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A transformação da cozinha dentro dos apartamentos na cidade de Vitória, Espírito Santo: a ascensão do gourmet na virada do século

The transformation of the kitchen inside the apartments in the city of Vitoria, Espírito Santo: the rise of the gourmet at the turn of the century
La transformation de la cuisine à l'intérieur des appartements de la ville de Vitoria, Espírito Santo: l'essor du gourmet au tournant du siècle
Erick Alessandro Schunig Fernandes et Paulo César Scarim

Résumés

Cette étude analyse les aspects qui impliquent la relation entre la cuisine et les transformations de l'espace urbain dans la ville de Vitoria, Espírito Santo, au début de ce siècle. La ville a connu un processus de transformation intense résultant de l'action du secteur immobilier pour le logement, qui présente un style de vie dans les appartements. Au cours de la dernière décennie, ce secteur a mis en place des stratégies visant à accroître ses revenus, dans lesquelles on a commencé à utiliser le terme gourmet comme un signe visant à établir un lien entre nourriture et espace en termes de distinction sociale. La cuisine est insérée dans cette stratégie depuis sa nouvelle signification en tant qu’espace d’alimentation dans des appartements. À partir de la contribution théorique des auteurs et de l'analyse d'annonces immobilières dans un grand journal, il a été possible de trouver des indicateurs montrant la relation entre les changements de cet article domestique et notre vie quotidienne et l'introduction d'un nouveau rapport avec l'alimentation.

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Index de mots-clés :

Cuisine, Espace urbain, Gourmet, Publicité, Brésil

Index by keywords:

Kitchen, Urban space, Gourmet, Advertising, Brazil

Índice de palavras-chaves:

Cozinha, Espaço urbano, Gourmet, Propaganda, Brasil
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Texte intégral

1A sociedade atual se caracteriza pela influência das transformações produzidas pelo capitalismo ao longo dos últimos séculos, nas quais é possível destacar a difusão de novos conceitos que passaram a integrar nosso cotidiano. Dentre esses, chama a atenção alguns aspectos concernentes a nossa relação com os alimentos, principalmente ao analisarmos as mudanças relativas à cozinha enquanto espaço do alimento.

2Na perspectiva que envolve a cozinha, observamos que a sua transformação tem uma conexão que vai além das mudanças na forma de habitar. Mais do que ser caracterizada como o espaço do alimento na habitação, a cozinha é influenciada pelas questões que envolvem o núcleo familiar, pela dinâmica que abarca a produção agropecuária e todo o setor alimentício, além de diversos segmentos da indústria, em especial, os da construção imobiliária para habitação e de eletrodomésticos, cujas estratégias vêm influenciando o nosso cotidiano e a produção do espaço urbano. Portanto, percebemos a cozinha como um importante elemento indicador que vai além da nossa relação com o alimento, abrangendo, também, aspectos que refletem as mudanças em nossa sociedade.

3Em estudos pretéritos, envolvendo anúncios imobiliários de apartamentos residenciais na cidade de Vitoria (Mapa 1), observamos que a representação da cozinha revela a sua importância como um item de destaque na segunda metade do século passado. Neles foi possível perceber a existência de elementos que denotam uma relação entre as transformações urbanas dessa cidade, bem como a produção de um cotidiano em consonância com a sociedade de consumo. Também foi possível identificar tal relação consoante a análise de anúncios que envolvem a transformação da cozinha ao final do século XX.

4O primeiro artigo (SCHUNIG F. e SCARIM, 2017) parte da análise da cozinha dos apartamentos residenciais na cidade de Vitória a partir década de 1950 a 1970, como um espaço conectado às transformações promovidas pelo capitalismo. Foi realizado um levantamento qualitativo de propagandas veiculadas em jornal, bem como a utilização de autores que abordam a relação entre a produção do espaço urbano e a alimentação. A partir desta análise, foi possível constatar que a transformação na cozinha é um indicativo do modo de vida instaurado pela urbanização brasileira durante esse período.

5A produção da cidade vem sendo realizada a partir de diretrizes que se coadunam com a sociedade de consumo. Nela o apartamento residencial tem seu interior submetido a uma racionalidade que revela aspectos inerentes a esse espaço urbano, tal qual nossa relação com a alimentação. A cozinha aparece como um espaço indicador de transformações urbanas na cidade de Vitória e sua relação com a sociedade de consumo.

Mapa 1 : Localização da cidade de Vitória em relação ao Brasil, Estado do Espírito Santo e Região Metropolitana

Mapa 1 : Localização da cidade de Vitória em relação ao Brasil, Estado do Espírito Santo e Região Metropolitana

Fonte: SCHUNIG F. (2020)

6O segundo artigo (SCARIM e SCHUNIG F., 2018) analisa as décadas 1980 e 1990, período que envolve profundas transformações na capital do capixaba, cujas modificações envolvendo a cozinha revela aspectos das estratégias de agentes imobiliários, que abrange um novo conceito sobre a nossa relação com o alimento.

7Tais indicativos fornecidos pelos dois artigos nos remetem a um debate sobre a cozinha nos dias atuais, principalmente ao falarmos de habitações como apartamentos residenciais, cujas dimensões espaciais sofrem constantes modificações. Um primeiro aspecto observado indica que esse item, a cozinha, não desapareceu, apesar da criação de outros espaços destinados à alimentação. Mesmo perdendo sua singularidade, ela permanece como um dos espaços destinados ao consumo dos alimentos. De outra parte, a permanência desse lugar dentro do espaço doméstico também representa uma adaptação às transformações do cotidiano, no qual são instituídos novos ritos da vida moderna.

8Dessa forma, cabe uma indagação: Qual a dimensão ocupada pela cozinha dos apartamentos residenciais na cidade de Vitória nesse início de século? Percebemos a existência de indicativos no tocante a difusão de novos signos de identificação do espaço do alimento dentro da habitação. Para tentar responder a essa indagação utilizamos informações de anúncios publicitários de apartamentos residenciais de alto padrão, com uma metragem a partir de 3X13 cm/coluna de uma página no formato tabloide, coletados entre 2000 e 2010, no primeiro domingo dos meses ímpares, de jornal de grande circulação do Espírito Santo.

9A escolha pelo domingo se deu devido a audiência do caderno de classificados neste dia. A análise tem por base um levantamento realizado para uma dissertação de mestrado (SCHUNIG F., 2014), no qual foram coletados, na década de 2000, um total de 140 anúncios de apartamentos na cidade de Vitória. Destes, selecionamos treze, de acordo com os parâmetros estabelecidos. Contudo, optamos pela seleção dos quatro anúncios mais significativos, no tocante a menção de novos equipamentos de alimentação, que apresentasse boa qualidade gráfica quanto a resolução das imagens, além de possibilitar uma análise dentro dos parâmetros dessa publicação.

10Essa seleção trouxe indicativos analíticos atinentes da importância da cozinha nas estratégias do setor da construção imobiliária para habitação. Também utilizamos um anúncio, do ano de 2018, a fim de contextualizar a análise das estratégias de agentes imobiliários da década de 2000 com as transformações atuais.

  • 1 Entendemos que neste estudo o termo “gourmet” foi durante um tempo utilizado num sentido mais restr (...)

11A escolha do período que envolve a década de 2000 se justifica pelas transformações do setor da construção imobiliária, voltado para habitação na cidade de Vitória, que estão ligadas a difusão de novos conceitos envolvendo a alimentação, como o gourmet1. Esse período também se destaca pela utilização do marketing pelo setor da construção imobiliária capixaba como uma importante ferramenta para viabilização de novos produtos imobiliários, na qual percebemos uma relação entre as mudanças envolvendo a cozinha como espaço do alimento e as transformações urbanas na cidade de Vitória.

12Como referência teórica, utilizamos o aporte de autores como: Staszak (2001), Collignon (2010), Hoyaux (2003), Claval (2007), Barthes (1980), Bourdieu (1982; 2007), na discussão referente às possibilidades que envolvem o espaço doméstico e a cozinha como objeto de estudo da geografia. Em relação ao debate sobre o surgimento do gourmet e sua relação com o espaço, nos valemos do arcabouço teórico de Pitte (2001; 2002), Fishler (1995), Poulain (2002) e Goss (2004) e Lefebvre (2008). No tocante ao debate sobre a relação entre marketing, gourmet e produção imobiliária na cidade de Vitória, trabalhamos com informações de estudos de Costa (2002), Boutaud (2007), Boutaud e Lardellier (2002), Kotler (2000) Kotler, Kartajaya, Setiawan (2017), Ferreira (2010), Campos Júnior (2002), Reis (2007), Scarim e Schunig F. (2018), Schunig F. e Scarim (2017) e Schunig F. (2014).

13Por fim, realizamos uma análise na qual foi possível verificar elementos sobre as estratégias do setor da construção imobiliária que revelam aspectos sobre as transformações da habitação em apartamentos, especialmente no que se refere à cozinha e a consagração de outras áreas enquanto espaço destinado a alimentação. Nela foi possível observar indicativos de como estabelecemos a nossa relação com o alimento neste início de século.

A cozinha como objeto de análise da geografia

14Dentre os aspectos que envolvem este estudo, acreditamos que se faz necessário uma abordagem inicial sobre a importância da cozinha enquanto objeto de estudo. Num primeiro momento, destacamos a sua conexão com o espaço doméstico enquanto elemento importante para compreender essa dimensão.

15Trabalhos como os de Stazak (2001) e Collignon (2010) destacam a importância de se analisar o espaço doméstico de forma aprofundada, na medida em que possibilita entender a construção de aspectos do nosso cotidiano e da reprodução social. Ao mesmo tempo, traz um desafio metodológico de trabalhar com microescalas que permitam analisar a construção da dimensão espacial das sociedades em lugares como a habitação.

16Tal desafio também diz respeito a uma multiescalaridade que envolve a relação entre o micro e o macro espaço, ou seja, o interior e exterior da habitação, bem como as relações que os conectam. Adentrá-lo não significa um encerramento das conexões que envolvem o mundo exterior, dada as nossas relações concernentes ao consumo e as normas que caracterizam a sociedade atual.

17Acreditamos que a compreensão das transformações referentes ao espaço doméstico possibilita identificar as diferenças e a formas de reprodução existentes no interior de uma residência. Sua análise indica percebê-lo como um lugar que possui relação com o nosso corpo, na medida em que passamos parte do nosso tempo, além de se constituir numa expressão das divisões sociais, como a relação homem/mulher (COLLIGNON, 2010, p.208).

18Ao observarmos a importância do espaço doméstico como campo de estudo, destacamos a cozinha como um lugar diferenciado no tocante ao processo analítico que envolve a habitação. Configura-se como o lugar de abastecimento e de consumo do alimento, de manifestação da nossa experiência quanto a recordações de momentos, de sabores, das necessidades, da intimidade, dentre outras percepções. Em relação à cozinha, acreditamos que a mesma também se insere no desafio de análise multiescalar, na medida em que engloba a nossa relação com o alimento, envolvendo o que é ingerido e digerido e seus efeitos sobre a nossa saúde.

19Se pensarmos o espaço doméstico enquanto um lugar que nos remete a proximidade e segurança, tanto como proteção quanto no sentido de poder realizar ações, podemos compreender a cozinha como o lugar em que se encontram os alimentos, o espaço de abastecimento da família ou do indivíduo. Como um item do espaço doméstico, a cozinha integra um espaço primordial da práxis, no sentido de que os seres e as coisas estão sempre em seu lugar, sem que os habitantes tenham que se perguntar onde estão (HOYAUX, 2003, p.9).

20Para tanto, identificamos na cozinha e no espaço doméstico um campo de análise inserido numa perspectiva que envolve a relação entre o habitus, o habitat e a habitação. O habitus é compreendido neste estudo a partir dos trabalhos de Pierre Bourdieu. A partir da vasta produção acadêmica desse referido autor, Catani, Nogueira e Medeiros (2017, p.214) sintetiza o conceito de habitus como um sistema de disposições instituídas e que integram nossas experiências, funcionando em cada momento como uma matriz de percepções, apreciações e ações. No que tange ao habitat, o percebemos como um elemento que envolve a produção do urbano e de um modo de vida. Já a habitação se caracteriza como a idealização, a distinção na sociedade através da moradia.

21Nesse sistema o simbólico ganha destaque como elemento entre os grupos sociais, cuja manifestação ocorre de diferentes formas, dentre as quais destacamos a instituição de distinções através das práticas alimentares. Sobre tais distinções, Claval (2007, p.255) identifica a alimentação como um elemento que reflete as estruturas da sociedade, separando aqueles que estão no topo da pirâmide social e que dispõem de poder, daqueles que são atingidos pela escassez e fome.

22Dentro da discussão que envolve a criação de distinções, ressaltamos o gosto enquanto elemento importante entre os grupos. Sobre esse tema, Bourdieu (1983, p.128) entende que o gosto pode ser compreendido como o conjunto de práticas e de propriedades de uma pessoa. O gosto classifica os sujeitos sociais a partir de distinções (BOURDIEU, 2007, p.13) e, sendo um elemento de classificação, distingue a posição dos sujeitos dentro das classificações adjetivas.

23Em relação ao consumo do alimento, o gosto transcende as necessidades básicas humanas, separando o que pode ser considerado um prato requintado de uma refeição popular. Porém, o processo de criação de distinções obedece a uma dinâmica que envolve práticas dos grupos sociais, o que acarreta na criação de classificações e de significados.

24No que se refere a criação de significados, Bourdieu (1982) fornece subsídios interessantes ao analisar a instituição de ritos. Para ele, o ato de instituir consiste em consagrar um estado das coisas, estabelecendo uma diferença ou distinção (BOURDIEU, 1982, p.59). No debate que envolve a alimentação, percebemos em nossa análise que a consagração dota o alimento e seu espaço de uma carga simbólica, cuja representação exerce uma influência junto aos grupos sociais.

25Nesse processo, a criação de gostos naturaliza rupturas que definem a posição social, legitimadas a partir de disposições que influenciam no processo de “escolha” dos signos exteriores que identificam o indivíduo na sociedade. Consideramos que tal processo também remete a um debate ideológico concernente a “escolha” como um elemento de distinção, na medida em que envolve o poder aquisitivo (o que posso comprar) e o lugar onde posso conseguir (local consagrado a escolha), tais como o supermercado e os restaurantes.

26Cabe aqui ressaltar que, ao falarmos de signos neste trabalho, estamos nos remetendo a ideia de Barthes (1980, p.138), que o entende no plano do mito como uma correlação entre um significante, compreendido como forma, e um significado, identificado como conceito. Podemos então entender os signos como marcadores de distinções, “flutuando” por diferentes tipos de significações que são utilizadas na construção do nosso cotidiano.

27No âmbito que envolve a produção do cotidiano, percebemos que a dimensão simbólica que abarca a alimentação nesse início de século institui novos hábitos e gostos, consagrando novos espaços destinados a alimentação ou re-significando outros, como a cozinha, regida agora sob os signos de “funcional” ou “personalizada”.

28Dentro da perspectiva de analisar a alimentação como elemento simbólico de distinção de grupos sociais, acreditamos também ser possível pensar a cozinha como uma expressão de tais distinções, detentora de elementos simbólicos que denotam a construção da formação, as condições materiais e a posição social ocupada por um agente.

A geografia do gosto e a produção do gourmet

29Durante séculos o ser humano vem empregando técnicas de plantio e conservação de gêneros alimentícios, difundindo espécies e hábitos que se integraram a cultura e fornecendo diversos sentidos à alimentação. Tal difusão forjou aquilo que Pitte (2001, p.494) chama de uma geografia do gosto, na qual destaca a existência no século XIX de um regionalismo culinário como num delimitador das fronteiras alimentares.

30Entretanto, Pitte (2001, p.495) observa que esse padrão regional se desfaz no século XX. A influência da globalização provocou deslocamentos, como as transformações nos meios rural e urbano, marcando uma ruptura em que é possível identificar uma transformação simultânea no tocante a população, com o esvaziamento do campo e crescimento das cidades. Fatores que não impediram o aumento da produção e do consumo de alimentos.

31Na medida em que a indústria passa a influenciar a produção no campo, são introduzidas novas técnicas de produção, de embalagens, de conservação e pasteurização que modificaram o processo produtivo e a forma com que nos alimentamos (FISHLER, 1995, p.186). O produto dessa transformação tem como síntese os alimentos ultraprocessados que, acompanhados pela difusão de novos hábitos, visam atender a crescente população que se aglomera nas cidades e procura cada vez mais comprimir seu tempo dentro de um cotidiano repleto de atividades.

32Dentro desse processo de transformação, identificamos outra ruptura que versa sobre a relação entre global/local. A diminuição das distâncias e o aumento da circulação mundial de mercadorias que vem influenciando o nosso estilo de vida e, consequentemente, nossa alimentação. Aspectos como o surgimento do fast food e de eletrodomésticos, como o fogão e a geladeira, transformaram a nossa relação com o alimento, constituindo-se elementos importantes num cotidiano cada vez mais rápido.

33Esse intercâmbio também difundiu uma profusão de sabores em que se configura um tipo de alimentação adaptada a um cotidiano, no qual a indústria tenta reproduzir e produzir aromas que estão ou estarão em nossa memória. Aos consumidores é apresentada uma culinária uniformizada que eliminou aspectos singulares da cultura de lugares. Sobre esse aspecto Pitte (2001, p.498) cita como exemplo o conceito norte-americano de world food, cuja mistura de sabores convida o cliente a experimentar uma mesa americana-indo-nipo-mexicana, com diversos ingredientes, mas desprovida da personalidade cultural desses lugares. Percebemos que tal conceito remete a uma discussão de uma sociedade cosmopolita, de âmbito global, cuja experiência transcende o local, sem que seja preciso sair dele.

34Dentro dessa geografia do (des)gosto provocada pela globalização também há espaço para o consumo de alimentos orgânicos, com a proposta de conciliação entre o sabor, saúde e meio ambiente, o que segundo Goss (2004, p.374) atende as sensibilidades de yuppies, apesar do preço elevado e da exploração do trabalho imigrante nos EUA. Há também espaço para os produtos de terroir que prometem o sabor exclusivo a partir de seus certificados de origem, assegurando uma pretensa singularidade regional.

35Todavia, um aspecto que nos chama atenção nessa geografia do gosto é a concepção que envolve o gourmet. Autores como Poulain (2002, p.12) observam que a nossa experiência com a alimentação vem se tornando cada vez mais racionalizada, na qual são introduzidos novos hábitos alimentares e que, dentre os quais, emerge a ideia do gourmet.

36O gourmet parece ganhar destaque a partir de uma proposta de diferenciação, cujo conceito se tornou abrangente. Segundo o dicionário Michaelis (2017) esta palavra tem origem francesa e designa uma “pessoa que é grande conhecedora e apreciadora de boa comida e de bons vinhos”. Ao fazer um resgate da origem envolvendo esse termo, Pitte (2002, p.23) ressalta que gourmet também possui uma conotação similar ao de “gastrônomo”, ou seja, o indivíduo que se interessa por comida e bebidas, julgando a qualidade de tudo.

37Atualmente o gourmet passou a ser associado a uma ideia de alta gastronomia, englobando cultura e arte culinária, feita de forma criteriosa, com produtos de qualidade sempre especiais e artisticamente apresentados. É uma palavra que também está associada a produtos e serviços caros, com características únicas, apresentados como diferenciados e de forte valor agregado. Tem na figura do chefe de cozinha o seu mediador, aquele que propõe a comida como arte, personificando e ditando a moda que envolve a alta cozinha.

38A abrangência conceitual do gourmet também denota outros aspectos. Identificamos no seu aparecimento um deslocamento que elevou aquilo que poderíamos denominar de baixa gastronomia - alimentos ou refeições que outrora eram identificados com grupos sociais de baixo poder aquisitivo ou de grupos étnicos - à categoria de alta gastronomia. Ou seja: o alimento que caracteriza um determinado lugar ou grupo social é deslocado a fim de ser retrabalhado por um chefe de cozinha, que o re-significa para a alta gastronomia. Transformado pelo chefe de cozinha, esse alimento passa a ter um novo significado, cujo consumo propaga a ideia de vivenciar uma nova experiência.

39Um dos exemplos desse deslocamento remete a utilização de plantas não convencionais (PANCs), que durante muito tempo foram relegadas ao esquecimento pelo grande mercado agrícola, mas que agora vem sendo pesquisados por empresas e chefes de cozinha que as trazem para alta gastronomia.

40Tal abrangência envolvendo gourmet nos leva a percebê-lo como um signo que está intrinsecamente ligado às novas significações referentes às relações sociais, que extrapola uma conotação culinária, e que acreditamos constituir-se num elemento importante de diferenciação no espaço. Percebemos que este termo nos remete a concepção do gosto como um elemento de destaque na produção de uma estética associada a diferentes posições sociais, passando a ser um elemento de destaque que procura classificar aqueles que transitam entre a necessidade e o luxo (BOURDIEU, 2007, p.13).

41Como signo, o gourmet se apresenta como um elemento estético de diferenciação entre grupos relativos ao gosto e que envolve escolhas. Acreditamos que nesse processo o mito desempenha um papel importante, na medida em que os signos nos são apresentados sob diferentes formas e sentidos, cuja organização pode produzir uma realidade sem contradições (BARTHES, 1980, p.163). Caso este que acreditamos ser possível aplicar ao gourmet, enquanto estratégia dos agentes imobiliários, ao apresenta-lo como um elemento de distinção dentro do espaço, visando obter rendimentos crescentes.

42A relação entre o gourmet e espaço passa a se imbricar na proporção em que este último é concebido e apresentado como singular, consagrado como sendo detentor de uma diferenciação que caracteriza um grupo social. Nesse aspecto, lembramos a observação de Lefebvre (2008, p.36) no tocante à naturalização ideológica de uma lógica mercantil com que o espaço vem sendo percebido e que, ao mesmo tempo, permite a existência de um pensamento fragmentário e redutor da realidade.

43Na perspectiva que envolve o gourmet enquanto signo que envolve a cozinha, acreditamos que ele propõe um novo discurso sobre o alimento e a habitação, no qual as pessoas cozinham menos e discutem mais sobre gastronomia. Um discurso no qual o espaço do alimento é apresentado pela lógica mercantil como diferenciado e possuidor de uma que vivência, que possibilita ao seu consumidor uma experiência singular ao consumir um alimento ou bebida.

O marketing definindo o espaço do alimento nos apartamentos de Vitória no século XXI

44Ao percebermos o gourmet enquanto um signo que modifica a questão alimentar e envolve o espaço, retomamos aqui o aspecto central desse estudo no que concerne a cozinha. Todavia, merece ser indagado como ele se naturaliza enquanto signo para habitação, principalmente ao analisarmos a influência do marketing no processo produtivo dos apartamentos residenciais.

45Identificamos conceitualmente o marketing como um conjunto de atividades cujo objetivo é mensurar o tamanho do mercado potencial e desenvolver produtos e serviços que satisfaçam a demanda (KOTLER, 2000, p.28). Para este estudo nos interessa saber quando e de que forma passou a ser utilizado pelo setor da construção imobiliária para habitação.

46Num trabalho sobre a relação entre a arquitetura e construção dos discursos na produção do espaço urbano na cidade de São Paulo, Costa (2002, p.72), identifica a utilização do marketing pelos agentes imobiliários a partir da segunda metade da década de 1990, influenciados pela crise no Sistema Financeiro da Habitação (SFH), o que os levou à busca de novos mecanismos para sobreviver no mercado. Além da crise do SFH, esse autor também destaca como motivação para uso dessa ferramenta o aumento da concorrência, a partir da complexidade das operações do mercado e com a criação do Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), que capitalizou e ofereceu segurança aos agentes imobiliários.

47No caso específico do Espírito Santo, o setor da construção imobiliária vem utilizando o marketing desde a última década, influenciado pela conjuntura econômica e por incorporadoras de outros Estados, como São Paulo, que estabeleceram parceria com empresas locais (SCHUNIG F., 2014, p.189-190). A ação desses agentes no Espírito Santo fez parte de um contexto que envolveu o crescimento da produção imobiliária nacional, cujo mercado experimentou grande prosperidade após a segunda metade da década de 2000.

48Em relação ao mercado imobiliário da Região Metropolitana da Grande Vitória (RMGV), Ferreira (apud SCHUNIG F., 2014, p.181) observa que as mudanças na conjuntura econômica capixaba, a partir da década de 2000, contribuíram para uma nova fase de expansão do setor da construção imobiliária, quando o Espírito Santo apresentou elevados índices de crescimento econômico, acima da média nacional, influenciado pelo crescimento industrial e pela produção de gás e petróleo em seu território.

49Contudo, as mudanças não ficaram restritas apenas à entrada de empresas de fora do Estado no mercado imobiliário capixaba. No tocante à cidade de Vitória, Campos Júnior (2002, p.123) e Reis (2007, p.40) identificam, ao final do século XX, um processo de descentralização do Centro da capital capixaba, causado pela perda de amenidades nessa área e pela influência dos grandes projetos industriais na RMGV, no qual o setor da construção imobiliária passou a buscar novas áreas em Vitória e nos municípios vizinhos (Mapa 2).

Mapa 2 : Área de expansão imobiliária na RMGV no início do século XXI

Mapa 2 : Área de expansão imobiliária na RMGV no início do século XXI

Fonte: SCHUNIG F. (2019)

50A escassez e elevação do preço de terras na cidade de Vitória levou esse setor a intensificar, desde final do século XX, o processo de verticalização em algumas áreas da parte norte do município, como a região da Praia do Canto e os bairros Jardim Camburi e Jardim da Penha. Essa expansão também ocorreu em locais inicialmente definidos como áreas comerciais, como o bairro Enseada do Suá (FERREIRA, 2010, p.118).

51A adoção do marketing no Espírito Santo e em todo país ocorre num contexto de transformação da produção do setor imobiliário. Num segmento em que, durante seu processo produtivo o capital percorre um longo ciclo para sua reprodução, podemos dizer que o marketing e a propaganda entram como parte de uma estratégia para reduzir esse ciclo. Submetido aos ditames dos agentes financeiros, o setor da construção imobiliária vem cada vez mais buscando o aumento da velocidade das vendas a fim de ter retorno mais rápido do seu capital e projetar rendimentos crescentes (COSTA, 2002; SCHUNIG F., 2014).

52Nesse processo de realização da mercadoria, ressaltamos em trabalhos anteriores o aporte teórico de Marx (apud SCHUNIG F. e SCARIM, 2017, p.97) quanto às perspectivas concernentes às possibilidades de rendimentos crescentes, oferecidos através da renda de monopólio da terra no tocante ao processo produtivo imobiliário. Todavia, acreditamos também ser importante considerar outros elementos nesse processo, nos quais o marketing parece atuar.

53Numa abordagem recente sobre o marketing, Kotler, Kartajaya, Setiawan (2017, p.71) enfatizam que a evolução dessa ferramenta está ligada a sua capacidade de se adaptar à natureza mutável do consumidor, compreendendo quais valores estabelece uma conexão e engajamento do futuro cliente. Ou seja: não basta apenas moldar o produto de acordo com o cliente, mas identificar qual grupo social está inserido e quais os valores o sensibiliza. Nesse aspecto, acreditamos que o marketing identifica e explora elementos simbólicos que caracterizam os grupos sociais.

54Sobre essa relação entre simbólico e o marketing, Boutaud (2007, p.18) observa que a abordagem dessa ferramenta objetiva um re-encantamento do consumo, levando em consideração realidades da vida cotidiana através de um novo modo de relacionamento para produtos e serviços, procurando controlar a experiência de consumo. No que tange a alimentação, acreditamos que o marketing alça o gourmet a um elemento simbólico que representa um novo modo relacional e experimental com o alimento e seu espaço, estimulando o desejo do consumidor.

55Segundo Boutaud e Lardellier (2002, p.27), a organização da mesa destinada a comensalidade é um importante elemento na produção de um discurso mítico sobre a comida e a culinária, em que há uma ordem de interação criada por agentes, no qual existem ritos que predispõem a específicas formas de relacionamento.

56Numa perspectiva que envolve a produção imobiliária, a escolha do espaço para as refeições remete a um discurso mítico ao invocar o gourmet enquanto símbolo de um hedonismo culinário, identificando dentro da habitação outros lugares como espaço do alimento, aliado à ideia de lazer. Um conceito que associa a habitação a um estilo de vida intramuros, customizado pelo setor da construção imobiliária para habitação através do marketing.

A utilização do gourmet como diferencial pelo setor da construção imobiliária em Vitória

57Dentro da proposta que envolve compreender a importância e as transformações atuais na cozinha, em específico nos apartamentos residenciais da cidade de Vitória, nos valemos da análise de anúncios publicitários deste início de século. Congregando texto e imagem, os anúncios apresentam um discurso (BARTHES, 1980, p.133) no qual é possível identificar elementos que fornecem indicativos das estratégias empregadas pelo setor da construção imobiliária na cidade de Vitória.

58Num primeiro momento, observamos que o discurso publicitário apresenta elementos que associam a habitação em apartamentos a um novo estilo de vida, consoante a estabilidade econômica do Brasil da primeira década desse século. Nesse estilo, as demandas por: segurança, mobilidade, saúde, proximidade à natureza, lazer e à alimentação tornaram-se indicativos na busca pela qualidade de vida nos centros urbanos, constituindo-se em diferenciais no tocante a moradia.

59Em relação à cidade de Vitória, o discurso publicitário dos anúncios de apartamentos no início deste século enfatiza essa busca pela qualidade de vida. No anúncio do edifício Domingos Nascimento (Imagem 1), o texto coloca de forma imperativa que o consumidor desse imóvel “precisa viver com qualidade”. Nessa busca a alimentação possui uma forte inserção, seja pela comodidade em adquiri-la, ou pela proposta de uma vida mais saudável aliada ao prazer, transitando entre o fitness e o hedonismo proporcionado pelos prazeres culinários.

60No anúncio do edifício Domingos Nascimento a alimentação se insere nas possibilidades de uso dos equipamentos exteriores, a partir da localização privilegiada no tocante a supermercados, restaurantes e shopping center, sendo que, neste último, a sua praça de alimentação representa a experiência de sabores associada ao consumo de diversos produtos dentro de uma vida cosmopolita.

61Todavia, a associação entre alimentação e busca pela qualidade de vida também possui outras inserções, na medida em que áreas de condomínio passaram a ser dotadas de qualidades que consagram a alimentação num ato de experiência única, tal como preconiza a concepção que abordamos em tópicos anteriores sobre o gourmet.

Imagem 1 : Propaganda do edifício Domingos Nascimento

Imagem 1 : Propaganda do edifício Domingos Nascimento

Fonte: jornal A Gazeta (2008)

62Tal relação levou os agentes imobiliários a concentrarem suas estratégias na estrutura de lazer dos empreendimentos construídos (FERREIRA, 2010, p.73), na qual podemos perceber uma associação à alimentação. Se até o final do século XX os itens referentes a alimentação trouxeram conceitos como a copa-cozinha, cozinha americana e a churrasqueira em alguns prédios da capital capixaba, o início do século XXI é marcado pela associação entre agentes imobiliários locais com empresas de fora, resultando na difusão de novos conceitos que também envolve a alimentação.

63Através do marketing, o setor da construção imobiliária vem identificando demandas de grupos sociais e oferecendo itens com a proposta de substituir os elementos de um cotidiano perdido na cidade de Vitória. Essa concepção pode ser observada no anúncio do edifício Duetto (Imagem 2), ao observarmos a ênfase dada a alguns elementos como a menção de ser a “última área nobre da Mata da Praia” e o “primeiro life design” da cidade de Vitória. A ideia de localização do bairro Mata da Praia, localizado em frente ao balneário de Camburi, é reforçada a partir de uma moradia customizada com a proposta de se adaptar a sua rotina, atendendo ao seu tempo do trabalho e de lazer.

64O discurso publicitário do edifício Duetto traz uma ideia de customização da vida, em que o morador tem ao seu dispor um clube, com todos os recursos necessários para sua felicidade. Reforça esse discurso a ênfase dada a itens como fitness center e home office, ressaltando o conceito de uma vida saudável intramuros. No caso da alimentação, a personalização traz como diferencial o espaço gourmet, cuja proposta é ser uma área complementar a esse “clube”. Um lugar onde as pessoas possam se encontrar e vivenciar uma relação singular com o alimento, em sintonia com esse novo estilo de vida.

Imagem 2 : Propaganda do edifício Duetto

Imagem 2 : Propaganda do edifício Duetto

Fonte: jornal A Gazeta (2008)

65Como espaço do alimento, o gourmet se descola da cozinha e até do espaço doméstico, apresentando-se como flexível, interligando-se aos outros diferenciais que enfatizam a vida intramuros. Ao mesmo tempo, traz uma conotação de um espaço funcional e requintado aos olhos de um consumidor que almeja um estilo de vida customizado. A ênfase na ideia de moradia num clube pressupõe o uso de vários equipamentos para que a vida fique personalizada ou completa, tal como pode ser depreendido do anúncio do edifício Manuela (Imagem 3).

66Nele é possível observar uma série de itens elencados como diferenciais, sendo alguns concernentes a alimentação. Em destaque é possível observar a existência de uma choperia como um dos grandes diferenciais do empreendimento, apresentada como um diferencial que pode se complementar ao lazer e ao prazer da alimentação. Além da churrasqueira, o discurso publicitário também destaca o espaço gourmet como um dos atrativos que tornam o empreendimento completo. Esse item, conjugado com os demais, é consagrado a categoria de um dos itens primordiais, que visa suprir a necessidades da vida moderna em apartamentos na capital capixaba, nesse início de século.

Imagem 3 : Propaganda do edifício Manuela

Imagem 3 : Propaganda do edifício Manuela

Fonte: jornal A Gazeta (2010)

67Entendemos que o gourmet, enquanto espaço na habitação, não substitui, mas re-significa a cozinha, estabelecendo uma conexão com a ideia de personalização da vida. Característica que pode ser observada no anúncio do edifício Spazio Vivere (Imagem 4), em que o discurso publicitário enfatiza a possibilidade desse espaço contar com uma bancada especial, denotando a ideia de personalização, mas que ao mesmo tempo ressalta outros elementos, como a varanda multi grill, a churrasqueira a gás, adega climatizada, TV LCD e o game Nitendo, apresentados como complementos. Enquanto signo, o gourmet também re-significa a churrasqueira, apresentada no anúncio como sendo a gás, ao mesmo tempo que é associada a possibilidade de desfrutar do prazer do vinho através de uma adega climatizada.

68Tal opção apresentada pelo anúncio do Spazio Vivere mostra a varanda como um espaço diferencial no apartamento. Observamos em nossa análise que o espaço gourmet e a churrasqueira de uso do condomínio no final da década de 2000 parece não representar mais um signo de diferenciação na cidade de Vitória, enquanto área que une lazer e alimentação para um grupo social. Nesse anúncio o apelo é voltado para o retorno à habitação, uma volta à privacidade do lar, contrastando com a ideia de área de lazer comum que era difundida pela propaganda imobiliária no início da década de 2000.

69Ao final dos anos 2000, a ênfase do discurso publicitário é pelo retorno ao interior da residência, visando a volta do ritual da reunião com seus pares na habitação, mas numa nova área consagrada e alçada a um item diferencial: a varanda. A menção da escolha do estilo da varanda, denominada no anúncio de “multi grill”, indica ser esta a novidade promovida pelo setor da construção imobiliária através do marketing.

Imagem 4 : Propaganda do edifício Spazio Vivere

Imagem 4 : Propaganda do edifício Spazio Vivere

Fonte: jornal A Gazeta (2010)

70Essa tendência envolvendo a varanda, como um dos espaços do alimento, se consolida nos dias atuais através da concepção que envolve o gourmet como signo de diferencial espacial. Tal tendência é verificada no anúncio do edifício Domus Aurea Residence (Imagem 5), em que é possível observar o destaque dado a dois itens relativos à alimentação: a varanda gourmet e a cozinha americana. Ambos associados a itens ou vantagens relativas ao desempenho, à eficiência energética e à ideia de vida saudável através do Fitness Center.

71Percebemos que a cozinha é reapresentada no anúncio como sendo uma “cozinha americana”, algo que não se constitui uma novidade no mercado imobiliário capixaba, já que percebemos menção a esse item no final do século XX. Acreditamos que a ênfase ao referido item atende às diretrizes da redução da sua metragem dos apartamentos, exigida pela lógica atual do processo construtivo do setor da construção imobiliária na cidade de Vitória, cuja disponibilidade de terras para construção ficaram escassas, ao passo que também atende a uma flexibilização espacial adaptada à funcionalidade exigida pela rapidez do tempo do cotidiano.

72Contudo, é a varanda que se constitui o grande diferencial no tocante ao espaço do alimento. Consagrada como local do gourmet, a varanda gourmet traz a proposta de ser o novo, o local de encontro da família e dos amigos. É nela que se propaga a ideia do encontro para o lazer, associado ao prazer da alimentação e de uma bebida especial, como um tipo de vinho ou a cerveja artesanal, onde é possível estabelecer uma distinção de áreas comuns que caracterizam a área do condomínio, como o espaço gourmet e a churrasqueira. A varanda é alçada à categoria de espaço do alimento, só que re-significada pelo setor da construção imobiliária através do marketing, ao associa-la ao discurso do hedonismo culinário.

Imagem 5 : Propaganda do edifício Domus Aurea Resicence

Imagem 5 : Propaganda do edifício Domus Aurea Resicence

Fonte: jornal A Tribuna (2018)

Considerações finais

73Ao analisarmos as transformações referentes à cozinha nesse início de século, percebemos que tais mudanças estão inseridas num processo mais amplo, que envolve a nossa relação com o alimento dentro da dinâmica do capitalismo. Tal como é abordado por Pitte (2001), essa dinâmica envolve a relação existente entre o processo de globalização e o consumo, na qual a alimentação é um elemento fundamental.

74Em nossa análise observamos que os rituais que caracterizam a vida moderna, a diferenciação ou consagração do alimento (BOURDIEU, 2007, 1982; CLAVAL, 2007) abrangem também o espaço, no qual a cozinha se constitui uma expressão dessas mudanças. Na perspectiva que envolve a produção da habitação, bem com a relação com o habitat e o habitus, o gourmet vem se constituindo num signo de diferenciação, conectando-se a vários elementos como o prazer da boa comida ou uma alimentação consoante a uma vida saudável.

75A partir do debate teórico desenvolvido e de anúncios analisados, observamos que os aspectos que cercam o gourmet não se restringem apenas à alimentação e a cidade de Vitória. Enquanto signo, pretende ser uma volta ao passado, de produtos e métodos que não foram massificados, constituindo-se num movimento do mercado a fim de criar ou reforçar distinções que não se restringem ao local, já que remetem a uma ideia cosmopolita.

76Ao mesmo tempo, o gourmet se desloca da cozinha, cuja consagração da varanda confere a este item uma conotação de diferencial no tocante às estratégias do setor da construção imobiliária capixaba. Nessa perspectiva, o referido setor tem no marketing uma ferramenta que vai produzir um re-encantamento do consumo (BOUTAUD, 2007), através de um discurso mítico que consagra algumas áreas do espaço do espaço doméstico. Nesse início de século, consideramos a escolha da varanda como local do gourmet pelos agentes imobiliários, como uma forma de organização, que visa a produção desse discurso, construindo uma realidade a partir da subjetividade das representações da sociedade capixaba, que acreditamos refletir elementos da sociedade de consumo atual.

77Nesse processo de re-encantamento do consumo, o setor da construção imobiliária para habitação re-significa a cozinha, passando a categoria de um item do espaço doméstico, que faz a mediação da nossa relação entre o alimento e o cotidiano da cidade de Vitória, cuja rapidez leva-nos a fazer as refeições cada vez mais fora da habitação e com menor convívio familiar. Em contrapartida, a varanda passou a ser o diferencial no tocante à relação alimentar, representando um novo estilo de vida no qual seria possível ter uma experiência alimentar tida como singular. Acreditamos que, enquanto item do espaço doméstico presente nos apartamentos da cidade de Vitória, a varanda gourmet almeja trazer o gosto dito refinado e a alta gastronomia como signos de distinção de grupos sociais, elementos de criação de uma sociedade cada vez mais influenciada pela globalização.

78Percebemos que essa transformação da cozinha, enquanto espaço do alimento, indica novas centralidades e novos elementos que modificam a nossa relação com o alimento e que caracterizam o espaço urbano deste início de século. A retórica proferida através do gourmet, enquanto signo, propõe um novo paradigma que prega a ruptura no tocante a uma nova lógica de cotidiano e de lar, re-significando o espaço do alimento na habitação e produzindo novas formas e aromas. Essa nova lógica passa a competir com a memória familiar, apropriada pela indústria e pela propaganda, projetando-se no espaço.

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Notes

1 Entendemos que neste estudo o termo “gourmet” foi durante um tempo utilizado num sentido mais restrito, sendo sinônimo de alta gastronomia. Mas recentemente, observamos que sua utilização denota um adjetivo que se propõe a diferenciação que não se limita somente as práticas alimentares, e que envolve outros elementos, como o espaço.

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Table des illustrations

Titre Mapa 1 : Localização da cidade de Vitória em relação ao Brasil, Estado do Espírito Santo e Região Metropolitana
Crédits Fonte: SCHUNIG F. (2020)
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/confins/docannexe/image/31471/img-1.jpg
Fichier image/jpeg, 268k
Titre Mapa 2 : Área de expansão imobiliária na RMGV no início do século XXI
Crédits Fonte: SCHUNIG F. (2019)
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/confins/docannexe/image/31471/img-2.png
Fichier image/png, 60k
Titre Imagem 1 : Propaganda do edifício Domingos Nascimento
Crédits Fonte: jornal A Gazeta (2008)
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/confins/docannexe/image/31471/img-3.jpg
Fichier image/jpeg, 812k
Titre Imagem 2 : Propaganda do edifício Duetto
Crédits Fonte: jornal A Gazeta (2008)
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/confins/docannexe/image/31471/img-4.jpg
Fichier image/jpeg, 984k
Titre Imagem 3 : Propaganda do edifício Manuela
Crédits Fonte: jornal A Gazeta (2010)
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/confins/docannexe/image/31471/img-5.jpg
Fichier image/jpeg, 148k
Titre Imagem 4 : Propaganda do edifício Spazio Vivere
Crédits Fonte: jornal A Gazeta (2010)
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/confins/docannexe/image/31471/img-6.jpg
Fichier image/jpeg, 332k
Titre Imagem 5 : Propaganda do edifício Domus Aurea Resicence
Crédits Fonte: jornal A Tribuna (2018)
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/confins/docannexe/image/31471/img-7.jpg
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Pour citer cet article

Référence électronique

Erick Alessandro Schunig Fernandes et Paulo César Scarim, « A transformação da cozinha dentro dos apartamentos na cidade de Vitória, Espírito Santo: a ascensão do gourmet na virada do século »Confins [En ligne], 46 | 2020, mis en ligne le 28 juin 2020, consulté le 09 décembre 2024. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/confins/31471 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/confins.31471

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Auteurs

Erick Alessandro Schunig Fernandes

Mestre em Geografia e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Espírito Santo - erasfe@yahoo.com.br

Paulo César Scarim

Doutor em Geografia e professor da Universidade Federal do Espírito Santo - pauloscarim@hotmail.com

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Droits d’auteur

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Le texte seul est utilisable sous licence CC BY-NC-SA 4.0. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.

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