1Partindo do pressuposto de que as discussões sobre saúde são pouco trabalhadas nas escolas e que o ensino de Geografia, na maioria das vezes, não aborda de maneira integral os temas transversais, objetivou-se neste trabalho responder as seguintes questões: de que forma o ensino de geografia pode trabalhar a saúde como tema transversal nos conteúdos geográficos? O ensino de geografia pode contribuir para o entendimento dos problemas de saúde locais? O campo da Geografia da Saúde tem espaço de atuação no ensino básico de geografia?
2Este artigo foi desenvolvido a partir de uma pesquisa exploratória de abordagem qualitativa, que utiliza como método o estudo de caso. Os instrumentos utilizados foram a revisão bibliográfica, o levantamento e coleta de dados secundários nos bancos de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Secretaria de Saúde do Município de Olinda, além de se tratar de uma investigação participante. Neste sentido, utilizaram-se propostas pedagógicas aplicadas ao ensino da geografia, que contemplaram a compreensão dos problemas de saúde locais, com base nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Estas proposições foram aplicadas na sala de aula com os estudantes e os educadores, através de uma sequência didática.
3A instituição selecionada para a vivência foi a Escola Estadual Guedes Alcoforado, que se localiza no bairro do Varadouro, município de Olinda, Pernambuco. A escolha se deu em função da observação empírica dos problemas urbanos enfrentados pela comunidade escolar. Outro fator que se destaca nessa escolha está na importância da posição geográfica da escola, que se situa bem próximo ao sítio histórico da cidade, área de grande dinâmica econômica e turística (Figura 1).
Figura 1 – Localização da Escola Guedes Alcoforado em relação ao Centro Histórico de Olinda, Brasil
Fonte: Autores, 2019.
4No entanto, apesar da localização privilegiada (Figura 1), as condições socioambientais no entorno da escola ainda são precárias, principalmente com relação à vulnerabilidade para doenças relacionadas às deficitárias condições de saneamento do município. No entorno do ambiente escolar é possível observar diversas áreas de acúmulo de resíduos depositados de maneira irregular, redes de esgoto expostas, além de outras tantas formas de degradação do ambiente urbano que impactam diretamente na saúde da população.
5Neste contexto, optou-se por levar essa realidade para dentro da sala de aula e discutir com os estudantes a repercussão desse cenário nas condições de vida da população. A elaboração das ideias e temas que nortearam a sequência didática se concretizam a partir da reflexão que o ensino de Geografia também deve ser um aliado na compreensão dos determinantes em saúde e na promoção à saúde.
6Este trabalho foi estruturado assim: na primeira parte buscou-se evidenciar a relação entre a Geografia e a Saúde, com ênfase nos debates sobre a saúde urbana. Na segunda sessão, discutiu-se como o ensino de Geografia na educação básica é capaz de sensibilizar os estudantes com relação aos problemas que podem apresentar consequências para saúde no cotidiano deles. E por fim, os resultados da experiência vivenciada na Escola Guedes Alcoforado, no município de Olinda – PE, que pode servir como base para que outras intervenções dessa natureza sejam desenvolvidas, almejando assim, construir um conhecimento geográfico crítico, capaz de sensibilizar as pessoas com relação a complexidade dos problemas de saúde enfrentados no espaço vivido.
7A Geografia enquanto ciência moderna se constitui como uma área do conhecimento preocupada com as questões relacionadas ao espaço e que determinam as condições de vida da população nas diversas realidades. Gomes (2017) objetiva à essa ciência a função de apresentar o mundo em sua realidade e complexidade, utilizando como ferramenta as diversas formas de representação do espaço terrestre. Esse geógrafo destaca que “a imagem da Terra poderia mostrar os princípios harmônicos que se escondiam no aparente caos da diversidade” (Gomes, 2017, p 72).
8Diversas doenças surgiram e se intensificaram por meio de transformações estruturais no espaço geográfico. Por exemplo, o surgimento dos aglomerados populacionais em torno das prematuras indústrias inglesas ocasionou inúmeros problemas à saúde da população. De acordo com Mumford (1998), a dificuldade de locomoção e a necessidade de moradias próximas às fábricas pressionaram os trabalhadores a se concentrarem em locais não adequados, ocasionando uma superlotação do espaço. Utilizando como exemplo a metafórica cidade de Coketown, o autor descreve a desordem que se instalou na Inglaterra durante o surgimento das primeiras indústrias. Muitas aglomerações urbanas originaram-se em meio ao caos instaurado pela revolução paleotécnica com espaços habitados submersos no lixo e nos dejetos oriundos da própria população.
9A relação entre o espaço habitado e as condições de manutenção da saúde dos indivíduos foi observada desde os séculos passados. Por exemplo, Guimarães, Pickenhayn e Lima (2014) descrevem a importância dos estudos de Hipócrates, durante os anos de 460 a.C. a 377 a.C. Para esse filósofo grego, o médico ao exercer seu oficio em uma nova cidade, necessitava primeiro conhecer sua posição com relação aos ventos e aos movimentos do sol, além de considerar a qualidade da água consumida pela população.
10Já no século XX, iniciou-se o desenvolvimento de uma área interdisciplinar entre a Geografia e a Saúde, que ficou conhecida como Geografia Médica. De acordo com Mendonça (2017), nesse ramo da ciência a preocupação primordial estava focada nas relações espaciais de adoecimento da população, não se preocupando com os aspectos de prevenção e disseminação espacial das enfermidades, o que se construía nesta época poderia ser chamado de uma geografia das doenças.
11No entanto, Barcellos, Buzai e Handschumacher (2018) destacam que por volta de 1976 ocorreu uma mudança na denominação da geografia médica para a geografia da saúde através de duas linhas principais de abordagem. De “um lado, a geografia das doenças (campo tradicional da geografia médica) e, do outro, a geografia dos serviços de saúde (campo tradicional da geografia dos serviços)” (Barcellos; Buzai; Handschumacher, 2018, p 8). Esse avanço foi responsável por articular os diversos conhecimentos sobre o processo saúde-doença, proporcionando a valorização das análises geográficas a cerca dos problemas de saúde, das condições de vida, do acesso aos serviços e a equidade dos sistemas de saúde.
12Acrescentando ao debate, Junqueira (2009) disserta que a Geografia da Saúde, por sua vez, se constitui como um conhecimento atento as condições de saúde dos indivíduos. De maneira geral, considera-se que esse ramo da ciência geográfica fundamenta-se na análise da distribuição espacial das condições de saúde, auxiliando na prevenção das doenças e implantação de políticas públicas capazes de garantir as condições de sobrevivência saudável das populações. Barcellos, Buzai e Handschumacher (2018) ainda consideram que este novo ramo da Geografia, por sua história, conceitos e métodos, contribui com às questões atuais relacionadas aos fenômenos de emergências patológicas, à difusão de hospedeiros e agentes infecciosos ou à produção das desigualdades em saúde.
13Para Guimarães (2015) a saúde é concebida como uma reprodução do espaço vivido, por meio das interações socioespaciais e a manutenção das condições de vida no espaço. Breilh (2013) corrobora com a temática afirmando que os padrões sociais de ocupação territorial apresentam consequências diretas para a saúde da população. O espaço vivido, torna-se o lugar onde se concretizam as relações de saúde e doença, constituindo-se assim como um objeto de estudo da Geografia.
14Os espaços urbanos, devido às desigualdades econômicas e sociais que se apresentam de forma mais evidente necessitam ser interpretados de maneira complexa e interdisciplinar. Guimarães (2001) defende que os paradigmas científicos e as matrizes discursivas dos serviços de saúde guardam estreita relação com o poder político e o desenvolvimento da vida urbana. Neste sentido considera-se que a relação entre a saúde e a produção do espaço urbano se configuram através da articulação entre os fatores socioespaciais característicos destes espaços, repletos de contradições e desigualdades, em sua relação com a origem das enfermidades que se propagam dependendo das condições socioespaciais dos territórios.
15Com a transição demográfica recente e a concentração da população mundial em áreas urbanas, Caiaffa et al. (2008) observa que ocorreu um processo de urbanização extensiva. Neste sentido, pensar os problemas de saúde que acometem as pessoas é pensar em processos de adoecimento que se difundem nos espaços urbanos. Estas áreas se sobressaem em relação às demais devido à materialização do processo de produção e reprodução econômica, de acordo com Santos (2014) isto ocorre com base na lógica capitalista que fundou as cidades industriais. Assim, a saúde urbana se estabelece na relação entre os fatores sociais e físicos que definem o contexto espacial urbano.
16A concretização do urbano se dá através da dimensão artificial que a paisagem apresenta nesses espaços. “As condições ambientais são ultrajadas, com agravos à saúde física e mental das populações. Deixamos de entreter a natureza amiga e criamos a natureza hostil” (Santos, 2014, p 48). A transição dos modos de vida ligados a natureza, caracterizados pelo modelo feudal, para a realidade capitalista ligada ao desenvolvimento das indústrias e o surgimento das cidades provocou alterações no apanágio ambiental, resultando em consequências negativas à saúde dos habitantes.
17Os fatores que interferem nas condições de saúde da população urbana interagem entre si ou independentemente em ambientes físicos, sociais, econômicos e políticos. São esses fatores que se buscou levar para dentro da escola nas aulas de geografia, de forma que os estudantes fossem instigados a perceber que o espaço onde as pessoas desenvolvem suas relações cotidianas na cidade, são os mesmos espaços de vulnerabilidade e adoecimento.
18Numa perspectiva histórica Lacoste (2012) alertava para o caráter enfadonho da geografia como uma disciplina escolar dispensável e desconectada da realidade, uma vez que o real sentido deste conhecimento era camuflado e abordado de maneira simplória, constituindo o que o autor chamou de Geografia dos Professores. Entretanto, nos últimos anos, essa ciência passou a ganhar novos sentidos, aliando-se a causas próximas da realidade experimentada pelos estudantes e preocupada com à realidade local dos indivíduos.
19De acordo com Brasil (1998), no documento que regula e define os PCN da educação básica brasileira, a saúde e o meio ambiente estão dispostos como temas transversais e interdisciplinares. Isso significa que esses conteúdos devem ser abordados integralmente por todos os componentes curriculares da educação básica, devido a sua abrangência e importância, não sendo suficiente a abordagem desses conteúdos de forma isolada. Os temas transversais apresentam dentre as condições para serem definidos e escolhidos “a urgência social, abrangência nacional, possibilidade de ensino e aprendizagem no ensino, além de favorecer a compreensão da realidade e a participação social” (Brasil, 1998, pp 25 – 26). Por meio desses critérios se torna imprescindível que as disciplinas escolares, da qual a Geografia faz parte, abordem essas temáticas contribuindo com a formação humana e intelectual dos estudantes.
20A preocupação social e humana, além do cuidado ambiental deve ser uma pauta permanente nos centros de promoção e disseminação do conhecimento científico em todos os níveis. Para Freire (1993), a escola se constitui como um local onde o cidadão torna-se livre por meio do conhecimento que adquire. Assim sendo, a escola necessita assumir um papel crítico da realidade em que está inserida. Para o alcance de tal objetivo, Cavalcanti (2012) defende que o estudo do lugar, do bairro ou das áreas vivenciadas pelos estudantes deve ser considerado, podendo levá-los a compreender a dinâmica social em que a escola se insere.
21O ensino da Geografia aliado as preocupações da saúde na educação básica, pretende garantir o acesso dos estudantes a discussão dos temas transversais de forma contextualizada. Porém, não é interessante que se tratem as questões de saúde em momentos isolados, focando apenas em doenças específicas, durante o período de surto epidêmico de algum agravo. A escola necessita despertar para seu papel de formar pessoas críticas, capazes de compreender os diversos problemas que os circundam. Assim, o estudo da saúde por meio da geografia se mostra como uma maneira do educador desenvolver o conteúdo básico disciplinar relacionando-o com as questões que são tão marcantes no cotidiano dos estudantes.
22Essa relação entre áreas distintas do conhecimento só é possível a partir do momento que a escola se percebe como agente formador da realidade de cada lugar. A produção dos espaços passa pelo processo de formação de seus cidadãos. De acordo com Freire (2016), o caráter bancário da educação necessita ser superado para que os estudantes se construam como peças fundamentais e atuantes no processo de ensino/aprendizagem, sendo responsáveis pelo conhecimento construído coletivamente, e utilizado para bens diversos no local onde cada um se insere.
23Destarte, Braga (2015) afirma que a formação profissional dos educadores de geografia no Brasil não contempla temas referentes à Geografia da Saúde. No entanto, essa área do conhecimento geográfico está presente como um dos temas transversais destacados nos PCN, sendo um dos objetivos a serem alcançados também pelos educadores de Geografia do Brasil. Os temas e conceitos que dizem respeito à saúde devem ser trabalhados por todas as disciplinas estudadas na educação básica, e tal prática é essencial para a prevenção de doenças e promoção do bem-estar das populações. Neste sentido, o Quadro 1 destaca algumas possibilidades para que a saúde possa ser trabalhada no ensino de Geografia, a partir de temas dispostos no currículo atual.
Quadro 1 - Conteúdos de Geografia relacionados à Saúde na Educação Básica
Fonte: Autores, 2017.
24Atualmente, os espaços de disseminação do saber não conseguem mais negligenciar tantos conteúdos vivenciados no dia a dia dos estudantes. Os conteúdos escolares trabalhados pela Geografia na educação básica são, na grande maioria das vezes, temas oportunos para que se desenvolvam conexões entre as demais ciências ensinadas no Brasil. Devido ao caráter integrador do conhecimento geográfico, é importante que os educadores estejam atentos para as diversas possibilidades de interligação entre o conhecimento científico oportunizando aos educandos a compreensão da realidade vivida através dos conhecimentos estudados na sala de aula.
25Desde que o município de Olinda passou por transformações em seu espaço geográfico, e as áreas urbanas se constituíram como as que são conhecidas hoje, pouco foi desenvolvido com relação ao saneamento ambiental. Mesmo nas obras desenvolvidas pela Companhia de Habitação Brasileira (COHAB) nos anos de 1970, já era possível notar as péssimas condições de estrutura disponíveis para o saneamento ambiental. De acordo com Novaes (1990) a maioria dos conjuntos residenciais que foram construídos não apresentava estrutura de esgotamento sanitário, obrigando as pessoas a persistirem nos riscos ligados a este problema urbano. Boa parte da população do município corre riscos de contrair doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado.
26Partindo dessa problemática do município foi elaborada uma proposta de ação pedagógica em forma de sequência didática buscando refletir sobre os problemas de saúde urbana (Quadro 2). Esta intervenção se fundamentou em dados coletados anteriormente, por meio de pesquisas documentais e do mapeamento das áreas de risco, nos quais se observou os baixos índices de cobertura do saneamento ambiental, constituído pela falta de esgotamento sanitário, coleta de resíduos sólidos, drenagem urbana e o acesso da população ao abastecimento hídrico. As atividades foram realizadas com os estudantes do primeiro ano do ensino médio, com a ajuda e supervisão da professora regente da disciplina de Geografia na escola.
Quadro 2 - Planejamento da Sequência didática
Fonte: Autores, 2017
27Seguindo o planejamento definido no Quadro 2, inicialmente realizou-se uma aula dinâmica e integrativa, na qual foram apresentados aos estudantes dados acerca da ocorrência de algumas Doenças Relacionadas ao Saneamento Ambiental Inadequado (DRSAI) durante os últimos anos no município de Olinda. Estes dados foram coletados através do Sistema de Informações sobre Agravos de Notificação (SINAN), na plataforma Tabnet/DATASUS, e apresentados aos estudantes através de um quadro.
28Para ilustrar a relação entre os fatores urbanos e o adoecimento da população foram apresentados os dados de dengue do município durante o ano de 2016, relacionando-os com a cobertura de abastecimento hídrico, um dos elementos que compõem o saneamento ambiental (Figura 2). A escala de análise foram os setores censitários do IBGE e a divisão territorial em bairros do município, oriundos do Censo de 2010 e o software usado para a construção do mapa foi o Quantum Gis 2.18. Os dados de dengue foram utilizados devido ao elevado número de casos em um período específico, contribuindo para que os estudantes percebam a relação existente entre os dados de saneamento ambiental e as notificações desta doença no Município. Durante a aula também foram expostos os mapas que relacionam a incidência desta doença com o esgotamento sanitário e a coleta de resíduos sólidos no município. Dessa forma, os estudantes observaram que há uma relação direta entre a precariedade no serviço de saneamento ambiental com os casos de dengue ocorridos no município.
Figura 2 – Domicílios com Abastecimento Hídrico por Setores Censitário de 2010 e Taxa de Incidência dos Casos Notificados de Dengue no ano de 2016, em Olinda, Brasil
Fonte: IBGE, 2010 e Cevao, 2017. Elaborado pelos autores, 2019.
29O saneamento ambiental é um dos principais fatores que definem a qualidade de vida humana num local. Costa et al. (2002) afirma que a saúde da população também depende do saneamento ambiental e do meio ambiente cuidado. Assim, foi elaborada uma aula destacando como ocorreu o processo de urbanização do município e como esse processo acarretou transformações que se perpetuam ainda hoje no espaço ocupado pelos educandos.
30Para que os estudantes percebessem de maneira prática os problemas que a urbanização pode provocar, realizou-se uma observação prática dos problemas encontrados no entorno da escola. Zabala (1998) destaca a importância de atividades dinâmicas e interligadas com o cotidiano dos estudantes no desenvolvimento da aprendizagem. Neste sentido, as experiências dos estudantes relacionadas à falta do saneamento ambiental e dos problemas que o processo de urbanização de algumas áreas pode provocar a população local foi utilizada como base para que se desenvolvessem as atividades planejadas.
31A atividade de campo aconteceu no entorno da escola, cujo objetivo foi relacionar os aspectos de urbanização das cidades com os determinantes de saúde. O roteiro percorrido durante a aula pode ser observado na Figura 3, com o destaque em azul.
Figura 3 – Percurso da Atividade de Campo no Canal da Malária, Olinda – PE, Brasil.
Fonte: Google Earth, 2018. Adaptado
32Durante o percurso observou-se algumas áreas de deposição irregular dos resíduos sólidos (Figura 4). Os estudantes, neste momento, já começaram a perceber que os elementos visualizados naquela paisagem tinham uma relação com o processo de urbanização da cidade, estavam associados à precariedade dos serviços públicos e aos hábitos da própria população local, favorecendo um cenário de degradação ambiental e vulnerabilidade a saúde.
Figura 4 – Deposição irregular de lixo ao longo da Avenida Joaquim Nabuco, Olinda – PE, Brasil.
Fonte: Autores, 2017
33O ápice do trabalho de campo aconteceu na observação e discussão às margens do Canal da Malária (Figura 5). Neste momento, os estudantes observaram a paisagem e levantaram informações com relação ao saneamento ambiental, principalmente sobre despejo de resíduos das casas próximas ao canal e sobre o destino dos efluentes das mesmas residências.
Figura 5 – Observação das Condições ambientais do Canal da Malária
Fonte: Autores, 2017
34A interação e participação dos estudantes na aula de campo, simplesmente por passarem algumas horas fora da rotina escolar foi muito positiva. Cavalcanti (2012), ao abordar a importância dos estudos locais, ligados a vivência dos estudantes, também considera que os trabalhos de campo apresentam importância singular no processo de aprendizagem.
35Nas aulas posteriores foi discutida a relação entre os conteúdos vivenciados em sala, antes e após a atividade de campo. Os estudantes produziram relatos de suas observações e apresentaram, criando um espaço de debate e troca de experiências. Nesses relatos os estudantes foram desafiados a apresentar a relação existente entre o saneamento precário e as doenças presentes no cotidiano deles.
36Por meio das atividades desenvolvidas durante esta sequência didática, os educandos passaram a conceber criticamente a realidade em que estão inseridos, passando a compreender como as condições de saúde, definidas por Guimarães (2015), se materializam no espaço vivido, conforme se percebe nos relatos elaborados pelos estudantes:
O que mais observei durante a aula foi o lixo acumulado em lugares que tinham pessoas vendendo comida, restaurantes e mercados. Esses lugares tinham mal cheiro, bichos nojentos e esgoto passando nas calçadas. Quando cheguei no canal fiquei enjoado com o mal cheiro, tinha um cano de esgoto que estava correndo água suja e fedorenta.
37Como o estudante descreveu, a realidade das condições de habitação no entorno da escola é precária do ponto de vista socioambiental. Existem diversas áreas poluídas, em que praticamente não existe nenhum cuidado com relação ao saneamento, tanto pelo setor público como pelos próprios moradores (Figura 6). Nesta perspectiva, os estudantes passaram a perceber que os próprios moradores precisam cuidar e evitar a poluição dos espaços onde habitam.
Figura 6 – Estudantes observam resíduos expostos em local inapropriado de maneira irregular
Fonte: Autores, 2017.
38Os estudantes também foram capazes de perceber como as áreas desprovidas do saneamento ambiental impulsionam o surgimento das diversas doenças. Tal fato pode ser compreendido no relato de outro grupo.
Quando chove não tem para onde a água escoar e ele (o Canal da Malária) acaba transbordando e as ruas e as casas ficam totalmente alagadas e após a chuva, por causa do contato com a água várias pessoas ficam com doenças e mesmo sem chover, tem doenças tipo, dengue, leptospirose, zika, etc.
39Os mesmos passaram a observar criticamente as áreas poluídas, identificando que algumas vezes eles próprios, e seus familiares, também contribuem com a poluição. Nesta perspectiva, conforme corrobora Freire (2016) os estudantes passam a ser agentes atuantes no processo de aprendizagem. Um dos grupos destacou que “devemos nos conscientizar e parar de jogar lixo na cidade, para o bem de todos e também do meio ambiente” (Relatório de Campo do Grupo A). O despertar da noção de que todos somos responsáveis pelo cuidado com o espaço em que habitamos é indispensável na formação dos estudantes.
40Além de se perceberem como personagens atuantes nesse processo, eles também foram capazes de identificar que muitas das doenças que chegam até eles passam pela falta de infraestrutura do município. Tal concepção fica clara no que descreveu um dos grupos:
O rio (Canal da Malária) está transmitindo muitas doenças graves que podem até matar. E isso tem que ser resolvido logo. O prefeito tem que tomar certa providência. Não é só chegar na porta de um cidadão e pedir voto, mas sim fazer melhorias para o povo olindense.
41Em consonância com Caiaffa et al (2008), eles perceberam que os cuidados com os espaços públicos dependem do esforço integrado, por parte dos órgãos públicos e da população. Assim, esses estudantes podem ser considerados como disseminadores das informações nas comunidades em que vivem, contribuindo para o cuidado com as áreas precárias em relação à saúde, seja pelo saneamento ambiental, pela poluição ou pela falta de assistência médica. Esse tipo de intervenção pedagógica é imprescindível para que os educandos sejam capazes de compreender a realidade em que se inserem de maneira crítica, tornando-os capazes de pensar no sentido de questionar os problemas mais simples e os mais complexos do espaço que habitam.
42A expansão dos centros urbanos conduziu a caminhos que precisam ser pensados e analisados do ponto de vista socioambiental, considerando a saúde e a qualidade de vida das pessoas. A compreensão dos problemas que acometem a população passa pelo discernimento das questões passíveis de prevenção, do controle das deficiências que esses espaços apresentam e que se concretizam através da falta de cuidado e de atenção por parte das políticas públicas.
43As estratégias utilizadas no ensino de Geografia propostas em forma de sequências didáticas podem servir como uma maneira de proporcionar a sensibilização dos estudantes, com relação aos problemas urbanos e suas consequências na saúde. A aproximação do conhecimento científico com o conhecimento empírico é essencial no ensino de Geografia. Transpor os conhecimentos de maneira a conciliar as experiências dos estudantes, principalmente os relacionados com o bairro e a cidade em que vivem, faz com que o conhecimento geográfico seja mais prazeroso e menos distante da realidade. Sobre essa metodologia, a Geografia escolar se torna uma possibilidade para a promoção da saúde.
44O ensino da Geografia da Saúde na educação básica é uma possibilidade que pretende auxiliar a população por meio dos estudantes na prevenção de doenças. Por meio do contato com informações do cotidiano os educandos compreendem as desigualdades marcantes de sua comunidade. O estudo e análise dos dados estatísticos das doenças no próprio bairro ou cidade ajudam os estudantes a desenvolverem o senso crítico indispensável a todo cidadão que busca construir uma sociedade justa e igualitária.
45Os educadores em Geografia que pretendem trabalhar de forma interdisciplinar com a temática da saúde necessitam estar atentos a realidade socioambiental do espaço escolar que estão inseridos. Os procedimentos pedagógicos apresentados neste trabalho podem ser adaptados a cada realidade espacial e temporal. Sugere-se que temas relacionados aos aspectos políticos também sejam envolvidos no planejamento e na aplicação de futuras práticas, analisando a disponibilidade de serviços públicos como a coleta de resíduos sólidos no município, a organização espacial e a utilização dos sistemas de esgotamento sanitário, bem como a existência e atuação dos sistemas de vigilância sanitária, ambiental e de saúde. Além disso, também é possível o desenvolvimento de parceria com os profissionais dessas áreas, instigando os estudantes a elaborarem propostas de ações voltadas à melhoria da situação estudada.
46Como os temas referentes a Geografia da Saúde não são tão abordados na educação básica, é preciso que os educadores estejam atentos a sempre que considerarem oportuno realizar a relação entre os temas relacionados a saúde e os conteúdos comuns ao ensino geográfico. A experiência ora apresentada não deve ser vista como um fim do processo pedagógico, mas como um meio. É a partir da compreensão das doenças que o ensino de geografia poderá auxiliar na prevenção das mesmas, possibilitando os estudantes de serem agentes transformadores da realidade em que estão inseridos.
47A Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco, pelo fomento a pesquisa e realização deste trabalho. Aos estudantes, a equipe gestora e a educadora de Geografia da Escola Estadual Guedes Alcoforado (Olinda-PE, Brasil), que desenvolveram junto com os autores as atividades propostas, contribuindo ativamente para os resultados apresentados neste texto