1A busca por uma vida saudável pressupõe, entre outras condições, o consumo de produtos de boa qualidade. Essa constatação aliada a uma maior consciência ecológica, a crescente desconfiança nos sistemas de produção de alimentos convencionais (em decorrência de vários problemas ocorridos recentemente, como a doença da vaca louca, a contaminação de alimentos, o ressurgimento da febre aftosa e a expansão da gripe aviária) e as muitas dúvidas que ainda cercam os produtos transgênicos, tem levado à expansão do consumo de alimentos produzidos sem o emprego de agrotóxicos.
2Mas, afinal, o que diferencia esses produtos genericamente identificados como orgânicos dos convencionais? Será que todas as formas de produção que não empregam agrotóxicos podem ser caracterizadas como sustentáveis a médio e longo prazo? Quais são os limites e as perspectivas da agricultura orgânica no Brasil?
3A partir dessas questões se procurou averiguar a importância da agricultura orgânica no Brasil e discutir as vantagens e os problemas deste tipo de produção realizada em pequena escala, bem como apontar alternativas para a sua expansão.
- 1 A transição agroecológica pode ser definida como o processo gradual de mudança através do tempo na (...)
4Buttel (1995) ao analisar a história da agricultura em nível mundial nos últimos cem anos, identificou dois processos distintos que a marcaram, denominando-os de transições agroecológicas 1: o primeiro marco dessas mudanças foi a Revolução Verde; e, o segundo, o atual processo de ecologização da agricultura.
5O pacote tecnológico da “Revolução Verde” foi difundido inicialmente nos países desenvolvidos e, posteriormente nos países subdesenvolvidos. No caso do Brasil, em particular, o processo de “modernização conservadora da agricultura” se, por um lado, levou a um aumento da produtividade de algumas lavouras, sobretudo daquelas destinadas à exportação, ao setor agroindustrial e/ou a produção de biocombustíveis, por outro resultou no agravamento de diversos problemas, como enfatizam Muller; Lovato & Mussoi (2003, p. 103):
Além do alto custo econômico de sua manutenção, a exploração excessiva da base dos recursos naturais levou a crescentes níveis de degradação e esgotamento dos solos, poluição das águas, intoxicações e contaminações de agricultores por agrotóxicos, além de perda de biodiversidade. Por outro lado, as políticas de desenvolvimento agrícola que viabilizaram a implementação deste modelo tecnológico foram direcionadas à modernização das grandes propriedades, aprofundando ainda mais as desigualdades e a exclusão social no meio rural, principalmente em se tratando dos agricultores familiares.
6Com o aprofundamento dos efeitos sociais e ambientais nos últimos trinta anos, se intensificou, em escala mundial, o questionamento ao modelo de agricultura produtivista, dando-se início à segunda transição agroecológica. Esta transição iniciada no final do século XX é marcada pelo crescente questionamento sobre a sustentabilidade do modelo produtivista propugnado pela Revolução Verde e, até então, dominante, agravando sua crise. Em conseqüência, há a introdução de valores ambientais nas práticas agrícolas, na opinião pública e na agenda política (BUTTEL, 1995), ao mesmo tempo em que se abre a possibilidade de expansão de formas de produção que tem como princípio fundamental uma relação de respeito com a Natureza e que, portanto, seriam mais sustentáveis a médio e longo prazos.
7Esse crescente processo de incorporação de preocupações ambientais em relação à agricultura fomentou a discussão e levou à formulação de perspectivas de análise e de intervenção antagônicas e conflitantes que, em última instância, refletem diferentes interesses e posicionamentos sobre os modelos de desenvolvimento dos países e sobre a própria sustentabilidade. Nesse sentido, procurou-se identificar pelo menos duas dessas perspectivas, quais sejam:
8Em relação à primeira perspectiva, também denominada de “duplamente verde”, o desenvolvimento tecnológico garantiria os níveis atuais de produtividade obtidos na agricultura convencional, minimizando os efeitos ambientais da Revolução Verde por meio da adoção de novas tecnologias, como por exemplo, a biotecnologia e os produtos transgênicos. Para as empresas transnacionais que tem seus interesses econômicos estruturados no padrão produtivista da agricultura, essa perspectiva é perfeitamente compatível com o atual modelo, devendo apenas ser praticada com maior eficiência e racionalidade em termos ambientais.
9De acordo com Ehlers (1995, p. 16), essa perspectiva
(...) refere-se a um conjunto de práticas bem definidas, que podem ser julgadas como mais ou menos sustentáveis, conforme as previsões sobre a durabilidade dos recursos naturais que empregam. A redução do uso de insumos industriais (low input agriculture), a aplicação mais eficiente ou mesmo a substituição dos agroquímicos por insumos biológicos ou biotecnológicos seriam suficientes para a consolidação do novo paradigma (da sustentabilidade). Nesse caso, a agricultura sustentável é algo bem mais palpável, um objetivo de curto prazo.
10A ideologia subjacente a esta perspectiva poderia ser resumida da seguinte forma: mudar as práticas (ou parte destas) para se manter o atual padrão produtivista da agricultura e, sobretudo, o interesse das grandes corporações transnacionais.
11Para as tendências discordantes desta perspectiva tecnológica representadas, sobretudo, pelas organizações não-governamentais e pelos movimentos ambientalistas, a única forma de se garantir a sustentabilidade da agricultura é por meio da promoção de
(...) transformações sociais, econômicas e ambientais em todo o sistema agroalimentar. A erradicação da fome e da miséria, a promoção de melhorias na qualidade de vida para centenas de milhões de habitantes, a democratização do uso da terra ou mesmo a consolidação de uma ética social mais igualitária são alguns dos desafios contidos na noção de desenvolvimento e de agricultura sustentável. (Ehlers, 1995, p. 16)
12Nessas perspectivas que tem como foco central a sustentabilidade é que poderíamos inserir a chamada Agricultura Alternativa e a Agroecologia, que embora tenham surgido inicialmente de forma marginal e em contraposição à agricultura convencional ou produtivista, se apresentam em expansão.
13Assim, apesar do predomínio do padrão produtivista da agricultura nos Estados Unidos e na Europa desde o início do século XX, persistiram focos de resistência à adoção das inovações tecnológicas por meio de pesquisadores e grupos de produtores rurais que utilizavam práticas de cultivo que valorizavam a fertilização orgânica dos solos e o potencial biológico dos processos produtivos (Ehlers, 1999).
14Durante várias décadas, esses grupos defensores da chamada Agricultura Alternativa persistiram em alguns pontos da Europa, dos Estados Unidos e do Japão, sendo hostilizados tanto pela comunidade científica internacional como pelo setor produtivo agrícola, se mantendo a margem no cenário agrícola mundial (Ehlers, 1999).
- 3 Um marco dessas discussões foi a realização da Primeira Conferência Mundial sobre Meio Ambiente qu (...)
15Todavia, o agravamento dos problemas ambientais, como a erosão dos solos, a crescente contaminação dos recursos hídricos, dos alimentos, do homem e dos animais, as perdas impostas à biodiversidade genética, entre outros, associado à pressão da opinião pública, manifestada, sobretudo, por meio da mídia e das Organizações Não-Governamentais (ONGs), forçaram à discussão, em âmbito mundial, de novos parâmetros para se pensar o desenvolvimento3 e novas formas de se produzir no campo.
16Nesse contexto, se abriram novas perspectivas em termos de expansão das formas alternativas de agricultura que, a partir dos anos 1980, com o fortalecimento da noção de desenvolvimento sustentável, passaram a ser agrupadas sob a denominação de agricultura sustentável (Ehlers, 1999).
17Na opinião de Paschoal (1995), o termo agricultura alternativa não expressaria um novo modelo ou uma filosofia de agricultura, mas "tão somente uma terminologia útil para reunir todos os modelos que têm idênticos propósitos e técnicas semelhantes, que não se identificam com os intentos puramente econômicos, imediatistas e pouco científicos da agricultura químico-industrial" (Paschoal, 1995, p. 14).
18Vale considerar, entretanto, que embora inicialmente os grupos defensores e praticantes da agricultura alternativa estivessem mais centrados na preservação dos recursos naturais e na qualidade dos alimentos e da vida humana, houve progressivamente a incorporação e a ampliação de suas preocupações em termos de sustentabilidade, enfatizando-se, por exemplo, a importância dos aspectos sociais e culturais.
19 Os protagonistas e os princípios norteadores dessas várias formas de produção englobadas sob a denominação de Agricultura Alternativa são apresentados no Quadro 1.
Quadro 1. Principais Formas de "Agricultura Alternativa": protagonistas e princípios básicos
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Principais protagonistas e seguidores
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Princípios básicos e alcance
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Agricultura Orgânica
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Albert Howard: desenvolve pesquisas na Índia (anos vinte); publica An agricultural testament na Inglaterra (1940). Técnicas aprimoradas por L.E. Balfour (Método Howard-Balfour). Introduzida nos EUA por J.I. Rodale (anos trinta). Outros: N. Lampkin (1990).
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Princípios: uso de composto, plantas de raízes profundas, atuação de micorrizas na saúde dos cultivos. Difundida em vários continentes. O IFOAM – International Federation of Organic Agriculture Movements - atua na harmonização de normas técnicas, certificação de produtos e intercâmbio de informações e experiências.
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Agricultura Biodinámica
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Rudolf Steiner desenvolve uma série de conferências para agricultores na Alemanha (anos vinte) e estabelece os fundamentos básicos da biodinâmica. Pesquisas práticas realizadas nos EUA, Alemanha e Suíça (p.e. Pfeiffer,1938; Koepf, Shaumann & Petterson, 1974).
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Princípios: Antroposofia (ciência espiritual), preparados biodinâmicos, calendário astrológico; possue marcas registradas (Demeter y Biodyn). Muito difundida na Europa. Presente no Brasil: Instituto Biodinâmico de Desenvolvimento Rural, Estância Demétria e Instituto Verde Vida.
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Agricultura Natural
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Mokiti Okada: funda a Igreja Messiânica e estabelece as bases da agricultura natural; M. Fukuoka: método semelhante, porém afastado do caráter religioso (Japão-anos trinta). As idéias de Fukuoka se difundiram na Austrália como Permacultura através de B. Mollison (1978).
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Princípios: composto com vegetais (inoculados com ‘microorganismos eficientes’), valores religiosos e filosófico-éticos. Movimento organizado pela MOA-International e WSAA (EUA). Shiro Miyasaka dirige a atuação da MOA no Brasil.
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Agricultura Biológica
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Inicia com o método de Lemaire-Boucher (França - anos sessenta). Grupo dissidente funda a ‘Nature et Progrès’. Grande influência do investigador francês Claude Aubert, que critica o modelo convencional e apresenta os fundamentos básicos de L’agriculture biologique (1974).
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Princípios: a saúde dos cultivos e alimentos depende da saúde dos solos; ênfase no manejo de solos e na rotação de cultivos. Influenciada pelas idéias de A. Voisin e pela Teoria da Trofobiose (Chaboussou, 1980). Difundida na França, Suíça, Bélgica e Itália.
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Agricultura Ecológica
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Surge nos EUA (anos setenta), estimulada pelo movimento ecológico e influenciada por trabalhos de Rachel Carson, W.A. Albrecht, S.B. Hill, E.F. Schumacher. Na Alemanha recebeu importante contribuição teórico-filosófica e prática do professor H. Vogtmann (Universidade de Kassel): Ökologicshe Landbau (1992).
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Princípios: conceito de agroecossistema, métodos ecológicos de análise de sistemas; tecnologias suaves, fontes alternativas de energia. Está difundida em vários países. Sua introdução no Brasil está ligada a J.A. Lutzenberger, L.C. Pinheiro Machado, A.M. Primavesi, A.D. Paschoal e S. Pinheiro, entre outros.
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Fonte: Elaborado por CAPORAL (1998, p. 47).
20Apesar das diferenças em termos de princípios e alcance, há algumas práticas que são comuns nessas várias formas de produção, destacando-se:
a) reciclagem dos recursos naturais presentes na propriedade agrícola, em que o solo se torna mais fértil pela ação benéfica dos microrganismos (...) que decompõem a matéria orgânica e liberam nutrientes para as plantas; b) compostagem e transformação de resíduos vegetais em húmus no solo; c) preferência ao uso de rochas moídas, semi-solubilizadas ou tratadas termicamente, com baixa concentração de nutrientes prontamente hidrossolúveis, sendo permitida a correção da acidez do solo (...); d) cobertura vegetal morta e viva do solo; e) diversificação e integração de explorações vegetais (incluindo as florestas) e animais; f) uso de esterco animal; g) uso de biofertilizantes; h) rotação e consorciação de culturas; i) adubação verde; j) controle biológico de pragas e fitopatógenos , com exclusão do uso de agrotóxicos; k) uso de caldas tradicionais (bordalesa, viçosa e sulfocálcica) no controle de fitopatógenos; l) uso de métodos mecânicos, físicos e vegetativos e de extratos de plantas no controle de pragas e fotopatógenos, apoiando-se nos princípios do manejo integrado; m) eliminação do uso de reguladores de crescimento e aditivos sintéticos na nutrição animal; n) opção germoplasmas vegetais e animais adequados a cada realidade ecológica; e, o) uso de quebra-ventos. (Campanhola; Valarini, 2001, p. 70)
21Assim, por conta dessas práticas comuns e, sobretudo, do fundamento que as originaram, ou seja, o maior respeito à natureza, existe, de acordo com Dulley (2003, p. 98),
(...) um entendimento harmonioso entre as diversas correntes, no sentido de que o fortalecimento da ideologia e do setor depende da união e do trabalho conjunto de agricultores, consumidores, processadores e comerciantes. Para isso, são estabelecidos acordos sobre os critérios comuns adotados por todos os segmentos, como já ocorre, por exemplo, no caso de um reconhecimento por parte do Estado, de organizações/empresas certificadoras de produtos orgânicos.
- 4 De acordo com a Instrução Normativa nº 7 de Maio de 1999 do Ministério da Agricultura, Pecuária e (...)
22Dessa forma, o Estado brasileiro ao regulamentar4 esse sistema de produção adotou a denominação genérica de orgânico, tornando as demais denominações (biodinâmica, natural, biológicas, ecológica etc.) como equivalentes. Esse procedimento também foi adotado por duas das mais importantes certificadoras de produtos orgânicos do país: o Instituto Biodinâmico de Desenvolvimento (IBD) e a Certificadora Mokiti Okada (Dulley, 2003).
23Em relação à Agroecologia, esta é definida por Altieri (1995 a) como ciência ou disciplina científica que apresenta uma série de princípios, conceitos e metodologias para estudar, analisar, dirigir e avaliaragroecossistemas, com o objetivo de favorecer a implantação e o desenvolvimento de sistemas de produção com maiores níveis de sustentabilidade. Entendida desta forma, a Agroecologia poderia proporcionar as bases científicas para se apoiar o processo de transição agroecológica para outras formas de agricultura sustentáveis, tais como: a ecológica, a orgânica, a biodinâmica, a regenerativa, a de baixos insumos externos, a biológica, entre outras.
24Como observa Altieri (1995 a), não se pode confundir a Agroecologia, entendida como uma disciplina científica ou ciência, com práticas, tecnologias agrícolas ou sistemas de produção que poderiam ser englobadas sob a denominação de agriculturas alternativas. Isso porque, como enfatizam Costabeber & Caporal (2001, p. 20), com base em Altieri (1989 e 1995 b), embora a Agroecologia enfoque a agricultura numa perspectiva ecológica, ela não se limita:
(...) a abordar os aspectos meramente ecológicos ou agronômicos da produção, uma vez que sua preocupação fundamental está orientada a compreender os processos produtivos de uma maneira mais ampla. Isto é, encara os agroecossistemas como unidade fundamental de estudo, onde os ciclos minerais, as transformações energéticas, os processos biológicos e as relações sócio-econômicas são investigadas e analisadas em seu conjunto. Dito de outro modo, a pesquisa agroecológica preocupa-se não com a maximização da produção de uma atividade em particular, mas sim com a otimização do agroecossistema como um todo, o que implica uma maior ênfase no conhecimento, na análise e na interpretação das complexas interações existentes entre as pessoas, os cultivos, os solos e os animais.
25Nessa perspectiva caberia a Agroecologia, apreendida como um conjunto de conhecimentos, contribuir tanto para a realização de análises críticas sobre a agricultura produtivista como para “orientar o correto redesenho e o adequado manejo de agroecossistemas, na perspectiva da sustentabilidade” (Caporal & Costabeber, 2002, p. 16)
26Todavia, como observam Moreira & Carmo (2004, p. 55)
A concretização da agroecologia não se dará com facilidade, visto que ela pressupõe a construção de uma nova ciência comprometida com os interesses sociais e ecológicos dos movimentos populares e com a articulação entre ciências sociais e naturais na compreensão dos problemas sócio-ambientais da atualidade, buscando cada vez mais soluções realmente sustentáveis. Pressupõe, ainda, um enfrentamento político com os interesses econômicos que dominaram o desenvolvimento do capitalismo industrial na agricultura durante os últimos 130 anos.
27Além destas dificuldades de cunho geral relacionadas à Agroecologia, há outras que poderiam ser destacadas também em relação às diversas formas de produção da Agricultura Alternativa. Não obstante essas dificuldades há que se destacar a importância dessas perspectivas em termos de sustentabilidade sócio-ambiental, sobretudo para aqueles que desenvolvem a agricultura em pequenas propriedades rurais ou de pequena escala, podendo se constituir no lócus ideal ao desenvolvimento de sistemas de produção mais sustentáveis.
- 5 Segundo estes autores, “é difícil identificar quais dessas causas foram mais relevantes no aumento (...)
28A adoção de legislação específica pelo governo brasileiro visando à regulamentação da produção orgânica e sua certificação ocorreu em virtude do aumento da demanda por esses produtos no mercado interno. De acordo com Campanhola & Valarini (2001, p. 72-73), pelo menos cinco razões5 podem ser apontadas para se entender à ampliação do mercado de produtos orgânicos no Brasil:
A primeira é que esta tenha partido dos próprios consumidores, preocupados com a sua saúde ou com o risco da ingestão de alimentos que contenham resíduos de agrotóxicos (...). A segunda razão é que a demanda tenha se originado do movimento ambientalista organizado, representado por várias ONGs preocupadas com a conservação do meio ambiente, tendo algumas delas atuado na certificação e na abertura de espaços para a comercialização de produtos orgânicos pelos próprios agricultores (...). A terceira seria resultado da influência de seitas religiosas, como a Igreja Messiânica, que defendem o equilíbrio espiritual do homem por meio da ingestão de alimentos saudáveis e produzidos em harmonia com a natureza. A quarta razão (...) teria como origem os grupos organizados contrários ao domínio da agricultura moderna por grandes corporações transnacionais (...). E o quinto motivo seria resultado da utilização de ferramentas de “marketing” pelas grandes redes de supermercados, por influência dos países desenvolvidos, que teriam induzido demandas por produtos orgânicos em determinados grupos de consumidores. (Grifos nosso)
29Esse aumento da demanda por produtos orgânicos no país reflete, de certa forma, um processo mais geral em termos mundiais associado à preocupação com a qualidade dos alimentos consumidos e com a saúde, decorrente do crescimento da consciência ecológica aliada à desconfiança no sistema de produção e distribuição de alimentos convencionais.
30 Assim, como observaram Willer & Yussefi (2001) apud Camargo et. al. (2004), a conversão de unidades produtivas do sistema convencional para o orgânico entre os anos de 1986 e 1996 foi ampliada em 30,0% ao ano.
31A área total cultivada com produtos orgânicos no mundo em 2003 era de 23 milhões de hectares, abarcando mais de 460 mil propriedades rurais, o que, entretanto, representava pouco menos de 1% do total das terras com lavouras e pastagens do mundo. Essa área ocupada no sistema orgânico encontrava-se assim distribuída: 46,3% na Oceania; 22,6% na Europa; 20,8% na América Latina; 6,7% na América do Norte; 2,6% na Ásia; e, 1,0% na África (Willer & Yussefi, 2004).
- 6 “É importante destacar que os países que têm o maior percentual de área sob manejo orgânico em rel (...)
32Em termos de países, a maior parcela das áreas utilizadas no sistema orgânico estava localizada na Austrália (10,5 milhões de hectares), Argentina (3,2 milhões de hectares) e Itália (cerca de 1,2 milhão de hectares)6.
- 7 Em termos da participação de produtores no sistema orgânico, a distribuição é a seguinte: Europa, (...)
33Apesar da maior participação em termos de área da Oceania/Austrália, a Europa se destacou em 2003, pelo maior número de produtores envolvidos no sistema orgânico, que representavam 44,1% do total mundial7, pela importância do seu mercado consumidor e pela grande diversidade de seus produtos. Cabe ressaltar que essa expansão do sistema orgânico em vários países europeus, como Itália, Alemanha, França e Reino Unido, por exemplo, deveu-se à conjugação de vários fatores, tais como: o incentivo financeiro concedido aos produtores rurais por meio de políticas públicas; a disponibilidade e eficiência das informações aos produtores e consumidores; o acesso e a disponibilidade de produtos orgânicos; o papel do marketing (logomarca) e sua proteção legal; e a implementação de um plano de desenvolvimento para agricultura orgânica (Darolt, 2003).
34Em relação ao Brasil, estima-se que em 2001 a área utilizada com o sistema orgânico era de 275,6 mil hectares (0,08% do total), distribuídos em 15 mil propriedades rurais (Darolt, 2003).
- 8 Esse total se refere apenas às áreas cultivadas com lavouras e ocupadas pelas pastagens, não se re (...)
35No ano de 2006, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento divulgou um diagnóstico do país, no qual se constatou que 800 mil hectares8 eram utilizados no sistema orgânico, envolvendo cerca de 15 mil produtores. A distribuição da área e do número de produtores orgânicos segundo as regiões brasileiras pode ser verificada na tabela 01.
Tabela 01 - Sistema Orgânico no Brasil: Área Cultivada e Número de Produtores - 2006
Regiões
|
Área
(em ha)
|
%
|
Número de Produtores
|
%
|
Área Média
(Em ha)
|
Norte
|
8.000
|
1,0
|
600
|
4,0
|
13,3
|
Nordeste
|
72.000
|
9,0
|
1.950
|
13,0
|
36,9
|
Sudeste
|
80.000
|
10,0
|
1.500
|
10,0
|
53,3
|
Sul
|
120.000
|
15,0
|
10.200
|
68,0
|
11,7
|
Centro-Oeste
|
520.000
|
65,0
|
750
|
5,0
|
693,3
|
TOTAL
|
800.000
|
100,0
|
15.000
|
100,0
|
53,3
|
Fonte: Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – 2006.
36Nesta tabela destaca-se a Região Centro-Oeste em termos de área com o sistema orgânico, embora o número de produtores envolvidos seja relativamente pequeno e a área média ocupada seja elevado (693,3 hectares), o que denota a presença de produção em larga escala. Nesse sentido, torna-se pertinente questionar: será que este tipo de produção caracterizado como orgânico pelo referido estudo pode ser considerado como sustentável na perspectiva da Agroecologia? A produção realizada em larga escala, com base na monocultura, adotando práticas alternativas como o manejo integrado de pragas, o plantio direto e o emprego de matéria orgânica para a fertilização das lavouras podem ser efetivamente sustentáveis a médio e longo prazo?
37 De acordo com Caporal & Costabeber (2002) uma agricultura verdadeiramente de base ecológica não pode se restringir apenas à preocupação ambiental, sendo fundamental incorporar outras dimensões, como a social, a econômica, a cultural, a política e a ética. Segundo esses autores,
(...) enquanto a corrente agroecológica defende uma agricultura de base ecológica que se justifique pelos seus méritos intrínsecos ao incorporar sempre a idéia de justiça social e proteção ambiental, independentemente do rótulo comercial do produto que gera ou do nicho de mercado que venha a conquistar, outras propõem uma ‘agricultura ecologizada’, que se orienta exclusivamente pelo mercado e pela expectativa de um prêmio econômico que possa ser alcançado num determinado período histórico, o que não garante sua sustentabilidade no médio e longo prazos. (Caporal & Costabeber, 2002, p. 81)
38A Região Sul, por sua vez, com a segunda maior área ocupada com a produção orgânica no país, tem o mais expressivo número de produtores e a menor área média cultivada, o que a caracteriza como de pequena escala de produção. A importância assumida pela produção orgânica na Região Sul deve-se, dentre outros fatores, ao apoio institucional concedido por meio das secretarias estaduais de agricultura e das empresas oficiais de assistência técnica e extensão rural, além da presença de experiências coletivas exitosas, como a da Associação de Agricultura Orgânica do Paraná (AOPA) e da Cooperativa Colméia (RS), por exemplo.
39Dessa forma, acredita-se que, em virtude das suas próprias características em termos de organização da unidade produtiva, as formas sustentáveis em termos de agricultura encontram condições mais favoráveis de expansão em pequenas propriedades rurais do que nas médias e grandes.
40Assim, a adoção do sistema orgânico de produção por pequenos proprietários rurais apresenta como principais vantagens:
-
a escala de produção, que por ser menor, favorece a conversão produtiva e permite a produção em pequenas áreas;
-
a diversificação produtiva que em virtude da integração do cultivo de lavouras temporárias e/ou permanentes com a criação de animais, pode facilitar a adoção do sistema orgânico, ao mesmo tempo em que garante maior estabilidade econômica;
-
o maior envolvimento direto do produtor e dos membros da família, favorecendo tanto o maior controle sobre o processo produtivo como a maior capacidade de absorção desta mão-de-obra;
-
a menor dependência de insumos externos, devido ao melhor aproveitamento dos recursos disponíveis na propriedade; e,
-
a possibilidade de eliminação do uso de agrotóxicos, que contribui para a redução dos custos de produção;
-
os menores custos envolvidos na produção, resultando em melhores relações custo-benefício e maiores rendas efetivas.
41 Do ponto de vista da comercialização dos produtos orgânicos há, em virtude da menor escala de produção, uma maior vinculação com o espaço local, que pode favorecer tanto “a formação de mercados regionais (...), possibilitando a integração de interesses entre produtores, comerciantes e consumidores” (Assis, 2003, p. 93) como a maior “interação com os consumidores e a melhor adequação dos produtos conforme suas exigências, fortalecendo relações de confiança e credibilidade entre as partes envolvidas” (Campanhola & Valarini, 2001, p. 76).
42Nesse contexto, ganha cada vez mais importância formas de comercialização no varejo que garantam maior autonomia ao produtor, pois ele passa a ser o responsável pela distribuição dos produtos, por meio da venda direta, que pode ser realizada: a) via entrega em domicílio de cestas de produtos sob encomenda ou que são periodicamente solicitadas; b) em lojas de produtos naturais, restaurantes, lanchonetes etc. c) em feiras livres ou espaços especializados neste tipo de produção (Campanhola & Valarini, 2001).
43Nas vendas realizadas no atacado, em virtude da pequena escala de produção, as alternativas que se apresentam como interessantes aos produtores são as associações e/ou cooperativas, que além de conseguirem congregar um volume maior e mais diversificado de produtos, tem maior poder de barganha com as redes varejistas. Não se submeter à intermediação realizada por terceiros é uma alternativa para que os produtores rurais alcancem a sustentabilidade econômica e social.
44A possibilidade de preços diferenciados dos produtos devido à sua “marca” ecológica é um fator que também pode favorecer a produção em pequena escala realizada por um grande e diversificado contingente de produtores rurais, resultando na ampliação da oferta e na redução no preço dos produtos orgânicos em relação aos convencionais, ampliando o seu consumo.
45Apesar desses vários aspectos favoráveis à produção orgânica em pequena escala, há também inúmeros desafios a serem enfrentados, tais como:
46a) o pequeno volume produzido, a menor diversificação de produtos e a irregularidade na oferta podem dificultar o estabelecimento de contratos de fornecimento mais duradouros com compradores que necessitam de maiores quantidades como lojas especializadas, restaurantes, hospitais, escolas etc. e redes varejistas;
47b) a falta de assistência técnica oficial e de preparo ou formação específica dos extensionistas para prestar assistência técnica em agricultura orgânica pode comprometer o processo de conversão da agricultura convencional para a orgânica, bem como garantir a sua manutenção;
48c) os problemas de acesso às informações sobre a produção orgânica, as técnicas e as formas de manejo, as alternativas de comercialização, o acesso ao crédito, além das dificuldades dos produtores em se organizarem coletivamente em associações e/ou cooperativas podem atrasar ou restringir o processo de sua expansão;
49d) as dificuldades financeiras enfrentadas durante o processo de conversão da produção convencional para a orgânica podem desestimular os produtores que sobrevivem da agricultura;
- 9 Uma das críticas mais freqüentes a esta forma de certificação orientada pelas empresas nacionais e (...)
50e) os altos custos envolvendo a certificação e o acompanhamento rigoroso dos critérios para mantê-la implicam na necessidade da estruturação de um sistema em que o processo de certificação seja participativo, descentralizado e gere credibilidade entre os vários agentes envolvidos9.
51Os produtores que desenvolvem a agricultura de pequena escala e, por motivos diversos, ficaram à margem do processo de modernização da agricultura, ou se viram obrigados a abandonar os procedimentos, práticas e/ou inovações tecnológicas adotados, devem se constituir como prioritários nas políticas públicas que estimulem e criem as condições objetivas para a expansão de sistemas produtivos mais sustentáveis. Nesse sentido também devem ser criados programas que garantam preços mínimos para os produtos, apoio integral em termos de assistência técnica e extensão rural, de informações aos produtores e aos consumidores sobre os benefícios da agricultura ecológica, entre outros.
52A participação de Organizações Não-Governamentais - ONG´s e de agricultores, através de suas associações e entidades representativas e, mais recentemente, do apoio de órgãos oficiais de pesquisa e extensão rural, nesse processo de transição é fundamental para garantir sua continuidade e expansão a todos os produtores de pequena escala que desejem adotar formas mais sustentáveis de agricultura.
53Podemos afirmar que existe consenso entre os especialistas de que o modelo produtivista de agricultura derivado da Revolução Verde está em crise e que é necessário mudar a forma de se produzir e de se relacionar com o meio ambiente. Todavia, saber como, de que forma e a quem essa mudança beneficiará efetivamente são questões fundamentais e que devem ser discutidas pela sociedade.
54Devemos reconhecer também que vivemos num período de transição e que, como tal, coexiste tanto o modelo convencional de agricultura, responsável pela grande produção de commodities, como por formas alternativas de produção que se apresentam em expansão.
55Apesar da existência de experiências de agricultura alternativa no país, a configuração final do processo de transição agroecológica visando uma agricultura sustentável ainda não está determinada a acontecer de uma única forma, além do que ainda não há garantias de que sua implementação seja realizada de forma ampla. Isso porque essa transição tem se apresentado como um processo muito complexo, tendo em vista a multiplicidade de fatores e variáveis a serem considerados para sua efetivação.
56Nesse contexto, cabe ressaltar a importância de se considerar o papel ativo a ser desempenhado pelos sujeitos desse processo de transição, ou seja, os produtores rurais. Não obstante as inúmeras vantagens apresentadas pela agricultura de pequena escala, eles (os produtores rurais) consideram um conjunto de aspectos (econômicos, sociais, culturais etc.) como orientadores de suas decisões de mudança. Assim, no plano individual, a conversão ou não para sistemas mais sustentáveis dependerá não apenas das possibilidades e limitações em termos de recursos (econômicos, de acesso a terra, de disponibilidade de mão-de-obra familiar etc.) e apoio externo (como da extensão rural) apresentado pelos produtores, como também dos projetos e alternativas adotados para manutenção do patrimônio familiar.
57Assim, se a conjuntura política, institucional e econômica relacionada ao setor agropecuário se constitui num fator importante na tomada de decisões pelo produtor, as especificidades da dinâmica local/regional bem como a própria forma de organização da unidade produtiva são elementos que vão influenciar na conversão ou não para a agricultura alternativa. Nesse contexto, ganham relevância as experiências de ação coletiva de produtores, como as associações e cooperativas, que podem contribuir significativamente para a consolidação de formas de produção mais sustentáveis.