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Tradução

Uma ilustração geográfica sobre a guerra: bombardeando os diques no rio Vermelho, Vietnã do Norte

Une illustration géographique de la guerre : bombardement des digues sur le Fleuve Rouge, Nord Vietnam
A geographical illustration of the war: bombing of the dikes on the Red River, North Vietnam
Guilherme Magon Whitacker
Référence(s) :

Yves Lacoste, 1973, “An illustration of geographical warfare: bombing of the dikes on the Red River, North Vietnam”, Antipode 5, pp. 1-13

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Index de mots-clés :

Lacoste, géopolitique, bombardement, digues, Vietnam

Index by keywords:

Lacoste, geopolitics, bombing, dikes, Vietnam

Index géographique :

Vietnam

Índice de palavras-chaves:

Lacoste, geopolítica, bombardeio, diques, Vietnã
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Notes de la rédaction

O texto que segue foi traduzido por Guilherme Magon Whitacker com assistência de Maurício Bratfish do original em inglês “An illustration of geographical warfare: bombing of the dikes on the Red River, North Vietnam.”, publicado na revista Antípode, Volume 5, número 2 em maio de 1973 e em francês na Hérodote, no seu número 1, em 1976. A tradução para o português foi autorizada pelas equipes editoriais das revistas Antípode e Hérodote.

Texte intégral

Apresentação

1O artigo de Yves Lacoste foi traduzido a partir da indicação das leituras de Breno Viotto Pedrosa (2013) e Elisa Favaro Verdi (2017) por indicação do amigo Guilherme dos Santos Claudino em um momento em que eu buscava explicações sobre as relações entre o marxismo e o trabalho de Milton Santos nas décadas de 1960 e 1970 (WHITACKER, 2019). A riqueza de detalhes que os trabalhos apresentam despertaram o interesse pelo artigo que aqui apresento. Por ser uma tradução, optei por manter o mais próximo possível do original, por esse motivo, não apresento aqui resumo e palavras chave.

2O interesse por realizar uma pesquisa sobre os bombardeamentos no Vietnã chegou à Yves Lacoste pelas mãos de Jean Dresch, em 1967, que, na época, era diretor do Instituto de Geografia da Sorbonne e, por intermédio dos Partidos Comunista Francês e Russo, recebeu do governo vietnamita uma ampla documentação sobre os bombardeamentos promovidos pelo governo estadunidense. Estudando a dinâmica fluvial do rio Vermelho, Jean Dresch explicou a geomorfologia fluvial do norte do Vietnã: a existência de elevações aluviais fazia com que o delta do rio Vermelho corresse acima de uma planície extremamente povoada, protegida por diques que impediam a inundação desta.

3A partir de um estudo sobre a geomorfologia do rio Vermelho – tendo como fonte fundamental Pierre Gourou – e dos documentos sobre os locais bombardeados, Yves Lacoste foi à campo em plena guerra no ano de 1972 para verificar a seguinte hipótese: a aviação estadunidense não poderia atacar, explicitamente, todos os diques do norte do Vietnã. Seria necessário analisar os diques como uma rede e, assim, bombardear determinados locais selecionados, onde o consequente rompimento significaria a destruição mais grave e poderia ser classificado como acidente natural devido as intensas chuvas de verão.

4À seleção dos pontos que deveriam ser bombardeados seguiram-se três diferentes níveis de análise geográfica, que articulavam dados topográficos, hidrológicos e populacionais: as bombas foram, em grande parte, explodidas nas partes côncavas dos meandros dos rios, ou seja, nos locais onde a água corrente exercia maior pressão. Os bombardeamentos também visaram bloquear as eclusas, o que dificultaria a evacuação das águas de inundação em direção ao mar. Conforme explicitou Yves Lacoste tratava-se de uma tentativa de genocídio.

5Em 16 de agosto de 1972, Yves Lacoste publicou um artigo em tom de denúncia no jornal francês Le Monde na qual revelou que o governo estadunidense estava empreendendo um genocídio no Vietnã do Norte a partir do bombardeamento deliberado dos diques do rio Vermelho. No artigo, Yves Lacoste explicou que entre abril e julho de 1972 foram bombardeados mais de 80 pontos diferentes dos diques que continham inundações no Vietnã, mais da metade concentradas na parte oriental do delta do rio Vermelho. Utilizando recursos da análise geográfica – observação em primeira mão, mapeamento e análise integrada de fatores físicos e humanos – explicitou que seria possível considerar que a concentração de bombardeios nos diques da parte oriental do delta, região mais povoada e mais importante do ponto de vista agrícola, traduz o caráter deliberado desses ataques, pois estes se localizam onde os seus efeitos podem ser os mais graves.

6Nessa denúncia, o autor evidenciou a estratégia de guerra empreendida pelo governo de Richard Nixon, após a publicação francesa, ainda em 1972, no jornal Norte Americano The Guardian, pública uma sequência do artigo original, posteriormente, na revista Antípode e, anos mais tarde, no primeiro número da revista Hérodote – 1976 – o geógrafo francês explicita de maneira mais precisa seu raciocínio e a hipótese de pesquisa que fundamentaram o artigo de 1972. O objetivo da reflexão sobre o bombardeamento dos diques no Vietnã, mesmo após o fim da guerra da Indochina, foi demonstrar as relações existentes entre a análise geográfica e a estratégia militar, indicando o problema da responsabilidade dos geógrafos frente aos seus temas de pesquisa e suas implicações políticas. O dano causado pelo bombardeamento dos diques era revelador da função das representações geográficas e, por isso, a análise desse caso constituiu-se tanto como uma denúncia da estratégia de guerra quanto uma reflexão sobre a importância o uso da geografia para o empreendimento da guerra.

Preâmbulo

7Geografia, como um modo de representação do mundo é inevitavelmente envolvida com questões ideológicas. A grande mídia continua a projetar clichês geográficos e imagens; nota-se, por exemplo, como paisagens figuram amplamente em filmes e anúncios. O tipo de conhecimento geográfico ensinado nas escolas e repetidos pelos alunos, não, à primeira vista, aparentam ter muita importância prática. O discurso geográfico, influenciado pelo modelo pedagógico dos mestres do Século XIX, não é a única forma de reflexão geográfica. Muito antes de ser dirigido aos estudantes, a Geografia era dirigida a reis, príncipes, diplomatas e lideres militares. Como método conciso de descrição do espaço e amplas características humanas e físicas (tal como nós convencionalmente a classificamos), a Geografia se tornou transposta em termos passíveis de gestão pelo Estado, na forma de organização e controle e, também, de guerra.

8É importante que nós ganhemos (ou recuperemos) uma consciência do fato que o mapa, talvez a referência central da Geografia, é, e tem sido, fundamentalmente um instrumento de poder. Um mapa é uma abstração da realidade concreta que foi designado e motivado por preocupações (políticas e militares) táticas; é uma maneira de representar o espaço que facilita sua dominação e controle. Mapear, então, significa definir formalmente o espaço ao longo das linhas estabelecidas dentro de uma determinada experiência epistemológica; na verdade, transpõe uma realidade pouco conhecida da realidade concreta para uma abstração que serve aos interesses práticos da máquina estatal; é uma operação tediosa e onerosa feita para e pelo Estado. Mapas em grande escala (chamados na França de "cartas do Estado Maior") são feitos por e para funcionários do estado; não é de admirar, então, que em muitos países esses mapas estejam arquivados com outros segredos militares.

9Mas a cartografia não é o único elo entre a geografia e a estrutura de poder. Desde a época de Heródoto – que, afinal, não estava escrevendo “história”, mas fazendo uma pesquisa para promover os interesses imperiais de Atenas – os geógrafos frequentemente, consciente ou inconscientemente, eram agentes da informação. Ao longo dos séculos, eles prestaram especial atenção aos fenômenos que seriam úteis aos líderes militares e governamentais. A topografia, por exemplo, foi descrita em termos de interesse estratégico e tático; a distribuição da população foi descrita em termos da organização administrativa e política do espaço. A noção central de região, tão perenemente usada na disciplina, deriva da palavra latina regere (governar). Etimologicamente falando, então, uma região é, por definição, uma região militar.

10Atualmente, muitos geógrafos de universidades, que consideram sua disciplina uma ciência – bolsa de estudos destacada dedicada ao conhecimento em prol do conhecimento – sem dúvida ficariam chocados ao aprender a natureza militar e política do pensamento geográfico. Desde o início do século XX [...], quando a geografia era ensinada nas escolas, houve um esforço para ocultar suas funções políticas e militares. Os professores confundiram a geografia: eles falavam de explicações “naturais” e “históricas” dos fenômenos que eram realmente o resultado da estratégia política do Estado e da estratégia econômica das grandes empresas. Esse tipo de mistificação, que faz da geografia um discurso ideológico separado da vida prática, teve um profundo impacto na opinião pública e também nos próprios professores. Torna-se exagerada (embora menos manifestamente) pela massa de imagens geográficas e clichês propagados no cinema, na imprensa e na televisão.

11Alguém poderia certamente afirmar que a função política e militar da geografia pertence ao passado, à fase pré-científica da disciplina. Muitos geógrafos hoje consideram honestamente sua “ciência” como conhecimento desapegado - ao mesmo tempo queixam-se de que suas opiniões não são consideradas no planejamento espacial: de fato, embora o discurso geográfico não seja abertamente despreocupado com problemas de poder, hoje, mais do que nunca, é claramente ligado a interesses práticos (políticos e militares). Não é preciso procurar no passado distante exemplos de estratégias cujo design e implementação exigiram a intervenção dos geógrafos. A guerra indo-chinesa fornece o melhor e mais bem articulado exemplo possível.

12"Guerra ecológica", como diz a expressão, poderia ser melhor entendida em perspectiva geográfica. Para alcançar um número limitado de objetivos políticos e militares, houve a destruição da vegetação, a transformação das características físicas do solo, a precipitação deliberada de novos processos erosivos, a ruptura de sistemas hidrológicos para alterar o nível do lençol freático (para secar poços e arrozais) e também uma mudança radical na distribuição da população. Tais formas de destruição não são simplesmente as consequências não intencionais da enorme escala de meios letais disponíveis para a guerra tecnológica e industrial; são o resultado de uma estratégia deliberada e minuciosamente articulada, cujos elementos são coordenados cientificamente no tempo e no espaço.

13A guerra indo-chinesa marca uma nova fase na história da guerra e também na história da geografia. Pela primeira vez na história, a modificação e a destruição do meio geográfico (tanto no aspecto físico quanto no humano) estão sendo usadas para obliterar aquelas condições geográficas indispensáveis à vida de vários milhões de pessoas. Hoje, mais do que nunca, é preciso tomar consciência da função política e militar que a geografia sempre teve desde o seu início. Em nossa época, essa função assumiu maior magnitude e assumiu novas formas devido ao aumento da informação, aos meios de destruição mais sofisticados tecnicamente e também ao progresso no conhecimento científico. O título de um artigo na Newsweek (7 de agosto de 1972): "Quando a paisagem é o inimigo mais sério" é realmente significativo.

Responsabilidade do geógrafo e opinião pública

14A guerra geográfica foi travada da maneira mais consistente (por mais de 10 anos) no Vietnã do Sul. Seus resultados são cumulativos e complexos. Embora mais informações estejam sendo disponibilizadas (por exemplo, em artigos de Westing e Pfeffer) sobre diferentes tipos de desastres (por exemplo, os efeitos de desfolhamento e craterização), ainda não sabemos como esses desastres se combinam e reforçam mutuamente seus efeitos destrutivos no espaço e, juntos, agravam as consequências a longo prazo para a qualidade de vida de populações inteiras. Somente uma boa pesquisa cartográfica poderia permitir-nos obter uma estimativa do impacto dessa guerra geográfica. Também poderíamos buscar a participação do povo (que são ótimos geógrafos) para ter uma perspectiva desse empreendimento destrutivo historicamente novo.

15Agora é possível mostrar o papel do raciocínio geográfico na operação maciça e implacável que estava envolvida no bombardeio de diques no delta do Rio Vermelho, no Vietnã do Norte. Não se pode, é claro, provar que geógrafos profissionais (e professores de geografia) participaram ativamente da escolha sistemática dos locais de bombardeio; no entanto, aqueles que projetaram a estratégia e as táticas do bombardeio demonstraram um domínio poderoso da informação geográfica e do pensamento geográfico. Uma análise geográfica cuidadosa e precisa, em diferentes níveis, isto é, um mapa mostrando todos os locais de bombardeio, demonstraria (de uma maneira irrefutável até mesmo pelos porta-vozes do Pentágono) que o ataque aos diques seguia um plano perfeitamente deliberado e sistemático. De fato, como o mapa mostraria, os diques não foram atingidos em pontos adjacentes às principais linhas de comunicação, desenvolvimentos industriais ou grandes cidades; eles foram atingidos em pontos em que sua ruptura, dadas as condições variadas do delta, seria um catalisador para desastres ainda maiores e mais mortes. É significativo que a maioria dos locais bombardeados durante os meses de maio, junho, julho, agosto e setembro de 1972 correspondam exatamente aos pontos que foram atingidos anteriormente durante a Presidência de Johnson.

16Afirmo, com base em minha pesquisa geográfica profissional nos diques do Rio Vermelho durante o verão de 1972, que esses atentados foram projetados para precipitar uma catástrofe assustadora. Se essa catástrofe felizmente não aconteceu, não é porque não foi intencional, mas porque o povo vietnamita fez uma tentativa gigantesca de reparar as brechas (com a terra acumulada após os atentados de 1964-1967), e especialmente porque, durante o verão de 1972, as inundações no rio eram particularmente baixas – esse é um fenômeno que ocorre a cada 8 a 10 anos. Atualmente, existem evidências estatísticas de registros meteorológicos de que o Sudeste Asiático como um todo, e particularmente as terras altas das quais o rio Vermelho flui, experimentou uma taxa de precipitação comparativamente baixa no verão de 1972. Em meados de agosto, época em que as inundações são geralmente mais pesadas, a água mal alcançava o nível dos diques em todo o delta. Submeto esses argumentos a críticas baseadas em evidências que podem ter escapado da minha atenção. Solicitei repetidamente a publicação de fotografias aéreas que provariam que meu mapa é impreciso. Nada, no entanto, foi publicado.

17Como os geógrafos participam da execução desse novo tipo de guerra – guerra geográfica – eles certamente devem começar a analisá-la, provar ou denunciá-la, pois esse é um dos tipos mais graves de destruição. Seus efeitos são difíceis, se possível, de reparar. A guerra geográfica pode ser travada em qualquer lugar do mundo e ainda não terminou na Indochina.

18É importante observar o mal-estar na opinião pública que se seguiu aos comunicados de imprensa sobre o bombardeio dos diques do Vietnã do Norte. Provavelmente, essa era uma maneira confusa de expressar a consciência das pessoas de que essa é uma forma nova e irremediável de guerra. Isso deve ilustrar bem os problemas ideológicos que, apesar das aparências, estão ligados à representação geográfica. De fato, entre os aspectos mais mortais da guerra da Indochina hoje, o bombardeio dos diques do Rio Vermelho no Vietnã do Norte é especialmente sério e significativo. A opinião pública internacional quase instintivamente compreendeu esse fato. As pessoas reagiram de uma maneira que tornou o problema dos diques extremamente constrangedor para o Pentágono e o governo [dos EUA].

19No entanto, durante toda a guerra no Vietnã, o establishment militar dos EUA não tentou ocultar a natureza particularmente mortal de certas formas de ação tática ou estratégica que se tornaram rotina diária, variando desde o uso sistemático de napalm e vários tipos de armas “anti-pessoal”. De fato, uma grande proporção de pessoas que testemunharam, através da mídia de massa, o maior dilúvio de fogo e aço já conhecido na história, frequentemente tiveram as reações de uma platéia de teatro um pouco entediada, como se assistisse à implantação dos métodos mais sutis e aterradores de destruição.

20Essa relativa habituação foi subitamente interrompida por informações de que havia a possibilidade, para não dizer certeza, de ataques aéreos direcionados ao sistema de diques do Vietnã do Norte. Muitas pessoas conhecidas sentiram seu dever de expressar publicamente sua apreensão sobre um assunto que logo assumiu tanta importância que o próprio Presidente dos Estados Unidos se sentiu obrigado a contestar o testemunho de pessoas que puderam ver por si mesmos que os bombardeios haviam realmente acontecido. Pois, para o presidente, os homens e mulheres eminentes que expressavam sentimentos de crescente preocupação estavam simplesmente com falta de percepção e eram uma presa fácil da propaganda comunista.

21Mas pouco depois, diante de cada vez mais numerosos relatos de testemunhas oculares, em 30 de julho a Casa Branca emitiu uma declaração na qual se reconhecia que alguns diques, devido à sua proximidade com os objetivos militares, poderiam ter sido atingidos; ao mesmo tempo, insistiram que o dano poderia ser leve. Observou-se em resposta que esta informação era bastante vaga e que documentos como fotografias aéreas poderiam ter provado que a verdade nas afirmações oficiais – pelo menos em alguns casos – estavam ausentes.

22Portanto, a questão do “bombardeio dos diques”, longe de se tornar um assunto morto, assumiu uma importância cada vez maior: a opinião pública foi alertada antes que os fatos exatos do caso fossem conhecidos. Era como se as pessoas estivessem intuitivamente conscientes de que a destruição desses diques simbolizava uma nova forma de guerra, como se considerassem, por razões muito profundas, que o conflito mais feroz entre os homens deveria permanecer bem distinto da luta secular entre os humanos e as forças mais formidáveis da natureza.

23A ansiedade do público e o constrangimento das autoridades seriam, sem dúvida, tão grandes se, como meio de ação estratégica, desencadeasem tufões, terremotos ou erupções vulcânicas contra populações civis. De fato, parece que, quando confrontadas com as forças da natureza, a solidariedade entre [pessoas], quaisquer que sejam suas diferenças, está entre os valores fundamentais e implícitos nos quais todas as situações se baseiam. Consciente ou inconscientemente, por milhares de anos, os [humanos] viram a mão de Deus ou o destino em catástrofes naturais; ainda hoje, a liberação deliberada de forças naturais parece ser o ato sacrílego do aprendiz de um feiticeiro.

24Mas é importante ir além dos símbolos e das profundas motivações subjetivas que o problema apresenta, a fim de examinar claramente os fatos. Estes são essencialmente de natureza geográfica; isto é, correspondem à interação de “dados físicos e naturais” e os “fatores humanos”. Mesmo antes de a crise global de nosso tempo se concentrar dramaticamente nessa pequena parte da superfície da Terra, o delta do Rio Vermelho havia sido durante séculos uma área em que as interações geográficas entre "fatores naturais" e "fatores humanos" eram especialmente complexas, e apresentou uma espécie de tensão dramática. De fato, existem poucas regiões no mundo em que, em uma área tão limitada, existem tantos seres humanos que desenvolveram uma cultura tão sutil e eficiente (em comparação com a maioria das culturas não industriais) sob condições tão difíceis: isto é, sua estabilidade constantemente ameaçada pelas forças da natureza.

Por que os diques?

25O delta do Rio Vermelho (que, sob o regime colonial francês, era chamado de planície de Tonkin) forma um triângulo quase equilateral de 140 quilômetros para um lado em que vivem cerca de dez milhões de pessoas; em vários lugares, a densidade populacional ultrapassa os 800 habitantes e pouco mais de meia milha quadrada.

26Esta planície é dominada por grandes montanhas que, no verão, recebem as fortes chuvas das monções. Por esse motivo, os rios que fluem para a planície estão frequentemente sujeitos a inundações repentinas e muito pesadas. Em épocas de cheia, o Rio Vermelho passa a ter um fluxo superior a 3.080 m3/s (110.000 pés cúbicos por segundo) – um volume comparável ao do Mississippi (3.360 m3 / s). As cheias do Rio Vermelho e seus afluentes não são progressivas e regulares, mas ocorrem repentinamente e de maneira irregular no meio do verão. Elas se devem, de fato, às enormes quantidades de chuva que caem durante fortes tempestades nas montanhas próximas, a água corre rapidamente pelas encostas íngremes e de repente flui para a planície.

27Esses rios que descem das montanhas profundamente erodidas transportam grandes quantidades de aluvião – isso explica a cor característica do Rio Vermelho, que é preenchido com vários tipos de lodo avermelhado, como também a maior parte de seus afluentes. A massa de material separado das montanhas é tão grande que esses aluviões tendem a ser depositados no fundo dos rios e, pouco a pouco, o leito do rio aumenta progressivamente. Naturalmente, portanto, os rios correm acima do nível geral da planície, em uma espécie de amortecedor aluvial (ou dique natural). Essa situação também existe no vale do Mississippi, com a diferença de que o Rio Vermelho transporta uma quantidade relativamente maior de aluvião e flui acima de um dique natural que é sensivelmente mais pronunciado que o do Mississippi (6,1 a 7,6 m superior ao nível da planície).

28Quando os rios sobem, o acúmulo dos aluviões no leito do rio e a elevação progressiva dos diques tendem a fazer o rio fluir para as partes mais baixas do leito e, às vezes, ocorrem mudanças importantes no curso. O principal curso de água se divide em vários ramais, que também fluem acima da planície e tendem a transbordar para ele em períodos de enchentes.

29A fixação de seres humanos no delta do rio Vermelho, uma região pantanosa periodicamente debaixo de água e com alto nível de malária foi, portanto, particularmente difícil. Embora essa área combinasse características naturais particularmente negativas (em relação aos seres humanos), também possuía grandes potencialidades. Na zona tropical, o solo geralmente é submetido a processos bio-climáticos que reduzem sua fertilidade e a tornam extremamente frágil (lateritização [...]). No entanto, as áreas aluviais não apresentam esse inconveniente muito sério: depósitos constantes de silte e material resultante da erosão das montanhas que, devido à sua altura, não estão sujeitas às condições tropicais, compensa o processo de empobrecimento do solo.

30Assim, os amplos vales e planícies do delta oferecem condições pedológicas excepcionalmente favoráveis nos trópicos. É possível esperar uma série de colheitas consecutivas com bons resultados, o lodo depositado durante as cheias serve para restaurar a fertilidade do solo. Por outro lado, fora das zonas tratadas com aluviões, não é possível cultivar o solo por mais de dois ou três anos consecutivos, devido às suas fracas potencialidades agronômicas e à violência dos processos de deterioração que ocorrem logo que a cobertura florestal for retirada.

31A tarefa histórica do povo vietnamita (como outros povos da Ásia tropical) tem sido, portanto, enfrentar progressivamente as características negativas do meio geográfico. Pouco a pouco, eles alcançaram o domínio sobre as cheias, a fim de lucrar com as características positivas – isto é, a riqueza relativa do solo.

32Os diques são, portanto, uma condição geográfica primordial da existência para o povo. O vasto empreendimento representado pela construção de cerca de 4.023 km de diques começou principalmente durante a Idade Média. Para realizar uma tarefa como essa em condições extremamente difíceis (todos os anos as inundações ameaçavam acabar com o trabalho realizado durante a estação seca), os vietnamitas não apenas tinham que ser capazes de empregar um grande número de trabalhadores, mas, também precisava de uma organização eficiente que permitisse agrupar os trabalhadores em determinados lugares e ver se eles eram cuidados. Também era necessário um profundo entendimento da ciência da hidráulica; pois as obras eram construídas com meios limitados, de modo a resistir aos impulsos do rio. Uma vez construído o dique, era necessário supervisioná-lo e mantê-lo regularmente para combater as rachaduras e verificar os efeitos da erosão causada pela chuva, pelo rio ou por animais escavadores.

33A realização dessa rede de diques não apenas evidencia uma organização extraordinária em cada comunidade da vila, mas também por parte do governo, que era a única agência capaz de concentrar grande número de trabalhadores em pontos estratégicos da região.

34Hoje, essa área está organizada em diferentes níveis: os grandes diques que seguem o curso dos rios importantes têm uma função que inclui todo o delta, uma vez que uma ruptura em um ponto poderia causar inundações em grandes regiões. Caso haja uma interrupção em um dos principais diques, foram construídos outros que perpendicularmente aos rios nas regiões mais baixas. Os diques costeiros foram construídos para evitar inundações pela água do mar, principalmente quando é impulsionada pela violência extraordinária dos ventos de tufões.

35Mas dentro de cada divisão delimitada por esses grandes diques, foram construídos diques secundários para canalizar a água da chuva em direção aos pontos em que a evacuação é possível. Se fosse permitida a acumulação da água da chuva que caía na superfície dos campos de arroz, as plantas morreriam rapidamente sob a água que é muito profunda. O controle das condições hidráulicas, uma característica essencial da cultura intensiva de arroz, significa controlar o nível da água não apenas nos diferentes pontos da área cultivada, mas também do ponto de vista do tempo (como ditado pelas diferentes etapas do trabalho agrícola e pelo crescimento da planta de arroz). Esse controle da água é realizado na área cultivada de cada aldeia por meio de uma rede de pequenos diques e canais localizados dentro das malhas maiores organizadas pelos diques secundários, dispostas de acordo com as maiores linhas dos diques principais.

36Historicamente, a conquista do delta deve ter começado com mão-de-obra limitada nas partes superiores do delta, perto de onde os rios deixam as montanhas e emergem na planície. Gradualmente, à medida que novos campos de arroz puderam ser estabelecidos, devido à construção de novos diques, surgiram novos recursos humanos, possibilitando o aumento da construção, o aumento do progresso agrícola e assim por diante.

37O delta do Rio Vermelho não é a única planície aluvial no Vietnã do Norte. As outras planícies, as de Thanh Hoa e Vinh, por exemplo, seguiram uma evolução semelhante. Mas essas planícies são muito mais extensas e os rios que as atravessam são muito menores que o rio Vermelho. Portanto, os problemas apresentados são menos difíceis de resolver e, embora tenham sido submetidos a bombardeios particularmente intensivos, é no delta do Rio Vermelho no qual a atenção está concentrada no momento. Pois, sem dúvida, os riscos de inundações catastróficas são os mais graves na planície do Rio Vermelho (por causa da forte corrente do rio no momento da cheia) e o número de seres humanos [ameaçados por lá] é o maior.

Onde os diques foram bombardeados?

38Na controvérsia entre as pessoas que denunciaram o bombardeio dos diques no Vietnã do Norte e o governo americano que negou que esses ataques tenham sido deliberados, é possível fornecer documentação que possa servir como prova duradoura e facilmente verificável. Como a rede de diques forma um conjunto de natureza geográfica, é lógico realizar uma análise geográfica dos pontos em que a rede foi atingida por bombas. Fiz essa investigação durante uma visita ao Vietnã do Norte com a Comissão Internacional de Inquérito sobre Crimes de Guerra, que ocorreu de 29 de julho a 13 de agosto de 1972. Durante esse período, pude visitar as principais zonas em que houve o bombardeio de diques e verificar, em vários pontos, a correção de um mapa dos danos causados às instalações hidráulicas (figura 1). Este mapa foi feito com muita precisão, a meu pedido, por técnicos do Ministério da Hidráulica da República Democrática do Vietnã. Pode ser facilmente verificado a partir de fotografias frequentes tiradas pela Força Aérea dos EUA.

Figura 1: Pontos de bombardeio de maio a agosto de 1972

Figura 1: Pontos de bombardeio de maio a agosto de 1972

1 = pontos de bombardeio nos diques, 2 = linha dos diques principais

39Durante o período de 16 de abril a 31 de julho de 1972 (o bombardeio dos diques continuou mais tarde) as instalações hidráulicas no Vietnã do Norte foram o objetivo de mais de 150 ataques aéreos e foram atingidos 96 locais diferentes. A Comissão Internacional de Inquérito sobre Crimes de Guerra decidiu que seria preferível concentrar sua investigação no delta do Rio Vermelho. Os atentados ocorridos nas províncias do Sul do Vietnã do Norte estavam tão concentrados em uma área tão restrita que é difícil distinguir aqueles que visavam uma instalação hidráulica daqueles que tinham outro tipo de objetivo.

O bombardeio dos diques na parte oriental do delta.

40Dos 96 locais em que os diques foram atingidos por bombas, 58 estão situados no delta do rio Vermelho. Se examinarmos atentamente o mapa desses locais, notamos imediatamente a seguinte situação: quase todos esses locais – 54 em 58 – estão localizados na parte leste do delta, a partir do distrito de Nam Sachs, no norte, na província de Thai Binh no centro, para as regiões de Nam Ha, Nam Dinh e Ninh Binh no sul. Fora desta área, quatro pontos de bombardeio nas instalações hidráulicas: dois perto de Hanói e dois perto das eclusas de Phuly no rio Day.

41De fato, a administração americana reconhece essa identificação (que, pelo contrário, não havia sido mencionada até agora pelas autoridades vietnamitas) e alegou que forneceu um argumento favorável à sua linhagem: a administração americana declarou de fato que, se o bombardeio dos diques pretendessem provocar sérias inundações, teriam como alvo a parte Ocidental do delta, ou seja, a montante apenas a parte que foi, por enquanto, poupada.

42Um exame mais cuidadoso das condições geográficas nos permite tirar conclusões opostas. De fato, o delta do rio Vermelho pode ser dividido esquematicamente em duas partes bem diferentes: a parte ocidental no delta superior, onde os rios que emergem de vales montanhosos contêm muitos aluviões e onde – antes de serem represados – os rios tinham progressivamente construído um grande número de barreiras naturais, à medida que o curso do rio mudava; e o leste, delta inferior, onde os rios transportam uma quantidade menor de aluvião (desde que foi depositado a montante) e fluem acima de diques naturais que são menos altos (figura 2). Esses rios divergem em direção ao mar, como os raios de uma roda.

43Devido a esse fato, existem amplas planíces facilmente inundáveis. Essas diferenças de configuração entre o delta superior e o inferior têm consequências importantes para a localização topográfica das aldeias: na parte ocidental superior, as aldeias foram construídas acima dessas áreas de fácil inundação no topo das almofadas aluviais que, como vimos, são particularmente numerosos e envolvidos. Na parte oriental do delta mais baixo, a maioria das aldeias está localizada abaixo do nível dos rios, em áreas facilmente inundáveis, caso ocorra uma ruptura nos diques.

Figura 2 Perfil dos diques

Figura 2 Perfil dos diques

44Acontece que uma grande maioria dos diques bombardeados está situada na parte oriental do delta, onde se encontra a maioria dessas aldeias facilmente inundadas. Pode-se argumentar que eles foram direcionados a alvos militares localizados próximos ou sobre os diques. Se assim fosse, não poderiam ter evitado ataques mais frequentes nos diques situados no delta superior, perto de Hanói, por exemplo, onde os objetivos militares eram frequentemente atacados, sem causar danos aos diques. Os diques na região mais baixa, situada entre Nam-Sach e Haiphong, até agora quase não foram bombardeados. Na verdade, nesta parte do delta, os rios deixam de fluir acima dos diques naturais, tendo depositado a maior parte de seus aluviões a montante. Isso sem dúvida explica por que os diques nesta zona não foram bombardeados; o efeito de destruí-los seria menos desastroso do que em outros lugares.

45Assim, é possível concluir que o bombardeio dos diques estava concentrado na parte oriental do delta, que também é a mais densamente povoada e a mais importante do ponto de vista da produção agrícola. Isso é uma prova da natureza deliberada e sistemática desses ataques, pois eles foram localizados exatamente na área em que seus efeitos poderiam ser mais graves e onde a maioria das áreas de fácil inundação pode ser encontrada.

Uma análise mais detalhada dos pontos de bombardeio

46Outro nível de análise geográfica consiste em observar, de maneira muito precisa, os pontos de bombardeio nessa parte oriental do delta. Na maioria das vezes, esses pontos de destruição não são o resultado de acertos aleatórios, mas pontos em que a firmeza absoluta é de especial importância para a organização do sistema hidráulico. De fato, os pontos de acerto mais frequentes nos diques são os que, na maré alta, são submetidos a uma pressão extraordinariamente forte pela água. Os diques foram atacados na parte côncava das curvas ou, como na parte norte do distrito de Nam-Sach, em pontos onde estão sujeitos à pressão perpendicular de uma corrente especialmente poderosa resultante da confluência de seis rios (figura 3). É literalmente impossível ter havido “alvos militares” em todos esses pontos, que são precisamente aqueles essenciais ao sistema de defesa da água. Deve-se enfatizar que, exceto nas áreas de Hanói e Haiphong (onde é verdade que existem rodovias usando o leito de estrada formado pelos diques), a maior parte da rede de diques não seria capaz de suportar o tráfego de automóveis. Nos dez lugares que visitamos para determinar os efeitos do bombardeio nos diques, pudemos observar que eles não haviam sido revestidos com um material de base redonda que tornaria possível o tráfego de automóveis. Da mesma forma, em nenhum desses pontos de observação fomos capazes de detectar a presença de um objetivo diferente daquele constituído pelo dique (em um ponto especialmente essencial). O fato de os diques terem sido atingidos em pontos particularmente sensíveis, longe de qualquer outro alvo, é outro argumento em apoio à hipótese de que existia uma estratégia deliberada e sistemática de destruição da rede de defesa contra o mar. O uso relativamente frequente de bombas-relógio contra instalações hidráulicas confere ainda mais credibilidade a essa hipótese, uma vez que é impossível ver que uso das bombas-relógio ofereceriam contra comboios ou instalações militares móveis.

47Um dos exemplos mais impressionantes de prova de que uma estratégia metódica foi realizada contra a rede de diques é fornecido pelo exame dos ataques a diferentes tipos de instalações hidráulicas na parte sul da província de Thai Binh.

48O distrito de Nam Sach é inteiramente cercado por diques e parece de fato uma ilha cercada por uma rede hidrográfica peculiarmente envolvida. No norte, espalha-se uma rede de rios, os rios Thuong, Luc Nam, Cau e Duong, que se unem a poucos quilômetros e formam o rio Tai Binh. Logo depois que se divide em dois ramos, Tai Binh e Kinh Thay, que envolvem o distrito em toda a sua área, os diques do distrito de Nam Sach foram atingidos em seis pontos diferentes:

Figura 3: Distrito de Nam Sach

Figura 3: Distrito de Nam Sach
  • no sul, os diques foram atingidos em 10 e 24 de maio de 1972, perto das aldeias de Aiquoc e Nam Dong; as duas localidades estão localizadas perto da estrada principal de Hanói-Haiphong, e pode ser que os diques não tenham sido os alvos desses ataques (mais de 150 bombas).

  • os diques foram atingidos perto de Nocti e Ninh Tanh em 9 de julho de 1972. Em Nocti, o impacto ocorre na parte côncava de uma curva, ou seja, no ponto em que a pressão da corrente é mais forte em época de cheia. Em Minh Tanh, 24 bombas destruíram o dique em uma seção de 92 metros de comprimento e mais de 2.124 m3 de terra tiveram que ser movidos para realizar o reparo. A escolha desse ponto é certamente explicada pelo fato de que é particularmente difícil reparar os diques nesse ponto, pois os arredores são muito baixos e pantanosos e é difícil encontrar algo além de solo encharcado de água, um material bastante impróprio para fazer um bom reparo.

  • os diques do distrito de Nam Sach foram atingidos especialmente em sua parte Norte, perto das aldeias de Hiep Cat e Nam Hung, em 9 e 21 de julho de 1972. A razão pela qual a Força Aérea dos EUA escolheu esses pontos é bastante óbvia, pois eles estão situados exatamente onde as águas acabaram de se encontrar e fluem quase perpendicularmente aos diques, exercendo assim uma pressão particularmente alta. Se os diques se romperem nesse ponto, o córrego precisa apenas seguir em frente para inundar todo o distrito e para inundar as cerca de 100.000 pessoas que vivem lá.

49É importante ressaltar que os diques situados perto da vila de Nam Huong foram, devido à sua importância no sistema hidráulico, atacados em julho de 1967. Este não é o único exemplo de ataques realizados contra pontos bombardeados anteriormente, entre 1965 e 1968.

  • A parte norte da província de Thai Binh: Esta região é delimitada ao Sul pelo rio Vermelho e ao Norte por um de seus ramos, que forma o rio Traly. Essas duas vias fluviais, que fluem acima de uma almofada aluvial, fazem fronteira com uma espécie de calha longa que dá para o mar no Leste, tornou-se possível tornar habitável essa “trama”, ou sarjeta – hoje mais de 600.000 pessoas vivem lá – quando os diques foram construídos ao longo do rio Vermelho e do rio Traly, bem como ao longo da costa. No entanto, na maré baixa, a chuva que cai nessa vasta calha deve ser drenada e esse é o papel desempenhado pelas importantes eclusas de Lan.

50Os atentados atingiram os pontos mais essenciais dessa complexa organização hidráulica. Para começar, a eclusa de Lan (figura 4). Esta instalação está localizada longe de qualquer outro destino. Entre 24 de maio de 1972 e 29 de julho, foi atacado nove vezes e, apesar da destruição existente, três novos ataques foram realizados durante a primeira semana de agosto, sem dúvida para impossibilitar os reparos. Impedida de fluir em direção ao mar, as águas começaram a se acumular nos campos de arroz, onde uma parte considerável da colheita pode ser considerada perdida.

Figura 4: Parte sul da província de Thai Binh

Figura 4: Parte sul da província de Thai Binh

51Visitamos a eclusa de Lan em 3 de agosto (subimos uma trilha muito pequena) e pudemos verificar que ela estava localizada muito longe de qualquer outro alvo, longe de áreas habitadas, entre grandes pântanos costeiros e grandes campos de arroz. Essa eclusa, que desempenha um papel decisivo, já havia sido atacada em 1968. Em 3 de agosto, também foi possível visitar a parte do dique no rio Traly, atacada em 21 de julho perto da vila de Vu Dong (distrito de Kien Xong): 11 bombas fizeram crateras perto do dique, a menos de 46 metros de distância, criando rachaduras graves em uma seção de 183 metros de comprimento. Uma bomba cavou uma cratera diretamente no dique. Durante este atentado, que atingiu moradias camponesas localizadas perto do dique, 9 pessoas foram mortas, 9 gravemente feridas. Na época em que estávamos lá, a maioria dos danos havia sido reparada, mas as seções dos diques que precisavam ser reconstruídas podiam ser facilmente detectadas.

52Em 4 de agosto de 1972, pudemos verificar os danos causados nos diques do rio Vermelho, perto da vila de Vu Van (distrito de Vu Thu). Durante o ataque em 31 de julho, 20 bombas foram lançadas em dois pontos situados a cerca de 457m um do outro: o primeiro estava perto de uma escola que havia sido parcialmente destruída e cujo diretor foi morto; o segundo estava perto de um grande hospital de leprosos, o segundo mais importante na República Democrática do Vietnã do Norte: 1.100 leprosos estavam no local quando os atentados ocorreram: 5 deles foram mortos, 10 outros feridos. Os prédios deste hospital – que foi criado há muito tempo (4 grandes prédios cercados por três grandes igrejas) – são extremamente fáceis de localizar e é lógico pensar que o dique foi atacado neste exato momento para fazer com que o trabalho de consertar fosse o mais difícil possível. Pois, com ou sem razão, os vietnamitas temem peculiarmente o contágio (notei que os vietnamitas que estavam comigo estavam preocupados com o fato de eu ter vagado entre os prédios desse hospital leproso para completar minhas anotações). É uma consequência desse medo coletivo eles ainda não terem começado a reparar essa seção do dique, apesar de sofrer sérios danos (uma sucessão de grandes rachaduras em um raio de 46 metros ao redor das crateras)?

53O ataque de 11 de julho contra essas duas seções de diques foi diretamente testemunhado por um grupo de cerca de vinte jornalistas europeus que vieram verificar os danos causados pelo ataque ocorrido em 9 de julho. Fiz o depoimento do Sr. Jean Thoraval, um AFP Correspondente [Agence France-Presse]. Os jornalistas (que observaram os danos aos quais os diques foram submetidos) viram cerca de dez aviões Phantom F4 se aproximando: no início eles continuaram voando muito alto, depois desceram a 457-549m e começaram a bombardear. Os jornalistas puderam verificar que não havia outro alvo possível (nenhuma estrada, nenhuma estrutura), bem como nenhuma defesa antiaérea.

54Visitei os diques de Nam Hung e Hiep Cat em 9 de agosto. Notei um grande número de crateras feitas nos dois lados dos diques (que haviam sido reparados). Durante o tempo em que estive lá, juntamente com o Doutor Aarts, de Amsterdã, e sua esposa, testemunhei a explosão de uma bomba-relógio (9 de agosto de 1972, às 10h15). Ela caiu perto da vila de La Doi, a meio caminho entre Hiep Cat e Nam Hung. Essa bomba foi um dos seis dispositivos de ação retardada lançados em 11 de julho: três deles explodiram em julho, um em 9 de agosto; outros dois não haviam explodido naquele momento.

55Além disso, houve quatro atentados nos diques do norte do rio Traly e três nos do dique vermelho no Sul. Deve-se ressaltar que as bombas são especialmente direcionadas para as partes côncavas das curvas dos diques, onde, em épocas de cheia, concentra-se a pressão mais forte da corrente. Também deve ser destacado que em dois lugares foram usadas bombas-relógio e, de 14 bombas lançadas em 14 de julho no dique do rio Vermelho, perto da vila de Tan Lap, 13 explodiram em intervalos diferentes (algumas 6 horas depois e outras até 21 dias depois).

56Assim, a “operação” na parte sul da província de Binh da Tailândia pode ser resumida da seguinte forma: Por um lado, com o bombardeamento, pretendia-se fazer rupturas nos diques nos pontos mais estratégicos que, reparados ou não, corriam o risco de se abrir novamente em épocas de cheia (na verdade, é muito difícil reparar adequadamente o solo, que já contém muita água como resultado das chuvas do verão, para que os locais que foram reparados permaneçam muito vulneráveis): e, por outro lado, o bombardeamento era destinado a bloquear as eclusas para dificultar a saída de água em direção ao mar. No mínimo, parte dos campos de arroz é inundada e as fontes de alimentos de 600.000 pessoas são comprometidas. O efeito máximo seria sentido se houvesse uma inundação severa, pois um grande número de aldeias situadas abaixo do nível das planícies aluviais correria o risco de ser inundado em caso de uma interrupção repentina dos diques (nos pontos em que foram reparados de uma maneira que não poderia ser perfeita nessa época do ano ou em pontos onde ocorreram mais bombardeios). Esses atentados continuaram atingindo não apenas os diques do rio, mas também os diques costeiros, que eram constantemente atingidos pela artilharia da Sétima Frota. As eclusas constituíam alvos especialmente frequentes, uma vez que sua destruição poderia resultar no acúmulo de um volume considerável de água nas áreas habitadas e cultivadas ou pela inundação da água do mar, o que torna o solo inadequado para o cultivo por vários anos.

57Finalmente, pode-se ter uma compreensão mais completa da ação sistemática realizada contra o sistema hidráulico do Vietnã do Norte se, além do que foi descrito, for apontado que a fábrica de Nha May Gho Khi (perto de Hanói) que forneceu o material necessário para reparar os bloqueios e outras instalações hidráulicas foi arrasado em 5 de agosto por bombardeios particularmente intensos e precisos.

58O fato de o bombardeio dos diques ter sido localizado no delta do Rio Vermelho prova a natureza deliberada e cuidadosamente premeditada da operação. Se não estava na lógica do bombardeio atingir os diques nos pontos mais vulneráveis durante as cheias, pontos em que seu papel protetor é essencial e nas regiões em que está localizado o maior número de aldeias sujeitas a submersão, os atentados teriam sido localizados de maneira diferente; os diques situados perto dos grandes centros de tráfego e nas vizinhanças das grandes cidades teriam sido atingidos com muito mais frequência.

Meta-análise dos alvos de bombardeio

59A administração americana, depois de admitir que os diques poderiam ter sido atingidos, declarou que a destruição resultante era mínima. Portanto, é importante examinar de perto os efeitos dos atentados a essas instalações. As bombas usadas com mais frequência nesse tipo de ataque pesavam entre 227 e 454 kg. Quando essas bombas atingem diretamente o dique, criam crateras de 6,1 a 6,7 m de profundidade e cerca de 11 m de diâmetro (Figura 5). Mas as consequências do bombardeio não se limitam a essas crateras, que são o aspecto mais espetacular, mas não o mais sério. O choque causado pela explosão da bomba causa uma série de fraturas e rachaduras, em um raio de 50 jardas [46 m], o que compromete seriamente a resistência do dique. As bombas que caem de ambos os lados do dique, a cerca de 30 metros dele, têm resultados mais perigosos do que os buracos feitos no dique por ataques diretos. Pois as fendas não são todas imediatamente visíveis; o risco é que eles apareçam repentinamente como resultado da pressão das inundações. Como regra geral, para evitar o rompimento repentino de um dique como resultado da pressão da água ou seu colapso após o que é chamado de fenômeno “raposa” (a água escava gradualmente uma espécie de túnel sob o dique, no ponto da crack), é preciso remover toda a terra de locais onde as rachaduras possam ter sido causadas pela explosão de uma bomba. Não basta, portanto, preencher as crateras. Um segmento do dique que é três ou quatro vezes maior que a escavação causada pela explosão também deve ser reconstruído.

60Durante a estação chuvosa, reparar uma seção de dique rachado ou aberto é um trabalho difícil e necessariamente imperfeito. Na verdade, o lodo misturado com argila e areia usado para construir e reparar diques na época contém muita água para ser compactada adequadamente. As seções reparadas permanecem frágeis, portanto, existe o risco de elas cederem sob a pressão de inundações particularmente severas. Quanto mais próximos os bombardeios se aproximavam do período em que se aproximava da cheia, mais perigosos eram seus efeitos: por um lado, o rio podia correr imediatamente pela abertura e ampliá-la rapidamente; por outro, fica cada vez mais difícil reparar o dique com terra encharcada de água.

61Diferentemente dos bombardeios realizados contra os diques em 1965, 1966 e 1967, que foram interrompidos antes das fortes chuvas e das cheias, os ataques que começaram em abril de 1972 continuaram não apenas em julho, mas também em agosto. Por esse motivo, o risco de quebras graves na rede de diques permaneceu considerável, apesar do imenso esforço feito para reparar os danos. Pois não apenas as seções reconstruídas poderiam ceder por causa da fragilidade, mas a continuação do bombardeio parecia destinada a causar rupturas irreparáveis, se alguém levar em consideração a maré alta.

62A ameaça de inundação existia para a maior parte das áreas cultivadas (o arroz é uma planta que morre se estiver submersa por mais de quatro dias) e pode-se estimar que 1.500.000 a 2.000.000 de pessoas poderiam ter se afogado no caso de um problema particularmente violento com o aumento do nível de água nas regiões mais baixas. Essa estimativa corresponde ao prognóstico feito há vários anos por alguns especialistas militares americanos, no sentido de que “bombardear os diques do Vietnã do Norte produziria um efeito comparável ao de uma bomba de hidrogênio: todo o delta seria inundado, o arroz de verão e outono e as plantações seriam destruídas e dois a três milhões da população morreria por afogamento ou fome”.

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Bibliographie

PEDROSA, Breno Viotto. Entre as ruínas do muro: a história da geografia crítica sob a ótica da ideia de estrutura. São Paulo, 2013. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.

VERDI, Elisa Favaro. Yves Lacoste, a geografia do subdesenvolvimento e a reconstrução da geopolítica. Terra Brasilis (Nova Série). Revista da Rede Brasileira de História da Geografia e Geografia Histórica. Dossiê Trajetórias de Geógrafos. 2017. Disponível em: https://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/terrabrasilis/2286 Acesso em 22/12/2019.

WHITACKER, Guilherme Magon. A operacionalização do conceito formação econômica-social. O nexo entre o marxismo e a geografia de Milton Santos. Revista Geografia em Atos. Departamento de Geografia. FCT UNESP. Presidente Prudente-SP. 2019. Disponível em: http://revista.fct.unesp.br/index.php/geografiaematos/article/view/6874 Acesso em 13/01/2020.

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Table des illustrations

Titre Figura 1: Pontos de bombardeio de maio a agosto de 1972
Légende 1 = pontos de bombardeio nos diques, 2 = linha dos diques principais
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Titre Figura 2 Perfil dos diques
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Titre Figura 3: Distrito de Nam Sach
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Titre Figura 4: Parte sul da província de Thai Binh
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Titre Figura 5
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Pour citer cet article

Référence électronique

Guilherme Magon Whitacker, « Uma ilustração geográfica sobre a guerra: bombardeando os diques no rio Vermelho, Vietnã do Norte »Confins [En ligne], 44 | 2020, mis en ligne le 13 mars 2020, consulté le 08 décembre 2024. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/confins/26001 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/confins.26001

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Auteur

Guilherme Magon Whitacker

Pós-Doutorado. UNESP. Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais. Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial na América latina e Caribe - São Paul, gwhitacker@gmail.com

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Droits d’auteur

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