1A criação do estado do Tocantins, sua inserção na Região Norte do país, na porção oriental da Amazônia, e a implantação de sua capital Palmas, em 1989, introduzem alterações significativas no território nacional. Estas expressam, em parte, as transformações políticas, econômicas e socioculturais da própria formação socioespacial brasileira no final do século XX, com reflexos na urbanização e com reestruturações regionais.
2Nesse novo estado, essas mudanças abrangem tanto a escala do espaço urbano, destacadamente o da própria capital, como a escala da rede urbana. No segmento regional, esta rede passa a ser comandada por Palmas, que, gradativamente, assume o papel de Capital Regional (IBGE, 2008) em função das interações espaciais estabelecidas em âmbito regional e extrarregional, que envolvem as relações cidade-campo e os processos urbano-rural, com nexos em várias escalas, inclusive nas nacional e global, e com complexificações da urbanização e da regionalização.
- 1 A dinâmica atual da urbanização vem evidenciando “uma conjugação entre as escalas do urbano e do re (...)
3A urbanização adquire papéis cada vez mais preponderantes, mantendo a tendência à complexificação, à concentração e ao adensamento de população, de capital e “de obras, de objetos, de infraestruturas, de equipamentos, de edificações, de acontecimentos, de ideias, de valores, de possibilidade etc.” (Sposito, 2010a, p. 113). Porém, com mediações que ainda se pautam nas relações entre a cidade e o campo, bem como entre o urbano, o rural e o regional1, revelando sobreposições de escalas geográficas e múltiplos processos envolvidos, como os de metropolização do espaço, metropolização regional e os de urbanização e regionalização pós-metropolitana, como apontado por Lencione (2017).
4No caso em discussão, parte dessas relações são principiadas em contexto de conflito de interesses, por conta das desapropriações de terras rurais para a implantação da capital, que antecedem a apropriação e a produção do espaço urbano. A fundação de Palmas em um espaço rural precedente impõe, necessariamente, a transformação da terra rural em terra urbana e, por conseguinte, o estabelecimento de morfologias distintas para a cidade e para o campo, previstas no projeto urbanístico.
5Esses espaços, no entanto, vão se mesclando e se alinhando no sentido de gerar complementaridades que garantam o fortalecimento das esferas políticas local e regional e o aprofundamento das dinâmicas econômicas que alicerçam a acumulação de capitais, tanto nos processos de produção/reprodução do espaço urbano, com os admiráveis investimentos no setor imobiliário, como nos processos de ampliação e diversificação das funções urbanas, na escala da rede. Nestes, destacam-se as funções associadas aos setores de distribuição de bens e serviços públicos e privados, incluindo-se as demandas do campo, especialmente do agronegócio.
6Essas articulações complexificam-se de modo a evidenciar novas interações cidade-campo e novos processos urbano-rural, ou seja, novos processos de urbanização regional, com nexos na escala nacional e na escala global. Tais complexidades serão brevemente abordadas neste artigo, que se propõe a discutir os papéis político-administrativos de Palmas, o projeto urbanístico e as desapropriações de terras para a sua implantação, a importância das transferências de populações e de capitais para a nova cidade, e, por fim, o peso recente do boom imobiliário e do agronegócio.
7As ações intencionais para a implantação de uma cidade para ser a capital do Tocantins têm suas origens em 1988. Neste ano, estabelece-se a criação desse estado, a partir do desmembramento territorial de parte da porção norte do estado de Goiás, e designa-se que a Assembleia Estadual Constituinte escolha a sede definitiva da capital estadual (BRASIL, 1988a), ficando determinado que o chefe do Poder Executivo federal indicaria uma cidade como capital provisória. A cidade escolhida é Miracema do Norte (Brasil, 1988b).
8Contudo, o então governo goiano, por meio do Decreto n° 3.086, de 9 dezembro de 1988 (Goiás, 1988), demarca um quadrilátero de 8.100 km2, na porção central do futuro território tocantinense, como área de utilidade pública para fins de desapropriação para a construção da capital definitiva. Com a instalação do estado do Tocantins, em 1° de janeiro de 1989, é editada, pelo governo empossado nessa mesma data, a Medida Provisória n° 009 (Tocantins, 1989a), em conformidade com o decreto do governo goiano.
9Assim, Palmas nasce de ações intencionais associadas às forças políticas regionais, tanto em Goiás como no Tocantins, com o aval do governo federal, em Brasília. Essas forças políticas optam por implantar uma nova cidade para sediar o aparato político-administrativo estadual. Trata-se de característica marcante das cidades, pois, como ensina Lefebvre (1991, p. 30), a cidade é “um centro privilegiado, núcleo de um poder político”. Cumpre salientar que, no caso das capitais brasileiras, esse poder estende-se sobre o território estadual, o que explica, em parte, a interiorização da urbanização, amplamente apoiada nos papéis desempenhados pelas capitais.
10Palmas aparece, inicialmente, exercendo papéis discretos de controle sobre o novo território estadual, por meio das funções de natureza político-administrativa. Por conta disso, estabelece uma nova hierarquia na escala da rede urbana, marcada, até então, por funções urbanas pouco complexas e por uma integração regional fraca, insuficientes para articular segmentos próprios de rede urbana.
11No antigo Norte Goiano, tinha-se uma economia urbana de base agrária, com a predominância das relações cidade-campo, que, em um sentido, “[...] estabeleciam-se intercâmbios permanentes entre o campo e os principais centros coletores e expedidores da produção agropecuária”, e, no sentido oposto, “[...] esses centros eram responsáveis pela distribuição de bens e serviços para os centros menores e para o campo” (Bessa, 2015, p. 18). Posteriormente, baseado no “[...] crescimento comercial dos núcleos urbanos” (Machado, 1979, p. 71), como fruto do “[...] avanço da fronteira agrícola, em moldes capitalistas” (Machado, 1979, p. 83), ocorre uma relativa mudança nas interações cidade-campo, porque “[...] as vias de transporte rodoviários e os investimentos produtivos agropecuários, agroindustriais e urbanos surgiram como os motores da reorganização espacial” (Bessa, 2015, p. 18). Destarte, estabeleciam-se relações nas quais o campo era tributário da cidade.
12Com a implantação do novo estado, criam-se, por meio das ações de um conjunto de agentes políticos e econômicos, as condições para que Palmas passe a articular um segmento próprio de rede urbana, o que evidencia o papel das capitais estaduais na reestruturação do território e da própria rede urbana, que se torna mais complexa, mormente pelo estabelecimento de interações espaciais tanto na escala regional como extrarregional. As ações deliberadas para garantir a inserção de Palmas estão evidenciadas no texto do projeto urbanístico, intitulado Projeto da capital do estado do Tocantins: plano básico/memória (Grupo Quatro, 1989b).
13Velasques (2010) assinala que o projeto de Palmas apresenta traços do urbanismo modernista e contemporâneo. Para Silva (2008, p. 15), a capital tocantinense “figura como um caso de transição entre a modernidade e a pós-modernidade”. Trindade (1999, p. 89) aponta, ao analisar tal projeto, que se estabelece apenas “um desenho urbano”, “um desenho, adaptado às condições do sítio escolhido” (Trindade, 1999, p. 99).
14A escolha do sítio para sediar a capital leva em conta critérios políticos associados à posição geográfica, como a centralidade da localização no território tocantinense e a margem direita do rio Tocantins na porção oriental, menos privilegiada pelos investimentos federais realizados na porção ocidental a partir de 1960 (Gomes; Teixeira Neto; Barbosa, 2005). O sítio definitivo encontra-se, no sentido leste-oeste, entre a encosta de planalto residual da denominada Serra do Lajeado e a margem direita do rio Tocantins, hoje margem do reservatório artificial da Usina Hidrelétrica (UHE) Luís Eduardo Magalhães, e, no sentido norte-sul, entre os ribeirões Água Fria e Taquaruçu Grande (Figura 1).
15O desenho da área urbana projetada é caracterizado por macroparcelamento retangular formal e por traçado ortogonal racional, com o emprego de formas regulares, geometrizadas e simétricas que acompanham o sentido norte-sul do sítio escolhido. De acordo com os projetistas, a área urbana macroparcelada, com 11.084,47 ha, apresenta capacidade para abrigar mais de um milhão e duzentos mil habitantes, com densidade máxima de trezentos habitantes por hectare. Vale ressaltar que a concentração de população “é, frequentemente, tomada como atributo das cidades, em comparação ao campo, onde as atividades desenvolvidas, muito mais marcadas pela extensão territorial, promovem relativa dispersão populacional” (Sposito, 2010a, p. 113). Além dessa área macroparcelada, há duas áreas urbanas de expansão futura, uma ao norte, com 4.625 ha, e outra ao sul, com 4.869 ha (Grupo Quatro, 1989b). Portanto, nos esboços do projeto urbanístico, nota-se a distinção entre os espaços urbanos e de expansão urbana e os espaços rurais, com suas morfologias claramente identificáveis (Figura 1).
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Figura 1 - Desenho do sítio, da área urbana macroparcelada e das áreas de expansão urbanas norte e sul no projeto de Palmas
Fonte: Grupo Quatro, 1989a, p. 4.
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16No projeto da capital, a área com macroparcelamento comporta os diferentes usos urbanos, a saber: residenciais, comerciais e de serviços (local, vicinal, central e regional), industriais, de lazer, cultura e conservação ambiental, de administração governamental e demais usos institucionais. Trata-se da constituição de “formas de concentração de população em torno de atividades industriais, comerciais e de serviços” (Corrêa, 2018, p. 304), próprias da urbanização, que expressam uma divisão social e espacial do trabalho. Para Sposito (2010a, p. 116), a “divisão territorial do trabalho mais elementar é a que se estabelece entre a cidade e o campo.”
17A implantação desses diferentes usos urbanos dar-se-ia, de acordo com o projeto, em etapas subsequentes, nos sentidos leste-oeste e norte-sul, a partir do marco cívico: o Palácio Araguaia, sede do governo estadual. Tal implantação abrangeria as faixas de terras delimitadas pelos cursos d’água do sítio: a primeira etapa, entre os córregos Brejo Comprido e Sussuapara; a segunda, entre os córregos Brejo Comprido e Prata; a terceira, entre o córrego Sussuapara e o ribeirão Água Fria; a quarta, entre o córrego Prata e o ribeirão Taquaruçu Grande, que correspondem à área do perímetro urbano, com macroparcelamento; e, por fim, a quinta etapa de ocupação, que equivale às áreas urbanas de expansão norte e sul, sem parcelamento urbano. A ocupação em etapas visa garantir a continuidade do traçado e evitar o espraiamento da cidade, estando a expansão territorial condicionada à demanda por novas áreas em função do ritmo de crescimento demográfico (Grupo Quatro, 1989b). Nessas proposições, tem-se outra característica das cidades: a tendência “a uma morfologia marcada por relativa unidade espacial” (Sposito, 2010a, p. 119).
18Velasques e Machado (2015, p. 74) afirmam que “a adoção do modelo concentrado de ocupação era peça-chave para a manutenção dos conceitos fundamentais do desenho da nova capital”. Para Trindade (1999, p. 99), “o fundamento do desenho [proposto para Palmas] é a densidade”. Mas, conforme Cerqueira (1998, p. 90), na ocupação por etapas e no adensamento urbano, segundo as demandas sociais, reside “forte elemento utópico do projeto” concebido para Palmas.
19Isso, de fato, confirma-se, pois a forma urbana projetada em uma perspectiva físico-territorial, centrada no traçado urbanístico, nas densidades de ocupação e no uso do solo, cede lugar a uma forma dispersa e descontínua, caracterizada “pelo rompimento com as etapas de ocupação propostas no projeto, pelo alargamento desnecessário da área urbana e pela implantação parcial das infraestruturas e equipamentos urbanos” (Bessa; Oliveira, 2017, p. 506).
20Ademais, para a implantação de uma cidade, não basta escolher o sítio e elaborar o projeto urbanístico. Faz-se necessário liberar as terras do sítio escolhido para que se insira o plano urbano projetado. No caso em discussão, para a liberação das terras, o primeiro governo (1989-1991), apoiado na declaração de utilidade pública, lança mão do poder expropriatório do Estado. Tal medida revela o poder unilateral do Estado no que diz respeito as desapropriações e o interesse na apropriação da terra e na sua conversão de terra rural em terra urbana. Essa conversão potencializa, de maneira significativa, a renda da terra para aquele que detém a propriedade.
- 2 A esse respeito, ver Lucini e Bessa (2019).
21Nessas terras sujeitas à desapropriação2, havia um conjunto de propriedades e posses rurais. Os proprietários e posseiros atingidos (os expropriados), insatisfeitos com as ações do Estado (o expropriante), resistem às desapropriações e recorrem ao Poder Judiciário em busca de uma solução para o problema. Cria-se, então, um ambiente conflituoso de transição entre o antigo espaço rural e o novo espaço urbano em implantação, não se estabelecendo com clareza a distinção entre tais espaços.
22Após o encaminhamento das ações judiciais de desapropriação e a imissão provisória de posse em favor do expropriante, o primeiro governo estadual passa a negociar essas terras sob a forma de lotes urbanos e chácaras no entorno do perímetro urbano projetado. Isso evidencia o estabelecimento de uma área de transição ou de interpenetração de espaços distintos, com uma morfologia urbana-periurbana-rural, marcada pelo contraste entre o campo e a cidade que se pretende edificar.
23Embora o projeto defina um perímetro urbano, os limites entre esses dois espaços, no momento inicial de implantação da capital, tornam-se bastante imprecisos e marcados pela resistência dos expropriados, que lutam para resguardar seu modo de vida. As relações cidade-campo principiam-se no choque de interesses entre o expropriante, que intenciona implantar uma nova cidade, ajustada à lógica da urbanização capitalista, e os expropriados, que veem seu habitat rural transformado por conta dessa implantação.
24Com a instalação do estado do Tocantins, tem-se a criação de sessenta novos municípios, incluindo o que sedia a capital estadual. No caso desta, o lançamento da pedra fundamental ocorre em 20 de maio de 1989, data que marca o início da sua construção e desencadeia processos simultâneos de transferências de populações e de capitais.
25Em virtude dos entraves nas ações de desapropriação das terras rurais, somente em 28 de novembro de 1989 é lançado o primeiro Edital de Concorrência Pública (Tocantins, 1989b, p. 46) para a alienação de imóveis no “loteamento Palmas”. Este representa a primeira forma de produção territorial urbana e corresponde à totalidade da primeira etapa de ocupação prevista no projeto, com a disponibilização de aproximadamente 1.500 lotes, sendo mais de oitocentos para uso residencial. A Secretaria de Viação de Obras Públicas (Sevop), responsável pelo edital, recebeu cerca de 11,5 mil propostas de compra (Lotes..., 1990).
26Na sequência, o governo estadual (1989-1991) rompe com a estratégia de ocupação em etapas prevista no projeto urbanístico e negocia um vasto conjunto de terras, inclusive sem parcelamento, promovendo a extensão territorial urbana para além do perímetro demarcado e atuando como principal agente da produção da cidade. Esta passa a ser produzida de maneira intensa, atraindo populações e capitais excedentes do campo, de outras cidades e unidades da Federação.
27Com as alienações e transferências de terras, novos agentes passam a atuar na produção da cidade, sobretudo como proprietários fundiários urbanos, dentre eles: proprietários rurais, o que demonstra a transferência de capitais gerados no campo e explicita uma drenagem da renda fundiária rural para a cidade; empresas construtoras, tais como a Emsa Empreendimentos e a Itebra Construções e Instalações Técnicas, ambas com sede em Brasília, a EBL Electrical do Brasil, cuja sede encontrava-se então em Aparecida de Goiânia, e a Sos Construção e Saneamento, com sede em Goiânia, que recebem glebas urbanas como pagamento pelos serviços prestados; e incorporadores e promotores imobiliários, que se instalam na cidade, ratificando a transferência de capitais extrarregionais. Esses vão adquirindo e reservando terras com interesse especulativo.
28A produção urbana, marcada por “intermediações de interesses no processo de consolidação do poder local e de reprodução do capital fundiário e imobiliário emergente” (Bessa; Oliveira, 2017, p. 500), gera dificuldades de acesso à terra por parte da população migrante, que é remanejada pelo governo estadual para a área de expansão sul, fora do perímetro urbano. Nessa área passa a ocorrer o parcelamento de terras, por meio da iniciativa privada, que promove os primeiros loteamentos, e da ação do governo estadual, que instala grandes conjuntos habitacionais para atender a população de baixa renda. Tais ações “metamorfoseiam o plano urbano original de Palmas, inserindo a área de expansão urbana sul no processo geral de reprodução da cidade” (Bessa; Lucini; Souza, 2018, p. 137).
29Em 1991, Palmas, com 24.334 habitantes (Tabela 1), que corresponde a 2,6% da população total do Tocantins, então de 919.863 habitantes (IBGE, 1991), não figura como o município mais atrativo no novo estado. Em seguida, a capital passa a exercer forte poder de atração, já que “os movimentos migratórios mais intensos e de longa distância intraestadual ocorreram principalmente rumo à capital” (Alvim; Bessa; Ferreira, 2019, p. 18). Chegam também pessoas de outros estados, em especial de Goiás, Maranhão, Pará, Minas Gerais e São Paulo.
Tabela 1 - Crescimento dos municípios com maior porte demográfico do estado do Tocantins entre 1991 e 2010
Municípios
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1991
|
2000
|
% de evolução 1991-2000
|
2010
|
% de evolução 2000-2010
|
% de evolução 1991-2010
|
Araguaína
|
103.315
|
113.143
|
9,5
|
150.484
|
33,0
|
45,7
|
Araguatins
|
27.861
|
26.010
|
-6,6
|
31.329
|
20,4
|
12,4
|
Colinas do TO
|
21.018
|
25.301
|
20,4
|
30.838
|
22,0
|
46,9
|
Guaraí
|
20.822
|
20.018
|
-3,9
|
23.200
|
16,0
|
11,5
|
Gurupi
|
56.752
|
65.034
|
14,6
|
76.755
|
18,0
|
35,3
|
Miracema do TO
|
20.815
|
24.444
|
17,4
|
20.684
|
-15,3
|
-0,6
|
Palmas
|
24.334
|
137.355
|
464,5
|
228.322
|
66,2
|
938,3
|
Paraíso do TO
|
28.825
|
36.130
|
25,3
|
44.417
|
23,0
|
54,1
|
Porto Nacional
|
43.224
|
44.991
|
4,1
|
49.146
|
9,2
|
13,7
|
Tocantinópolis
|
30.775
|
22.777
|
-26,0
|
22.619
|
-0,7
|
-26,5
|
Fonte: IBGE, 1991, 2000, 2010.
30A partir desse período, a cidade passa a ser produzida de maneira intensa, atraindo mais populações e capitais. As áreas urbanas de expansão norte e sul, propostas no projeto da capital, são inseridas no processo geral de produção/reprodução da cidade, rearranjando drasticamente a morfologia urbana, com uma tendência progressiva de expansão do perímetro urbano, marcada pela incorporação de novas terras rurais. Nota-se, pois, uma relação que prioriza os interesses da cidade sobre os do campo.
31No que diz respeito à população, Palmas atinge 137.355 habitantes em 2000 (IBGE, 2000). Esse crescimento expressivo evidencia uma tendência de concentração populacional na capital, que passa a abarcar 11,9% da população total do Tocantins, então de 1.157.098 habitantes. Em 2010, Palmas alcança 228.322 habitantes (IBGE, 2010), passando a abrigar 16,5% da população total do estado, então de 1.383.44 habitantes (Tabela 1), o que mostra a continuidade da tendência de concentração de população na capital.
32Assim, “percebem-se mudanças na distribuição da população estadual, que, inclusive passa a ser afetada pelas migrações intraestaduais” (Alvim; Bessa; Ferreira, 2019, p. 18), que refletem movimentos migratórios campo-cidade e cidade pequena-cidade de porte médio, mas com clara tendência de concentração nos centros de maior porte, preferencialmente na capital.
- 3 Distrito pertencente ao município de Porto Nacional, mas localizado a cerca de 8 km da capital.
33Em um contexto de transferências de populações e de capitais, a produção territorial em Palmas segue caminhos próprios, ratificando a dispersão e a descontinuidade da mancha de ocupação. Tal produção é caracterizada pelo recorrente alargamento do perímetro urbano, com vazios intersticiais nas áreas já loteadas e grandes glebas de terras não parceladas entre as áreas loteadas; pela incorporação das terras da franja urbana, especialmente próximo às áreas urbanas norte, leste e sul, com a presença de loteamentos de alto padrão, ocupações irregulares e chácaras; e, mais recentemente, pela incorporação e adensamento no distrito de Luzimangues,3 na margem direita do reservatório, a oeste, o que conforma uma nova morfologia urbana, a aglomeração Palmas-Luzimangues (Figura 2).
34Nessas áreas da franja urbana, mantém-se estreita relação entre os espaços urbano e rural, de modo a caracterizar um continuum cidade-campo, com os dois espaços “superpostos, amalgamados e intrinsicamente relacionados” (Sposito, 2010a, p. 122). Por conta disso, os limites entre a cidade e o campo seguem bastante imprecisos, como no início do processo de implantação de Palmas. Essa imprecisão é reforçada no atual Plano Diretor Participativo de Palmas (Palmas, 2018), que estabelece uma expansão territorial nessa franja urbano-rural a partir da ampliação do distrito industrial e da implantação do terminal de cargas, do porto fluvial e do distrito turístico. Tais medidas demonstram que essa “superposição de formas espaciais” (Sposito, 2010a, p. 121) segue integrando “interesses políticos e econômicos associados ao mundo rural e ao urbano.” Agora, não se trata apenas da implantação de loteamentos, mas de um conjunto de equipamentos industriais e de serviços de grande porte que contribuirão para reforçar os papéis urbanos de Palmas em escalas regional e extrarregional.
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Figura 2 - Área de ocupação urbana na aglomeração Palmas-Luzimangues, 2017
Fonte: Bessa, 2017, p. 63.
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35De modo semelhante, ocorre a concentração de atividades econômicas em Palmas, porque as transferências de capitais contribuíram para a formação de um complexo funcional urbano, que garante o atendimento das demandas da população local e regional. Ademais, promove alterações nos papéis desempenhados e, consequentemente, reestruturações no padrão espacial da rede urbana, que passa a integrar interesses de agentes “que têm sua vida econômica e/ou política ou, ainda, seu habitat associados a espaços urbanos e rurais” (Sposito, 2010a, p. 121). De fato, percebe-se uma vida de relações em escala regional porque as funções urbanas nos demais centros desse segmento de rede não são capazes de atender às demandas de suas populações, que estão em constante movimento, sobretudo em direção a Palmas.
36Como foco da vida político-administrativa do estado e ponto de atração de empresas, tem-se o estabelecimento de uma nova hierarquia para Palmas, que é reforçada e alargada por meio das funções comerciais e de prestação de serviços para o atendimento das demandas locais e regionais, bem como por meio das interações extrarregionais. Essas funções ampliam-se e diversificam-se, resultando em maior distinção da capital na rede urbana, pois o centro que sedia o poder político-administrativo e um conjunto de empresas passa a assegurar relativa importância em sua área de influência, aí incluídos o campo e os centros subordinados, e também a estabelecer verticalidades em uma ampla área extrarregional.
37Desse modo, a capital passa a ter seu papel definido pelo expressivo comando regional e pela inserção diferenciada na escala extrarregional, seja pelo exercício do poder político, seja pelo controle das atividades econômicas. Destacam-se sua capacidade de atender às demandas regionais, notadamente com relação às modernas estruturas do comércio varejista/atacadista e da prestação de serviços, incluindo-se as funções associadas às demandas do campo; e de manter interações horizontais e verticais, facilitadas pelas melhorias da base infraestrutural, sobretudo rodoviária, ferroviária e aeroviária, que visam consolidar os corredores de exportação centro-norte e gerar vantagens na posição geográfica dos centros urbanos tocantinenses, mormente da capital.
38A partir de 2011, com uma dinamização associada à criação do Programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), tem-se uma intensa produção/reprodução do espaço urbano de Palmas nas escalas horizontal e vertical, abrangendo terras na área macroparcelada, nas áreas urbanas de expansão sul e norte, nas áreas a leste do perímetro urbano e no distrito de Luzimangues, a oeste desse perímetro (Figura 2).
- 4 A esse respeito, ver Rodrigues e Bessa (2017).
39Nesse novo contexto de produção/reprodução desse espaço urbano, nota-se, entre outros aspectos: a prevalência dos interesses do estado do Tocantins, cujas terras são geridas pela Companhia Imobiliária do Estado do Tocantins (TerraPalmas), empresa pública de capital misto criada em 2012 (Tocantins, 2013); a reorganização das empresas locais no sentido de fortalecer sua atuação, cujo principal exemplo é a criação, em 2010, da empresa G-10 Empreendimentos Imobiliários, que reúne um grupo de incorporadores e promotores imobiliários locais; o peso de empreiteiras que receberam terras em dação de pagamento, a exemplo da EMSA Empreendimentos, que vem estabelecendo parcerias para viabilizar as incorporações de suas terras, sendo a principal firmada, em 2015, com o grupo Alphaville Urbanismo para a construção dos condomínios horizontais Alphaville Palmas 1 e 2; e a importância de capitais nacionais, especialmente dos estados de São Paulo, Paraná, Goiás, Minas Gerais e Paraíba e do Distrito Federal, no processo de verticalização da cidade4, alavancado a partir de 2011.
40Ressala-se que essa produção/reprodução ocorre a partir da oferta de crédito e da valorização imobiliária, aprofundando “uma imbricada relação entre os setores financeiros (juros), fundiários (renda da terra), da construção civil e imobiliários (lucros), com a mediação direta do Estado (poder)” (Bessa; Lucini; Souza, 2018, p. 143), envolvendo também a expansão do agronegócio.
- 5 Trata-se do Plano de Desenvolvimento Agropecuário do Matopiba (PDA-Matopiba), institucionalizado po (...)
41No estado do Tocantins, a expansão do agronegócio não é recente, porque abarca a implantação de projetos agropecuários desde o final dos anos 1970. Mais recentemente, encontra-se associada ao plano governamental Matopiba.5 Este, de acordo com Lima (2019, p. 45), “[...] reverbera de maneira particular os processos de modernização” do campo em uma ampla área que envolve os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Apesar desse termo ganhar importância na mídia e na academia, tais processos expressam o surgimento ou a consolidação das regiões produtivas do agronegócio, que “[...] são os novos arranjos territoriais produtivos totalmente associados ao agronegócio globalizado e, assim, inerentes às redes agroindustriais” (Elias, 2011, p. 155).
- 6 Para Elias (2017, p. 487), “[...] a materialização das condições gerais de reprodução do capital do (...)
42O reconhecimento dessas regiões dá-se, primordialmente, pela presença de novos fixos espaciais, a exemplo dos silos de armazenagem, das fábricas de processamento, dos terminais de carga para o escoamento e dos escritórios das empresas agrícolas. Esses fixos evidenciam “[...] a forte integração da atividade agropecuária aos circuitos da economia urbana, desenvolvendo-se uma extensa gama de novas relações entre os espaços agrícolas racionalizados e os espaços urbanos próximos” (Elias, 2017, p. 492), por meio do estabelecimento de horizontalidades, bem como “[...] engloba os vários extratos da rede urbana” por meio do estabelecimento de verticalidades, já que “[...] o comando geral do agronegócio se dá em outras escalas da rede urbana, especialmente nas principais metrópoles” do país e do mundo6 (Elias, 2017, p. 501).
43No estado do Tocantins, as unidades de armazenagem da Bunge Alimentos, da Cargill Agrícola, da Agrex do Brasil, da Fiagril e da Granol estão localizadas em Porto Nacional, Pedro Afonso, Guaraí, Gurupi, Campos Lindos, Silvanópolis, Cariri do Tocantins, Fortaleza do Tabocão, Alvorada, Figueirópolis e São Valério, dentre outros. As processadoras estão em Pedro Afonso, com a usina de cana-de-açúcar da Bunge Alimentos, e em Porto Nacional, com o complexo industrial da Granol. Essas corporações, cujas sedes, no Brasil, encontram-se em São Paulo, Mato Grosso e Goiás, são responsáveis pela presença de filiais e escritórios de empresas agrícolas associadas ao comércio atacadista, a exemplo da ADM do Brasil, em Palmas; da Cargill Agrícola, em Palmas, Pedro Afonso e Campos Lindos; da Amaggi, em Palmas, Guaraí e Figueirópolis; da Bunge Alimentos, em Porto Nacional, Guaraí, Pedro Afonso, Campos Lindos e Cariri do Tocantins; da Agrex do Brasil, em Cariri do Tocantins; da Fiagrill, em Porto Nacional e Silvanópolis; da Multigrain, em Guaraí; da CHS Agronegócio e Gavilon do Brasil, em Palmas, dentre outras. O Tocantins também conta com indústrias frigoríficas, tais como: Minerva, JBS e LJK Frigorífico, em Araguaína; Cooperfrigu, em Gurupi; Plena Alimentos e Frigorífico Paraíso, em Paraíso do Tocantins; Masterboi, em Nova Olinda; Boi do Brasil, em Alvorada; Bonasa Alimentos, em Aguiarnópolis, cujas sedes estão no próprio Tocantins e em São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco.
44Esses circuitos produtivos associados aos grãos, mormente soja e milho, e às carnes, sobretudo a bovina, compõem a principal pauta de exportações do estado do Tocantins. No período de janeiro a dezembro de 2019, o estado exportou soja (72,8% do total das exportações em termos monetários), carne bovina (15,6%) e milho (7,6%), que, em conjunto, totalizaram 96% das exportações, em termos monetários. Os principais municípios exportadores, em 2019, foram Palmas (28,1% do total das exportações em termos monetários), Porto Nacional (14,4%), Guaraí (10,4%), Araguaína (9,6%), Gurupi (9,3%), Campos Lindos (7,1%) e Paraíso do Tocantins (5,3%). Os principais países de destino dos produtos exportados por esses municípios, em 2019, foram China e Hong Kong, que juntos respondem por 64,1% do total das exportações em termos monetários, seguidos pela Espanha (7%), Egito (4,2%), Tailândia (3,3%), Arábia Saudita (2,2%) e Vietnã (2%), dentre outros (Ministério da Economia, 2020).
45Destacadamente, o principal município exportador no estado, em 2019, foi Palmas, tendo como principal produto a soja. A capital passa, gradativamente, a sediar os escritórios regionais dessas corporações responsáveis pelo comércio atacadista de soja, de modo a reforçar os seus papéis urbanos e a sua posição como ponto de interseção das horizontalidades e verticalidades. A Ferrovia Norte Sul (FNS), mormente pelo terminal multimodal do distrito de Luzimangues, nas proximidades de Palmas, é a principal via de escoamento desse produto.
- 7 A cidade do campo, na perspectiva de Santos (1993, p. 52), “[...] é obrigada a se afeiçoar às exigê (...)
46Ressala-se que a expansão do agronegócio no estado do Tocantins vem promovendo transferências de capitais para Palmas e para alguns outros centros urbanos, mormente os que passam a desempenhar papéis como cidades do campo,7 a exemplo de Porto Nacional, Guaraí e Pedro Afonso. Em Palmas, esses capitais são investidos nos setores fundiários, imobiliários e em outros setores da economia urbana, contribuindo, de um lado, para a complexificação da produção/reprodução do seu espaço urbano, e, de outro, para uma inserção mais complexa na rede urbana, tanto no segmento regional como no extrarregional, por meio da constituição de verdadeiras redes agroindustriais. Estas envolvem interações locais, regionais, nacionais e internacionais, porque se trata de um agronegócio globalizado e “[...] comandado por grandes empresas e corporações nacionais e transacionais” (Elias, 2017, p. 498).
47É na cidade que os principais agentes estão sediados e atuam no sentido de estabelecer as novas relações cidade-campo e os novos processos urbano-regionais, que envolvem agentes correlacionados às atividades agropecuárias propriamente ditas e aos setores industrial, comercial e de serviços, com notória participação das esferas financeira e estatal. Portanto, vislumbram-se investimentos extraordinários no setor imobiliário, diretamente associados aos agentes fundiários, imobiliários e financeiros, bem como uma maior complexificação das funções urbanas, que, por sua vez, amplia as interações espaciais em diferentes escalas, que se entrelaçam e se superpõem desde a local, passando pelas regional e nacional, até a internacional.
48Dessa maneira, há que se considerar o peso da modernização da agropecuária nas relações cidade-campo, nos processos urbano-rural e, consequentemente, nas reestruturações urbano-regionais, porque altera as tradicionais relações e estabelece outras que envolvem articulações complexas entre os espaços urbano e rural, incluindo-se as novas formas associadas aos processos de urbanização e de regionalização, que sinalizam para a subordinação do campo em relação à cidade.
49Diante da complexificação dos contextos que envolvem as relações cidade-campo, Sposito (2010a) entende ser possível identificar análises focadas no estabelecimento da distinção e da oposição entre esses dois espaços, respectivamente, por meio da expressão “cidade diferente do campo” e da grafia “cidade versus campo” (Sposito, 2010a, p. 113; 121), bem como interpretações que priorizam “a cidade em suas relações com o campo” (Sposito, 2010a, p. 115), com o campo tributário da cidade, pois esta penetra e transforma radicalmente o campo e o modo de vida rural. Mas, como aponta Souza (2019, p. 268), “[...] ainda que as diferenças entre campo e cidade sofram uma tremenda mutação [...] muitos matizes e muita complexidade subsistem”, notadamente quando os interesses dos agentes desses dois espaços estão em discordância, como no caso das desapropriações de terras rurais para a implantação de Palmas.
50As análises mais complexas vêm priorizando a articulação entre esses espaços, que passam a expressar um continuum cidade-campo. Isso implica o exame dos processos que articulam o urbano e o rural. Para Sposito (2010b, p. 57), tal apreciação “exige, no período atual, que se dê menos peso às distinções entre esses dois espaços e mais luz à análise das articulações entre o rural e o urbano”, em múltiplas escalas, visto que os agentes políticos e econômicos que atuam nesses espaços estão intimamente imbricados, resultando em superposições.
51Dessa maneira, a complexificação dos processos que articulam o urbano e o rural, envolvendo escalas mais amplas, é perceptível com a criação do estado do Tocantins e a implantação de Palmas. A presença, no território, de uma capital é ponto focal para a atração de populações, o que resulta em maior diferenciação social, e de capitais, porque os agentes econômicos têm, na capital estadual, melhor acesso aos investimentos intra e extra regionais. Tais investimentos abrangem os associados à própria implantação da cidade e de suas diversas funções urbanas, e, mais recentemente, os vinculados ao boom imobiliário e à expansão do agronegócio. Em conjunto, complexificam as funções urbanas de Palmas, especialmente as relacionadas aos serviços mais avançados que atendem às demandas de uma população com maior estratificação social e às demandas do campo modernizado, cujas interações mesclam escalas do local ao transnacional. Além do mais, expressam a importância da criação de novas unidades federativas e de novas capitais para as dinâmicas políticas, econômicas e socioculturais da formação socioespacial brasileira.
52Em suma, a compreensão das novas articulações cidade-campo na contemporaneidade desencadeia análises que envolvem a extensão dos processos de urbanização, tanto no espaço urbano como na rede urbana, com implicações regionais, já que tais articulações abrangem os papéis que esses espaços – cidade e campo – passam a desempenhar nas suas respectivas regiões e na divisão territorial do trabalho. Essas também abordam as formas de acumulação de capital, que abarcam interesses de múltiplos agentes na cidade, no campo e na região, e as ações do Estado, que se impõem e superpõem aos espaços, sejam os rurais ou os urbanos, de modo a manter a complexidade da relação cidade-campo, sobretudo em contexto de avanço dos processos de urbanização, notadamente capitalistas, e de reestruturação regional. Por fim, as análises podem revelar novos processos pertinentes à natureza da urbanização e à lógica das reestruturações regionais no Brasil.