- 1 O artigo contém dados parciais da tese de doutorado intitulada “ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE COM (...)
1De acordo com a Lei de Proteção da Vegetação Nativa, nº 12.651/2012, popularmente conhecida como o novo Código Florestal Brasileiro (CFB), no seu artigo 3º define o conceito de Áreas de Preservação Permanente (APPs) enquanto espaços especialmente protegidos com a função primordial de preservar os recursos hídricos. Ainda que tenham sido alcançados avanços importantes ao longo da evolução da legislação ambiental brasileira, por meio da institucionalização de instrumentos para regularização do uso dos recursos naturais, os mesmos permanecem com dificuldades na sua aplicação, encontrando entraves para a efetivação do que é previsto na lei com o que de fato ocorre no território nacional1.
2No contexto das grandes cidades e das regiões metropolitanas, essa problemática ambiental é intensificada por fatores como adensamento populacional e especulação imobiliária, que exercem fortes pressões na exploração econômica dos recursos naturais, principalmente da água e do solo. No contexto rural, o uso irregular de APPs também tem sido uma realidade, a qual foi de certa forma incentivada a partir das alterações prevista no atual código florestal, a exemplo da introdução do conceito de “área rural consolidada” (ARC), que classifica espaços rurais com ocupação antrópica preexistente a 22 de julho de 2008 (BRASIL, 2012). Segundo o código vigente, as APPs rurais localizadas em ARC passam a ter métricas de proteção reduzidas, comprometendo com isso o exercício das funções ambientais prestadas por esses espaços.
3Em ambos os cenários, rural e urbano, tem se observado usos conflitosos em APPs. Nesse contexto, o presente artigo, a partir de um estudo de caso, tem como objetivo avaliar a situação das APPs da Região Metropolitana de Goiânia (RMG) à luz do que é previsto no Código Florestal Federal e Goiano (BRASIL, 2012; GOIÁS, 2013) e nos Planos Diretores Municipais (PDM), visando examinar as áreas que estão, ou não, em conformidade com a lei, além de identificar a partir desta análise os principais conflitos de uso e ocupação na área de estudo. A escolha do recorte da RMG se justifica pela importância dessa região no contexto goiano, e pela atual situação de crise hídrica anunciada pelo Estado de Goiás (GOIÁS, 2018). Junto a isso, deve-se considerar o histórico de ocupação da região Centro-Oeste, que nos últimos 40 anos têm passado por um processo de devastação em grandes proporções e de caráter definitivo da vegetação do Cerrado a partir da expansão e consolidação das atividades relativas ao agronegócio (SILVA; MIZIARA, 2011; OLIVEIRA et al., 2018).
4Para avaliar a situação das APPs na região pesquisada, levando em conta os múltiplos usos do solo urbano e rural, foram utilizados produtos de Sensoriamento Remoto e Sistema de Informação Geográfica (SIG), os quais deram subsídios para a formulação de um diagnóstico ambiental das APPs e posterior discussão acerca da situação de preservação e degradação a partir da escala dos municípios metropolitanos. A discussão apresentada no artigo avalia as categorias de APPs do tipo curso d’água (ou fluviais), nascentes e lagos e lagoas, em função da relação direta desses ambientes com a função de proteção dos recursos hídricos.
5A Lei de Proteção à Vegetação Nativa (BRASIL, 2012), representa hoje o instrumento legal máximo, em matéria ambiental, competente por estabelecer as bases e os parâmetros que caracterizam as áreas de preservação permanente. Ainda que o conceito de APP só apareça explicitamente na legislação ambiental brasileira a partir da Medida Provisória nº 1956-50/2000, suas bases e princípios são muito mais antigos, estando diretamente relacionada ao histórico de leis que regulamentava a exploração do pau-brasil iniciadas em meados do século XVI no Brasil após a chegada da Coroa Portuguesa (FOLETO; SILVA, 2013).
6Destaca-se também nesse contexto histórico legislativo a Lei de Terras de 1850 (Lei nº 601), a qual, entre outros objetivos, tinha como premissa estabelecer diretrizes para controle do desmatamento e da exploração de madeira no Brasil. Décadas a frente, no ano de 1934 foi instituído o primeiro Código Florestal Brasileiro, a partir do Decreto nº 23.793 (BRASIL, 1934), que se tornou um marco na história da legislação ambiental no que se refere à responsabilização sobre as questões conservacionistas (GASS et al., 2016). Não obstante, como aponta Azevedo e Oliveira (2014), até esse momento o foco não era necessariamente a preservação de caráter ambiental, mas sim de tutelar as florestas nacionais sob um viés exclusivamente patrimonial e de organizar a propriedade privada no Brasil.
7A princípio, a partir do CFB de 1934, o conceito de preservação era atribuído para as “florestas protetoras”, as quais eram responsáveis por proteger o solo e a água, indispensáveis para manutenção de um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Conceito este, diretamente relacionado à localização e às funções ambientais destas áreas, que se assimilam na atualidade com o conceito de “áreas de preservação permanente”.
8No ano de 1965, no segundo CFB, é apresentado o termo “preservação permanente” a partir da Lei nº 4.771 (BRASIL, 1965). Nos artigos 2º e 3º da referida lei são mencionadas as florestas e as demais formas de vegetação como sendo consideradas áreas protegidas, estejam ou não elas cobertas por vegetação nativa. Nesse novo conceito são imiscuídas outras formas de vegetação e não só mais as florestas, sendo incluídos outros biomas antes não contemplados, a exemplo do Cerrado e do Pampa.
9O conceito de APP aparece de fato na lei a partir da Medida Provisória (MP) nº 1956-50/2000, posteriormente reeditada (MP nº 2.166-67/2001), que foi responsável por estabelecer um conceito e apresentar atributos específicos para tutelar sobre determinados espaços territorialmente protegidos. Nos termos dos artigos 2º e 3º da Lei 4.771/1965, são mencionadas dois tipos de APPs: as ex vi legis, as quais estão relacionadas às áreas no sentido de localização; e as declaradas, que se preocupam em estabelecer os critérios finalísticos enquanto funções atribuídas às APPs.
10Nesse sentido, sobre o aspecto conceitual, as APPs são espaços especialmente protegidos, coberto ou não por vegetação nativa, com múltiplas funções socioambientais, tais quais: proteger os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas. Enquadra-se nesses moldes, ambientes como ao redor de corpos hídricos (rios, lagos, lagoas, nascentes ou reservatórios), topos de morro, serras, mangues, entre outros ambientes frágeis.
11Mais recentemente foi aprovada uma nova versão do CFB a partir da Lei nº 12.651 (BRASIL, 2012), no qual são introduzidos novos conceitos pertinentes à discussão sobre APPs, o que gerou polêmica e divergência de opiniões entre os ambientalistas e a chamada “Bancada Ruralista”. Dentre as críticas ao código vigente destaca-se a permissividade na utilização de espaços antes destinados à proteção, como no caso das áreas de várzeas ou as planícies de inundação ou até mesmo as áreas úmidas, as quais não tiveram definidas nenhum tipo de proteção, a não ser que o Chefe do Poder Executivo declare-as de interesse social (GASS et al., 2016).
12Outro ponto relacionado às alterações do CFB de 2012, que converge com o tema da pesquisa, é a exclusão das APPs nascentes intermitentes, como apresentado no inciso IV, do artigo 4º: “as áreas no entorno das nascentes e dos olhos d’água perenes, qualquer que seja sua situação topográfica, no raio mínimo de 50 (cinquenta) metros” (BRASIL, 2012). Nessa perspectiva, não é considerada a fragilidade ambiental a que estão sujeitas essas áreas, uma vez que esse tipo de ambiente possui eventuais afloramentos d’água, os quais, mesmo que não sejam perenes, exercem funções ambientais e contribuem para manutenção dos cursos hídricos no contexto da bacia hidrográfica.
13Sobre as disposições introduzidas no código florestal atual, destaca-se uma gigantesca redução da extensão das áreas de restauração obrigatória, conforme apresentado na tabela 1. Como apontam Soares Filho et al. (2014), a partir das novas concessões do CFB de 2012 e da anistia aos proprietários ilegais, houve uma redução de 58% das áreas potenciais para recuperação em relação à legislação anterior, entre áreas de preservação permanente e reserva legal.
Figura 1 – Dimensões das áreas para recomposição de APPs no caso de áreas rurais consolidadas, a partir da modulação fiscal das propriedades.
Fonte: Laudares et al. (2014). Adaptado pelos autores (2018).
14Nesse contexto, é importante elucidar o conceito de “área rural consolidada” definida pela Lei 12.651/2012, art. 3°, inciso IV: “área de imóvel rural com ocupação antrópica preexistente a 22 de julho de 2008, com edificações”. A inclusão do conceito se apresenta como mais um ponto polêmico entre as alterações do CFB de 2012, uma vez que descaracteriza as funções das APPs e sua importância ecológica. A introdução do conceito em questão, evidencia a flexibilização da lei que dá sustentação no âmbito jurídico para ocupação de áreas frágeis e ratifica ações ilegais precedentes, como exposto na tabela anterior.
15Mesmo diante a importância das APPs, justificada em lei, é fato que as métricas de proteção não são respeitadas na íntegra. O que torna cada vez mais importante a incorporação dos produtos das geotecnologias no processo de monitoramento, fiscalização e perícia ambiental, os quais se apresentam como instrumentos eficientes e economicamente viáveis para os tomadores de decisão, tornando possível a regularização do uso desses espaços a partir dos critérios previstos na legislação, conforme apresentado a seguir.
16A Região Metropolitana de Goiânia está situada na mesorregião do Centro Goiano, no estado de Goiás. A mesma foi criada em 1999 através da Lei Complementar nº 27, a qual foi alterada pelas Leis Complementares nº 78 de 25 de março de 2010 e nº 87 de 7 de julho de 2011. Atualmente a RMG é formada por 20 municípios (Figura 1), ocupa uma área de 7.312,96 km², com uma população de 2,2 milhões de habitantes, o que representa 39,3% da população total do Estado de Goiás.
17Quanto aos seus aspectos ambientais, a RMG está localizada no bioma Cerrado, porém com menos de 25% dos limites metropolitanos formados por remanescentes deste bioma original, consequência dos impactos da ocupação urbana e rural, sem planejamento e fiscalização adequados (UFG, 2017).
18O clima da RMG se enquadra no tipo tropical, classificado segundo Köppen como Aw, caracterizado por apresentar duas estações bem definidas ao longo do ano. Os períodos de estiagem ocorrem entre maio e setembro, enquanto que a estação chuvosa predomina nos meses de outubro a março. As características climáticas, associadas aos processos de desmatamento e impermeabilização do solo (principalmente nas áreas urbanas), têm propiciado problemas frequentes quanto a fenômenos de inundações. Acerca das chuvas e inundações em Goiânia, por exemplo, pesquisas apontam que esse fenômeno ocorre com frequência nos setores centrais do município, predominantemente em áreas urbanas (consolidadas e em expansão), localizadas nas margens dos cursos hídricos, áreas estas destinadas por lei para preservação permanente (REGO, 2015).
Figura 2 – Localização da Região Metropolitana de Goiânia.
Fonte: Elaborado pelos autores (2018).
19No que se refere à rede hidrográfica, a RMG apresenta como os principais cursos d’água, fontes de abastecimento de maior parte de sua população, os rios Meia Ponte, Ribeirão Anicuns e Ribeirão João Leite. Por sua vez, as bacias hidrográficas que compreendem os limites da RMG apresentam elevado grau de urbanização, o que tem comprometido diretamente a qualidade e quantidade dos recursos hídricos dessa região. Essa urbanização tem caminhado cada vez mais distante das diretrizes ambientais de um ambiente ecologicamente equilibrado, gerando conflitos entre as leis ambientais e as leis urbanísticas, conforme discussão adiante.
20Para elaboração de um Sistema de Informações Geográficas (SIG) da área de pesquisa, foi utilizado o software de geoprocessamento ArcGIS - ArcMap (licença vinculada ao IESA/LAPIG, da Universidade Federal de Goiás), no qual foram realizados os processos de georreferenciamento, tratamento e análise dos dados. Todas as informações espaciais foram projetadas para o sistema de projeção UTM (Universal Transversa de Mercator), datum SIRGAS 2000 e zona 22 Sul.
21Na construção dos planos de informação, foram utilizadas imagens de radar do Modelo Digital de Elevação TOPODATA-INPE (VALERIANO e ROSSETTI, 2008), com formato matricial e resolução espacial de 30 metros. Assim como, foram utilizadas as imagens do satélite Sentinel – 2, imaginadas no dia 27 de julho de 2017, a partir da composição colorida RGB 483, com resolução espacial de 10 m.
22O mapeamento da rede de drenagem foi realizado com base na interpretação conjunta de imagens de média resolução espacial com o modelo de hipsometria, associado ao modelo de sombreamento do relevo (gerados com as imagens SRTM/TOPOTADA). Para a interpretação dos lineamentos de fluxo hídrico foram utilizadas as imagens do satélite Sentinel – 2, conforme apresenta a figura 2.
Figura 3 – Interpretação e mapeamento de canais de drenagem por meio de imagem Sentinel-2 (a); e sobreposição dos canais mapeados aos modelos de hipsometria e sombra (b).
Fonte: Elaborado pelos autores (2018).
23Para os segmentos nos quais não foi possível a visualização da rede de drenagem em decorrência do aspecto fechado do dossel da vegetação, ou mesmo em função da pouca largura dos canais, buscou-se auxílio no modelo de hipsometria sobreposto ao modelo de sombra. O mapeamento das nascentes resultou da identificação dos segmentos iniciais dos canais de drenagem.
24Para o mapeamento dos demais corpos hídricos, incluindo lagos, lagoas, e áreas de represamento hídrico, este foi realizado também com base em imagens do satélite Sentinel-2. A fim de que todos os corpos hídricos com área igual ou superior a 4 pixels fossem mapeados no mesmo nível de detalhamento, procedeu-se a definição de uma faixa com largura latitudinal de 2 km, a qual proporcionou análise sempre na escala 1:10.000.
25Para elaboração do mapa de cobertura e uso do solo, foi utilizada a proposta de classificação Ribeiro e Walter (1998) para distinção de classes fitofisionômicas do bioma Cerrado. Isto é, semelhantemente ao método de classificação da vegetação em campo, que se baseia na fisionomia da paisagem, o processo de classificação e mapeamento da cobertura natural por imagens orbitais está sustentado na interpretação visual através da coloração e textura, especialmente as tonalidades de verde claro ao escuro (indo de campo limpo à mata de galeria, por exemplo), equivalente à diversidade fisionômica encontrada na área de estudo.
26O processo de classificação da cobertura e uso do solo foi realizado através da interpretação de imagens do satélite Sentinel – 2. Esse procedimento envolveu análise prévia da imagem, seguida do processo de segmentação por meio do algoritmo Segment Mean Shift, com os parâmetros Detalhe Espectral 15,5, Detalhe Espacial 8 e Mínimo Segmento igual a 6 pixels, e posterior definição das classes de cobertura e uso do solo a serem mapeadas.
27Para as classes de uso objetivou-se evidenciar os diferentes estágios do processo urbanização, contemplando as classes de Área Urbana Consolidada, Área Urbana em Expansão e Área Urbana Parcelada (Figura 3). A escolha desse processo de mapeamento da área urbana e sua categorização foram baseadas no grau de densidade das edificações ou adensamento urbano e a distância em relação aos núcleos urbanos densamente habitados (CANIL, 2006).
Figura 4 – Subdivisões da classe de uso “área urbana” em Área Urbana Consolidada (a), Área Urbana Parcelada (b) e Área Urbana em Expansão (c).
Fonte: Elaborado pelos autores (2018).
28A proposta de estratificar a classe de área urbana está relacionada aos critérios legais para uso de APPs em áreas urbanas consolidadas. Além disso, a identificação das outras modalidades de área urbana nas margens dos cursos d’água auxilia na identificação de conflitos de uso, e alerta o poder público para fiscalização e monitoramento desses espaços.
29O mapeamento das APPs foi realizado mediante a definição de uma zona de amortecimento, por meio da ferramenta de geração de buffer (ou área tampão). Considerando a largura dos canais de drenagem em consonância com as leis n° 12.651 (BRASIL, 2012) e nº 13.104 (GOIÁS, 2013). O CFB atual determina a proteção das faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente, excluído os efêmeros, desde a borda até uma faixa de 30 metros para cursos d´água com menos de 10 metros de largura e de 50 metros para cursos d’água que tenham de 10 a 50 metros de largura.
30Dessa forma, todos os cursos d’água com largura menor que 10 metros foram mapeados em formato vetorial linear (shapefile), seguidos da aplicação da ferramenta buffer e delimitação de faixas de 30 metros em cada margem, conforme ilustrado na parte (a) da Figura 4. Já os cursos d’água com largura de 10 a 50 metros foram mapeados em formato vetorial poligonal, a fim de contemplar a variação de largura de cada segmento e evitar prejuízos quanto da aplicação do procedimento de definição da zona de amortecimento ou limite da APP, conforme pode ser observado na parte (b) da mesma figura. Caso esse procedimento fosse aplicado na drenagem mapeada no modo linha, haveria erros de até 25 metros para menos em torno dos canais com largura de até 50 metros.
Figura 5 – Aplicação da ferramenta buffer e definição de faixas de 30m em canais com até 10m de largura (a); e faixas de 50m em canais com largura variando de 10 a 50m (b).
Fonte: Elaborado pelos autores (2018).
31Para elaboração do mapa de conflito de uso em APPS, foram utilizados os mapas de cobertura e uso da terra e o mapa com os limites das Áreas de Preservação Permanentes, a fim de identificar as ocorrências usos conflitosos diante as determinações previstas na lei. Dessa forma, foi possível quantificar as áreas de cada conflito e de cada ocupação existente. O objetivo desse mapa foi de avaliar a situação da preservação da biodiversidade e cobertura vegetal nativa nas áreas destinadas à preservação, podendo a partir desses dados discutir de forma quantitativa o estado atual das APPs da RMG no tocante a preservação e degradação das mesmas.
32Discutir os aspectos legais na gestão de recursos hídricos, tomando a APP como ferramenta-chave na proteção dos cursos d’água, envolve também a análise das leis que regulamentam o parcelamento do solo urbano e o planejamento municipal, que se estabelecem por meio do Plano Diretor (PD), segundo previsto no Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001). No contexto da área de pesquisa, existe hoje uma situação bastante diversificada entre os municípios que compõem a Região Metropolitana de Goiânia, desde municípios com PD aprovados a outros com PDs desatualizados, não concluídos ou ainda em fase de aprovação na Câmara Municipal.
33Dos vinte municípios que fazem parte dessa região, 13 apresentam lei aprovada para elaboração do Plano Diretor (PD), contudo nem metade destes foram atualizados dentro dos limites exigidos pela lei (BRASIL, 2001) e não dispõem da base de dados digitais desses documentos, o que dificulta a análise quanto à situação da regularização dos espaços especialmente protegidos. A partir da leitura dos PDs disponibilizados, percebe-se, de maneira geral, uma incipiente discussão específica sobre a matéria de APPs, assim como sobre a gestão de recursos hídricos. Destacando-se os PDs de Goiânia, Aparecida de Goiânia, Inhumas, Bela Vista de Goiás, Trindade e Aragoiânia, os quais discriminavam nos seus planos métricas de proteção das APPs superiores aquelas previstas nos códigos federal e estadual, ainda assim, limitavam essa proteção mais restritiva apenas aos principais mananciais de abastecimento público de água dos respectivos municípios.
34A análise dos planos buscou identificar introdutoriamente o posicionamento dos municípios acerca da legislação ambiental voltada aos instrumentos de conservação dos recursos hídricos, tendo em vista a atua situação de crise hídrica evidenciada na região metropolitana. Mesmo havendo outros instrumentos na ordem federal e estadual, como a Política Nacional do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos, o papel local dos municípios é fundamental para a efetivação da legislação ambiental, a fim de ser aplicada dentro do contexto e das particularidades de cada local.
35Nota-se que ainda existe muito a que se fazer, frente à complexidade das ferramentas normativas e da frequente ausência de uma visão integrada dos diferentes aspectos da paisagem que se correlacionam no território municipal e intermunicipal, a exemplo dos rios e das bacias hidrográficas, que não se restringem aos limites político-administrativos. Nesse sentido, diante à ausência de documentos oficiais em nível municipal, que regulassem a utilização das APPs na área de pesquisa, foi utilizado como base para delimitação desses espaços o que é previsto na lei ambiental máxima nacional, reproduzido no código estadual pela Lei 18.104 (GOIÁS, 2013). A partir desta última, foram selecionadas as modalidades de APP a serem estudadas e seus respectivos critérios de delimitação, conforme apresenta a tabela 2.
36A partir dos mapas ambientais elaborados na pesquisa, foram mapeadas 14.434 nascentes e olhos d’água nos 20 municípios que compõem a área de pesquisa, incluindo nascentes perenes, que apresentam fluxo contínuo, nascentes temporárias, cujo fluxo apenas ocorre na estação chuvosa, e nascentes efêmeras, que surgem durante a chuva, permanecendo por apenas alguns dias ou horas (CALHEIROS et al., 2004).
Figura 6 – Distribuição das APPs na RMG.
37Foram identificados 3.116 tipos de massas d’água na RMG, classificadas dentro da categoria de APPs Lagos e Lagoas, que variam entre pequenos e médios lagos artificiais, os quais são destinados principalmente à dessedentação animal e à manutenção de atividades agrícolas. No contexto rural, são observados os maiores percentuais dessa categoria de APP (10,65 %), enquanto que na área urbana ela representa 1,86%.
38Em função da escala de detalhe do mapeamento hidrográfico (1:10.000) e da extensão territorial da RMG (7.312,96 km²), é apresentada na figura 5 um recorte amostral do mapa de APPs da RMG, a fim de facilitar a visualização e a distinção dos elementos representados no mapa geral, onde foram mapeadas as APPs dos cursos d’água do tipo fluviais, nascentes, lagos e lagoas. Estas representam o total de 806,88 km², que por lei se enquadram como espaços especialmente protegidos, representando 10,98% da área total da RMG. A base de dados das APPs forneceu o suporte para a análise posterior, quanto aos tipos de uso que ocorrem em conformidade, ou não, com o que é permitido por lei para estes espaços. A partir do qual foi possível identificar a situação de preservação e os respectivos conflitos de uso.
Figura 7 – Recorte amostral da delimitação das APPs fluviais, nascentes e lagos e lagoas.
Fonte: Elaborado pelos autores (2018).
39O padrão da distribuição dos tipos de uso e cobertura da terra das APPs mapeadas segue a lógica do contexto regional da área de pesquisa, onde se destacam os usos antrópicos na configuração da paisagem metropolitana, principalmente quanto aos impactos das estruturas urbanas e da atividade agropecuária, com podem ser observados na tabela 3 e no figura 6.
Figura 8 – Distribuição das classes de uso e cobertura na RMG.
Fonte: Elaborado pelos autores (2018).
Figura 9 – Distribuição das classes de uso e cobertura nos municípios da RMG.
Fonte: Elaborado pelos autores (2018).
- 2 Essa classe de uso se refere, no contexto da RMG, as áreas desmatadas que estão diretamente associa (...)
40Verifica-se como principal tipo de uso a classe pastagem, com 43,92% da área total. Essa predominância é praticamente uniforme em quase todos os municípios que formam a RMG, seguida das classes de solo exposto2 e agricultura. As categorias relativas à área urbana correspondem a 10,23% da RMG. Mesmo como uma representatividade relativamente baixa dessa classe de uso, se comparada à classe de pastagem, a mesma tem um papel importante na dinâmica de ocupação territorial. Conforme apresentado, o crescimento urbano da RMG foi intenso nas últimas décadas, o que consequentemente gerou alterações no uso e cobertura da terra, implicando também na ocupação irregular de espaços frágeis, como margens de rios, fundos de vale, nascentes, áreas de alta declividade, entre outros ambientes considerados de risco em função das suas características morfopedológicas.
41Persiste ainda na RMG 1.595,62 km² de remanescentes do bioma Cerrado, o equivalente a 21,84% da área total. Essa parcela de vegetação nativa se localiza, predominantemente, nas áreas protegidas (APPs e UCs). Todavia, o uso majoritário em todos os municípios da região metropolitana é a pastagem, enquanto que a agricultura representa 8,49% da RMG. Segundo pesquisas desenvolvidas pela UFG (2017), ainda que 50% da Região Metropolitana estejam hoje ocupadas por áreas de pastagem, a atividade agropecuária tem pouca expressão no conjunto total da economia dessa região. Essa baixa participação do setor primário na RMG tem relação com o custo mais elevado de terra nessa região, por isso, destaca-se a presença de produções agrícolas voltadas ao mercado consumidor metropolitano, como frutas e verduras, que se caracterizam por agregar maior valor à produção.
42Com base na análise dos dados de uso e cobertura da terra nos limites das APPs da RMG, foi possível identificar conflitos de uso, que evidenciam uma dissimetria entre o que é previsto na legislação ambiental e os usos efetivos das APPs, que geralmente possuem finalidades econômicas ou ocupacionais. Considerando a importância das APPs para um ambiente ecologicamente equilibrado e seu caráter de intocabilidade, assistido por lei (BRASIL, 2012; GOIÁS, 2013), foram reclassificadas as classes de uso e cobertura da terra em duas categorias de situação das APPs: preservada (aquelas com vegetação nativa) e degradada (aquelas ocupadas por outros usos). A partir de um panorama geral, é possível observar na tabela 5 a situação das APPs da área de pesquisa.
Figura 10 – Distribuição das APPs em relação à presença de vegetação nativa e ocupação por outros tipos de usos.
Fonte: Elaborado pelos autores (2018).
43Dentre as categorias de APPs discutidas na pesquisa, a mais comprometida em termos de conservação é a APP de lagos e lagoas, com apenas 30,7% das suas áreas devidamente ocupadas por vegetação nativa. Quase 70% desse tipo de APP apresenta uso conflitante, ocupada principalmente pelas classes de pastagem (40,17%), agricultura (12,87%) e solo exposto (12,6%). Como apontam Borges (2008) e Rosin (2016), as APPs ao redor de lagos, lagoas, represas e reservatórios naturais ou artificiais foram por muito tempo um conceito mal discutido na legislação, e, quando inseridas no CFB (BRASIL, 1965), não dispunham de métricas específicas para sua preservação. Contudo, é fato que as alterações antrópicas, como construções de barragens, represas ou reservatórios artificiais, causam impactos ao meio ambiente, e, por isso, cabe dentro do processo de licenciamento ambiental estipular as dimensões para faixas de amortecimento (ou proteção) desses ambientes, considerados a partir da Resolução do CONAMA nº 4/1985 como reservas ecológicas.
44A segunda categoria com maior índice de ocupação irregular é a APP do tipo nascente, com 65,3% das suas áreas ocupadas por uso conflituoso perante a legislação, onde quase 50% são zonas de pastagem. Isso é um dado bastante preocupante, uma vez que esses ambientes são extremamente importantes por serem os locais de cabeceiras das bacias hidrográficas, essenciais à manutenção da quantidade e qualidade da água. No caso da RMG, que já está passando por um cenário de desabastecimento de água nos últimos anos, esses dados vêm a contribuir como um alerta das condições que se encontram os mananciais e as áreas de nascentes da região.
45As APPs fluviais apresentam grau de degradação um pouco menor do que as categorias anteriores, mas ainda os conflitos existem em 40,5% das APPs fluviais de 30 m e 29,9% das APPs fluviais de 50 m. Em ambas as tipologias de APPs, predominam o uso de pastagem e agricultura, seguindo a lógica de ocupação regional. Acredita-se que o percentual de APPs preservadas das duas modalidades possa ter relação com algumas políticas relacionadas ao principal rio de abastecimento público de água da região, o rio Meia Ponte. Como exemplo do decreto nº 5.496 de outubro de 2001, que fixa regras para o licenciamento ambiental para instalação de novos empreendimentos na bacia do rio Meia Ponte, e o decreto nº 6.210, de 29 de julho de 2005, que introduz alterações no supracitado decreto.
46De acordo com o decreto nº 5.496 (GOIÁS, 2001), em função da extrema importância da bacia hidrográfica do rio Meia Ponte para a RMG, e diante do expressivo grau de degradação que se encontra a referida bacia, o licenciamento ambiental para instalação de novos empreendimentos potencialmente poluidores nas proximidades da bacia do Rio Meio Ponte devem cumprir os seguintes requisitos:
I – afastamento mínimo, da cota máxima de inundação, de mil metros do leito do rio e de duzentos metros de seus afluentes;
II – apresentação do EIA/RIMA e/ou estudos técnicos específicos;
III – aprovação prévia do CEMAM, a critério da Agência Goiana do Meio Ambiente. (grifo em negrito acrescentado).
(GOIÁS, 2001)
47Apesar de o decreto apresentar critérios mais restritivos de proteção para as faixas marginais do rio Meia Ponte e seus afluentes, se comparado à legislação federal (BRASIL, 2012), e mesmo à RMG tendo 59,7% da sua área dentro dos limites dessa bacia, observa-se que não houve o cumprimento do que é previsto no texto legal (GOIÁS, 2001), como pôde ser visto no contexto das APPs da região metropolitana. Ainda assim é importante chamar atenção para esse tipo de ação, voltada à preservação ambiental, principalmente num cenário de extrema flexibilização das leis ambientais, tal como vem ocorrendo no Brasil.
48Diante das porcentagens de degradação das APPs da região metropolitana, é compreensivo o cenário de crise hídrica anunciado pelo decreto nº 9.176, de 09 de março de 2018, que declara situação de emergência nas Bacias dos Rios Meia Ponte e João Leite (GOIÁS, 2018). Mesmo assim, no presente ano, o Governador do Estado de Goiás, Ronaldo Caiado, assinou o decreto nº 9.445, de 09 de maio 2019, que revoga o decreto nº 5.496 de outubro de 2001 e o decreto nº 6.210 de 2005, que apresentavam regras para o licenciamento ambiental na bacia do rio Meia Ponte. Dentre as possíveis interpretações do decreto nº 9.445, entende-se que o mesmo não respeita o princípio da proibição de proteção deficiente, uma vez que tal decreto não assegura padrões mínimos adequados para a proteção do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Pelo contrário, mais uma vez, assim como foi com o CFB (BRASIL, 2012), o decreto anistia aqueles que estavam irregulares perante o decreto anterior (nº 5.496 /2001).
49A partir da figura 8 é possível analisar os conflitos de uso nas APPs de acordo com a perspectiva dos municípios membros da RMG, a fim de compreender como na esfera local tem sido observado o cumprimento da legislação. O mapa síntese da situação das APPs permite observar a degradação de mais de 40% das APPs de quase todos os municípios da região metropolitana, com exceção de Hidrolândia (38%) e Bela Vista de Goiás (37%). Os municípios no setor norte da RMG são os que apresentam menores percentuais de áreas preservadas. Neles, estão localizadas as principais bacias de captação e abastecimento público de água da região.
50Goiânia e Aparecida de Goiânia são os municípios com maiores percentuais de APPs preservadas, mas ainda assim os números não são muito distantes da média regional. A ausência dos planos diretores em alguns municípios da RMG e a falta de fiscalização para o cumprimento da legislação ambiental permite que a questão seja tratada com menos importância do que deveria ter. As consequências desse descaso são evidenciadas nos problemas de ordem socioambiental presentes na área de pesquisa, afetando principalmente a qualidade do solo (LIMA; FEREIRA; FERREIRA, 2018) e os recursos hídricos (NUNES, 2017).
Figura 11 – Situação das áreas de preservação permanente na Região Metropolitana de Goiânia.
Fonte: Elaborado pelos autores (2018).
51O uso irregular das APPs e o descumprimento da legislação ambiental não são exclusivos do contexto da área de pesquisa. Atualmente, no cenário de políticas públicas e instituições ambientais no Brasil, há uma falta de comprometimento por parte dos governos acerca do tema. Ainda que o país seja uma referência mundial no que tange a suas leis ambientais e ao seu importante conjunto de áreas protegidas (equivalentes a 30% do território), mesmo assim “a estrutura de fiscalização e regularização ambiental do país foi desmontada e o pouco que sobrou está paralisado” (LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL, 2019, p. 4).
52Diante a proposta de avaliar a situação das Áreas de Preservação Permanente da Região Metropolitana de Goiânia, conclui-se que, a partir da análise do texto legal e com auxílio dos produtos de sensoriamento remoto e bases cartográficas, foi possível realizar uma análise quantitativa e espacial com relação à situação atual das APPs na área de estudo.
53Ainda que seja permitido por lei o uso das APPs, em casos excepcionais de utilidade pública, interesse social e baixo impacto ambiental, a classe de pastagem, predominante em todas as APPs da área de pesquisa, não justifica a supressão desses espaços por lei protegidos. Destaca-se a necessidade da intervenção do Poder Público na regularização das APPs (rurais e urbanas), seja através das políticas urbanas materializadas no Plano Diretor ou pela aplicação das normas gerais previstas no Código Florestal.
54Não se trata de inviabilizar o uso agropecuário consolidado na RMG ou retroceder o crescimento urbano, mas sim tentar equacionar as necessidades econômicas, sociais e ambientais para as próximas décadas. A manutenção desses espaços reflete diretamente na preservação dos recursos hídricos, da paisagem, da estabilidade geológica, da biodiversidade, do fluxo génico de fauna e flora, da proteção do solo, e por consequência, do bem-estar das populações humanas. Portanto, sua adoção, conforme o Código Florestal, é mister e bastante viável, frente aos conhecimentos e experiências acumuladas nos últimos anos, sobretudo com apoio dos produtos das geotecnologias.