1O cultivo de plantas e a criação de animais realizados em áreas urbanas, atividades denominadas genericamente de agricultura urbana, se tornaram expressivas a partir do final do século XX e início do século XXI em vários países, apresentando objetivos e características distintas, dependendo dos contextos socioespaciais em que se desenvolveram. Assim, se nos países desenvolvidos, essas atividades estão relacionadas ao lazer, à interação social e ao maior contato com a natureza, entre outros objetivos, nos países subdesenvolvidos, sua prática está mais vinculada à garantia de segurança alimentar e nutricional, à geração de emprego e renda. (MOK et al. 2014).
2A valorização recente da agricultura urbana, tanto nos países desenvolvidos quanto nos subdesenvolvidos, está relacionada a um conjunto de fatores e processos que tem influência diversa nos diferentes países e territórios em que a agricultura urbana é praticada, destacando-se: o crescimento da população urbana e a intensificação da urbanização; o aumento dos índices de pobreza nas cidades; o encarecimento dos preços dos alimentos; o agravamento dos problemas ambientais; e a crescente preocupação de uma parcela da população com a qualidade dos alimentos consumidos. Houve também a emergência de uma miríade de movimentos que defendem, sob diferentes justificativas, a ocupação dos espaços ociosos nas cidades por meio da prática da agricultura urbana.
3Em virtude dessa diversidade de fatores ou processos que tem levado ao aumento da prática da agricultura urbana nos últimos anos, sobretudo a partir de iniciativas locais, verifica-se que ainda dificuldades de se obter dados estatísticos oficiais sobre esse fenômeno. A FAO (1996) estimava que existiam 200 milhões de agricultores urbanos no mundo que forneciam gêneros alimentícios a aproximadamente 700 milhões de pessoas, o que na época representava 12% da população mundial. Em 2014, a FAO divulgou novas estimativas de que cerca de 800 milhões de pessoas se dedicavam diretamente à agricultura urbana, com mais de 1,8 bilhão de empregos indiretos gerados. As áreas ocupadas com a agricultura urbana somavam cerca de 456 milhões de hectares, as quais eram responsáveis pela produção de, aproximadamente, 25% dos alimentos no mundo, podendo chegar até mais de um terço do total dos alimentos produzidos em alguns países (FAO, 2014). Como adverte Hamilton et al. (2013), a situação atual da agricultura urbana no mundo ainda é pouco conhecida, sendo difícil precisar ou validar estes dados divulgados pela ONU em virtude da diversidade de formas, sistemas de produção e condição das terras utilizadas e situações apresentadas sob a denominação genérica de agricultura urbana.
4No contexto europeu, a agricultura urbana não é um fenômeno recente, tendo sido praticada em vários países, com objetivos diversos e a partir de diferentes interesses. No entanto, a importância da agricultura urbana tem se ampliado nos últimos anos. No caso de Portugal, a crise econômica provocou o aumento do desemprego e a deterioração das condições de vida nas cidades, sobretudo de parcela da população economicamente mais vulnerável (desempregados, aposentados, imigrantes etc.), o que redundou numa forte expansão da prática da agricultura urbana em terrenos públicos e privados. Em virtude dessa expansão espontânea da agricultura urbana, especialmente das hortas urbanas, em áreas públicas sem edificações, que o poder público municipal (no caso português, as Câmaras Municipais) de várias localidades criaram legislação específica para normatizar o uso do território para o cultivo urbano, bem como selecionar novos interessados nessa prática.
5Com o objetivo de identificar os principais tipos de hortas urbanas presentes na realidade portuguesa e problematizar o processo recente de institucionalização e normatização dessas hortas pelas Câmaras Municipais, tomamos como exemplos empíricos as cidades de Lisboa, Seixal, Cascais e Coimbra.
6Para se alcançar o objetivo delineado na pesquisa, que teve abordagem qualitativa, se adotou os seguintes procedimentos metodológicos: revisão bibliográfica e documental; consulta a sites que disponibilizam informações sobre as hortas urbanas em Portugal; pesquisa de campo, com visitas as hortas urbanas localizadas em terrenos públicos e realização de entrevistas, com base em roteiro semiestruturado, com funcionários (técnicos agrícolas, paisagistas, engenheiros agrônomos etc.) vinculados as Câmaras Municipais de Lisboa, Seixal, Cascais e Coimbra; agricultores das hortas urbanas em Lisboa (Bairro Campolide, Telheiras e Chellas), Seixal (Rua Sarmento Pimentel e Quinta da Trindade), Cascais (Bairro do Loule) e Coimbra (Bairros do Ingote e do Bispo); e com docentes e pesquisadores da Universidade de Coimbra, do Centro de Estudos Sociais (CES) e da Escola Superior Agrária (ESAC) de Coimbra; e da Universidade de Lisboa.
7(Um espaço em branco, simples, com letra tamanho 12
O cultivo de pequenas áreas em quintais residenciais (ou no seu entorno), lotes urbanos e áreas comunitárias desocupadas nas cidades não é um fenômeno recente em Portugal. Esta atividade está associada, em grande parte, à intensa migração campo-cidade de parcela da população que se deslocou do espaço rural do interior do país para as cidades localizadas no litoral, levando consigo suas tradições rurais (PINTO, 2007).
8Com a inserção desse país na União Europeia em 1986, essas migrações campo-cidade se intensificaram, levando ao despovoamento e as baixas densidades demográficas verificadas nas regiões interioranas de Portugal, além de aumentar sua dependência em relação à produção agropecuária e, sobretudo, alimentar, de outros países membros por meio do aumento das importações.
9Na avaliação de Marques (2004, p. 4):
A característica ou o termo mais utilizado para definir a agricultura portuguesa antes da adesão à CEE era a do seu baixo grau de desenvolvimento. (...) Essa situação, (...) era reflectida pelos indicadores estruturais entre os quais se destacavam o elevado índice de envelhecimento dos agricultores e da população rural, em geral, o baixo grau de educação e formação dos agricultores, o reduzido nível de investimento em infra-estruturas e investigação agrícolas. Verificava-se, por conseguinte, um modesto ritmo de crescimento e de mudança tecnológica, o que às portas da adesão à CEE se traduzia num produto interno bruto que representava cerca de 9% do total do PIB, mas para o qual contribuía cerca de 22% da população activa portuguesa. (grifo nosso)
10Constata-se, assim, que no momento de adesão de Portugal à União Europeia, sua agricultura apresentava-se, de acordo com Marques (2004, p. 4), debilitada “estruturalmente frente a um setor agrícola desenvolvido”, constituída pelos demais países membros. “Os produtores agrícolas portugueses teriam que competir aos mesmos preços, mais baixos do que os nacionais até aí existentes, e com um capital humano e uma infra-estrutura tecnológica mais fraca do que os restantes produtores europeus da CEE (sic)” (MARQUES, 2004, p. 4)
11Ao analisar a evolução da produção agropecuária no período compreendido entre 1986 e 1998, o autor destaca que:
[...] a composição da produção agrícola portuguesa orientou-se claramente para a produção animal, com preponderância dos suínos, bovinos de leite e aves em substituição dos bovinos de carne e ovinos e caprinos. Na produção vegetal, os sub-sectores mediterrânicos dos frutos, hortícolas, vinho e azeite também registraram uma evolução desfavorável (MARQUES, 2004, p. 8).
12Em termos sociais, essas mudanças na agricultura portuguesa intensificaram o ritmo de abandono dessa atividade, como enfatiza o autor, sendo que entre 1989 e 1999, cerca de 220 mil produtores (36,7% do total), entre eles, muitos jovens, migraram para as cidades (MARQUES, 2004).
13Apesar dessa grande migração e das profundas mudanças pelas quais o país vem passando nos últimos anos, resultando no aumento das assimetrias regionais, a agricultura e o modo de vida rural sempre tiveram (e ainda têm) importância fundamental para muitos portugueses.
14A importância atribuída à agricultura e ao modo de vida rural se deve, por um lado, ao fato de muitos portugueses que vivem na atualidade nas cidades terem sua origem associada ao campo e as atividades agropecuárias, e mesmo com a migração campo-cidade, os laços afetivos com o seu lugar (a aldeia) e a agricultura permanecem muito fortes; e, por outro, em virtude da grave crise econômica, o espaço rural e as atividades agropecuárias em bases modernas, tornaram-se alternativas em termos da geração de oportunidades de trabalho e obtenção de renda aos jovens, parcela da população mais afetada pelo desemprego.
15A crise econômica que assolou o país e a sociedade portuguesa desde 2008 é um dos reflexos da grave crise econômica mundial que eclodiu nos Estados Unidos e afetou vários países, com efeitos negativos muito fortes na União Europeia. A forma como se deu a inserção de Portugal na União Europeia em 1986, resultou na perda de competitividade em vários segmentos do setor agropecuário, sobretudo na produção de cereais e oleaginosas. Em estudo realizado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE, 2013), se verificou que entre os anos de 2006 e 2010, o país atingiu um grau de autossuficiência alimentar de 81% em valor no que diz respeito a produtos da agricultura e pesca e da indústria alimentar e bebidas. No entanto, a elevada dependência externa dos cereais e das oleaginosas foi comprovada pelas importações que representaram 42,4% do valor global das importações agrícolas entre 2006/2010. No estudo realizado pelo INE (2013), se destaca que esta dependência vem apresentando tendência de agravamento, com as importações aumentando, em média, 10,3% e 12% ao ano, para os cereais e as oleaginosas, respectivamente.
- 1 Em termos de desemprego, Portugal apresentava a terceira maior taxa de desemprego (15,3%) entre os (...)
16Nesse contexto de crise econômica, de arrocho salarial e de altas taxas de desemprego1, uma alternativa que se apresenta, sobretudo aos mais jovens, é a migração para outros países da União Europeia. Para muitos trabalhadores de outros países lusófones residentes em Portugal, como brasileiros, moçambicanos, caboverdeanos e angolanos, o retorno aos países de origem tem se constituído na única alternativa para fugir da crise no país. Especula-se que em torno de 70 mil imigrantes tenham retornado aos seus países de origem no período pós 2008 (www.jn.pt/noticias).
17Para as pessoas que não têm condições de deixarem o país, seja em virtude da situação econômica precária, da idade avançada ou mesmo pela constituição de família; que se encontram desempregadas; aposentadas; ou que tiveram seus salários reduzidos, as hortas urbanas surgiram como uma forma alternativa de acesso à alimentação, de ocupação da mão de obra, de obtenção de pequenos rendimentos proporcionados pela comercialização dos produtos excedentes, de retorno às suas origens rurais, de maior proximidade com a Natureza, de possibilidade de socialização, de aprendizado, de lazer etc. Ressalta-se, também, que a produção obtida nas hortas urbanas pode diminuir ou contribuir para reduzir os gastos com alimentação das famílias, sobretudo das mais vulneráveis economicamente, que podem gastar até 80% de sua renda com alimentação, como destacam Avilla e Veenhuisen (2002).
18As hortas podem ser definidas pelo cultivo de plantas (hortaliças, frutas, ervas aromáticas e medicinais, flores etc.) dentro do espaço urbano (Imagem 1), sendo implantadas de forma legal ou não, em pequenas parcelas (Imagem 2), em terrenos privados ou espaço público (praças, jardins etc.) (Imagem 3) e livres de edificações.
Imagem 1: Horta urbana cultivada de forma comunitária em Lisboa.
Fonte: Arquivo pessoal (2016).
Imagem 2: Hortas urbanas em parcelas individuais na periferia de Lisboa.
Fonte: Arquivo pessoal (2016).
Imagem 3: Horta urbana em terreno público em Cascais.
Fonte: Arquivo pessoal (2016).
19Em geral, os objetivos dos agricultores ou hortelões – como são chamados os que cultivam essas hortas -, podem variar bastante dependendo das condições socioeconômicas dos praticantes. Assim, no caso das pessoas em situação mais vulnerável (desempregados, aposentados, imigrantes, jovens etc.), o cultivo das hortas e a produção obtida pode complementar a alimentação familiar ou a comercialização, na escala local, da produção excedente, proporcionar uma renda monetária complementar, como se verificou, por exemplo, em Lisboa, nos bairros sociais de Telheiras e Chellas, em Coimbra, nos bairros sociais do Ingote e do Bispo. Para os demais praticantes (jovens, adultos, idosos etc.), de classes sociais mais abastadas, o cultivo de hortas pode ser apreendido como uma forma de lazer, de interação social, de maior contato com a natureza ou a simples produção própria de gêneros alimentícios para o autoconsumo, como se constatou em Lisboa, no Campolide; em Cascais, no bairro do Loule e em Seixal, na Rua Sarmento Pimentel. Em geral, os alimentos cultivados são produzidos para o consumo familiar, comunitário ou a venda direta ao consumidor, podendo os excedentes serem comercializados em mercados locais.
20De acordo com Pinto (2007), as hortas urbanas têm usos múltiplos podendo se constituir como: i) espaços verdes que melhoram o ambiente das cidades, complementando as áreas verdes tradicionais, podendo se constituir como jardins agrícolas; ii) espaços de alimentação em que os moradores da cidade podem obter de forma simples, rápida e segura, os produtos que habitualmente consomem na sua alimentação; iii) espaços de economia em que se pode obter alimentos e, assim, aumentar a renda; e iv) espaços de lazer e recreio para os momentos de descontração.
21Como destaca Leite (2012, p. 1):
As hortas urbanas não são um fenómeno recente na paisagem urbana em Portugal. O desenvolvimento deste tipo de ocupação agrícola tem origem na migração da população rural para estas áreas e podem ser descritas como parcelas de terra normalmente condicionadas à disponibilidade do local, onde se cultivam legumes, hortaliças, plantas ornamentais e árvores frutíferas. Estas surgem como uma forma de utilizar os espaços intersticiais existentes nas cidades permitindo o autoabastecimento e a disponibilidade de produtos frescos e sãos.
- 2 Esse movimento político contestatório no âmbito europeu teve sua materialização em vários países: a (...)
- 3 Exemplo desse movimento foram as “eco-aldeias”, organizadas temporariamente por jovens artistas com (...)
22Dessa forma, embora o cultivo de hortas nos quintais em Portugal seja um processo relativamente antigo, a sua expansão no período recente faz parte também de um movimento político mais amplo no contexto mundial2, organizado por jovens, muitos filiados a partidos de esquerda, que passaram a se dedicar à agricultura urbana como forma de protestar contra a crise econômica, o neoliberalismo e a globalização; e/ou como uma retomada das relações de proximidade com a Natureza3, de uma nova forma de se relacionar com a alimentação – como o movimento slowfood – e de recuperação da “memória rural”, perdida em decorrência do crescente processo de urbanização, do consumismo, do individualismo e do agravamento dos problemas ambientais que marcam a sociedade capitalista contemporânea.
23Dessa forma, tem sido cada vez mais presente nas paisagens portuguesas, tanto das grandes cidades, como das médias e pequenas, as hortas urbanas cultivadas em lotes ou áreas, públicas (Imagem 4), sem edificações, localizadas às margens de córregos (Imagem 5), em encostas, rodovias e linhas férreas, ou nos chamados espaços comunitários, que não são ocupados produtivamente (LOPES, 2007).
Imagem 4: Horta urbana implantada pela Camara Municipal de Cascais em terreno público.
Fonte: Arquivo pessoal (2016).
Imagem 5: Horta urbana localizada às margens de córrego na cidade de Seixal.
Fonte: Arquivo pessoal (2016).
24Essa diversidade de localidades em que são implantadas as hortas urbanas indica, segundo a FAO (1999), a adaptabilidade da atividade às mudanças ocorridas nos espaços urbanos, tanto no que concerne à expansão física, em virtude da crescente valorização e incorporação de novas áreas, que resulta numa cidade dispersa, fragmentada territorialmente, quanto à diminuição das diferenças entre os limites urbanos e rurais.
25Tais hortas, diferentemente dos cultivos especializados de hortícolas para fins comerciais, cujos produtos abastecem circuitos longos de comercialização, apresentam algumas características que as distinguem das demais, como será apresentado no item subsequente.
26A maior parte das hortas urbanas em Portugal foi organizada de forma espontânea e a partir da iniciativa individual ou coletiva (comunitária) dos moradores de uma localidade, por meio da utilização de lotes e espaços comunitários não ocupados ou das áreas urbanas periféricas livre de construções (Imagem 6).
27Imagem 6: Horta comunitária em Bairro Social em Lisboa..
28Fonte: Arquivo pessoal (2016).
29Como destacam Mascaró, Acunha e Paggotto (2017, p. 5), como esse tipo de agricultura envolveu desde a década de 1960 imigrantes que residiam na região metropolitana de Lisboa, com origem rural, essa atividade ficou estigmatizada, “como um sinal de ‘subdesenvolvimento’”, sendo ignorada pelas administrações municipais.
30No entanto, a partir de 1999, com a necessidade de que cada municipalidade portuguesa elaborasse seu Plano Diretor Municipal, a administração de Lisboa aproveitou a oportunidade e incorporou a agricultura urbana no Plano de Lisboa (MASCARÒ, ACUNHA, PAGGOTTO, 2017). Como consequência dessa incorporação, a partir do início dos anos 2000, houve a intervenção da administração municipal em algumas hortas cultivadas em áreas públicas que passaram por reformulação, sendo normatizada a utilização dessas áreas, visando incorporá-las em parques urbanos, como ocorreu, por exemplo, no Bairro da Graça (Imagem 7), localizado no centro histórico de Lisboa (MASCARÒ, ACUNHA, PAGGOTTO, 2017).
Imagem 7: Horta urbana no bairro de Graça, Lisboa
31Outra iniciativa da administração pública de Lisboa para incentivar a agricultura urbana foi estimular a implantação de hortas pedagógicas nas escolas. De acordo com Madaleno (2001), as primeiras experiências com as hortas pedagógicas em Lisboa ocorreram nos anos 1990, como uma das estratégias para tornar as aulas mais atraentes para os alunos e professores, além de estimular o contato das crianças com o cultivo de vegetais e a produção de alimentos. Segundo o autor, os “planos de construção de todas as escolas preparatórias e primárias passaram a incluir sua própria horta para o cultivo de alimentos.” (MADALENO, 2005, p, 3).
32Apesar dessas iniciativas institucionalizadas da administração de Lisboa e de outras municipalidades, a maior parte das hortas cultivadas em Portugal era de iniciativa local, individual ou coletiva, e sem muitas regras ou normas para a utilização das áreas, sobretudo aquelas realizadas em bairros sociais ou nas suas proximidades, por imigrantes, aposentados ou desempregados. Entretanto, com o agravamento da crise econômica, o aumento das taxas de desempregados e da insegurança alimentar, esse tipo de hortas voltadas para o autoconsumo familiar passou a se expandir de forma espontânea para outras cidades portuguesas.
33Assim, Saraiva (2012), ao pesquisar as hortas na cidade de Oeiras, constatou que estas por apresentarem diferentes objetivos e características, poderiam ser agrupadas em três grupos: sociais/comunitárias, recreio e pedagógicas. Segundo a autora, as sociais/comunitárias são estruturadas sobre o trabalho familiar; a produção é destinada ao consumo da família e/ou para venda; e geralmente existe nestas hortas o acesso gratuito à água. As hortas de recreio, por sua vez, “agregam uma população mais jovem e outro conjunto de motivos impulsionadores, nomeadamente razões de recreio, lazer, educação ambiental, etc., e são criadas pelo gosto dos hortelãos pela agricultura. Nestes casos a dependência económica é reduzida” (SARAIVA, 2012, p. 49). As hortas pedagógicas constituem espaços que favorecem a educação ambiental, o contato com as atividades de cultivo e criação e a disseminação de técnicas mais sustentáveis.
34Em pesquisa realizada na área central da cidade do Porto, Sousa e Madureira (2017), elaboraram uma tipologia das hortas urbanas pesquisadas, dividindo-as em três tipos: a) quintais privados, são hortas cultivadas em áreas adjacentes aos edifícios, tem dimensões muito variadas, apresentam uma grande diversidade de cultivos e visam a diferentes objetivos (ambientais, sociais e econômicos); b) hortas privadas, são cultivadas em áreas no interior da cidade, não adjacentes aos
35edifícios, tem dimensões muito variadas, uma grande diversidade de cultivos e podem atender a diferentes necessidades e funções (ambientais, sociais e econômicas); e c) hortas sociais/comunitárias e pedagógicas: as primeiras são destinadas à horticultura não comercial, visando ao autoconsumo das famílias, sendo que, enquanto as “hortas sociais são divididas em talhões e cada uma das parcelas é cultivada individualmente; no caso das hortas comunitárias toda a área é cultivada em grupo” (SOUZA;MADUREIRA, 2017, p. 314); e as hortas pedagógicas são realizadas em áreas reservadas para a horticultura não comercial com o objetivo de incentivar a educação ambiental dos estudantes.
36Em virtude da expansão das hortas urbanas por várias localidades portuguesas, foi constituída no âmbito nacional, a Rede Portuguesa de Agricultura Urbana e Periurbana (RAU), que criou o Portal da Agricultura Urbana e Periurbana (PORTAU)4, que é, segundo Rodrigues (2012), composta por cerca de 80 organizações (autarquias e agências governamentais, grupos de agricultores urbanos, instituições de ensino, investigação e desenvolvimento, empresas privadas e outras organizações) e tem como principal objetivo “promover o debate e a troca de experiências em torno do desenvolvimento sustentável da agricultura urbana e peri-urbana. (RODRIGUES, 2012, p. 32-33).
37Assim, como destacado nas entrevistas realizadas, se verificou que, em grande parte dessas hortas que surgiram espontaneamente, o poder público municipal não exerceu nenhum tipo de controle ou fiscalização sobre as condições (ambientais, sociais etc.) em que as mesmas se organizam, resultando, em alguns casos, em problemas com relação à qualidade (sanidade) dos produtos consumidos, já que os cultivos podem ocorrer em solos contaminados5 e/ou com a utilização de agua de córregos contaminados para a irrigação ou ainda em virtude de falta de segurança por estarem localizadas próximas às rodovias6. Além desses problemas relacionadas à qualidade da água utilizada na irrigação e dos solos cultivados, foi destacado pelos entrevistados a utilização de materiais improvisados disponíveis (como restos de plásticos, madeiras, papelão, entre outros) para a delimitação das áreas de cultivo; a construção de abrigos para o depósito de ferramentas e sementes (Imagem 8); a captação de água das chuvas e a irrigação resultando na conformação de paisagens classificadas, pelos entrevistados, como degradantes.
Imagem 8: Utilização de materiais disponíveis para a construção de abrigo em hortas de Seixal.
Fonte: Arquivo pessoal (2016).
38Na medida em que as hortas espontâneas ganharam importância social e densidade em termos do número de pessoas ou famílias envolvidas e de lotes cultivados, se ampliaram, como informado por um entrevistado, as demandas sobre as Câmaras Municipais, já que em Portugal não há políticas nacionais de estímulo à agricultura urbana. Segundo o entrevistado, as principais demandas dos agricultores urbanos estão relacionadas as necessidades de infraestrutura de acesso à água, de assistência técnica, de cursos de formação e de segurança em virtude dos frequentes furtos de produtos e ferramentas.
39Com o aumento dessas demandas e das reivindicações por parte da população, sobretudo dos aposentados e desempregados, pelo acesso aos lotes para o cultivo, por um lado, e da crise econômica que assolou o país, por outro, o poder público municipal vislumbrou nas hortas urbanas (Imagens 9 e 10) uma alternativa frente ao quadro de carências socioeconômicas, ao mesmo tempo em que passou a ser pressionado para normatizar a utilização dos terrenos urbanos ou periurbanos com o cultivo e a criação de animais.
Imagem 10: Terreno público preparado para a implantação de horta comunitária em Seixal
Fonte: Arquivo pessoal (2016).
40Essa institucionalização de parte das hortas urbanas em Portugal se insere numa tendência observada por Mougeot (2005), nesse século XXI, do reconhecimento por parte dos governantes, em suas diferentes escalas, de que as cidades devem desenvolver estratégias que reforcem a sustentabilidade urbana em diferentes dimensões. Dessa forma, embora a agricultura urbana – e no caso português as hortas urbanas - não se constitua na solução integral e definitiva dos problemas urbanos, ela pode tornar-se parte essencial das medidas estratégicas para melhorar a qualidade de vida nas/das cidades.
41Dessa forma, como destacado por um entrevistado, passou a ser cada vez mais frequente a institucionalização e a regulamentação das hortas urbanas por iniciativa de algumas Câmaras municipais, seja por meio da criação e/ou estímulo à ampliação das:
42a) “hortas pedagógicas”: que têm a finalidade de proporcionar aos alunos e professores de escolas públicas e privadas, do jardim da infância e do ensino básico, noções de educação ambiental e de segurança alimentar, por meio do contato com a natureza, as várias etapas que envolvem o cultivo das plantas e o consumo alimentar saudável, sendo que tais experiências são utilizadas didaticamente pelas várias disciplinas curriculares que envolvem o ensino escolar. De acordo com Madaleno (2005), as primeiras experiências com as hortas pedagógicas em Lisboa ocorreram nos anos 1990, como uma das estratégias para tornar as aulas mais atraentes para os alunos e professores. Segundo o autor, os “planos de construção de todas as escolas preparatórias e primárias passaram a incluir sua própria horta para o cultivo de alimentos.” (MADALENO, 2005, p, 03) A partir dessas iniciativas, houve a disseminação das hortas pedagógicas que atualmente podem ser encontradas nas escolas dos municípios de Seixal, Sintra, Lisboa, e Guimarães;
43b) “hortas sociais, comunitárias ou populares”: têm sido lançadas chamadas públicas pelas Câmaras Municipais às pessoas interessadas em cultivar lotes (parcelas) disponibilizados pelas municipalidades. O processo de seleção dos interessados ocorre a partir de diferentes critérios, como renda familiar, idade, situação de desemprego, ter moradia próxima à área a ser cedida para o cultivo etc. Essas hortas são destinadas prioritariamente à população carente, embora não seja exclusiva a estas. A produção realizada é, sobretudo, de subsistência, já que as parcelas a serem cultivadas pelos interessados variam, em termos de extensão territorial, de 30 a 150 m2. De forma geral, são fornecidas às pessoas selecionadas para o cultivo dos lotes, noções básicas em agricultura biológica, compostagem, manutenção de espaços públicos, trabalho comunitário, educação ambiental, entre outros. Exemplos de hortas sociais estão presentes em vários municípios portugueses, como Lisboa (Horta Popular da Calçada do Monte, Quinta da Granja, Vale do Fundão, Bairro Padre Cruz, Campolide (imagem 11), Telheiras (imagem 12) etc.); Cascais (a Câmara Municipal desenvolve projetos de hortas comunitárias); Porto (hortas urbanas no centro histórico e em Matozinhos); Almeirim (Projeto Hortas Urbanas Biológicas); Beja (Projeto Hortas Urbanas); Figueira da Foz (Projeto Verdes Campos Hortas Biológicas Urbanas e Comunitárias); Loule (Projeto Hortas Sociais); Seixal (Projeto Redes de Hortas Urbanas); e Famalicão (Projeto Hortas Urbanas de Famalicão).
Imagem 11: Horta comunitária no Bairro de Campolide –Lisboa.
Fonte: Arquivo pessoal (2016).
Imagem 12: Horta comunitária no Bairro social de Telheiras – Portugal.
Fonte: Arquivo pessoal (2016).
44Além desses dois tipos de hortas urbanas institucionalizadas e reguladas pelos poderes públicos municipais, há ainda um terceiro que agrupa um conjunto de iniciativas relacionadas à questão ambiental, social, econômica e política, que são criadas ou apoiadas por instituições diversas (filantrópicas, religiosas, associações, ONGs, empresas privadas ou estatais etc.), sendo destinadas às pessoas (aposentados, imigrantes, desempregados, jovens, detentos etc.) que gostam do cultivo de legumes, hortaliças, ervas aromáticas e medicinais, flores, frutas etc., utilizando-se dos princípios da agricultura biológica e que dispõem de tempo livre para a prática dessas atividades.
45Cabe ressaltar que, por meio das entrevistas e da pesquisa de campo realizada, se verificou que não existem formas “puras” de organização das hortas urbanas. Há, por exemplo, hortas pedagógicas, como no município de Seixal, que contam com a colaboração de aposentados que, além de auxiliarem no cultivo e na manutenção desses espaços, trocam suas experiências de vida e de conhecimento com as crianças e os jovens estudantes.
46Há, por exemplo, Hortas Solidárias, nas quais, a partir da iniciativa de um grupo de alunos, professores e funcionários, se decidiu cultivar um lote disponibilizado na área em que se localiza o Museu Nacional do Traje, no Parque Botânico do Monteiro-Mor. Nesse lote, de 90 m2, são cultivadas ervas aromáticas e produtos hortícolas diversos (cenouras, couve etc.) com o objetivo de promover atividades de lazer e contatos com a Natureza, reconhecendo os benefícios ambientais e sociais que uma horta urbana pode proporcionar. Procura-se, também, aumentar a participação ativa dos participantes na defesa do ambiente e na responsabilidade social e na cidadania, por meio da doação dos produtos cultivados a uma instituição que atende pessoas em situação de vulnerabilidade social, além de capacitar algumas pessoas atendidas pela mesma instituição em agricultura biológica. Para alcançar esses objetivos, o grupo estabeleceu parcerias com o Museu Nacional do Traje, o Abrigo Noturno de Lisboa (ANL) e a Associação “Colher para Sanar” da Rede Portuguesa de Variedades Tradicionais.
47No caso das hortas sociais, localizadas em bairros populares, há diferenciação nas suas formas de organização. Em visitas e entrevistas realizadas nos bairros de Campolide e Telheiras em Lisboa, se verificou, por meio das entrevistas, que há entre os hortelãos a predominância de imigrantes aposentados, pessoas de baixa renda e desempregados que residem nas imediações (Imagem 13); noutras, também localizadas em bairros populares, como no Bairro dos Loulos, no Município de Cascais (Imagem 14), se verificou nas entrevistas que há uma maior diversidade de pessoas, tanto em termos sociais, econômicos e de faixa etária, convivendo no dia-a-dia e trocando suas experiências de vida, enquanto cultivam suas parcelas (talhões) de terras. Zeeuw (2004) observou que quando se trata de agricultura urbana, é possível agrupar os agricultores envolvidos com essa atividade em dois tipos: aqueles que recebem baixos rendimentos (pensionistas, desempregados, imigrantes), os quais dependem da produção de alimentos frescos a baixo custo; e os agricultores com um nível de rendimento mais elevado, cujo envolvimento com a agricultura surge por razões diversas, como lazer, recreio, convívio social e cultural, saúde etc. Verificou-se também que uma parte importante da população que pratica a agricultura urbana reside há vários anos na cidade, sendo que muitos deles têm sua origem ligada ao espaço rural e à agricultura.
Imagem 13: Hortas urbanas em Bairro Social de Lisboa.
Fonte: Arquivo pessoal (2016).
48Se verificou também na pesquisa de campo que a maior parte dos hortelãos são do sexo masculino, ao contrário do que foi constatado na literatura sobre o tema, como Nugent (2000), Pessoa, Souza e Schuch (2006), entre outros autores que ressaltaram a predominância das mulheres na prática da agricultura urbana.
49Outro aspecto relevante constatado na pesquisa de campo foi o estabelecimento de parcerias entre as Câmaras Municipais e instituições diversas, com o objetivo de ministrar cursos e prestar assessoria técnica às pessoas que praticam a agricultura urbana. Um exemplo desse tipo de parceria é a que ocorreu entre o Departamento de Habitação da Câmara Municipal de Coimbra em colaboração com a Escola Superior Agrária de Coimbra, para a readequação do projeto "Hortas do Ingote" (Imagem 15) que teve início no terreno em 2006 e distribuiu 25 lotes (talhões), cada um com uma área aproximada de 150 m2, a moradores que residem nos Bairros Sociais do Ingote.
50Mesmo com essa readequação, uma parte dos moradores do Bairro Social do Ingote, em Coimbra, não conseguiu ser selecionada para receber um talhão de terra para cultivar e, por isso, alguns realizam sua horta em pequenas áreas disponíveis na parte externa do prédio (Imagem 16).
Imagem 16: Área cultivada na parte externa do prédio em bairro Social do Ingote, Coimbra.
Fonte: Arquivo pessoal (2016).
51É importante salientar que, apesar dessa tendência de institucionalização e regulamentação das hortas urbanas realizadas em terrenos públicos em Portugal, por meio das Câmaras municipais, há uma grande diversidade de tipos de hortas que surgiram espontaneamente, sobretudo em terrenos privados, que o poder público não exerce nenhum controle ou fiscalização sobre as mesmas.
52A agricultura urbana se constitui numa atividade que vem ampliando a sua importância econômica e social no mundo, desde o final do século XX e início do XXI. Ao mesmo tempo em que se amplia a importância da agricultura urbana, se diversifica as suas formas de organização, a dimensão das áreas, os sistemas produtivos, a condição dos lotes e os objetivos e finalidades dessa atividade. Nesse contexto, as hortas urbanas pesquisadas em Portugal se constituem numa dessas possibilidades de prática de agricultura urbana.
53O processo de expansão das hortas urbanas se deve, no caso português, a dois conjuntos de fatores que atuam em diferentes escalas geográficas. O primeiro, na escala mundial, relacionado à intensificação da urbanização, ao aumento dos índices de pobreza nas cidades, ao encarecimento dos preços dos alimentos, ao agravamento dos problemas ambientais, a preocupação crescente com a contaminação dos alimentos causada pela adoção do pacote tecnológico da Revolução Verde pela agricultura comercial e à crise econômica, levando à valorização de formas alternativas de produção agropecuária, como a agricultura urbana e as hortas urbanas. O segundo, vinculado às particularidades de Portugal, como as intensas migrações campo-cidade que ocorreram nos anos 1960, a forma de inserção da agricultura desse país na União Europeia e seus efeitos socioespaciais e, mais recentemente, as consequências da crise econômica mundial na economia, resultando em aumento do desemprego, redução salarial (servidores públicos, aposentados etc.), encarecimento dos preços dos gêneros alimentícios, e deterioração das condições de vida nas cidades, sobretudo de parcela da população economicamente mais vulnerável (desempregados, aposentados, imigrantes etc.).
54O cultivo das hortas urbanas que se iniciou de maneira espontânea, em virtude do hábito cultural das pessoas de cultivarem a terra e da intensa migração campo-cidade que ocorreu no país a partir dos anos 1960, ganhou maior relevância no período recente.
55Se verificou que em Portugal há hortas que surgiram espontaneamente e o poder público não exerce nenhum controle ou fiscalização sobre as mesmas. Mais recentemente, o poder público, por meio das Câmaras Municipais, passou a institucionalizar e a regulamentar as hortas, o que tem provocado o aumento do número de espaços públicos cultivados nas cidades e a procura dos interessados em se candidatar ao cultivo das hortas.
56Constata-se, assim, que as hortas urbanas, sejam espontâneas ou institucionalizadas, apesar de se constituírem em pequenas áreas (parcelas) cultivadas, localizadas em lotes e/ou espaços privados ou públicos desocupados, ou em áreas marginais no espaço urbano, têm propiciado um conjunto de benefícios à sociedade, tais como: i) a possibilidade de se produzir alimentos diversificados (hortaliças, legumes, ervas aromáticas e medicinais, frutas etc.) aumentando a disponibilidade de alimentos nas cidades; ii) a criação de oportunidades de ocupação e renda à parcela da população (desempregados, aposentados, imigrantes, jovens etc.) desempregada ou excluída do mercado de trabalho; a constituição de espaços de convivência intergeracional e intercultural; a maior coesão social por meio das trocas de experiências entre os participantes; iii) a utilização de materiais, produtos, serviços e recursos humanos disponíveis nas cidades, promovendo, na maior parte das vezes, o manejo adequado do solo e da água, além de reduzir o acúmulo de lixo e a presença de vetores (ratos, moscas etc.), responsáveis por doenças; iv) a oportunidade de educação ambiental, de recreação e lazer; a promoção da solidariedade e cidadania, além de propiciar a ocupação produtiva de terrenos urbanos ociosos, resultando numa paisagem diferenciada.
57(m espaço em branco, simples, com letra tamanho 12)(Um espaço em branco, simples, com
58A CAPES pela concessão de recursos financeiros que propiciou a realização de missão de trabalho junto a Universidade de Coimbra.