1O modo de morar nas cidades revela diferentes contextos de como o espaço urbano é produzido. De modo mais significativo, as mudanças nas formas de morar em cidades ribeirinhas da Amazônia evidencia as transformações da sociedade local. Esse processo é mais relevante quando as cidades são atingidas por políticas públicas nacionais, especialmente as ligadas à moradia, pois significa intervenção direta na morfologia urbana com a construção dos conjuntos habitacionais. Tal quadro tem início em meados da década de 1960, quando são construídos os primeiros conjuntos, quase sempre impondo padrões arquitetônicos e não garantindo a inserção de novos equipamentos urbanos.
2O presente artigo é o resultado de pesquisas sobre a construção de habitação social por meio de políticas públicas e o impacto resultante na estrutura do espaço urbano numa cidade amazônica Parintins, situada às margens do rio Amazonas, no estado de mesmo nome, na fronteira com o Pará. A análise compreende o período de 1969, momento em que são implantados os primeiros conjuntos habitacionais financiados pelo Banco Nacional da Habitação - BNH, e se estende até o ano de 2017, quando são construídos dois novos conjuntos financiados pela Caixa Econômica Federal, por meio do Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV. A pesquisa que o originou foi desenvolvida durante dois anos (2016-2017), desde a formulação teórica, levantamento e análise de documentos, entrevistas e trabalhos de campo nas cidades de Parintins e Manaus.
3A estrutura do artigo parte da gênese da cidade de Parintins, sua consolidação e inserção à rede urbana regional e o seu papel como cidade ribeirinha, especialmente no período da construção dos conjuntos. Em seguida, discute-se a produção da habitação social, visando compreender como foram construídos os empreendimentos do BNH e do PMCMV, o papel dos vários agentes produtores do espaço, tais como: o estado, os proprietários de terra, os empresários ligados à pecuária e ao setor mercantil, as empresas de construção civil e os moradores identificando as articulações existentes entre eles.
4Parintins é tratada no artigo como cidade ribeirinha, conceito já utilizado por Souza (2017), que considera como cidades ribeirinhas aquelas localizadas às margens dos rios. Porém, localizar-se às margens dos rios é condição sine qua non, mas não é a única, pois, além disso, é necessário que a cidade esteja articulada ao rio como meio de circulação a conferir dinâmica econômica, vida social e cultural à cidade. O rio é o locus de vivência, contato com áreas próximas, distantes e fonte de alimentação. Além disso, na sua morfologia, “a paisagem das cidades ribeirinhas, de uma forma geral, apresenta um traçado de ruas cujo final (ou o começo) é o rio que passa em sua frente” (Trindade-Júnior; Silva; Amaral, 2008, p. 33).
5Do ponto de vista do método, o modelo adotado na pesquisa, e que perpassa o texto, é o da “transducção” (Lefebvre, 2001 p. 108), que possibilita a interpretação da realidade a partir das particularidades articuladas com a universalidade. Utiliza-se da abordagem crítica e objetiva para restaurar, no pensamento, a realidade o mais próxima possível de como ela é, sem separar-se o conhecimento teórico do empírico. Trata-se da busca permanente pelo rigor teórico e da exaustiva pesquisa de campo para se compreender os processos da produção de habitação social numa cidade amazônica, e como isso se articula aos múltiplos tempos e espaços.
6A construção de moradias em Parintins se insere na produção da própria cidade, articulado com diferentes elementos da natureza, passando pela economia, pela cultura e consecução dos costumes. Inicialmente, eram as palafitas construídas com materiais obtidos na natureza ao redor, em parte por meio da coleta na floresta. Era a forma de moradia que se adaptava ao sítio urbano, localizado num terraço baixo do complexo sistema flúvio-lacustre, com áreas periodicamente inundáveis (Marques, 2017). Depois, surgem as casas de madeira, ainda se utilizando de material disponível no local, mas com certo nível de beneficiamento, por exemplo, da madeira transformada em tábuas e a telha de barro que vai substituindo a cobertura de palhas. Em seguida, aparecem as construções em alvenaria com material industrializado e que já não está à disposição ao redor.
7Finalmente, nos anos 60 do século passado, surgem os conjuntos habitacionais, que trazem não apenas novos materiais e conceitos de morar, com casas do mesmo padrão, construídas de modo contíguo, simétrica e em grande quantidade. Além da forma, muda o conceito de aquisição da moradia, com financiamento a longo prazo e exigências de renda permanente, algo distante das condições da maior parte da população da Amazônia no período. São processos múltiplos, contínuos no espaço e descontínuos no tempo, que permanecem e se transformam, se fragmentam e se articulam. A construção da habitação, é, portanto, dialética, sendo parte e extensão da produção da cidade, pois se de um lado existem as mudanças do padrão arquitetónico e urbanístico, de outro, há transformações e permanências no modo de vida.
8O município de Parintins está situado na fronteira leste do estado do Amazonas (Figura 1), com área de 5.952,044 km² e com 102.033 habitantes, sendo 69.890 residentes na cidade. O município é o núcleo de uma das Regiões Intermediárias do estado do Amazonas e, como Região Imediata, é o polo dos municípios de Barreirinha, Nhamundá, Boa Vista do Ramos e Maués (IBGE, 2017).
Figura 1 - Mapa de Localização de Parintins-AM
Fonte: Base Cartográfica compilada do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, 2010. Elaborado por Lauro Santarém Júnior e Crizan Souza, 2018.
9O sítio urbano começa a ser estruturado sobre as ruínas dos povos indígenas, no ano de 1796, com a chegada do capitão de milícias José Pedro Cordovil, seus escravos e agregados, que se assentaram nas terras dos índios Sapupé e Maué. O local foi transformado em missão em 1803, em seguida em freguesia, com o nome de Tupinambarana, sendo depois elevada à categoria de Vila, com a denominação de Vila Bela da Imperatriz, ligada ainda ao Termo de Maués, sendo finalmente emancipada como município de Parintins em 1852, e em 1880 é elevada à categoria de cidade (Bittencourt, 1924).
10Segundo Estevan Bartoli (2017), os primeiros traçados no plano urbano seguiram o formato ortogonal, em ruas de terra batida que eram largos caminhos sem calçadas, energia e abastecimento de água. Até 1960, a cidade crescia lentamente, os melhoramentos urbanos continuavam precários, mas aparecem as primeiras obras de melhoria nas habitações construídas nas principais avenidas e ruas. Os prédios públicos eram até então as construções mais “suntuosas" para os padrões da cidade, e mostravam certa imponência se comparados aos casebres que se estendiam ao redor.
11O ritmo de ocupação da cidade ocorre num tempo lento e de certo modo homogêneo, sendo que a partir da década de 1940 passa a ser excludente, assinalado pela segregação urbana resultado de uma cidade que começa a ser produzida de modo fragmentado. Os pobres não tinham acesso à terra para morar em determinados locais, visto que estava apropriada pelos grandes proprietários de terra para a pecuária e reserva de valor para, pois grandes extensões estavam desocupadas.
12Havia ainda outras determinações que não estavam ligadas apenas às condições econômicas, mas à imposição legal, como se pode aferir na Lei nº 03, de 25 de abril de 1936, que estabelecia: “as casas a serem construídas não poderão ser cobertas de palha ou cavaco, pelo menos as que forem construídas para o lado do prosseguimento da rua 25 de dezembro, sendo as respectivas plantas submetidas a aprovação da prefeitura" (Archanjo, 2016, p. 61).
13Portanto, a cidade atual resulta do longo processo em que as ações dos diferentes sujeitos implicam na expansão da urbana (Capes, 2013) e a partir de certas condições que são produtos da sociedade, de ações acumuladas e engendradas pelos que produzem e consomem espaço (Corrêa, 2005) e vão impondo os seus interesses à organização da cidade.
14A expansão urbana ocorre sobre as áreas de pecuária, terras rurais que passam a terras urbanas ao serem transformadas em loteamentos ou ocupações por parte dos segmentos da população mais pobres. Como o sítio urbano é uma ilha, as ocupações ocorrem em áreas alagadiças e baixos platôs que são menos valorizadas. Por outro lado, há a "urbanização de status” (Corrêa, 2005) nas áreas planas e elevadas e mais recentemente próximas do lago, na orla interior. Nestas áreas, o poder local viabiliza a infraestrutura (arruamento, asfalto e energia) e serviços públicos, o que as tornam valorizadas e por isso são ocupadas pelos segmentos sociais com maior renda, formados por servidores públicos (educação, saúde e justiça), comerciantes e pecuaristas, além de pessoas que constroem na cidade casas para serem ocupadas exclusivamente no festival folclórico.
15As características sociais e ambientais fazem com que a cidade ocupe área de 303,2 km², correspondente a apenas 5% da extensão territorial do município, concentra 67% da população, com 69.890 habitantes (Censo, 2010-IBGE) e centraliza as principais atividades econômicas, sociais e políticas. A população está distribuída nos 22 bairros existentes na cidade, conforme a estruturação urbana de 2012 (Lei Municipal nº 531/2012-PGMP), que foram se configurando no tempo e no espaço em vários surtos de crescimento urbano, como mostra a figura a seguir.
Figura 2 - Áreas de expansão da cidade de Parintins-AM, 1920 - 2000.
Fonte: Elaborado a partir de Souza (1998), adaptado por Rodrigo dos Anjos Carvalho e Estevan Bartoli (2013).
16O povoamento, que se inicia no fim do século XVIII, arrasta-se durante o XIX e só passa a ter relevância em meados do século XX, quando a cidade se torna conhecida para além do contexto regional, em decorrência do festival folclórico, a festa do boi-bumbá, realizada anualmente no mês de junho, o que lhe confere importância na rede urbana regional como cidade de responsabilidade territorial, visto que exerce funções estratégicas na rede urbana da região que vão além do espaço municipal, pois é locus de lutas e conflitos pela terra, disputa pelo uso dos recursos e certa competição no plano do simbólico (Schor; Oliveira; Moraes e Santana, 2016), sendo o segundo centro urbano mais importante do estado do Amazonas, atrás apenas de Manaus.
17Nesse contexto, surge a possibilidade de se compreender o desenvolvimento da habitação social na cidade de Parintins, que ocorre de forma induzida e, quase sempre, sem considerar as singularidades do lugar, como será mostrado a seguir com os conjuntos residenciais construídos pelo BNH por meio da COHAB-AM e pelo PMCMV.
18A produção da habitação social em Parintins resulta em mudanças no espaço urbano, que podem ser identificadas em ações concretas como o crescimento da cidade e o número de empreendimentos construídos, tendo em vista os conjuntos habitacionais da COHAB e os mais recentes do PMCMV, que são as formas visíveis a explicitar o impacto na expansão e na estrutura urbana. Ao mesmo tempo, há transformações que não são tão visíveis, pois estão para além das formas arquitetônicas e ocorrem no plano do vivido, e, como tal, não são quantificavéis.
19Como a construção de moradias sociais está ligada ao estado, é importante assinalar que se trata de uma política que é necessariamente pública, sendo preciso esclarecer “quem a formula e implementa e quem são os destinatários, o público-alvo ou a clientela” (Melazzo, 2006, p. 28), ou seja, é necessário compreender o processo, o contexto em que cada política pública foi concebida, desenvolvida e apropriada. Quando se trata de política pública de habitação no Brasil, embora existissem ações isoladas, os seus fundamentos são instituídos após 1964, elaborados e formulados por leis e resoluções que culminaram em programas articulados aos vários setores econômicos, especialmente ao sistema financeiro e ao setor da construção civil, mas também aos setores sociais e ao poder local, visando a minorar o déficit habitacional.
20Desde a década de 1930, o Estado brasileiro tinha ações na área de habitação social, por meio de políticas dispersas realizadas pelos Institutos de Aposentadoria e Pensões - IAPs, criados em 1933, e pela Fundação Casa Popular – FCP, implantada em 1946 (Bonduki, 1998). O aumento da população urbana e a necessidade de centralização são condições que impõem a criação, em 1964, do Sistema Financeiro de Habitação – SFH e do Banco Nacional de Habitação – BNH, que foi o agente de planejamento e de fomento à política habitacional.
21Durante a Ditadura Militar (1964-1985), o BNH foi a agência da política habitacional, e, após sua extinção, a Caixa Econômica Federal - CEF passa a ser o agente financeiro. Existiu um hiato na política habitacional entre os anos de 1990 e 2000 (Bonduki, 2008), ressurgindo a partir de 2009, quando, por meio da lei 11.977, se institui o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV, que mantém a CEF como agente financeiro.
22Na fase do BNH, para ter acesso à política federal de habitação, o poder local necessitava criar órgãos específicos para planejar e executar a política habitacional. Nesse sentido, governos dos estados e de alguns municípios criaram as COHABs - Companhias de Habitação. No estado do Amazonas, foi criada, em 1965, a COHAB-AM - Companhia de Habitação do Amazonas e, a partir de sua regulamentação, foi implementada a política estadual de habitacional, que viabilizou moradias na cidade de Manaus e em cidades do interior do estado, entre as quais a cidade de Parintins.
23A COHAB-AM foi transformada posteriormente em Superintendência de Habitação do Amazonas – SUHAB (1995). Em um relatório de 2015, registra-se a construção de 31.924 unidades habitacionais no período de 1967 a 1997, em Manaus e em Parintins, e a construção de três conjuntos habitacionais, num total de 639 unidades, conforme tabela a seguir.
Tabela 1: Conjuntos Habitacionais Financiados pelo BNH e CEF em Parintins-AM, 1968-1988
Conjunto/Órgãos Executores
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Ano de entrega
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Unidades Construídas
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Vitória Régia/IPASEA
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1969
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192
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Macurany/IPASEA
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1987
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171
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João Novo/COHAB
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1988
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276
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Fonte: Relatório da Superintendência de Habitação do Amazonas, período 1967-2015.
24A construção dos conjuntos habitacionais do BNH e, mais recentemente, dos residenciais do PMCMV na cidade de Parintins não difere do que ocorreu em outras cidades brasileiras, como assinalam as pesquisas realizadas sobre o tema, tais como os trabalhos de Maricato, 1987, 1997, 2003 e 2011; Rodrigues, 1991; Shimbo, 1991; Bonduki, 1998; Cardoso, 2013; Amore, Shimbo e Rufino, 2015, que demonstram, sinteticamente: padrão arquitetônico e urbanístico precários, material de baixa qualidade, modelo de moradias padronizadas sem guardar semelhança com as existentes na cidade, grandes conjuntos construídos em áreas periféricas ou distantes da área central, ausência ou inadequação de equipamentos e imposição de novo modo de morar sem preocupação com a inserção urbana, com o ambiente, desrespeitando os laços de vizinhanças, os usos e os costumes do lugar.
25O primeiro conjunto habitacional construído na cidade de Parintins foi o Vitória Régia, no ano de 1969. Os pressupostos de financiamento adotados eram rígidos e exigiam que os futuros mutuários tivessem renda fixa, e somente os servidores públicos atendiam a esse requisito. Em decorrência, a gestão do empreendimento ficou sob a coordenação do Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Amazonas – IPASEA, com recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS e do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo – SBPE, com garantia do Sistema Financeiro de Habitação – SFH e apoio do governo municipal.
26Coube à Prefeitura Municipal de Parintins a concessão de dois terrenos do patrimônio municipal ao IPASEA, conforme Lei no 012/1985, aprovada pela Câmara Municipal, que estabelecia:
Art.1º - Fica o Poder Executivo autorizado a doar duas áreas de terras do Patrimônio Municipal, localizado no antigo Aeroporto Pichita Cohen, sendo a área de 1 (um) situada entre a rua Domingos Prestes e a avenida Paraíba e a área 2 (dois) situada entre as avenidas Nações Unidas e Paraíba, respectivamente na sede do Município de Parintins, ao IPASEA, destinados à construção de um Conjunto Habitacional (Andrade, 2012, p. 395-396).
27Na área, foram construídas 192 unidades de três tipos: as primeiras 28 unidades com 37,95 m², sendo utilizados madeira e tijolos; em seguida, 110 unidades com tamanho de 46,62 m² e, finalmente, 54 unidades de 54,74 m² de área construída, todas edificadas em terrenos padronizados de 450m² (Figura 3). A empresa responsável pelo empreendimento foi a Construtora Novoa & Cia. Ltda., empresa regional com sede na cidade de Manaus (Relatório SUHAB, 2015).
Figura 3 - Modelos das moradias do conjunto Vitória Régia – COHAB-AM, Parintins, 2017
Foto: Crizan G. de Souza, Trabalho de campo, 2017.
28A produção do primeiro conjunto habitacional em Parintins teve impactos econômicos decorrentes dos empregos diretos gerados na construção civil e da circulação de moeda no comércio local, além da implementação de algumas marcenarias e pequenas metalúrgicas, que foram desativadas com a conclusão das obras. Do ponto de vista urbanístico, o conjunto foi construído na periferia da cidade e não foi acompanhado da implementação de novos equipamentos urbanos, sem apresentar mudanças significativas no cotidiano e na vida das pessoas, primeiro porque se destinou exclusivamente a um segmento sociail, os servidores públicos, depois porque é a “forma de manifestação da vida que determina de certo modo a natureza do espaço” (Oliveira, 2000, p. 22).
29Todavia, a construção de 192 unidades habitacionais padronizadas, construídas de froma agrupada e contínua, resultou em múltiplas mudanças sociais e culturais, com relevância no modo de produção e (re)produção do espaço, imprimindo sobre ele as marcas do novo modelo habitacional imposto, sem relação com o modo de morar existente no local.
30O crescimento da cidade que se sucedeu nas décadas seguintes, entre 1970 e 2000, teve no conjunto Vitória Régia, um dos vetores de expansão urbana, com repercussão no processo de urbanização e na estruturação da cidade. As mudanças ocorridas na cidade de Parintins em decorrência da construção do primeiro conjunto de habitação social têm efeitos na produção e reprodução do espaço urbano, que de certo modo não difere do ocorrido em outros centros urbanos, sendo também causa e consequência de como as relações econômicas impõem padrões de organização urbana, criando novos modos de vida e reorganizando formas de atividades que seguem determinados modelos de urbanização difusa (Gama, 1992), que extrapola a territorialidade local.
31O segundo conjunto habitacional construído em Parintins foi o Macurany, entregue no ano de 1987, com 171 unidades habitacionais e que, do mesmo modo que o anterior, beneficiou exclusivamente servidores públicos, porque a população não atendia as exigências de financiamento. A construtora responsável foi a Planecon – Planejamento, Empreendimento e Construção, empresa regional, com a primeira, com sede em Manaus. O modo de financiamento foi similar e o modelo das casas seguia um padrão (Figura 4), com de 55,49 m², dois quartos e mais um cômodo sala/cozinha (Relatório SUHAB, 2015).
Figura 4 - Moradias do conjunto Macurany – COHAB-AM, 1980 - Parintins-AM
Fonte: IBGE, 1990, disponível no acervo Nepecab (foto A); Foto: Crizan G. de Souza, Trabalho de Campo 2017-2018, (Fotos B, C e D).
32A área do conjunto correspondia ao antigo aeroporto da cidade e também foi concedida pelo poder local, conforme a lei 012/85, no seu respectivo Art. 1º, indicando a localização: "Área 1. Norte – 268 metros – com a rua Domingos Prestes. SUL – 268 metros – com a avenida Paraíba. Leste – 155 metros – com a Praça do Povão. Oeste –155 metros – com terreno de propriedade do SAAE – Serviço Autônomo de Água e Esgoto. Perímetro – 846,00²" (Andrade, 2012, p. 395-396).
33Nos trabalhos de campo, não foram identificadas moradias no modelo original, uma vez que os moradores realizaram ampliações e modificações para utilizar o imóvel como complemento de renda, alugando-o no período do festival folclórico. Além disso, promoveram a construção de muros demarcando os limites do lote, passando do quintal coletivo, que caracterizava as cidades amazônicas até meados do século XX, para quintais individuais assinalados pelo signo da propriedade privada.
34A construção dos dois conjuntos revela como as combinações de ações do poder público local, Executivo e Legislativo, se entrelaçam na produção da cidade, criando normas para a doação de áreas públicas para a execução de empreendimentos, visando a atender os previdenciários do IPASEA. À medida que ocorre a expansão urbana e o conjunto vai sendo absorvido pelo tecido urbano, a especulação imobiliária atinge o conjunto e as casas são vendidas. Em 2017, poucos são os moradores originais.
35O terceiro conjunto habitacional, denominado João Novo, se localiza na parte oeste da cidade, entre a avenida Paraíba – estrada do Macurany e rodovia Odovaldo Novo, como mostra a figura 5. Construído num terreno de topografia plana, próximo ao lago do Macurany, o conjunto passou por várias inundações nas grandes enchentes do rio Amazonas. O conjunto totaliza 276 unidades habitacionais com 55,49 m² de área construída, com dois quartos (Figura 5), e está dividido em dois blocos separados pelo Fórum de Justiça e por uma escola.
Figura 5 - Modelo de moradia do conjunto João Novo – COHAB-AM, Parintins-AM, 2017
Foto: Crizan G. de Souza, 2017 e Geisilane T. de Oliveira, Trabalho de campo, Parintins, 2017.
36O conjunto foi construído em 1988 e tinha como órgão financiador a Caixa Econômica Federal, sob coordenação e gestão da COHAB-AM, sendo a mesma construtora responsável pela obra do conjunto anterior. No empreendimento, foram utilizados critérios diferenciados para os beneficiários, sem restrições de faixa de renda nem exclusividade para servidores públicos. As parcelas eram estabelecidas de acordo com a renda do comprador pelo prazo de 25 anos (Relatório SUHAB, 2015).
37O terreno não foi concessão pública, mas adquirido do Sr. João Novo, sendo uma fazenda de gado que passou de terra rural para terra urbana. O processo que levou à venda do terreno derivou, “do receio do Senhor João Novo de ’invasões’ em seus terrenos, por motivo de a cidade estar se expandindo rapidamente, na parte oeste” (Carvalho e Bartoli, 2013, p.11). Essa situação não levou apenas o Senhor João Novo a lotear suas terras; outros proprietários tiveram o mesmo procedimento, o que fez surgir bairros oriundos de loteamentos urbanos, a maioria sem reconhecimento oficial.
38O processo de concessão de terras para a construção dos primeiros conjuntos em Parintins exemplifica como os agentes interferem nos espaços da cidade, o que não é diferente do que acontece em outras cidades brasileiras, em que o BNH “[...] ajudou a criar um modelo de urbano disperso e extenso, que tende a produzir” (Santos, 1994, p. 67) desigualdades sociais, e mostra como determinados segmentos sociais se aliam ao Estado para se apropriarem da cidade em seu proveito. Essa tendência ocorreu em Parintins à época do BNH e continua a ocorrer com o PMCMV, que, de certo modo, é o modelo que se repete em outras cidades da Amazônia, seguindo o mesmo padrão urbanístico.
39Os três conjuntos construídos pelo BNH em Parintins, entre 1968 e 1988, totalizaram 639 unidades habitacionais. Passaram-se 21 anos para que fossem construídas novas moradias populares por meio de recursos públicos, que são os novos conjuntos do PMCMV, abordados no item seguinte.
40A partir dos anos 2000, em decorrência da implantação de instituições de ensino superior e da consolidação do festival folclórico, a cidade de Parintins passa a ser espaço favorável para investimentos na construção de moradia financiada com recursos públicos pelos programas habitacionais, sendo construídos dois empreendimentos – o Residencial Vila Cristina e o Residencial Parintins. Os conjuntos contribuíram para acentuar a expansão urbana e para o aumento do valor da terra pela transformação do solo rural em loteamentos, criando demanda de infraestrutura e serviços urbanos em novos locais adicionados ao tecido urbano.
41Segundo Silva (2013), no fim da década de 1990, a família Vieira, dona de extensas áreas rurais, julgou que era mais rentável lotear suas terras formadas por castanhais e campos de pastagem, repassando-as para empreendedor imobiliário. Essa não foi uma ação individual: a especulação imobiliária ganhou força nos anos 2000, com o aumento da demanda por lotes urbanos, o que implicou na transformação de terrenos rurais em loteamentos urbanos surgidos nos arredores da cidade. Tais empreendimentos atenderam mais aos desejos de lucro dos seus proprietários do que às normas de ordenamento urbano, visto que, até o ano de 2006, o município não possuía Plano Diretor Municipal - PDM (Lei Municipal 09/2006) e não havia nenhuma normatização a respeito, o que continuou a ocorrer mesmo depois da aprovação do PDM.
42Com o crescimento da cidade, permaneceu a valorização da terra e a especulação imobiliária. Os proprietários, a maioria empresários mercantis e pecuaristas, juntaram-se aos empreendedores imobiliários e, associados ao poder público municipal, possibilitaram a implantação de empreendimentos de forte impacto social e ambiental - o Residencial Vila Cristina, que se viabilizou quando o então prefeito de Parintins sancionou a Lei nº 427/2008-PGMP de 2 de setembro de 2008, que autorizava a implantação do residencial numa área de preservação ambiental de 181.163 hectares. Após a autorização para implantação do empreendimento, em 2009 a empresa NV Construtora Ltda. iniciou a construção do Residencial Vila Cristina, com 500 unidades habitacionais financiadas por meio do PMCMV.
43Por se tratar de uma área de proteção ambiental, o primeiro impacto foi no ambiente, com a derrubada de 81 castanheiras e aterramento de nascentes (Silva, 2013). As ações dos órgãos de controle resultaram infrutíferas e o empreendimento terminou por ser construído. O impacto urbanístico não foi menor, pois 500 unidades habitacionais padronizadas, uniformes foram construídas em áreas contínuas, sem projeto paisagístico, nem criação de novos equipamentos urbanos na área ou no entorno, aumentando a pressão sobre serviços públicos existentes (Figura 6)
Figura 6 – Moradia padrão residencial Vila Cristina – PMCMV, Parintins, 2016.
Fonte: Crizan G. de Souza, Trabalho de campo, Parintins, 2016.
44O Residencial Vila Cristina foi entregue em 2013, e os benefícios ficaram restritos à construção das moradias, não sendo implementados os equipamentos urbanos de uso coletivo ou individual. Após a entrega das unidades, a construtora já não é mais responsável por implantar esses equipamentos. Pode-se inferir, por meio das análises, discussões e da observação in loco, que a implementação do conjunto, ao mesmo tempo em que possibilitou o acesso à moradia, resultou num espaço urbano desigual e segregado, dificultando o acesso a bens e serviços urbanos para as populações com menor poder de pressão social e política.
45A ausência de equipamentos e de serviços públicos de educação, saúde, segurança é suprida pela busca em outros bairros da cidade. O comércio e os serviços, como não exigem grandes estruturas e não há necessidade de regulamentação, funcionam de modo precário, operados pelos próprios moradores na área interna do residencial, na própria unidade habitacional, e se constituem numa estratégia de complemento à renda.
46Antes da entrega das 500 casas do Residencial Vila Cristina, ocorrida no segundo semestre de 2013, foi iniciada a construção do Residencial Parintins, com previsão de 890 unidades habitacionais. O projeto resultou da parceria entre a Prefeitura de Parintins e o Governo Federal, por meio do PMCMV, tendo como agente financiador a CEF. Trata-se de empreendimento na faixa 1, destinado à famílias com rendimento bruto mensal, em 2016, de até R$ 1.600,00, na modalidade PMCMV-Recursos do Fundo de Arrendamento Residencial - FAR. As unidades habitacionais são casas conjugadas construídas num terreno de 234 m², sendo a área específica de cada unidade de 34,79 m² (Figura 7).
Figura 7 – Moradia padrão e arruamento do residencial Parintins – PMCMV, Parintins-AM, 2017.
Foto: Crizan G. de Souza, Trabalho de campo, 2017.
47A CEF assumiu a atribuição de receber as propostas para a construção, análise e aprovação do projeto e posterior contratação do empreendimento. A construtora habilitada e contratada pela CEF foi a mesma que construiu o Residencial Cristina, a NV Construtora, que iniciou o trabalho em 2013, com previsão de entrega em 2015. No encerramento da pesquisa de campo que deu origem a este artigo, em dezembro de 2017, a obra ainda não havia sido concluída.
48A Prefeitura Municipal de Parintins ficou responsável pela parte social, ou seja, por cadastrar e selecionar as famílias beneficiárias sendo pré-selecionadas 890 famílias e encaminhadas à CEF. Em 2015, a Superintendência Regional da CEF no Amazonas realizou o sorteio de 690 beneficiários, que foram repassados à agência da CEF em Parintins para assinaturas dos contratos. Porém, durante o ano de 2016 não houve avanços, e em janeiro de 2018 ainda não estavam concluídas as assinaturas dos contratos.
49A não conclusão do Residencial Parintins e a incerteza dos inscritos e pré-selecionados em relação ao acesso às moradias demostram como o capital financeiro, os proprietários de terras e os promotores imobiliários atuam e, aliados ao estado, reproduzem no espaço urbano de Parintins a mesma lógica que torna a cidade um negócio rentável. Esta tendência limita o acesso à moradia e, ao mesmo tempo, aumenta a demanda por imóveis devido à busca e ao interesse de habitar e viver na cidade. Com isso, cresce a especulação imobiliária na cidade, enquanto 890 unidades habitacionais estão quase prontas há três anos.
50A produção do espaço se realiza de modo externo e interno, a partir do trabalho, e tem na apropriação privada uma característica da lógica do valor de troca da produção no espaço urbano. As novas estratégias são empreendidas pelos diversos agentes produtores do espaço, que, por meio de suas ações, oferecem sobrevida às relações capitalistas, afinal, como assegura Sandra Lencioni (2010, p. 69), “o que menos importa é o porte da cidade e o que mais importa é a acumulação por meio da produção do espaço urbano”.
51Ao se concluir o texto, reforça-se o entendimento de que o estudo da moradia pode revelar o modo como se produz a cidade, especialmente quando se analisa a habitação social enquanto política pública para prover moradia a determinados segmentos da sociedade e, principalmente, quando isso ocorre numa cidade da Amazônia, em que foram construídas recentemente 1.390 unidades habitacionais do PMCMV, que não diferem do modo como foram construídos os conjuntos anteriores financiados pelo BNH, com características diferentes do modo pretérito de morar na cidade.
52Embora o quantitativo de casas seja importante, importa compreender como uma política pública nacional, ao ser implantada numa cidade do interior da Amazônia, produz as dimensões gerais da reprodução ampliada do sistema capitalista. Ou seja, o texto aponta que o processo de produção da moradia, num lugar específico como a cidade de Parintins - Amazonas, num dado período, de 1969 a 2017, não está dissociado do modo como a sociedade produz seu espaço, ao mesmo tempo em que garante a reprodução para satisfazer às suas necessidades.
53Esse aspecto mostra-se comprovado por meio dos dados levantados e das informações produzidas. Do mesmo modo, constatou-se que o processo é local, regional e nacional, e se constitui enquanto totalidade, sendo resultado da ação de vários agentes que agregam estratégias e interesses, bem como produzem conflitos e contradições que são inerentes ao lugar, mas também se articulam com interesses distantes como parte do processo de produção do espaço, que está cada vez mais articulado com a reprodução ampliada do capital.
54Também se confirmou, que no processo de execução dos empreendimentos, especialmente os mais recentes, empresas locais, poder municipal e órgãos de controles se associam não havendo fiscalização das inúmeras falhas que são visíveis e foram apontadas nas entrevistas dos moradores do Residencial Vila Cristina quanto a falta de equipamentos, qualidade das unidades, rede de esgoto e abastecimento de água. Do mesmo modo, o atraso na entrega do Residencial Parintins não é objeto de questionamento.
55Os dados da pesquisa arrolados no artigo mostram que os empreendimentos beneficiaram diretamente as empresas, especialmente as da construção civil, que passam a dispor de fonte de financiamento da casa pronta sem riscos econômicos e com projetos que não primam pela qualidade arqutetônica e urbanística. Mesmo o PMCMV, executado num governo popular, não incorporou projetos alternativos como a autoconstrução, tampouco garantiu financiamentos diretos ao beneficiário final.
56Portanto, os dados e as análises de campo possibilitam concluir que a produção da habitação social em Parintins proporciona mudanças no espaço urbano, que podem ser identificadas como ações concretas, tais como a expansão da cidade e o número de empreendimentos construídos. Pode-se concluir também que os projetos de habitação construídos em Parintins no início não se vinculam à inserção urbana; isso só se dá com o tempo, quando a estrutura do conjunto é absorvida pelo tecido urbano.
57Observa-se também mudanças no modo de vida, sendo a mais importante a ampliação no território de relações sociais portadoras de estratégias de resistência à reprodução capitalista cada vez mais presente na cidade. Nesse sentido, se a construção dos conjuntos residenciais não garante o direito à cidade, o acesso à infraestrutura e aos serviços urbanos, possibilita formas de resistência nem sempre explícitas, mas presentes na vida cotidiana.