por não conseguir levar suas reivindicações às negociações. Graças a uma mudança política (troca de ministro), à saída dos líderes da rede local e do responsável da missão do Parque Marinho, uma terceira rodada de negociações foi inaugurada. Todas as reivindicações locais foram discutidas, mas não se aceitou no novo projeto a entrada dos representantes de pescadores, particularmente mobilizados na área sul do parque, a qual foi excluída do perímetro de proteção.
28As transiçoes entre negociação e imposição foram todas impulsionadas por uma aliança entre políticos ou a administração e experts. A diferença entre os campos brasileiro e francês é a reação à imposição. Contestada na França, foi somente pela afirmação de uma identidade política no espaço público que os oponentes puderam fazer ouvir suas preferências. No Brasil, a relação hierárquica entre a administração ambiental e os outros negociadores ajudou a alinhar suas posições com as da administração. Essas distinções referem-se a concepções diferenciadas do papel da sociedade civil no espaço público e das normas sociais que dela decorrem.
- 8 Em 1981, o projeto de implantação de uma central nuclear em Plogoff, no Cap-Sizun, é abandonado apó (...)
29Na França, a noção de negociação-álibi foi formulada pelos oponentes para insistir na falta de legitimidade de uma decisão imposta que nenhum princípio externo de autoridade, como o interesse geral, conseguiu tornar aceitável. A luta dos habitantes da região do Finistère contra o Estado na época dos acontecimentos de Plogoff8 foi reatualizada para legitimar a resistência face às decisões impostas pela administração central. Assim, enquanto as autoridades eleitas e administrações impunham uma decisão em um contexto em que ela deveria ser negociada, nenhuma norma social pôde ser mobilizada pelos negociadores para tornar essa imposição aceitável.
30No caso do primeiro projeto de parque marinho, a noção de interesse geral levou ao bloquear a expressão de partes divergentes, enquanto a sua mobilização, no segundo projeto, legitimou a saída, pela administração, do âmbito negociado da decisão pública. Assim, a transformação das negociações em meras instâncias consultivas mostra que esse interesse geral ainda funciona como uma norma social para os agentes políticos (políticos eleitos e administrações), enquanto os outros negociadores se construíram em um contra-poder oposto à transição entre dois modos de legitimidade da decisão, da emanação de um coletivo até um princípio de autoridade externa.
Oficina de planejamento do plano de manejo da APA
- 9 Essa análise converge com outras pesquisas feitas no Brasil (Jacobi e Fracalanza, 2005; Cozzolino e (...)
31No Brasil, a legitimidade, do ponto de vista dos representantes das administrações também foi sustentada por essa noção de interesse geral, no sentido de que seu ponto de vista pôde ser imposto às outras partes. A diferença da situação francesa refere-se à relação entre a sociedade civil e os representantes da administração. Os representantes da sociedade civil nas negociações não perceberam este espaço e a prática coletiva de elaboração do plano de gestão como um lugar ou uma ação de contra-poder, com eventualmente um significado concorrente ao das partes representando o interesse geral9. Em vez disso, esses negociadores forneceram a imagem de uma sociedade civil submetida à administração, na qual apenas os atores movidos por seus próprios interesses e com recursos (políticos, econômicos ou científicos) podem influenciar a decisão. A personalização das relações no espaço público está, portanto, relacionada à concepção da sociedade civil, permitindo que a administração dite as regras do jogo de acordo com seus próprios valores e os dos atores com os quais ela mantém relações personalizadas na ausência de ruptura entre as esferas pública e privada. De modo mais amplo, essas concepções diferenciadas da organização do espaço público têm consequências sobre o conflito e sua expressão nas negociações.
32No caso da APA da Várzea do Rio Tietê, havia uma distinção desde o início das negociações entre representantes do Estado e da sociedade civil. Essa distinção apareceu no discurso de cada ator que se apresentou de acordo com sua filiação institucional (Estado, representantes da indústria ou do meio ambientalista). No entanto, alguns representantes do Estado qualificaram-se de forma diferente. Como suas habilidades pareciam-lhes sobretudo técnicas, consideravam-se imparciais porque detinham um conhecimento apropriado, ao passo que, segundo eles, os representantes da sociedade civil tinham um ponto de vista parcial ao adotar comportamentos políticos individualistas para defender seus interesses. Os representantes da sociedade civil, por outro lado, tinham tendência a designar os representantes do Estado como "defensores da autoridade", ao mesmo tempo em que se consideravam "representantes dos interesses populares". Em situações de maior tensão, essas duas categorias de negociado-seres opuseram, adotando elementos de linguagem, de maneira explícita ou alusiva, para estruturar ou reforçar a resistência de seu grupo, transformando-os em marcador identitário. O uso desses marcadores, amplamente utilizado nos debates, reforçou a posição hierárquica ocupada pelos representantes do Estado, consolidando a ideia de que o técnico do Estado supera o político da sociedade civil.
33As identidades políticas desempenharam um papel semelhante no Parque Marinho. O conflito entre os dois projetos foi conduzido por uma simplificação das posições baseada no reforço das identidades políticas (projeto de esquerda contra projeto de direita, projeto baseado no controle dos usuários contra sua liberdade). O conflito entre os dois projetos chegou a gerar identidades políticas. Assim, os pescadores amadores classificaram gradativamente suas práticas de pesca como "usos e costumes ancestrais", o que permitiu que suas reivindicações fossem levadas em consideração. Foi essa ancoragem de suas práticas na tradição local que lhes serviu, nos debates, de marcador identitário.
Parque marinho no mar de Iroise
http://www.zvonkoparis.com/fr/content/19-unesco-et-developpement-durable
34Em ambos os casos, deixar a estrutura de negociação teve o efeito de criar ou fortalecer as identidades políticas dos negociadores. De fato, identidades coletivas são construídas a partir de processos sociais vividos (Silva, 2000). Elas são determinadas a partir das experiências vividas pelas partes e que as ajudam a entendê-las, orientando seus comportamentos. Nesta perspectiva, é o acúmulo de antagonismos entre os negociadores sem que haja um acordo que transforma uma negociação em um processo coletivo de reconhecimento de adversários em que os interesses simbólicos e materiais de um grupo se opõem a outros. Essas identificações em torno da dicotomia oponente/defensor permitem que os negociadores encontrem um ou mais objetivo(s) que guiem a ação coletiva de resistência (Sandoval, 2001). Assim, as negociações mostraram uma inversão da relação causal entre conflito e negociação. Não é o próprio conflito que é o criador das identidades políticas, mas, sim, a falta de perspectivas de acordo que leva os negociadores e seu grupo de referência a reforçarem o que os distingue das partes às quais eles se opõem. Nos dois casos, a construção de identidades políticas antagônicas resulta do fato de que as preferências de certos negociadores não foram levadas em conta pela decisão imposta, embora as possibilidades de fechamento dos debates fossem variáveis.
35Diante do número de conflitos relacionados à decisão pública, alguns analistas passaram a encarar a política como a arte de lidar com divergências, conflitos e oposições. C. Thuderoz propõe encorajá-los e multiplicá-los para abrir novas perspectivas e aumentar as oportunidades (Thuderoz, 2010). No entanto, pudemos observar que as situações concretas de negociação nem sempre oferecem a possibilidade de encontrar uma solução para um conflito, inclusive dificultam a possibilidade de expressá-lo. Os textos jurídicos e regulamentares, tanto na França como no Brasil, estabelecem a participação pública na decisão, participando assim da expressão do conflito no debate público. Entretanto, esses textos limitados à participação pública não instituem nenhum modelo para negociar a decisão, desconectando a deliberação durante a qual os negociadores constroem e discutem suas preferências da decisão em si.
36Nas negociações estudadas, essa desconexão gerou três situações. A primeira se deu durante a elaboração do plano de gestão da APA: a decisão foi finalmente imposta pela administração e os demais negociadores se submeteram apesar de expressarem algumas divergências. A segunda situação foi identificada nas negociações dos dois primeiros projetos de parque marinho: autoridades eleitas ou a administração impuseram uma decisão que os negociadores recusaram. Finalmente, a terceira situação foi encontrada durante os debates sobre o terceiro projeto de parque marinho: as negociações permitiram organizar as preferências dos negociadores para chegar a um acordo.
Zone hortícola no leito maior do Tietê
Source: Hervé Théry 2012
- 10 Aliás, é quando essa etapa participativa ocorre tarde demais no processo de decisão que surgem cont (...)
37Nas duas primeiras situações, a negociação foi qualificada pelos políticos eleitos ou pelos responsáveis das administrações como pacto. A participação dos negociadores foi vista como resultado de um procedimento administrativo, uma etapa dentro de um processo decisório, e não como uma modalidade compartilhada de tomada de decisão. Essa noção de pacto corresponde, assim, à interpretação feita pelo promotor do projeto da participação imposta pela lei ou pela administração e tratada processualmente. Nesta perspectiva, a questão da legitimidade da decisão só existe com referência a textos jurídicos ou regulamentares. O pacto assim concebido divide o processo decisório em diferentes etapas, e somente algumas delas, definidas pela regulamentação, estão sujeitas à participação pública10. A diferença entre as situações brasileira e francesa é a estruturação do espaço público entre esses dois países: no caso da APA, ela levou ao alinhamento das posições dos negociadores à decisão imposta pela administração; na França, essa imposição reforçou o conflito. Apenas a terceira situação descrita referiu-se a uma modalidade de tomada de decisão baseada no arranjo das preferências das partes. Todavia, o objetivo dessa última negociação era que a administração resolvesse o conflito entre os defensores e os opositores do projeto, conflito que havia invadido o espaço público local. Assim, foi apenas diante de um conflito visível no espaço público e largamente instituído pela mídia, pelas comunidades locais, por associações, que os promotores do projeto construíram a negociação como uma modalidade de tomada de decisão organizando as preferências das partes para chegar a um acordo.
38De modo mais global, a negociação de decisões públicas, concebidas como um pacto, amplia o conflito para o próprio processo decisório em situações em que os negociadores não podem mobilizar modelos de comportamento no espaço público, tornando aceitável o alinhamento das posições dos negociadores às do coordenador do projeto. Em outras palavras, nesses casos, o pacto leva o conflito cognitivo para o processo de tomada de decisão sem fornecer uma modalidade para resolvê-lo. Essa observação coincide com o trabalho de Philippe Breton (2006), para quem existe em nossas sociedades contemporâneas uma "incompetência democrática" que tange, principalmente, à incapacidade de ouvir e considerar o outro em um processo argumentativo de tomada de decisão. Essa incompetência democrática levanta, mais precisamente, a questão das formas de assumir as divergências pelo político na ausência de objetivos amplamente inclusivos (Dorna, Costa, 2015), enquanto os políticos eleitos e a administração não podem se prevalecer de um princípio de autoridade que torne a imposição de uma decisão aceitável.
39Essa constatação permite outras reflexões. A democracia representativa foi constituída pelo uso da agregação (o voto) como uma modalidade de tomada de decisão, sendo a delegação de tomada de decisão sustentada por um princípio de autoridade. O questionamento desse princípio de autoridade mostra que a resolução de conflitos relacionados à decisão pública requer a implementação de outra modalidade de tomada de decisão, que permita que as partes façam valer suas preferências, mas isso requer reconhecer a existência de conflitos e, portanto, ouvir e levar em conta as vozes discordantes no espaço público e não apenas escutá-las em dispositivos participativos.