1Neste egundo artigo que trata do saber geográfico no helenismo procuramos analisar o processo de desmistificação de Gaia que em última instância resultou de uma conexão entre o desenvolvimento da civilização grega e suas relações com outros povos, em especial o egípcio. Mas, o veículo catalisador das transformações materiais e simbólicas da sociedade grega foi a conjunção entre a cultura urbana grega, a invenção da democracia e o nascimento da razão e de suas racionalidades. Para Wollf (2006, p.69-74) a razão lentamente substituiu o mito, subsidiou a formação das estruturas políticas e jurídicas do mundo ocidental e permitiu a formação das técnicas discursivas e das práticas científicas. Enfim, uma nova ordem do saber, o racional transformou Gaia em Kósmos, com suas variações e diferenciações geográficas.
2Apesar de a cidade ter se estabelecido da “... união entre a cultura neolítica e uma cultura paleolítica mais arcaica” (MONFORD, 1965, p. 42), foi na Grécia, entre o período Arcaico e o Clássico, que ela se desenvolveu e propiciou grandes transformações, tais como alterar “todo um vale de um rio numa organização unificada de canais e obras de irrigação para a produção de alimentos e transporte.” (MONFORD, 1965, p. 42-43), configurando toda a paisagem e proporcionando novas relações humanas no interior da comunidade.*
Figura 1 Éon et Tellus (Gaïa)
Eon e Tellus (Gaia) cercados por quatro filhos, talvez as estações personificadas, mosaico romano de uma vila Sentinum, no início do século terceiro
Munich Glyptothek (Inv.W504), https://en.wikipedia.org/ wiki / Ga
3Assim, a cidade possibilitou a sua conexão com lugares distantes, abrindo estradas, intensificou a comunicação por longas distâncias no espaço e no tempo, bem como promoveu uma maior produtividade agrícola. (MONFORD, 1965, p. 46). Concomitantemente a este fato, os deuses familiares locais foram parcialmente substituídos pelos distantes deuses celestiais ou terrenos, identificados com o Sol, a Lua, as águas da vida, o trovão, etc. Pela sua própria forma, a cidade era uma afirmativa da vontade coletiva de dominar a terra, e passou a ser, e assim continua a ser até os tempos romanos, um simulacro do céu.
Em verdade, a cidade pode ser descrita como uma estrutura especialmente equipada para armazenar e transmitir os bens da civilização e suficientemente condensada para admitir a quantidade máxima de facilidades num mínimo espaço, mas também capaz de um alargamento estrutural que lhe permite encontrar um lugar que sirva de abrigo às necessidades mutáveis e às formas mais complexas de uma sociedade crescente e de sua herança social acumulada. A invenção de formas como o registro escrito, a biblioteca, o arquivo, a escola, etc., constitui um dos feitos mais antigos e mais característicos da cidade. (MONFORD, 1965, p. 47).
4O que principalmente aconteceu com a ascensão das cidades foi que muitas funções, que haviam até ali sido dispersas e desorganizadas, ajuntaram-se dentro de uma área limitada, e os componentes da comunidade foram mantidos num estado de tensão e interação dinâmica. A cidade passou a ser uma representação do cosmo, um meio de trazer o céu à Terra, passando a ser um símbolo do possível. (MONFORD, 1965, p. 47-48). Com o advento da cidade, “a noção de espaço se transforma.” (VERNANT, 2009, p. 67).
5Vale ressaltar que a pólis grega nascera como uma instituição religiosa na qual os cidadãos buscavam conservar uma aliança com suas divindades. No entanto, pouco a pouco os cidadãos reduziram a importância dos deuses na vida política, ao conceberem que “... a lei não emanava de deuses ou governantes divinos, mas da comunidade humana.” (PERRY, 2015, p. 47). Contudo, tal fato não implicou o fim da religião, especialmente entre os camponeses, que continuavam fiéis aos seus antigos cultos, deuses e santuários. Assim, a tradição mítico-religiosa jamais desapareceu na Grécia, mas quando a democracia ateniense atingiu o seu apogeu, em meados do século V a.C., a religião já não era um fator dominante na política (PERRY, 2015, p. 47). Ou seja, ao invés de rejeitar a “... teoria que se apoia nas noções de negação, mútua exclusão, oposição e superação e substituição do mito, derrubado e sucedido pela razão, cremos sim é numa combinação harmoniosa e reciprocamente complementar entre mito e razão.” (PLATÃO, 2012, p. 09).
6Graças à cidade, o homem e a natureza vêm juntar-se numa unidade: ao passo que o homem se torna mais poderoso pela cooperação no domínio das forças naturais, a própria natureza passa a ser mais respeitosa, mais sujeita à marca e aos desígnios do homem. (MONFORD, 1965, p. 54), a cidade constituía uma réplica do universo fabricada pelo homem, cuja morada do homem estava imbuída no próprio cosmo, e à medida que crescia a população da cidade, era necessário estender a área de imediata produção de alimentos, ampliar as linhas de suprimento e buscar apoio pela cooperação, pelo comércio ou pelos tributos forçados, pela expropriação e pelo extermínio. (MONFORD, 1965, p. 75).
7A partir do século VI a. C., segundo Jean Pierre Vernant, houve uma mudança profunda no mundo grego, principalmente na forma de pensar, pois,
[...] passamos de uma forma que é narrativa para uma forma de texto em que se quer dar conta da ordem das coisas, expressar as aparências que o mundo apresenta. Por exemplo, o fato de que exista o dia e a noite, de que existam estações, de que existam fenômenos atmosféricos curiosos, como os raios. De que existe, enfim, uma espécie de movimento cíclico no universo, que faz com que as coisas se repitam enquanto os homens passam e morrem. (VERNANT, 2009, p. 210-211).
8O que se está a dizer é que os textos não são concebidos em narrativas, mas sim através de representações explicativas, assim, em vez de situar na origem a desordem pura, o Caos, para, a partir daí, ordenar o cosmos através de um soberano, procura-se quais são os fundamentos ou o Princípio que está na base de tudo e que possibilite explicar o desenrolar de todos os outros eventos.
9Designado como Clássico, esse período foi dominado pelas questões que envolviam explicações referentes ao conhecimento da natureza, e fora nas colônias gregas da Ásia Menor que ocorreram as primeiras manifestações de um pensamento dotado de maior racionalidade que, após as referidas cosmogonias, se teria produzido a passagem do mito à razão, mas, sem uma ruptura drástica, e sim, através de processos explicativos transitórios entre essas formas representativas, pois em momento algum do pensamento Ocidental tem-se uma absoluta racionalidade que solapa todo e qualquer tipo de transcendência. Também contribuíram para que houvesse essa transição das referências míticas para uma mais racional, a criação “... da moeda, a instituição da esfera política, a emergência de uma ética e o nascimento da filosofia, da história, da ciência, da tragédia.” (VERNANT, 2009, p. 167).
10Apesar de Gaia, Gê, Gea, ser grafada desde Homero e Hesíodo, foi, sobretudo, a partir do período Clássico que Gaia fora amplamente grafada e metrificada, possibilitando que, tanto neste período como no período Helênico, as lexias Geografia e Geometria fossem criadas, ambas remetendo ao estudo e conhecimento da própria Gaia ou de sua correlação e posição frente ao Kosmos, num construto paradoxal de mitologia e racionalismo.
11Foi justamente sob as tentativas de desvendamento e de organização que, desde o fim do século VI a.C., o termo que serviu para designar o universo não foi outro senão kosmos; nos textos mais antigos, ele se aplica àquilo que, ordenado e regrado harmoniosamente, tem valor de adorno, conferindo ao objeto que orna um acréscimo de graça e de beleza (grifo nosso). Para o grego, o mundo não é um universo exterior coisificado, separado do homem pela barreira intransponível que separa a matéria do espírito. O homem encontra-se em uma relação de comunidade com o universo, animado ao qual tudo o liga. (VERNANT, 2009, p. 178-179), e no que faz dele um indivíduo, “... o homem grego permanece engajado no social como o é no cosmos.” (VERNANT, 2009, p. 187). Assim, o crescimento da pólis,
[...] juntamente com o desenvolvimento de contatos com o exterior e com um sistema monetário, transformaram a visão hesiódica da sociedade e fizeram com que os velhos arquétipos, divinos e heróicos, parecessem obsoletos e irrelevantes, salvo quando eram diretamente protegidos pelo culto religioso. Sem dúvida, muito da tonalidade racional da tradição homérica, e bem assim da capacidade classificatória de Hesíodo, continuaram a sobreviver; mas nas sociedades especulativas e cosmopolitas da Jónia, mormente na própria cidade de Mileto, elas tomaram uma forma mais perspicaz e foram aplicadas, sem se afastarem demasiado dos mitos e da religião, a um mais amplo e mais objetivo modelo do mundo. (KIRK, HAVEN & SCHOFIELD, 1994, p. 69-70).
12Mileto, neste período, era independente, mas unida numa Liga com as outras cidades da Jônia, que expressava um espaço comum onde questões relativas à cidade eram debatidas num espaço comum, onde os homens olhavam o mundo à volta de si, libertavam-se do ofuscamento do pensamento mítico-religioso e começaram a compreender como era feito o mundo em que viviam, fazendo com que, ao findar o apogeu de Mileto, a Terra deixasse de ser um grande prato, e passasse a ser concebida como uma pedra que flutuava no espaço (ROVELLI, 2013, p. 100.) e cuja deusa Gaia, apesar de ganhar centralidade no Kosmos do período Clássico, teve pouca participação no imaginário do povo grego.
- 1 A Jônia, região da qual faz parte Mileto, é formada por cidades independentes, unidas pela Liga Jôn (...)
13Segundo Guthrie (1984), é a Aristóteles que devemos a distinção entre os que descreveram o mundo de um modo mítico e sobrenatural e os que intentaram, pela primeira vez, explicá-lo por causas naturais. Aristóteles chamava os primeiros de theologi, e aos segundos physici ou physiologi, e atribuía o começo da nova concepção física do mundo a Tales (640 a 545 a.C.) e a seus sucessores de Mileto, na Jônia1, proclamando-o como “... el primer fundador de esta clase de filosofia” (GUTHRIE, 1984, p. 50).
- 2 Os Iônios, aos quais pertence o Panionium, construíram suas cidades nas regiões mais agradáveis qu (...)
14Surgiram assim, as primeiras concepções filosóficas ocidentais, que foram propostas pelos jônicos,2 expressas num conjunto de tratados que se remeteram ao estudo da natureza, ou seja, da physis, eles estavam à procura dos princípios de todas as coisas, a partir do qual se geram e o término em que se corrompem, permanecendo a substância, que, por sua vez, se conserva sempre. Portanto, foram os primeiros a iniciar uma historia peri physeõs, uma pesquisa sobre a natureza. “Quer faça as plantas crescerem, os seres vivos se deslocarem, os astros se moverem em suas órbitas celestes, a physis é uma potência animada e viva.” (VERNANT, 2009, p. 178).
15Para os Jônicos, os céus teriam se originado da Terra (GOMES, 1994, p. 100), sendo fenômenos indistinguíveis dos meteorológicos, sendo que o céu seria formado por uma matéria semelhante à da Terra, subentendendo-se que os fenômenos terrestres ou celestes obedeceriam essencialmente às mesmas leis. E, ao observarem a existência de fósseis marinhos e conchas em determinadas áreas, então, secas, concluíram que a vida provinha do mar e que, devido à constante evaporação, os oceanos secariam completamente um dia, ou seja, “... la explicación de la naturaleza debe buscarse dentro de la misma naturaleza” (GUTHRIE, 1984, p. 54).
16Contudo, nem todos da “Escola” de Mileto disseram o mesmo sobre o número e a espécie de tal princípio, para Tales, a Natureza inteira é uma unidade perfeita, viva em cada uma de suas partes, não criada por um Deus, mas portadora de Deuses. Em forma mítica já havia dito isso a cosmogonia homérica (KRANZ, 1962, p. 3), porém significava algo distinto, que o mundo é forma saída da agua (CASINI, 1975, p. 24) que, por sua vez, é a origem de todas as coisas. A água seria a physis que abrange tanto a acepção de fonte originária quanto a de processo de surgimento e desenvolvimento, correspondendo à gênese (LAN y JULIÁ, 1986, p. 81), a água seria, portanto, “... o elemento fundamental do Cosmos” (AZEVEDO, 1965, p. 80). Deste modo, foi Tales “... el que primero intento explicar la variedad de la naturaleza como las modificaciones de algo en la naturaleza.” (GUTHRIE, 1984, p. 76).
17Tales propôs um único princípio imóvel que é a inteligência universal, e um único elemento original, que disse consistir na água, o líquido elementar (GOMES, 1994, p. 36). Para ele todas as coisas foram uma vez água, bem “... como todas las cosas continúan siendo agua, porque, a pesar de los câmbios que haya sufrido, permanece la misma sustancia a través de todos ellos, dado que realmente no existe otra cosa.” (GUTHRIE, 1984, p. 66). Assim, os corpos celestes eram vapor, “exalações aquosas”, em estado incandescente, que pairavam “acima de nós pelo firmamento gasoso, para em seguida, dar a volta nesse mesmo mar onde a Terra flutuava, até alcançar seu ponto de partida no Levante.” (FARRINGTON, 1961, p. 29). É a “partir de ella, por reunión, se forman todas las cosas y, a la inversa, al disolverse, son llevadas nuevamente hacia ella.” (LAN y JULIÁ, 1986, p. 70).
18A Terra, conforme Tales, seria um disco circular flutuando num oceano, ou seja, a “Terra flutua na água” (KIRK, HAVEN & SCHOFIELD, 1994, p. 86), pois a “... tierra misma había surgido de Nun, las aguas primordiales, que continúan estando bajo ella en cualquier parte – como decía Tales – y que, como el Océano homérico, también la circundan”. (GUTHRIE, 1984, p. 67).
19Tales viajou para o Egito e a Babilônia, e ao entrar em contato com astrônomos e matemáticos, estabelece tanto os fundamentos da organização celeste como os da geometria. Para ele, a esfera do céu é dividida em cinco círculos, que ele denomina “zonas”. Uma delas é a ártica e é sempre visível, outra, “trópico de verão”, outra, “equinocial”, outra, “trópico invernal” e outra “antártica”, que é invisível. Obliquo às três zonas centrais há o zodíaco, que cai sobre as três do meio. O meridiano, em contrapartida, corta a todas em linha reta desde o ártico até o polo oposto (LAN y JULIÁ, 1986, p. 81). Tales ... “predisse os solstícios e observou que o seu ciclo não é sempre igual.” (KIRK, HAVEN & SCHOFIELD, 1994, p. 80). Além disso, “Ensinava que o ano era composto de 365 dias, que os equinócios dividiam-no em duas partes iguais, e que a Lua não passava de um astro iluminado pelo Sol” (AZEVEDO, 1965, p. 80).
- 3 As razões fisiológicas alegadas por Aristóteles, ou seja, que todos os seres vivos dependem da água (...)
20Para Tales os sismos eram movimentos oriundos do mar, sobre a qual flutuava a Terra, deste modo, Poseidon deixou de ser quem a sacudia, passando para os filósofos a tarefa de explicar os fenômenos do mundo como ações de deuses humanizados (KRANZ, 1962, p. 29). A cosmologia3 talética foi a “más antigua exposición de las concepciones cosmológicas” (GUTHRIE, 1984, p. 64), muito embora estas ideias fossem afetadas por precedentes mitológicos, ele abandonou as formulações míticas, devido à sua busca racional de tentar explicar a origem do universo e seu funcionamento.
21E as implicações disso repercutiram em Anaximandro (611 a 547 a.C.), que, por sua vez, não repetiu as ideias de Tales, mas disse algo diferente, ou seja, o princípio almejado era o infinito ou ilimitado, “nem água nem nenhum outro elemento, mas uma substância diferente de todas, que é infinita e da qual surgiram todos os céus e os mundos dentro deles.” (CAMPBELL, 2004, p. 154).
- 4 É atestado por Teofrasto que Anaximandro escreveu um livro dedicado à Natureza, inclusive com citaç (...)
- 5 Esta obra “parece haber llegado a las manos del cronólogo Apolodoro, y contamos con datos para cre (...)
22Anaximandro foi o primeiro entre os gregos a escrever uma série de tratados4 com o título “Da Natureza”5 e a introduzir nos fenômenos naturais o conceito de “lei” (GEYMONAT, 1998, p. 19), realizando uma descrição da ordem cósmica, “incluido el firmamento, y también de la formación del mismo.” (LAN y JULIÁ, 1986, p. 113). Este tratado se perdeu, contudo restou um fragmento, citado por Simplício, que “Todas as coisas têm origem uma de outra e acabam uma na outra, segundo a necessidade. Elas fazem justiça uma à outra, e se recompensam pela injustiça, em conformidade com a orden do tempo.” (Apud ROVELLI, 2013, p. 43) e a “transformação das coisas umas em outras é regulada pela “necessidade”. Ela determina como os fenômenos se desenvolvem no tempo” (ROVELLI, 2013, p. 46).
23Para Anaximandro, o mundo teria se originado de uma matéria de extensão infinita, em que a Terra teria um corpo celeste, cuja forma é cilíndrica e contém duas faces, sendo uma constituída pelo terreno debaixo de nós, e a outra é oposta a essa, estando em equilíbrio no centro do universo, “por primera vez osó mostrar sobre una tabla una imagen de la tierra habitada; esa tabla, en realidad, era un disco de bronce en el grabó los contornos de los mares, la tierra y los ríos, todo ello rodeado por el océano” (KRANZ, 1962, p. 31-32).
24Anaximandro foi o primeiro a criar um mapa geográfico do mundo até então conhecido pelos gregos Ao traçar um mapa circular, em que as regiões conhecidas do mundo formavam seções iguais. “Provavelmente, o seu conhecimento empírico baseava-se, em parte, nos relatos dos mareantes, que em Mileto, como centro comercial e cidade fundadora de colônias, seriam não só acessíveis como variados”. (KIRK, HAVEN & SCHOFIELD, 1994, p. 104).
25Assim, percorremos uma longa distância da ordem mítica anteriormente personificada, pois, desenhou a forma interna do universo e sua estruturação em distintos céus, no qual se atribui a Anaxímenes (585 a 528 a.C.) algum avanço, e depois dele a Hecateu de Mileto (550 a 476 a.C.), que traçou com maior precisão a terra à certa distância da lua e do sol (LAN & JULIÁ, 1986, p. 56-57).
26Mas, no entanto, o valor mais acentuado de Hecateu está em que concedia atenção especial aos fatos de seu tempo e ao caráter dos países com os quais a Grécia começara a tomar contato. “Grande viajante, foi autor de Viagem ao redor da Terra, que compreende o Mediterrâneo e a parte da Ásia Meridional até a Índia” (AZEVEDO In HERÓDOTO, 2001, p. 37). Associado ao fato de ter desenhado um mapa do mundo conhecido à época, e que as notícias deste mapa se remontam ao bibliotecário alexandrino Eratóstenes, quem, segundo Estrabão, ao pretender que a geografia seja um estudo que merece ser considerado filosófico, diz, depois de conceder o primeiro posto a Homero:
Los que le siguieron fueron hombres muy notables y duchos en filosofia, de los cuales Eratóstenes dice que los primeros, después de Homero, fueron dos, Anaximandro, discípulo y conciudadano de Tales, y Hecateo de Mileto. Anaximandro fue el primero en publicar un cuadro geográfico [mapa de la tierra], mientras que Hecateo nos legó un tratado que el resto de sus escritos testimonia como autentico. (Apud GUTHRIE, 1984, p. 81).
27Contudo, conforme comentário irônico de Heródoto, diz-nos: “Sorrio ao ver que, até agora, muitos foram os que desenharam circuitos da terra, sem que nenhum deles tenha dado do assunto uma explicação razoável: representam eles Okeanos a correr em redor da terra, que é desenhada como que a compasso, e fazem a Ásia igual à Europa.” (Apud KIRK, HAVEN & SCHOFIELD, 1994, p. 104).
28Se Tales defendia que a água é a origem de todas as coisas, e tinha imaginado um imenso oceano, do qual tudo nasce, e sobre o qual a própria Terra flutua, Anaximandro, por sua vez, ao retirar o oceano postulava que a Terra flutua no espaço, sem se apoiar em nada, bem como que debaixo da Terra existe o mesmo céu que vemos acima de nós, portanto, estas constatações proferidas no modelo cosmológico de Anaximandro caracterizam “o mérito pleno da primeira revolução cosmológica” (ROVELLI, 2013, p. 60), pois Anaximandro constrói uma nova configuração do universo, ao produzir a imagem do mundo como uma esfera, circundada pelo céu. No entanto, mesmo com a suposta revolução cosmológica de Anaximandro, a Terra continua a ter um formato de disco, como o era também para Tales. Além da referida modificação fundamental na cosmologia grega Rovelli (2013, p. 68).
29Segundo Anaximandro a terra estaria suspensa no espaço, suportada por nada, mantendo-se num lugar central porque é equidistante de tudo e teria uma forma cilíndrica (GEYMONAT, 1998, p. 20), e o “sol está situado acima de tudo, em segundo lugar está a lua; e mais abaixo as estrelas e os planetas” (BORNHEIM, 2008, p. 26).
30Anaximandro rompeu com a proposta de explicação da gênese do mundo teogonizada por Hesíodo, ao propor uma proposta metodológica que sustenta que acima da Terra haveria camadas esféricas concêntricas, com a mais distante correspondendo ao sol, e a mais próxima, às estrelas. Diversos “céus” de forma esférica circundariam a Terra, envolvendo a atmosfera e possuindo uma natureza incandescente como a do fogo. Foi ele quem utilizou pela primeira vez o conceito de arquê, para significar uma determinada natureza infinita, muito diversa da qual se teriam gerado os céus e os mundos neles existentes. Também diz que “El primer principio de las cosas que existen es el ápeiron (lo indeterminado y sin límites), una naturaleza distinta e infinita, a partir de la cual se generan los cielos y los mundos en éstos.” (KRANZ, 1962, p. 32).
31Segundo Anaximandro o conceito de ápeiron surgiu como uma natureza infinita, de onde o infinito é o princípio e a substância dos seres, sendo que “... o ilimitado abraça todos os cosmos.” (BORNHEIM, 2008, p. 25). O ápeiron foi considerado como uma massa enorme que rodeia a totalidade do nosso mundo (Cornford, apud GUTHRIE, 1984, p. 91), uma vez que é do ilimitado que surgem vários mundos, estabelecendo a multiplicidade “... a gênese das coisas a partir do ilimitado é explicada através da separação dos contrários, em consequência do movimento eterno; ciclicamente, o que está separado volta a integrar-se à unidade primordial, restabelecendo-se a justiça.” (BORNHEIM, 2008, p. 24).
- 6 É nisto que consiste toda a informação que temos acerca das conjecturas de Anaximandro sobre as ori (...)
32Na concepção de Anaximandro, a massa originária estava em incessante movimento, sendo que, posteriormente, as qualidades opostas implícitas nessa massa se separaram, de onde se originou e se organizou o mundo. Paulatinamente, o elemento frio e úmido se condensou em uma massa úmida de terra, no centro, rodeada de nuvens ou de vapor. O elemento quente e seco tomou a forma de uma esfera de chamas que rodeava todo o conjunto, o qual, ao girar, se dividiu em anéis de fogo, rodeados, como a esfera, de um nevoeiro espesso. Assim se explica a formação do sol, da lua e das estrelas, que pareciam anéis de fogo que rodeavam a terra. Nesta esfera, pela ação do fogo, secaram as partes da terra e se separaram da água que as rodeava. Durante este processo, a vida apareceu pela primeira vez no limo,6 pois a vida se originou na umidade submetida ao calor. Assim, os primeiros animais tiveram forma de peixes, de onde procederam todos os animais terrestres, inclusive o homem. (GUTHRIE, 1953, p. 33). É remetida a Anaximandro “a primeira tentativa, de que temos conhecimento, para explicar racionalmente a origem do homem.” (KIRK, HAVEN & SCHOFIELD, 1994, p. 142).
33Quanto aos seres vivos, Anaximandro defendia que os mesmos seriam provenientes do barro, surgindo de um ser pisciforme, conforme atestado por Campbell ao referenciar que “... a vida emergiu do elemento úmido quando este foi evaporado pelo fogo, e o homem, no princípio, era como um peixe.” (CAMPBELL, 2004, p. 154). Anaximandro constrói essa observação ao apoiar sua teoria na dessecação gradual da terra com a presença de conchas fossilizadas em lugares distantes do mar. Segundo Aécio: “Anaximandro dice que el mar es un resto de la humedad originaria, cuya mayor parte se había secado por influjo del fuego.” (GUTHRIE, 1984, p. 97).
34Mas o fator ontológico crucial da filosofia de Anaximandro é que “o ápeiron pode ser interpretado como infinitude espacial, como indeterminação qualitativa, ou se envolve os dois aspectos. “Seu ápeiron no es espacio vacío sino cuerpo y, más todavia, un cuerpo que es vivo y divino” (GUTHRIE, 1984, p. 118). Para Anaximandro,
el primer estado de la matéria como una masa indiferenciada de enorme extensión, en la que los elementos antagônicos o sus propiedades aún no estaban diferenciados, aunque los contenía en sí de un modo latente o potencial, en completa fusión. La llamaba el apeiron, palabra que significa “sin limites”, y que en el griego posterior tuvo dos sentidos: a) no limitado exteriormente, es decir, espacialmente infinito; y b) sin limites internos, es decir, sin partes o elementos componentes separados. Es poco probable que Anaximandro hubiera liegado a la noción de la pura infinitud espacial, y aunque indudablemente concebia aquella primitiva matriz dotada de una vasta e indeterminada extensión, la idea predominante en su pensamiento era probablemente la ausência de diferenciaciones internas, ya que éste es el concepto que resolveria el problema que, evidentemente, se había planteado, o sea el del estado originário de los opuestos. (GUTHRIE, 1953, p. 32-33).
35As mudanças de estações, para Anaximandro, são acarretadas pela usurpação de um par de contrários, o frio e o úmido, a outro par, o quente e o seco, que, por sua vez, usurpa o primeiro. Esse processo era descrito em termos emprestados da sociedade humana, pois, nos tempos remotos, a regularidade e a constância da vida humana eram percebidas com maior clareza do que a uniformidade da natureza. O homem vivia num círculo encantado de leis e costumes sociais, mas o mundo ao seu redor parecia desprovido de leis. É por isso que a usurpação de um contrário a outro era descrita como uma injustiça, e a devida observância de um equilíbrio entre eles como justiça. A palavra posterior, kósmos (ordem) também se baseia nessa ideia. (BURNET, 2006, p. 26). Neste seguinte fragmento, Anaxágoras usa os mesmos epítetos, “sempre-novo e imortal”, aplicados por Anaximandro à substância primordial, e que os associe com o termo phýsis.
- 7 Os ventos produzem-se, quando os vapores mais sutis do ar se separam e quando são postos em movimen (...)
36Para Burnet, no século V a.C., o nome phýsis foi dado àquele algo permanente de que era feito o mundo. Naturalmente, esses primeiros cosmólogos, que estavam à procura de um algo “imortal e sempre-novo”, expressariam essa ideia dizendo que havia uma phýsis de todas as coisas, ou seja, os jônios buscavam o que havia de permanente no fluxo das coisas. (BURNET, 2006, p. 27-28). Deste modo, o pensamento milesiano adquiria consistência, pois, além de se identificar qual era a physis, mostrava-se um processo capaz de tornar compreensível a passagem da unidade primordial à multiplicidade das coisas que constituem o universo. (SOUZA, 1973). Portanto, physis é o termo chave na transição do mundo de Homero e Hesíodo para o mundo dos physiológoi, o mundo que era cosmo. (VLASTOS, 1987, p. 21). Diante desse dinamismo cósmico que tem por ontologia o àpeiron, Aristóteles, na obra Meteorológica, declara que a ação do fogo celeste ao secar a água originou os ventos7 e os giros do sol e a lua.
37A explicação de Anaximandro sobre os terremotos era diametralmente diferente da proposição de Tales. Enquanto Tales afirmava que os terremotos eran produzidos por movimentos do mar sobre a qual flutuava a Terra, Anaximandro por sua vez defendia que o que
sustenta que a terra, que se tornou árida por um excesso de secura decorrente dos grandes calores, ou depois da umidade devida a abundantes chuvas, se esfacela em profundos precipícios. Neles se perde e produz violentamente uma grande quantidade de ar vinda do alto. E a terra é sacudida pela violência do ar que aí circula. E por essa razão que esses fenômenos assustadores se produzem nos períodos de forte calor ou após chuvas muito abundantes. (ROVELLI, 2013, p. 49-50).
38Denota-se que antes dos milesianos, os fenômenos naturais como a chuva, o trovão, os terremotos e o vento eram explicados unicamente em termos míticos e religiosos, como manifestações de forças incompreensíveis, atribuídas a seres divinos, a chuva vinha de Zeus, o vento de Éolo ou de outros deuses, como Bóreas, as ondas do mar eram provocadas por Poseidon, ou seja, os fenômenos não eram ligados a causas naturais.
39A ideia dos círculos concêntricos a partir da Terra, bem como a sua intepretação de que a Terra não precisa de suporte, foram as contribuições mais notáveis da teoria cosmológica de Anaximandro, na qual houve uma explicação natural sobre a origem do mundo e da vida (GUTHRIE, 1953, p. 34), distanciando-se da ordem mítica anteriormente postulada.
Realiza, enfim, a primeira grande revolução conceitual da história da ciência: pela primeira vez o mapa do mundo é redesenhado em profundidade. A universalidade da queda dos corpos é colocada em questão, no contexto de uma nova imagem do mundo em que o espaço não está estruturado do alto ao baixo absolutos, e no qual a terra flutua no espaço. E a descoberta da imagem do mundo que caracterizará o Ocidente por séculos; é o nascimento da cosmologia e a primeira grande revolução científica. (ROVELLI, 2013, p. 168).
40Conforme apontado, a escola eleática desenvolveu-se na Itália Meridional, e Xenófanes parece ter sido o precursor do movimento, que se afirma igualmente em três momentos importantes: o de Xenófanes, o de Parmênides e o de Zenão. Para Klimke, em sua obra História de la filosofia, ao interpretar o processo da filosofia eleática
“Xenófanes ensina um monismo bastante imperfeito, sobretudo teológico; Parmênides, de uma forma rígida, desenvolve-o até a um racionalismo metafísico; depois Zenão esforça-se em defender dialeticamente a doutrina de Parmênides e, enfim, Melisso aplica-a à ordem física”. (GOMES, 1994, p. 54-55).
41Mas, no entanto, foi com Parmênides (530 a 460 a.C.), que ao escrever um poema Sobre a Natureza, consolida a escola de pensamento de Eleia, tendo recebido grande influência do pitagorismo. Ele extrai das cosmogonias filosóficas a sua lógica, centrada na noção de unidade, incompatível com a multiplicidade e o movimento percebidos. “O que é” tem de ser único, já que, além disso só poderia existir “o que não é”, o que seria absurdo, pois significaria atribuir existência ao não-ser.(SOUZA, 1973). O ser para Parmênides “não sendo gerado é também imperecível; possui, com efeito, uma estrutura inteira, inabalável e sem meta; jamais foi nem será, pois é, no instante presente, todo inteiro, uno, contínuo” (BORNHEIM, 2008, p. 55). Portanto, sua tese central é a contraposição entre ser e não ser, cujo ser é uno, invariável, imóvel, eterno, ou seja, “Parmênides concibe al universo uno, eterno, inengendrado y esférico. (LAN, 1978, p. 280). Para Parmênides:
O ar, diz ele, convertido em vapor devido à compressão mais forte da Terra, desta está separado; o Sol é uma exalação de fogo, e o mesmo se passa com o círculo da Via Láctea. A Lua é composta simultaneamente de ar e fogo. O aither, que tudo circunda, é a parte mais exterior; a seguir vem o anel de fogo, a que chamamos céu; e, por fim, vem a região da Terra. (KIRK, HAVEN & SCHOFIELD, 1994, p. 269).
42No entanto, para ele a Terra está “enraizada na água.” (BORNHEIM, 2008, p. 57), e segundo Diógenes Laerte,
Parmênides foi o primeiro a demonstrar a esfericidade da Terra e sua posição no centro do mundo. Segundo ele, existem dois elementos: o fogo e a terra. O primeiro elemento é criador, o segundo é matéria. Os homens nasceram da terra. Trazem em si o calor e o frio, que entram na composição de todas as coisas. O espírito e a alma são para ele uma única e a mesma coisa. (Apud BORNHEIM, 2008, p. 58).
43Apesar da valorização atribuída a Parmênides, a sua filosofia já se encontrava projetada nos fundamentos da escola xenofônica, todavia, Parmênides liga-se também ao pensamento de Anaximandro, de quem aceitou a teoria do princípio único, sendo a terra equidistante do centro, bem como algo do misticismo da tradição pitagórica, que lhe teria sido transmitida por Amínias. Ao se referir à estrutura de sua cosmologia, Parmênides propõe que os opostos surgem, portanto, do eterno uno, e no que interessa à pesquisa, os contrários “fogo”, como claridade, e “terra”, como obscura, remetem-se a uma crença arcaica, ou seja, “a la idea de la madre Tierra y del padre Cielo, según la cual la madre sumnistra sólo el material y un lugar en el que la nueva vida puede desarrolarse, y el padre es el agente que la anima.” (GUTHRIE, 1986, p. 72), assim mesclando os elementos opostos, brilhante e escuro, produz-se todos os fenômenos.
- 8 Tanto o termo ón e o seu plural ónta foram desde Parmênides incorporadas ao léxico filosófico, rela (...)
44Parmênides faz uma nítida distinção entre a física e a metafísica, preconizando a teoria do conhecimento pela análise das partes, dos fenômenos e das aparências, e em absoluto eleva a contemplação da unidade do Ser, degladiando contra as teses anteriores sobre a relação do devir do Não-ser e do Ser, negando de forma radical a possibilidade de o Ser devir do Não-ser. O cosmos é o próprio ser incriado, perfeito, imóvel, eterno, indivisível, idêntico a si mesmo, uno e pleno. O Ser é Ser, e não pode deixar de ser. Parmênides postula um racionalismo do ser, portanto, um racionalismo ontológico8, uma vez que, definidas as noções de racionalismo metafísico e de racionalismo ontológico, foram bem demarcadas as fronteiras entre ontologia e metafísica.(GOMES, 1994, p. 57-59). Deste modo, o eleatismo é que teria inaugurado explicitamente tanto a problemática lógica quanto a ontológica, ou seja, as especulações sobre o conhecer e sobre o ser. Para ele, conforme um de seus fragmentos, “pensar e ser é o mesmo” (BORNHEIM, 2008, p. 53).
45Parmênides considera que o pensamento humano pode atingir o conhecimento genuíno, visto que a percepção do domínio do “ser” corresponde às coisas que são percebidas pela mente, contudo, o que é percebido pelas sensações é enganoso e pertence ao domínio do não-ser, pensamento este que viera a influenciar a “teoria das formas” de Platão.
46Desde Tales, dependia-se não apenas da descoberta de um processo racional de geração das coisas, como também da modificação de certas noções fundamentais, como a de “intervalo” entre as coisas e entre as unidades que as comporiam. Deste modo, Zenão de Eleia (490 a 430 a.C.) oferece valiosa contribuição à noção de “intervalo”, que só poderia ter o tamanho de uma unidade, cujo número “crescia” e cada coisa tendia a se tornar infinita. Essa aporia que Zenão formula ao pitagorismo sugere a coerência que se buscava para as cosmogonias, pois, estava a exigir a reformulação da noção de espaço, já que Zenão nega o movimento ao afirmar que “O móvel não se move nem no espaço no qual se encontra, nem naquele no qual não se encontra” (BORNHEIM, 2008, p. 61). Para ser, o Ser carece de extensão, mas as partes da extensão estão no Ser, como infinitamente grandes, e infinitamente pequenas, de modo que não tem, nem grandeza, nem pequeneza, a ponto de serem indivisíveis. Uno que é o Ser não cresce, nem diminui, permanece Ser – é, foi, será, a todo o instante sendo idêntico a si mesmo. (GOMES, 1994, p. 60). Aristóteles afirma na obra Sofista, que Zenão foi o primeiro a descobrir a dialética (KIRK, HAVEN & SCHOFIELD, 1994, p. 290) e a questão do movimento exercera profundo debate não só nas teorias aristotélicas, mas também a todo o Helenismo.
47Outro proeminente nome dentre os pitagóricos foi o de Arquitas (428 a 347 a. C.), que se enveredou por uma astronomia mais matematizante, dando conteúdos menos metafísicos às suas teorias, inclusive ao contestar a ideia de antiterra e a extensão finita do cosmos filolaico, sendo que Arquitas demonstrou especial interesse pela cosmologia e “velocidade das estrelas, seu despontar e seu crepúsculo, sobre Geometria, Aritmética, sobre a doutrina das esferas e não menos sobre a música” (BORHEIM, 2008, p. 89), porém pouco se sabe com certeza sobre sua especulação física.
48Mas, se sobre Arquitas pouco se sabe, diferentemente ocorreu com o seu aluno, Eudoxo de Cnido (408 a 355 a.C.), que na mocidade fora a Atenas, de onde seguiu os estudos com os sofistas e com Platão, na Academia. Depois de passar pelo Egito, ao qual estudou astronomia, foi também a Magna Grécia, onde conheceu Arquitas e aperfeiçoou seus conhecimentos de matemática e astronomia. Voltou, posteriormente, a Grécia e fundou uma escola em Cízico, nos arredores da Propôntida, em 378 a.C., tendo voltado em 368 a.C. a Atenas.
49Eudoxo foi o primeiro a propor a duração do ano em 365 dias e 1/4 e a explicar os movimentos observados do Sol, da Lua e dos planetas através de um sistema de 27 esferas concêntricas que se moviam a diferentes velocidades em torno da Terra, que estava fixa no centro. Após construir seu próprio observatório nas margens do rio Nilo, Eudoxo traçou um mapa celeste, estudou diversos calendários que possibilitaram o registro das mudanças de estações, bem como realizou estudos meteorológicos, e assim pôde fundamentar a explicação das frequentes enchentes do Nilo.
50Infelizmente, só nos chegaram os títulos de suas obras e alguns informes de outros autores, inclusive o conteúdo do livro V dos Elementos de Euclides, que contém um tratado análogo ao de Eudoxo, bem como recebeu, de Eratóstenes, a alcunha de “divino”. Ele teve o grande mérito de haver propiciado um caráter mais científico à astronomia, fazendo dela, conforme Paul Tannery, um “sistema matemático del mundo” (Apud GEYMONAT, 1998, p. 81), sendo, portanto, uma importante referência na história da astronomia antiga, principalmente ao proporcionar um princípio de caráter geométrico e ao estabelecer que o curso das estrelas, do Sol e da Lua, nos sugere a ideia de um movimento circular uniforme, herdada tanto dos pitagóricos quanto de Platão. Não obstante, Eudoxo, ao invés de falar de anéis celestes, como seus predecessores, imaginou os diferentes astros como fixos, sobre superfícies esféricas ideais, transparentes, que giram uniformemente sobre dois polos. O Sol a Lua, e cada um dos planetas devem ter sua própria esfera independente das outras; uma última esfera deve ser a das estrelas fixas. Todas estas esferas devem resultar concêntricas entre elas e com a Terra interpretada como centro do universo. (GEYMONAT, 1998, p. 81-82).
51Provavelmente, de conhecimentos oriundos dos pitagóricos, dentre estes Arquitas e Filolau, bem como de Platão, Eudoxo desenvolveu o mais antigo modelo astronômico geométrico quantitativo, através da combinação de esferas que giravam uniformemente, interconectadas uma nas outras, e assim, procurava explicar as aparentes irregularidades dos movimentos dos planetas. Ou seja, o sistema eudoxiano consiste de 27 esferas de raios iguais em rotação, com eixos passando pelo centro da Terra. Cada eixo de rotação, por sua vez, também rotacionava por meio de pontos fixos em outra esfera em rotação, gerando assim uma composição de movimentos.
52No entanto, este modelo que serviu, à época, para explicar o movimento das estrelas fixas, não conseguiu explicar o movimento do Sol e da Lua, e muito menos o dos planetas, visto que era nítido que o movimento destes astros não se encaixava em seu modelo astronômico. Para resolver esta dificuldade, Eudoxo propôs que cada um desses astros possuía não só uma esfera, senão uma ordem de várias esferas, uma dentro da outra, todas concêntricas e girando com movimento uniforme, mas com um período diferente e ao redor dos eixos de rotação diferentes, cada um dos quais está centrado na esfera precedente. Eudoxo se convenceu de que com este modelo, ele podia dar uma explicação satisfatória do movimento aparente do Sol e da Lua, supondo que cada um desses astros está provido de uma ordem de três esferas; para os planetas, dada a maior complexidade de seu movimento aparente, supõe que cada um possui uma ordem de quatro esferas. Desta maneira, teriam no total vinte e seis esferas, mais a das estrelas fixas, totalizando vinte e sete. (GEYMONAT, 1998, p. 81-82).
53O sistema aludido por Eudoxo dava resultados satisfatórios para os planetas Saturno, Júpiter e Mercúrio, porém insatisfatórios para Vênus e, ainda menos, para Marte. Os continuadores de Eudoxo encontraram-se frente à tarefa de melhorar as explicações de seu mestre, porém, sem abandonar o modelo geral que ele havia traçado. Foi assim que Calipo e Polemarco aumentaram o número das esferas de vinte e sete para trinta e três. Deste modo, determinaram com maior exatidão os solstícios e equinócios, bem como a duração das estações. Também Aristóteles aceitará a teoria eudoxiana das esferas, mas aumentará seu número de trinta e três para cinquenta e cinco, e sobretudo as materializará, transformando-as de puros modelos matemáticos em realidades físicas. (GEYMONAT, 1998, p. 82).
54O modelo eudoxiano teve a peculiaridade de desenvolver a corrente filosófica advinda dos pitagóricos ao propor a geometrização do cosmos, formulando um sistema mais bem elaborado do que recebeu de seus antecessores, tendo, segundo consta, influenciado Aristóteles, que obteve de Eudoxo as linhas principais de sua astronomia.
55Melisso de Samos (470 a 430 a.C.) postulava um universo ilimitado, imóvel, idêntico a si mesmo, uno e pleno, tese encontrada na sua obra Da natureza ou sobre o que existe, pois é impossível, para ele, que algo surja do nada. Segundo Aécio, “O movimento não existe, é uma ilusão. O cosmos é infinito. A divindade é unidade, a mônada eterna e infinita” (Apud GOMES, 1994, p. 180). “Também não há nada vazio, pois o vazio nada é, e o que nada é, não pode ser. Se existisse o vazio, mover-se-ia para o vazio. Mas como não há o vazio, não tem lugar para onde mover-se.” (BORNHEIM, 2008, p. 65). Melisso chega à conclusão de que por não ter princípio nem fim, o que é ilimitado em extensão espacial é eterno, assim:
Melisso assume que, se uma coisa tivesse de nascer, haveria uma parte dela a ser a primeira no tempo e que é (por isso) a pequena porção dela a ser a primeira na posição espacial (e.g. o seu bordo frontal); e uma outra parte que vem a ser a última no tempo e que é a porção dela na última posição (e.g. o seu bordo posterior). A sua argumentação consiste, portanto, em que, visto o que é não poder começar ou acabar de existir, não pode ter tais primeiras e últimas partes – e, consequentemente, é ilimitado em extensão. (KIRK, HAVEN & SCHOFIELD, 1994, p. 415).
56Assim, para Melisso, o cosmos é infinito, baseando a tese numa perspectiva espaço-temporal, pois quanto ao tempo, o Ser é infinito, porque, não tendo havido princípio, não pode haver fim; e quanto ao espaço, o Ser é infinito, porque, sendo sempre Ser em toda a parte, a sua extensão deriva necessariamente infinita. O Ser é a mônada universal, é a razão cósmica, que a si mesmo se constitui, porque, mesmo havendo pluralidade de entes, todos seriam o mesmo Ser. (GOMES, 1994, p. 62-63). A experimentação de Melisso de Samos contribuíra para o posterior desenvolvimento do atomismo.
57Os atomistas Leucipo (séc. V a.C.) e Demócrito (460 a 370 a.C.) de Abdera, na Trácia, teriam concluído que se o movimento existe, o não-ser também existe. Afirma-se pela primeira vez, a existência do vazio, em que se moveriam os átomos, que eram fisicamente ou espacialmente indivisíveis, mas matematicamente divisíveis. O atomismo era constituído pelos átomos e pelo vazio, pois “o vácuo é infinito em extensão; os átomos, infinitos em número. Na essência, estes são semelhantes, porém diferem em tamanho, forma, disposição e situação.” (FARRINGTON, 1961, p. 51). Assim, a movimentação dos átomos no vazio faria com que os maiores ficassem mais expostos aos impactos dos demais, que, ao serem dotados de diversas formas, poderiam se engatar, produzindo agrupamentos, ocasionando o aparecimento de turbilhões, nos quais os corpos maiores tenderiam para o centro. Seria esse o começo do universo. (SOUZA, 1973, p. 22).
58Deste modo, o atomismo é um sistema de explicação do Ser enquanto Ser, da sua natureza e do seu devir, e isto partindo do princípio de que o Ser, se encontra em devir, e lança raízes na perspectiva homeomérica de Anaxágoras e de outros jônicos anteriores. O atomismo é, sobretudo, “uma física, o que bem se patenteia no ametafisismo de todo o atomismo, e na reformulação em termos científicos.” (GOMES, 1994, p. 64).
59Leucipo afirmava um atomismo mecânico, que significa uma teoria de infinitude e de transformabilidade quânticas. A sua totalidade atomística é um todo eterno quanto ao tempo, e infinito quanto ao espaço, sendo ela mesma a origem de todas as coisas. O mundo devém de um turbilhão de átomos, que se cindiu do todo, projetados em todas as direções. Assim, Leucipo sustenta que o todo é infinito, em que parte dele está cheia e parte vazia.
Daqui surgem mundos inumeráveis, que se dissolvem de novo nestes elementos. Os mundos originam-se da seguinte maneira: muitos corpos de todas as espécies de formas movem-se “por abscisão a partir do infinito” para o interior de um grande vazio; aí se juntam e produzem um redemoinho único, no qual, colidindo uns com os outros e revolvendo-se de todas as maneiras, começam a separar-se, o semelhante para o semelhante. Mas quando o seu grande número os impede de continuar a rodar em equilíbrio, os que são leves dirigem-se para o vazio circundante como que joeirados, ao passo que os restantes “permanecem juntos” e, emaranhando-se uns nos outros, unem os seus movimentos e fazem uma primeira estrutura esférica. Esta estrutura mantém-se à parte como uma “membrana” que contém em si todas as espécies de corpos; e à medida que estes rodopiam, devido à resistência do centro, a membrana circundante torna-se fina, enquanto os átomos contíguos continuam a correr juntos, em virtude do seu contacto com o redemoinho. Assim, a terra se gerou, permanecendo juntos, no mesmo lugar, os átomos, que tinham sido levados para o centro. Uma vez mais, a membrana, que os contém, aumenta, devido à atracção dos corpos do exterior; à medida que redopia no remoinho recebe no seu interior tudo aquilo em que toca. Alguns destes corpos, que se emaranham, formam uma estrutura, que a princípio é húmida e lamacenta, mas à medida que revolvem com o redemoinho do todo, secam e, em seguida, incendeiam-se para formar a substância dos corpos celestes. (KIRK, HAVEN & SCHOFIELD, 1994, p. 441).
60Portanto, para Leucipo os átomos pequenos são expelidos para o exterior ao passo que os maiores direcionam-se para o centro, criando a Terra, no entanto, Leucipo conservou a imagem de uma Terra lisa e redonda, mas para Demócrito, SEU DISCÍPULO, a Terra era plana e “inclinada para baixo, em direção ao sul” (KIRK, HAVEN & SCHOFIELD, 1994, p. 443), e “oblonga, de una longitud una vez media y mayor que sua anchura” (GUTHRIE, 1986, vol. II, p. 429), pois a inclinação da terra “explica tanto a inclinação do zodíaco como as diferenças de clima” (KIRK, HAVEN & SCHOFIELD, 1994, p. 444).
61Demócrito também postula que o céu e os astros têm a Necessidade por causa, pois dela provém o turbilhão e o movimento, que teriam cindido os elementos, constituindo a harmonia que vemos no cosmos, e segundo Hipólito, Demócrito dizia
que existen innumerables mundos, de tamanos diferentes. En algunos de ellos no hay ni sol ni luna, en otros el sol y la luna son más grandes que los de nuestro mundo y otros tienen más de un sol y más de una luna. Las distancias entre los mundos son irregulares, más en una dirección y menos en otra; y mientras unos florecen, otros decaen. Aqui se generan y allá, al colisionar cón otros, perecen y se destruyen. Varios mundos carecen de vida vegetal y animal, así como de todo tipo de agua. (Apud GUTHRIE, 1986, vol. II, p. 412-413).
62Conforme Aristóteles, “o céu e os mais divinos dos seres visíveis se geraram ao acaso, tendo uma origem diferente da dos animais e vegetais.” (Apud GOMES, 1994, p. 190). O próprio homem constitui um pequeno universo atômico, sendo que
o seu corpo é a forma da sua alma, que, mortal, morre com o corpo, quando os átomos constituintes entram de novo em turbilhão e se separam, ou desagregam, continuando envolvidos noutros turbilhões, de onde outros seres humanos se hão de gerar, uma vez que a animação atômica é diferenciada de ser para ser. (GOMES, 1994, p. 66).
63Também, conforme o testemunho advindo de Aristóteles, ao se referir aos sismos e ao movimento da terra, Demócrito afirma que,
la tierra está llena de agua y que, al recibir adicionalmente mucha agua de lluvia, es sacudida por ésta: siendo una gran cantidad, y no pudiendo admitiria las cavidades de la tierra, causa un seísmo al buscarse salida a la fuerza. Igualmente afirma que al arrastrar agua la tierra seca desde los lugares más llenos hasta los vacíos, la que cae al trasladarse la agita. (ARISTÓTELES, 1996, p. 97).
- 9 Aristóteles, em sua obra Meteorológicas, afirma que para Anaxímenes: “Cuando la tierra está en proc (...)
- 10 Demócrito afirmava também, como Empédocles, que o mar continha uma certa quantidade de água doce, d (...)
64Tal como nos transmite Aristóteles, a explicação democrítea dos terremotos parece se basear em Anaxímenes, pois são causados por chuvas copiosas ou grandes secas. A Terra, como também pensava Anaxágoras, contém cavidades com água. Quando a chuva as enche, a água é forçada a refluir, e origina assim o terremoto. E, inversamente, quando a terra fica seca e a água é impulsionada desde as partes mais cheias até as mais vazias, a á gua que se precipita, ao mudar de lugar, a move originando um terremoto.9 Demócrito também manteve a teoria de Anaximandro de que o mar está diminuindo e que acabará por secar-se.10 (GUTHRIE, 1986, vol. II, p. 431-432).
65E no que se refere às inundações do Nilo, Demócrito diz que quando a neve das regiões nórdicas se funde e se degelam no verão, formam-se densas nuvens devido ao vapor produzido. Mas quando estas são empurradas até o Sul, como na África, pelos ventos etésios (ventos nórdicos que sopram no verão no Mediterrâneo) até que se chocam com as montanhas excepcionalmente elevadas da Etiópia, de onde se rompem, produzem violentas chuvas nas fontes do Nilo. Esta solução esclareceu a dificuldade de ter que crer que pudera cair bastante neve, inclusive nas montanhas, em um clima tórrido como o da Etiópia, teoria que foi confirmada por Aristóteles. (GUTHRIE, 1986, vol. II, p. 432).
66A maioria das teorias sobre os ventos explica a sua formação devido ao efeito do calor sobre a umidade, ou do aumento ou diminuição da temperatura do ar que origina a condensação e a rarefação, mas Demócrito ofereceu uma explicação baseada no movimento contínuo dos átomos, assim quando há poucos átomos num espaço amplo, o aire é tranquilo, mas quando são muitos os átomos que ocupam um espaço pequeno, chocam, se rechaçam ou saltam, golpeando-se entre si e se comprimem, e este transtorno origina o vento, quando o movimento originalmente desordenado toma uma direção predominante, segundo nos informa Sêneca. (Apud GUTHRIE, 1986, vol. II, p. 432).
- 11 Segundo Aécio, Anaxágoras se sirvió del concurso del fuego, pero de una forma diferente, y para Ana (...)
67Também é interessante a exposição da teoria de Leucipo sobre o trovão, que para ele era a extinção violenta do fogo encerrado nas nuvens muito densas, assemelhando-se à junção das teorias de Anaximandro e de Anaxágoras,11 no entanto, Demócrito diferenciou-se deste, segundo nos transmite Aécio, ao relatar que “La base general parece ser concepción anaxagórea da precipitação descendente do fogo.” (Apud GUTHRIE, 1986, vol. II, p. 432-433).
- 12 Demócrito aprovechó también la oportunidad para resaltar la moral atea que configuraba en gran medi (...)
El trueno se produce por una combinación anômala de átomos que obiiga a la nube que la contiene a desplazarse en dirección descendente. El relâmpago, por su parte, es una colisión de nubes, debido a la cual las partículas generadoras de fuego se congregan, de manera que se rozan mutuamente a través de muchos intersticios vacíos, en un mismo y único lugar y se infiltran a través suyo. El rayo tiene lugar cuando se fuerza el movimiento descendente en una nube mediante las partículas generadoras de fuego que son más puras, más finas (o sutiles), más regulares y, como él mismo dice, “agrupadas compactamente”. Las trombas de agua (prestêres) acontecen cuando complejos de fuego con más vacío en su interior están contenidos en espacios con mucho vacío y encerrados en una especie de membrana peculiar que los circunda, y luego, produciendo cuerpos debido a esta mezcla de varios elementos, se precipitan hacia la profundidad12. (Apud GUTHRIE, 1986, vol. II, p. 433).
68Deste modo, os atomistas propõem basicamente modelos explicativos oriundos da tradição jônica no que se refere à cosmologia e aos fenômenos naturais, ainda que Demócrito tenha se esforçado por assegurar que suas explicações propusessem pequenas inovações, tornando-as originais. Leucipo, como também Anaximandro, colocou o sol mais além das estrelas fixas. Demócrito devia a Anaxímenes sua explicação dos terremotos e, passando por Anaxágoras, a crença de que a terra flutuava sobre um colchão de ar. (GUTHRIE, 1986, vol. II, p. 434).
69Se os corpos celestes eram divinos para Pitágoras, Alcmeão e seus homólogos, que eram nuvens incandescentes para Xenófanes, efêmeras e a não grande distância da terra; para Anaxágoras e Demócrito massas de matéria inerte, arrastadas passivamente em círculo pelo turbilhão universal e convertidas em incandescentes pela velocidade de sua rotação, ambos pensamentos defendiam suas crenças com argumentos racionais. Para explicar o porquê os movimentos do sol, da lua e dos planetas eram diferentes dos das estrelas fixas, Demócrito fundamenta-se na ação mecânica do turbilhão. (GUTHRIE, 1986, vol. II, p. 434).
70Digno de nota, inclusive para sustentar filosoficamente a medicina hipocrática, serão alguns pressupostos de Demócrito ao sustentar que a natureza e o ensino são coisas parecidas, onde o ensino altera o ritmo do homem e, ao alterá-lo, cria natureza. Do mesmo modo que o princípio de que as grandes variações climáticas alteram a condensação do sêmen, de onde se desprendem notáveis diferenças no aspecto físico das pessoas. Por sua vez, os escritos etiológicos de Demócrito, o primeiro que dedicara um estudo particular a cada grupo de causas – do céu, do ar e do fogo, bem como das sementes, das plantas e frutos e dos animais. (HIPÓCRATES, 2008, p. 23).
71Diante deste escopo de explicações em relação aos fenômenos naturais, o mito foi duramente impactado pelas teorias de Demócrito, pois o seu sistema mecanicista reduzia as explicações, anteriormente proveniente dos deuses, a um entrechoque de partículas atômicas. Essa tese atomista fora tão importante, que ressurgirá com Epicuro (341 a 270 a.C.) no período helenístico, pois, ao retomar o atomismo democritiano, ele procurava fazer com que os homens se libertassem do temor aos deuses, uma vez que “se tudo é matéria, deuses e alma, o bem supremo está no prazer negativo, na ausência de dor para o corpo e de perturbação para a alma. Deus ou os deuses não agem.” (BRANDÃO, 2015, p. 30-31).
72Hipócrates de Cós (460 a 370 a.C.), nasce e morre nos mesmos anos que Demócrito, e diferentemente dos outros filósofos Pré-socráticos, sua obra sobreviveu ao tempo quase que completamente, devido à sua conservação na Biblioteca de Alexandria. Durante os séculos VI e V a.C. no mundo grego, Magna Grécia e Sicília, costa jônica da Ásia Menor e de Cós provém um saber técnico fundado sobre o conhecimento científico da natureza – physiología, termo cunhado anteriormente por Alcmeón de Crotona (510 a 460 a.C), que, no entanto, será desenvolvido e transmitido por Hipócrates à posteridade.
73Em sua obra Sobre os ares, águas e lugares, Hipócrates sustentava que um médico que se preze deve conhecer as estações do ano, os ventos, as propriedades das águas e a situação da cidade, bem como, não só ao corpo do enfermo devem estar voltados os sentidos do médico, mas também “a todo el contorno cósmico de aquél: tierra, clima, estación, astros.” (ENTRALGO, 1970, p. 243
74Esta medicina meteorológica era caracterizada por uma aproximação com a natureza, mantida por filosofias da natureza como as de Alcmeão, Empédocles e Demócrito, as quais “los elementos naturales constituyen el entorno físico del hombre, ejerciendo sobre él efectos especiales a través de la respiración y, además, mediante la comida y bebida.” (HIPÓCRATES, 2008, p. 18).
75Também, a formação de um povo será evidenciada pelo lugar em que está localizado, pois há toda uma influência, visto que se um povo tem boa cor e vigor “más que en cualquier otro sitio, si no lo impide alguna enfermedad. Tienen la voz clara y son mejores en actitud e inteligencia que los orientados hacia el Norte, del mismo modo que son también mejores los demás seres que nacen en este lugar. (HIPÓCRATES, 2008, p. 47). E até este momento da pesquisa, é a primeira vez que o conceito “lugar” é consolidado como um âmbito receptor de influências diversas, seja de clima, águas, ares, mas que também influencia um determinado povo.
76Não somente vê-se em Hipócrates a influência das águas, ares e lugares a influenciar os habitantes, mas também, ele tem uma compreensão de todo o processo que leva à chuva, e a depender das condições de um lugar, quais são suas características, assim exposto
- 13 Aristóteles, Los animales, recolhe e amplia a teoria aqui exposta sobre a origem da chuva. O estag (...)
Pues bien, mientras el agua13 está esparcida y todavia no se ha concentrado, se mueve por las alturas. Pero, cuando se concentra en algún lugar y se condensa en un solo punto bajo el impulso de los vientos que repentinamente se oponen entre si, entonces revienta por donde casualmente hay más condensación. Pues, como es natural, eso sucede, especialmente, cuando un viento contrario y otras nubes chocan de repente contra las nubes que, reunidas por el viento, se ponen en marcha y avanzan. En ese instante, la primera parte de la nube se condensa allí mismo; la que le sigue llega a continuación, y, de esta forma, se espesa, ennegrece, se condensa en un mismo punto, revienta a causa del peso y se produce la lluvia. (HIPÓCRATES, 2008, p. 55).
- 14 Hipócrates visitou as costas do Mar Negro e viajou muito pelo Oriente, mas desconhecia todo o Ocide (...)
77É de se observar também a afinidade de Sobre águas, ares e lugares com Hecateu e Heródoto, no que se refere à “íntima relación de la disposición geográfica de un territorio y la naturaleza de sus habitantes14. (HIPÓCRATES, 2008, p. 23).
- 15 Conforme Platão (Leis) e Aristóteles (Política). Na citada passagem da Política, o estagirita disti (...)
78Na literatura grega posterior abundam os autores que falam de uma influência notória e causal do clima e do território circundante sobre a população, e que estudam também as diferenças corporais e anímicas dos habitantes segundo as características dos países onde habitam.15 Gomperz (1896, vol. I, p. 250.) chamou Hipócrates de “... fundador da Psicologia étnica” ao considerar o caráter político e climático, oferece a primeira justificação da superioridade dos gregos sobre os bárbaros, ao acentuar que as características como a figura, disposição do organismo e caráter estão intimamente relacionadas com a situação geográfica e com as condições do solo e do clima. Se bem que temos vários exemplos na Odisseia, como os lestrigões, lotófagos e ciclopes, como também os temos nos fragmentos de Hesíodo, que faz alusões a gentes estranhas como os trogloditas, macrocéfalos e pigmeos. (HIPÓCRATES, 2008, p. 19 e 24-25).
79Esta narrativa da diferenciação entre os povos perpassa toda a historiografia grega e desempenha um papel importante em Heródoto, que, para descrever países e povos, alude às excelências e diferenças mais relevantes de lugares e habitantes, ao descrever o clima da Ásia, sua fertilidade e as excelências corporais de seus habitantes se contrapõem a sua falta de coragem, em oposição à valentia dos europeus, que assim o são devido à irregularidade do clima. (HIPÓCRATES, 2008, p. 25). Tema semelhante ao considerado por Hipócrates, ao diferenciar europeus e asiáticos
Afirmo que Asia es muy distinta de Europa en la naturaleza de todos los productos de la tierra y, también, en la de sus hombres. Efectivamente, en Asia todo es más hermoso y mayor; el país está más cultivado y el carácter de sus habitantes es más dulce y sosegado. La causa de eso es la mezcla de las estaciones, porque Asia está situada en medio de los lugares de salida del sol, mirando hacia Oriente y bastante lejos del frio. Crecimiento de las cosechas y aptitud para el cultivo los ofrece en grado sumo, siempre que no haya nada que predomine de forma violenta, sino que el equilíbrio prevalezca en todo.
Ahora bien, en Asia no se dan las mismas condiciones en todos sitios, sino que toda la parte del país situada entre el calor y el frio, ésa es la de mejores frutos y árboles, la más templada y la que goza de las mejores aguas, tanto caídas del cielo, como nacidas de la tierra. En efecto, ni está excesivamente abrasada por el calor ni se reseca a causa de la sequía y la falta de agua, ni sufre la violência del frio, ni resulta húmeda y empapada a consecuencia de las muchas lluvias y la nieve. Naturalmente, las cosechas son abundantes allí, tanto las nacidas de semillas, como las de plantas que oferece la tierra de por sí misma. Los hombres consumen los frutos de estas últimas, convirtiéndolas en cultivadas, en vez de silvestres, y transplantándolas a lugar conveniente.
Los animales que allí crecen son magníficos, como cabe esperar, y, sobre todo, paren mucho y alimentan muy bien a sus crias. Los hombres son robustos, muy hermosos de aspecto, muy altos y muy poco diferentes entre sí en aspecto y estatura. (HIPÓCRATES, 2008, p. 66-68).
80Hipócrates conclui ao afirmar que as diferenças entre asiáticos e europeus, no que se refere à indolência e covardia de seus habitantes, devem-se ao fato de que “los asiáticos sean menos belicosos que los europeos y de carácter más pacífico, las responsables son, sobre todo, las estaciones, porque no ocasionan grandes câmbios, ni en calor ni en frio, sino que son parecidas” (HIPÓCRATES, 2008, p. 72-73). E ainda,
Y bien, tales son las diferencias más importantes de la naturaleza humana. Pero, además, está la tierra en que uno se desarrolla, y las aguas, pues comprobarás que, en general, el aspecto y las costumbres de los hombres se acomodan a la naturaleza del país. Por tanto, donde la tierra es fértil, blanda y abundante en agua, donde las aguas están a flor de tierra, de suerte que son calientes en verano y frias en invierno, y donde la situación es buena respecto de las estaciones, allí los hombres son carnosos, de articulaciones poco destacadas, húmedos, nada sufridos y de espíritu cobarde, en general. La pereza y la somnolencia reinan entre ellos; para las artes son bastos, carentes de finura y sin agudeza. (HIPÓCRATES, 2008, p. 87).
81Por fim, na esteira de Hipócrates, Platão, em sua obra Fedro, afirma que “a juicio de Hipócrates, es imposible comprender la naturaleza del cuerpo sin conocer la naturaleza del todo. (HIPÓCRATES, 2008, p. 19). Deste modo, para Hipócrates, a influência do clima é fator fundamental na formação do caráter de um povo, bem como é fator condicionante das suas características físicas e psíquicas, climas e lugares estes que propiciarão, ou não, doenças derivadas de suas condições, que envolvem não só as regiões onde vivem, mas todo o cosmos.
82A passagem da mitologia para a concepção científica no mundo clássico grego foi marcada pelo florescimento da cidade e pelo nascimento da razão e da democracia. As racionalidades, enquanto formas de exercício da razão associadas à democracia permitiram o surgimento de novas posturas interpretativas sobre o homem, a natureza e o mundo.
83É neste novo quadro de transformação política e cultural que o mito foi substituído pela fisiografia, uma atitude científica onde a razão teve como objetivo buscar a gênese da formação do mundo e a distribuição espacial de suas formas e de seus seres. Ou seja, a maior questão filosófica e científica que motivou o rompimento de Gaia foi a busca do por que das diferenciações espaciais na superfície da Terra.
84O conceito de áperion, enquanto infinitude espacial permitiu o desenvolvimento de duas categorias metafísicas, a de espaço e a de vazio, onde o conceito de corpo referenciou a discussão sobre os objetos e sua distribuição espacial na superfície da Terra, além de instrumentalizar o conceito de escala. Momento este marcado pela geometria euclidiana e pela concepção de mathesis, onde a Terra passou a ser concebida como Physis, uma interconexão de todos os elementos do Kósmos.
85Com a Physis, a Terra passou a ser concebida como produto de um processo, um eterno movimento da matéria que se transformava dada a influência da dinâmica climática, uma vez que a escola médica advogava que fisiologia era a responsável pela integração, dinâmica, transformação e corrupção dos corpos, cujo mecanismo era o determinismo climático.
86Com Parmênides a matéria deixou de ser metafísica e tornou-se ôntica, onde o Kósmos é o Ser, ou seja, o Kósmos é um processo eterno e infinito que se transforma e se metamorfoseia em variadas formas e arranjos espaciais.
87A concepção de infinitude espacial e de vazio, associada a concepção de Terra como Physis que espacial e temporalmente está sempre em processo e permitiu que Eudóxio propusesse a primeira interpretação heliocêntrica sobre a organização do Kósmos e o primeiro mapa terrestre com elevado fundamento científico.
88Estava assim aberto o caminho para a cosmologia aristotélica que interferiu fortemente na cultura helenística e medieval.