- 1 Segundo Toynbee “Em grego helenos referia-se a uma civilização, oriunda da região situada sobre o g (...)
1Este artigo é o primeiro de uma série, cujo objetivo é analisar o desenvolvimento da ciência geográfica na civilização helênica1. Pois, de acordo com Toynbee (1983) o mundo helênico resultou em uma forte interconexão entre o mundo grego e os saberes oriundos de outras regiões geográficas, em especial o oriente. Fato este que propiciou uma das maiores transformações em toda a história do pensamento ocidental e, por conseguinte, com fortes impactos na interpretação e no saber geográfico.
2No presente artigo analisaremos o papel das Mitologias de Gaia, a partir dos três principais construtos mitológicos do mundo grego: o homérico, o hesiódico e o órfico, cuja análise foi baseada na lexia Gaia que posteriormente estará envolta com a Geografia, por isso intitulamos o artigo de As Mitografias de Gaia. Para tal propósito, analisamos as obras: “A Ilíada” e “Hinos Homéricos” de Homero; “Teogonia – a origem dos deuses” de Hesíodo, e os fundamentos da mitologia órfica, que não são oriundos de um autor específico, já que se trata de um mito. O segundo artigo tratou da noção de Fisiologia de Gaia a partir das discussões dos filósofos pré-socráticos, que formularam o conceito ontológico de Cosmos, que permitiu a sistematização da ciência geográfica no helenismo.
3Finalmente o último artigo tratará das obras de Teofrasto e Estrabão que segundo a nossa hipótese representam o mais elevado estágio de desenvolvimento da civilização helênica e cujas reflexões geográficas fundamentaram os futuros postulados de que tal qual a sociedade, a natureza também possui uma historicidade e mais, uma região geográfica é o locus em constante dinâmica histórica entre a sociedade e a natureza.
4Segundo Paul Claval (2006) a geografia formou-se na antiguidade, que para Gomes (2010) já seria a responsável pela descrição e pela criação de uma imagem de mundo.
5Para Konrad Kretschmer (1942) se a geografia se constituiu como disciplina científica na mais distante antiguidade e, por fim Azevedo (1965, p.7-8) afirmou que a evolução da ciência geográfica na antiguidade estava ligada diretamente aos conhecimentos produzidos na e sobre a bacia do mar Mediterrâneo.
6Também, outros fatos impelem a buscar os principais elementos que formaram a geografia na antiguidade, tais como a lexia geografia, que segundo Paul Claval (2006), apareceu pela primeira vez na obra De Mundo de Aristóteles. Para Blanco (1991, p.53-59), o termo geografia surgiu com Eratóstenes que também poderia ser considerado o primeiro geógrafo da antiguidade, seguido de Hecateu, (BLANCO, 1991, p. 59). Já Estrabão vai mais além, dizendo que coube a Homero fundar a ciência geográfica (1991, p. 224), posição que também foi defendida por Paul Claval ao relatar que “Homero foi o primeiro geógrafo” (2006, p. 30).
7Além desses pressupostos, a lexia Geografia intitulou importantes obras de autores renomados, tais como a Geografia de Eratóstenes e a Geografia de Estrabão, bem como o nome Geografia que fora dado à terceira obra do livro Tetrabiblos (PTOLOMEU, 1940). Porém, não somente contribuíram para o saber geográfico os autores que se utilizaram da lexia Geografia como título de capítulo ou de obras, mas, também, autores cujas temáticas fizeram parte do corpus que a envolveu, como os escritos de Anaximandro, Eudoxo, Hecateu, Hiparco, Políbio, dentre outros.
8Para Toynbee (1983, p. 15) o termo helenismo passou a fazer parte do vocabulário ocidental a partir do segundo milênio a.C., preservando sua identidade até o século VII da Era Cristã. Sendo que “suas primeiras manifestações ocorreram às margens do mar Egeu e se propagou pelo mar Negro, pelo Mediterrâneo, chegando atingindo a Ásia Central, a Índia e o norte da África” (TOYNBEE, 1983, p.15). Esta conexão entre culturas e populações além da miscigenação racial também propiciou as trocas de saberes, sabores e, inclusive, a migração forçada de animais e vegetais entre o oriente e o ocidente.
9Historicamente o período helenístico inicia-se com a conquista da Grécia por Felipe II (382 – 336 a.C.). Mas foi com Alexandre, o Grande (356 – 323 a.C.), que a influência grega se expandiu para vastas regiões do mundo antigo, unindo elementos das culturas gregas e orientais, fazendo com que o centro dos estudos científicos desloque-se de Atenas para Alexandria, que, por sua vez, passa a ser a capital do reino egípcio dos Ptolomeus, sendo que a organização cultural fora confiada a Demétrio de Fáleron (séc. IV a.C.), aluno de Teofrasto. Foi ele quem convidou Estratón de Lámpsaco (335 – 269 a.C.) para ser educador, e que levará com ele parte da biblioteca do Liceu e vasto material científico existente nos diferentes centros culturais da Grécia e da Ásia, dando origem ao Museu e à Biblioteca de Alexandria, que marcaram profundamente a cultura helenística.
10Perante o helenismo, os campos do saber se consolidaram em zonas mais bem definidas, já não houve a preocupação em se criar sistemas filosóficos gerais nem vastas sínteses, sucederam-se rigorosas investigações sobre problemas particulares. Esta tendência se explica, também, pelo método de especialização adotado pela ciência helenística, bem como pelos recentes descobrimentos, que eram confrontados e reinterpretados, onde os antigos sistemas eram renovados. Dentre as várias áreas que se destacaram, a Astronomia e a Geografia são de especial interesse.
11Na astronomia destaca-se Aristarco de Samos (310 – 230 a.C.), discípulo de Estratón de Lámpsaco, para ele as estrelas fixas e o sol estão imóveis, e a Terra giraria ao redor do sol, seguindo a circunferência de um círculo, e o sol permaneceria no centro desta órbita, dando sustentação e desenvolvimento à teoria heliocêntrica mas que não fora compreendida profundamente na Antiguidade. Também se destaca Hiparco de Niceia (190 – 120 a.C.), que, mesmo voltando à hipótese geocêntrica, compilou um catálogo das estrelas fixas, descrevendo suas latitudes, longitudes e o brilho de cada uma delas. No entanto, o sistema astronômico de Hiparco rechaça a teoria das esferas de Eudoxo, que não explicava as variações da distância entre cada um dos planetas e a Terra. Em contrapartida, retomava parcialmente a hipótese de Heráclides Póntico (390 – 310 a.C.) sobre a excentricidade e a ideia de os planetas girarem ao redor de um corpo que, também ele, estava em rotação, afirmando que os planetas, o sol e a lua se moviam em círculos que girariam ao largo de uma órbita situada ao redor da Terra.
12De todas as especificações das áreas do saber, a Geografia talvez tenha sido a que recebeu maior influxo das prioridades por Alexandre Magno, não somente devido à grande importância dada à forma e estrutura da Terra, mas também, devido à prática de viagens, ou seja, a exploração e descrição das terras e dos mares, resultando no aperfeiçoamento dos mapas, que não sofriam grandes avanços na Grécia desde Anaximandro. Neste sentido foi de grande contribuição os trabalhos de Dicearco (350 – 290 a.C), aluno de Aristóteles, que participou de inúmeras viagens e conquistas, tendo medido a altura de diversas montanhas do Peloponeso, e construído uma série de mapas e descrições que representaram o mundo conhecido da época, sendo muito importante para as campanhas militares de Alexandre, O Grande.
13Mas, o mais renomado geógrafo desse período foi Eratóstenes (273 – 192 a.C.). Bibliotecário do museu de Alexandria e leitor assíduo dos relatos de viagens, intentou na construção de um mapa do mundo, cujas premissas eram a forma da Terra e sua esfericidade. Com isto, Erastótenes pode calcular de forma muito precisa o diâmetro da Terra, além de fazer analogia sobre o movimento das marés nos oceanos. Deduzindo que tal movimento deveria estar vinculado ao mesmo fenômeno em outros oceanos, Erastótenes postulou que a Europa, a Ásia e a África, seriam continentes que tomados em conjunto constituiriam uma grande ilha que poderia ser circum-navegável.
14As conquistas de Alexandre e o desenvolvimento da civilização helênica colocaram a necessidade de um viés mais prático para as ciências, que aos poucos se distanciavam da filosofia, de tal maneira que o centro dos estudos científicos ficou localizado em Alexandria, no atual Egito, enquanto que o centro dos estudos filosóficos permaneceu em Atenas.
15Ou seja, o desenvolvimento científico na civilização helenista esteve diretamente ligado às necessidades práticas e políticas daquele momento histórico, mas também propiciado por um intenso intercâmbio cultural entre o oriente e o ocidente, que para Glacken (1996, p.53) lançou as bases para o desenvolvimento da geografia cultural, dada a própria diversidade cultural que se firmou no helenismo.
16Para Kretschmer (1942, p.8-9), desde a mais longínqua antiguidade, questões relativas à forma e ao tamanho da Terra, sua posição no espaço e as condições físicas de sua superfície sempre estiveram no horizonte naquele período histórico. Para o autor, se queremos analisar o desenvolvimento da geografia em suas relações causais devemos examiná-lo como ocorreu em um determinado centro de cultura, onde houve os progressos científicos das representações que se têm formado acerca do corpo terrestre e da constituição de sua superfície, através de um horizonte geográfico particular, constituído frequentemente de caráter mítico, sobre a origem e natureza da Terra.
17Deste modo, não se pode estudar com profundidade o mundo e o kosmos na Grécia Antiga em seus aspectos fundamentais sem um embasamento mítico, pois o “mito se apresenta como um sistema que tenta explicar o mundo e o homem” (BRANDÃO, 2004, p. 13), em outros termos, o mito “é sempre uma representação coletiva, transmitida através de gerações e que relata uma explicação do mundo, é um ‘saber em histórias’” (BURKERT, 2001, p. 47).
- 2 Tem-se encontrado na Ásia Menor, nas tumbas, em aproximadamente 2500 anos a.C., estatuetas de uma d (...)
18De acordo com este preâmbulo, as primeiras representações de Gaia na civilização ocidental foram realizadas desde tempos imemoriais, em que a figura central de toda a mitologia era a deusa Terra, reverenciada como a mãe nutridora da vida. Mas, segundo Joseph Campbell, Gaia deixou de ser somente padroeira local da fertilidade para, posteriormente, ser um símbolo metafísico, “a principal personificação do poder no Espaço, Tempo e Matéria, em cujo âmbito todos os seres nascem e morrem” (2004, p. 16), mas, com o alvorecer da Idade do Ferro, “as antigas cosmologias e mitologias da deusa-mãe foram radicalmente transformadas, reinterpretadas e, em larga escala, mesmo suprimidas pela repentina invasão das tribos guerreiras patriarcais” (CAMPBELL, 2004, p. 16). Diante dessas transformações, Gaia passou a ser representada a partir de um amplo embasamento mitológico, em que é apresentada como a Terra-Mãe,2 atribuída à origem das coisas.
19Tendo-se como pressuposto que a lexia Geografia tem sua origem etimológica derivada dos radicais gregos Geo (Terra) e grafia (escrita), é, portanto, justamente através das grafias de Gaia que devemos buscar as suas primeiras representações (MOREIRA, 2008, p.106-107), ou seja, as mitografias de Gaia, no antigo mundo grego. Assim, de conhecimentos vindouros desde o período Pré-Homérico surgiram as mitografias e cosmogonias Homérica, Hesiódica e Órfica, que assumirão, na história do Ocidente, o papel de fundamentos filosóficos em que Gaia se apresentará envolta com elementos míticos, visto que,
Os deuses gregos eram aspectos do Universo, e mesmo Caos e Terra geraram o nosso mundo não por atos de vontade criativa, mas como as sementes geram árvores, a partir da espontaneidade natural de sua substância, portanto, neste período, em nenhum momento aparece a ideia de um livro de estatutos morais, revelados por um deus pessoal de uma esfera de existência anterior e fora das leis da natureza (CAMPBELL, 2004, p. 153).
20A importância da motivação poética de Homero reside em que ela se compõe de motivos míticos, históricos ou retirados da natureza (KRANZ, 1962, p.12) sendo que “os poemas atribuídos a Homero são os que contêm as mais remotas concepções geográficas, apresentando interesse especial para o estudo da evolução da Geografia” (AZEVEDO, 1965, p. 76-77). Os poemas homéricos resultaram de um desenvolvimento da poesia oral, que apesar de terem sido datados entre os séculos IX e VIII a.C., o poeta nos transmite significados do século XIII ao VIII a.C., sendo que, ao que tudo indica, fora no século VIII que foram compostas a “Ilíada”, a “Odisseia” e os “Hinos Homéricos”. Contudo, ao se aceitar a opinião de que nestas obras têm cooperado vários poetas, não podemos esperar que haja uma concepção única acerca da Terra (KRETSCHMER, 1942, p.13). Em Homero, a importância da sua motivação poética “reside em que ela se compõe de motivos míticos, históricos, e principalmente naturais, ou retirados da natureza” (GOMES, 1994, p. 30).
Mosaico de Gaia
Parte central de um grande mosaico de solo de uma vila romana de Sentinum (agora Sassoferrato en Marche), c. 200-250 AD J.-C. Éon (Aiôn), deus da eternidade, é representado em uma esfera celeste repleta de signos zodiacais, entre uma árvore verde e uma árvore careca (verão e inverno). A seus pés, a mãe terra Tellus (Roman Gaia), com quatro filhos, personificava as quatro estações (?).
Aion_mosaic_Glyptothek_Munich_W504.jpg, https://fr.wikipedia.org/wiki/Ga%C3%AFa
21Diversas narrativas foram transmitidas oralmente durante muito tempo e depois, ao menos no caso de alguns dos mitos, fixados por escrito em sua forma canônica já no século VI a. C., com Homero, Hesíodo e tudo o que chamamos de tradição épica, cantada por aedos, que constitui o “breviário” das crenças, mas também a enciclopédia do saber coletivo (VERNANT, 2009, p.200).
- 3 Em contrapartida, conforme John Burnet, “ninguém cultuava Oceano ou Tétis” (BURNET, 2006, p. 44).
- 4 Oceano, em grego Okeanós, é possível que se trate de palavra oriental com o sentido de “circular, e (...)
- 5 Quando Zeus pergunta à Hera, aonde vais, vinda do Olimpo, ela lhe responde: “Vou visitar nos confin (...)
22Segundo Karl Kerényi, a mais antiga história, na mitologia Ocidental, acerca do princípio das coisas, talvez seja a de Homero, ao chamar Oceano de “a origem de tudo”, e desde o momento em que tudo se originou dele, “continuou a fluir até a orla mais extrema da terra, fluindo de volta sobre si mesmo num círculo” (2004, p. 25). E, segundo constata Jean-Pierre Vernant, desde a Idade Arcaica, Homero, na Ilíada, por duas vezes, atribui a Oceano e Tétis3 títulos que os qualificam como o par divino primordial: “Aos fins do globo visitar o Oceano4 pai dos deuses, e a Tétis madre vou, que em palácios, de Réia a pedimento me criaram” (HOMERO, 2008, p. 507)5 e também, nesta mesma obra, a mesma expressão é ampliada, a qual Oceano é o pai de todas as coisas e de todos os seres, assim expresso: “Mesmo o rio Oceano amplo-fluente, Gérmen de tudo” (HOMERO, 2008, p. 503-504).
- 6 A palavra sideral lembra essa longínqua concepção fundada na existência de sustentáculos de ferro, (...)
- 7 “Com dedáleo primor, divino engenho, / Insculpiu nele os céus e o mar e a terra; / Nele as constela (...)
23Diante dessa ideia fundamental, admitia-se a existência de um único oceano, de que a própria Terra havia surgido. Portanto, a Terra era imaginada como semelhante a um disco mais ou menos convexo, circundada pelas águas do Oceano, “dominando esse disco terrestre e apoiada em colunas de ferro,6 erguia-se a abóbada celeste, onde brilhavam o Sol, a Lua e os demais astros” (AZEVEDO, 1965, p. 76-77). Fragmentos desta cosmogonia também podem ser constatados na descrição do escudo de Aquiles, feito por Hefestos, que: “Nele, gravou a terra e o mar, o incansável sol e a lua cheia e os maravilhosos sinais que rodeiam o céu: as Plêiades e as Hiades, o poderoso Órion e a Ursa, que também chamam do Carro, que gira no mesmo lugar, contemplando Órion e que é a única que não se banha no Oceano” (HOMERO, 1991, p. 208).7 Os gregos sustentam que “Okeanos, que tem a sua origem nas regiões onde o sol se ergue, flui em redor de toda a terra, mas não fornecem desse facto uma demonstração contundente” (KIRK, HAVEN & SCHOFIELD, 1994, p. 05).
24Deste modo, antes de Tales, que faria da água o princípio do qual tudo surgiu, Homero teria colocado na origem dos deuses e do mundo Oceano e Tétis, no entanto, eles não definem apenas o estado inicial do mundo, eles continuam a existir no universo organizado, mas foram relegados às extremidades do cosmos, concebidos como laços que mantêm o universo unido, numa retroalimentação sem fim. O desenvolvimento temporal de uma gênese que faz emergir o mundo a partir das águas primordiais se articularia exatamente a partir do esquema espacial de um universo cercado por todos os lados pelas mesmas águas de onde nasceu (VERNANT, 2009, P.239-240). No mito grego, “Oceano é a imagem da indistinção e da indeterminação primordial” (BRANDÃO, 2004, p. 197).
- 8 Zeus reina sobre o céu e é, portanto, um deus do clima, aquele que envia a chuva, a geada, a neve e (...)
25Assim, quando “Zeus passa a governar o mundo, Oceano fica com o fluxo circular, e a tarefa de abastecer as nascentes, os rios e o mar ficou delegada a Zeus” (KERÉNYI, 2004, p. 25). Zeus8 intervém na marcha dos fenômenos naturais, na ordenação do espaço e na regulação do ciclo das estações. Logo, no quadro desse pensamento mítico, “não se poderia imaginar um domínio autônomo da natureza nem uma organização imanente ao universo” (VERNANT, 2008, p. 119).
- 9 Teofrasto, según el testimonio de Aecio I, 3, 1 (Dox. 276), después de citar los argumentos biológi (...)
26Platão e Aristóteles já atribuíam ao elemento líquido um alcance cosmogônico; antes de Tales, que faria da água o princípio do qual tudo surgiu, Homero teria colocado, na origem dos deuses e do mundo, o elemento líquido (GUTHIRIE, 1984, p.74).9 Podemos pensar que, na Grécia, esse valor “primordial” atribuído às potências aquáticas está relacionado à fluidez e à ausência de forma, que se predispõem em primeiro lugar a representar o estado original do mundo onde tudo estava uniformemente diluído e confundido em uma mesma massa homogênea, bem como à sua virtude vivificante e geradora que explica que elas guardam em seu seio o princípio das gerações sucessivas, contudo, Oceano e Tétis não definem apenas o estado inicial do mundo e o poder que preside a sua geração, eles continuam a existir no universo organizado, mas foram relegados a suas fronteiras, em seus limites extremos. Nas extremidades do cosmos, Oceano determina os limites da terra, e estes são concebidos como laços que uniriam a totalidade do cosmos, de alto a baixo, do levante ao poente, nas redes líquidas de seu fluxo, que podem ser constatados ao vermos todos os dias o sol e os astros emergirem de Oceano em seu curso para mergulhar novamente nele ao se porem, quanto a fornecer-lhes uma incessante renovação. Indicações míticas mostram que as fontes, as bacias, os poços, os rios que trazem a vida para a superfície do solo alimentam-se também nas águas de Oceano. O desenvolvimento temporal de uma gênese que faz emergir o mundo a partir das águas primordiais se articularia exatamente a partir do esquema espacial de um universo cercado por todos os lados pelas mesmas águas de onde nasceu, sendo que seu curso sinaliza os limites do mundo enquanto serve de reservatório inesgotável para sua vitalidade. (VERNANT, 2009, p. 239-240).
27Contudo, será nos “Hinos Homéricos” que aparecerá uma narrativa que apresenta Gaia em seus pormenores:
- 10 Gaia é a Terra, concebida como elemento primordial de que descendem as raças divinas. Esposa de Ura (...)
Eu cantarei Gaia, a mãe de todos, a de firmes fundações, a mais antiga, a que alimenta tantos quantos vivem nela: os que percorrem o solo, o mar e também os que voam. Todos se alimentam de sua riqueza. Através de ti, belas crianças e belos frutos se formam, senhora, e a ti cabe dar e tirar a vida dos homens mortais. Feliz é aquele que honras, bondosamente, com teu sopro; para ele tudo vem em abundância, a terra que dá vida fica carregada de grãos; nos campos, os rebanhos prosperam e a casa se enche de riquezas. ...Salve, mãe dos deuses, esposa do estrelado Urano; concede-me bondosamente, por este canto, vida aprazível (HOMERO, 2010, p. 358).10
28Conforme Aroldo de Azevedo, as concepções homéricas contribuíram para a evolução da Geografia, pois se fundamentaram na “ideia da unidade terrestre, uma vez que a Terra era considerada ‘um todo dentro de um todo’, e na correlação entre os fenômenos terrestres e os fenômenos celestes, que servia para reforçar essa concepção unitária do mundo” (AZEVEDO, 1965, p. 77). Para Homero
O céu é um hemisfério sólido, como uma tigela (...). É o céu que cobre a terra circular e plana. A parte inferior do espaço entre a terra e o céu, até às nuvens, inclusive, contém o ou bruma: a parte mais elevada (...) é o aither, o ar superior, reluzente, que é concebido, uma que outra vez, como ígneo. (...) Por baixo da sua superfície, a terra estende-se até uma grande profundidade, e tem as suas raízes no, ou por cima do, Tártaro. (KIRK, HAVEN & SCHOFIELD, 1994, p. 03).
29Todavia, será na “Teogonia” de Hesíodo, um poeta dos fins do século VIII a.C., já no início da Idade Arcaica, que se apresenta o documento mais importante de que dispomos para entender o pensamento mítico dos gregos e suas orientações no campo cosmogônico (VERNANT, 2009, p.241) pois, a “Teogonia” é a obra mais antiga que expôs em conjunto o mito helênico, mas, vai além e, antes da Teogonia, coloca os fundamentos da cosmogonia, quer dizer, as origens do mundo, o nascimento do Universo (BRANDÃO, 2004, p.153), desdobrando-se num hino descritivo sobre a natureza e a origem dos Deuses:
- 11 Entre os empregos seguros da palavra Kaos anteriores a 400 a.C. têm duas conotações, uma referente (...)
Sim, bem primeiro nasceu Caos,11 depois também Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre, dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado, e Tártaro nevoento, no fundo do chão de amplas vias, e Eros, o mais belo entre os Deuses imortais, solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos ele doma no peito o espírito e a prudente vontade (HESÍODO, 2007, p. 109).
30Na verdade, para entender o advento de Caos, é preciso situá-lo em suas relações de oposição e de complementaridade com Gaia, expressas na formulação prõtista... autàr épeita: “no início [era Caos], mas depois [Terra]”. O termo caos está ligado, do ponto de vista etimológico, a kháskõ, khandánõ, bocejar, abrir-se. A Abertura que nasce antes de todas as coisas não tem fundo como não tem pico: é ausência de estabilidade, ausência de forma, ausência de densidade, ausência de cheio. Enquanto “cavidade” é menos um lugar abstrato – o vazio – do que um abismo, sem direção, sem orientação. Entretanto, como “abertura”, desemboca no que, ligado a ela, é também seu contrário. Gaia é uma base sólida para andar, uma base em que se apoiar; tem formas cheias e densas, uma altura de montanha, uma profundidade subterrânea; não é apenas o solo a partir do qual o edifício do mundo vai se construir; é a mãe, a anciã que gerou tudo o que existe, sob todas as formas e em todos os lugares, com exceção de Caos e de sua linhagem, que constituem uma família de Potências inteiramente separadas das outras. (VERNANT, 2009, p. 244).
31A vocação estabilizadora, geradora e organizadora de Gaia, se traduz por qualificativos que lhe são atribuídos desde o início: Estável e segura em sua vasta superfície, estendendo-se verticalmente para o céu, estendida entre seus claros picos nevados, mas para baixo, mergulha, para enraizar-se nas trevas escuras do Tártaro que representa em seu fundamento, no plano espacial, o mesmo abismo vertiginoso, a partir do qual e contra o qual ela se constituiu no início dos tempos, seu sombrio fundo subterrâneo. Da mesma forma, Caos gera dois pares de entidades contrárias: Érebo (Érebos) e negra Noite (Nyx) primeiro, e depois seus filhos, Éter (Aithér) e Luz do dia (Hêméra). Em cada um dos pares, o primeiro nomeado situa-se da mesma forma com relação ao segundo: Érebos é para Nyx o que Aithér é para Hêméra. Com efeito, Noite e Dia não são dissociáveis, sucedem-se segundo uma alternância regular. Em contraste com a claridade e a escuridão relativas de um Dia e de uma Noite que se combinam para formar a trama do tempo na superfície da terra. Éter é o brilho de um céu constantemente iluminado e Érebo é as Trevas completas e permanentes, a Noite total que os raios do sol jamais atingirão. (VERNANT, 2009, p. 244-245).
32É certo que, se quisermos traduzir em termos filosóficos o problema que imaginamos subjacente ao discurso cosmogônico de Hesíodo, deveremos formulá-lo, como H. Fraenkel, da forma seguinte: “Tudo o que é existe pelo fato segundo o qual, espacial, temporal e logicamente repousa sobre um vazio que não é; ele é determinado pelo que é, ao se definir contra o que não é; o vazio. Assim, a totalidade do mundo e todas as coisas do mundo, cada qual em seu lugar, tem limites em que se choca contra o vazio” (apud VERNANT, 2009, p. 245).
- 12 Logo após ter produzido o Ponto independentemente, em 132, Gaia dá à luz Okeanos, de todas as figur (...)
33No universo diferenciado e ordenado, Gaia ainda “está ligada” a Caos, que permanece presente em seu centro, como uma realidade contra a qual precisa se estabelecer, dando à palavra contra seus dois sentidos: primeiro em oposição a uma abertura, trancada por uma porteira de bronze inabalável, mas também apoiando-se em uma abertura da qual Terra não pode prescindir tanto para subsistir quanto para nascer. Caos produz a luz sem a qual nenhuma forma seria visível. Inversamente, Gaia, que gera tudo o que tem densidade e figura, é também qualificada de dnopherá, epíteto de Nyx: é a terra escura. Entre as duas entidades primordiais, existem passagens que aparecem mais fortes na medida em que ambas desenvolvem esta dinâmica da gênese que carregam em si devido a seu poder de geração. No entanto, estão ligadas, mas não se unem, e, portanto, não se mesclam. Caos e Gaia tiram de si mesmos os filhos que trazem ao ser. Gaia dá primeiro a luz ao Céu estrelado, para que ele a cubra e a envolva por todo lugar, trata-se do sombrio Céu noturno, mas constelado de estrelas. Este duplo aspecto corresponde ao papel que o Céu será levado a adotar quando se terá definitivamente distanciado de Gaia: refletir a alternância do dia e da noite que se sucedem no intervalo entre a terra e o céu, cuja simetria completa faz do mundo um conjunto organizado e fechado sobre si mesmo, um cosmos. Gaia gera então as altas montanhas que marcam sua afinidade com o Céu que acaba de produzir. Assim como produziu o Céu estrelado, Gaia gera, enfim, a partir dela mesma, seu duplo e seu contrário líquido, Ponto,12 cujas águas são ora de uma claridade límpida, ora escurecidas por caóticas tempestades. Decorrente disso, até esta fase da cosmogonia, as Potências que vieram ao ser apresentam-se como forças ou elementos fundamentais da natureza. (VERNANT, 2009, p. 245-247).
34Segundo Hesíodo, após Caos surge Gaia, que possui uma forma distinta e precisa, ou seja, à confusão e indistinção de Caos opõem-se a nitidez, a firmeza e a estabilidade de Gaia, que constitui a base dessa morada que é o cosmo, e também é a mãe universal, “florestas, montanhas, grutas subterrâneas, ondas do mar, vasto céu, é sempre de Gaia, a Mãe-Terra, que eles nascem” (VERNANT, 2000, p. 17-18). Se para Homero, Oceano e Tétis, os princípios masculino e feminino da água, são os pais dos deuses e do homem, e origem do mundo, para Hesíodo as águas, como Ponto, o mar, são filhos “de la Tierra y del Cielo, y no existe ningún testimonio rotundo de que un principio acuoso figurase como tal en las primitivas teogonías órficas.” (GUTHRIE, 1984, p. 69).
35Nos seguintes versos da “Teogonia” é explicitada a natureza da Terra mediante seus descendentes imediatos, nascidos por cissiparidade, onde se ressalta a presença de Caos na procriação e nascimento dos Deuses presentes na paisagem do Mediterrâneo:
Terra primeiro pariu igual a si mesma Céu constelado, para cercá-la toda ao redor e ser aos Deuses venturosos sede irresvalável sempre. Pariu altas Montanhas, belos abrigos das Deusas ninfas que moram nas montanhas frondosas. E pariu a infecunda planície impetuosa de ondas, o Mar, sem o desejoso amor. Depois pariu do coito com Céu: Oceano de fundos remoinhos (TORRANO, 2012, p. 35).
36A princípio, conforme Vernant, na sua obra “O universo, os deuses, os homens”, Terra engendra Urano, Céu, depois, traz ao mundo Ponto, todas as águas sem se unir a ninguém. Porque produz um Céu estrelado igual a si mesma e do mesmo tamanho, Urano se deita sobre ela, constituindo dois planos superpostos do universo. Então, Terra acaba grávida dos doze Titãs, que não conseguem sair de seu ventre, pois Urano nunca se distancia da Terra, não havendo espaço entre eles que permita aos seus filhos terem uma existência autônoma. O primeiro filho chama-se Oceano, que é “esse cinturão líquido que rodeia o universo e corre em círculo, de tal modo que o fim de Oceano é também seu começo; o rio cósmico corre em circuito fechado sobre si mesmo” (VERNANT, 2000, p. 21).
- 13 Em sua obra, “La prudente Melanipa, Eurípides pone en boca de Melanipa: No me pertenece a mí, sino (...)
37Mas será o caçula, Cronos, que cumprirá uma etapa fundamental no nascimento do Cosmo, pois ao castrar Urano, separa o céu da terra, criando um espaço livre, onde os seres vivos terão espaço para viver. Assim, o espaço se desbloqueia e o tempo se transforma. Quando Urano se fixa lá no alto, ele não se une mais a Gaia, a não ser durante as grandes chuvas fecundantes, permitindo que nasçam na terra novas plantas e cereais. No mundo, abriu-se o espaço, o tempo passou, gerações vão se suceder, há a vasta terra, o rio Oceano que cerca tudo isso e um céu fixo (VERANANT, 2000, p.23-28) “O espaço abriu-se e este corte permitiu à diversidade dos seres adotar sua forma e encontrar seu lugar no espaço e no tempo” (VERNANT, 2009, p. 250).13 “É natural que tanto o Dia como a Noite nascessem logo após a separação do Céu e da Terra, para ocuparem o espaço originado entre ambos.” (KIRK, HAVEN, SCHOFIELD, 1994, p. 13). Dentre as filhas de Zeus estão as “‘Estações do ano’, ‘Horai’, como distribuição correta na terra e as ‘divisões’ das esferas da vida, ‘Moirai’” (BURKERT, 2001, p. 45).
Conjugado a Gê, ou Gaia, a Terra-Mãe, Zeus figura o princípio celeste, masculino e gerador, cuja chuva fecundante criará, nas profundezas do solo, os jovens rebentos da vegetação. Ao casar-se em segundas núpcias com Têmis, Zeus fixa para sempre a ordem das estações na natureza, o equilíbrio dos grupos humanos na cidade (Hórai) e o curso inelutável dos Destinos individuais (Moírai). Ele se faz lei cósmica, harmonia social e Destino. (VERNANT, 2006, p. 32-33).
- 14 A terra, com o seu acessório, o Tártaro, surge, assim que o espaço está constituído; outro tanto ac (...)
- 15 Perséfone, esta deusa da fertilidade, “era filha de Deméter e de Zeus. Sem o conhecimento de Deméte (...)
38No topo do Olimpo, dominando o universo, encontramos Zeus soberano, senhor do Céu, com sua esposa, a irascível Hera, sua própria irmã, depois, os seus dois irmãos: Posídon, senhor de todas as águas, dos rios, do mar, do rio Oceano cujo fluxo cerca o mundo, Abalador do solo, e Hades, cujo destino é reinar sobre o mundo subterrâneo e o dos mortos, nas Trevas que a luz do dia jamais atravessa. Irmã de Hera e dos três deuses que partilham o mundo, Deméter14 fornece os frutos da terra cultivada e os benefícios da civilização; associada a Koré-Perséfone15, ela apadrinha os mistérios que prometem aos iniciados um destino melhor nesta vida e na outra. (VERNANT, 2009, p. 233-234).
39Neste sistema, as ideias de poder e de potência eram fundamentais. A partir do momento que um soberano impõe sua lei, a ordem do mundo se torna constante. Podemos chamar este tipo de racionalidade de racionalidade do krátos para falar grego, ou da dynamis, ou seja, do poder real. Assim, deste ponto de vista, ao cabo de toda uma série de gerações divinas e de lutas pela soberania, em um dado momento Zeus, o mais poderoso dos deuses, se instala, e a ordem que institui é uma ordem de distribuição de honrarias. Haverá o deus que reina sobre o mar, aquele que reina sobre o mundo subterrâneo, aqueles que reinam no céu, enfim aqueles que reinam na superfície do solo. Todos permanecerão em sua esfera. (VERNANT, 2009, p. 211).
40No entanto, após Zeus destronar Cronos, ele delimita os domínios cósmicos, passa a ser senhor do Céu, pai dos deuses e dos homens; já, Poseidon, é senhor de todas as águas, bem como as do rio Oceano; e Hades, é destinado a reinar sobre o mundo subterrâneo e dos mortos (VERNANT, 2009, p.233-234). Mas, a superfície da terra cabe aos três, em comum, onde vivem com os homens todas as criaturas mortais (VERNANT, 2008, p.112).
41Esses “deuses ‘primordiais’ ainda estão bastante envolvidos nas realidades físicas que evocam para que não se possa separá-los do que chamaríamos hoje de forças ou elementos naturais” (VERNANT, 2009, p. 242). Por conseguinte, os deuses do politeísmo grego não criaram o mundo, nasceram dele, surgidos em gerações sucessivas, na medida em que o universo, a partir de potências primordiais como Caos e Gaia, ia-se diferenciando e se organizando, assim, os deuses são parte integrante do cosmos (VERNANT, 2009, p.173). Mas, Gaia, além de deusa, é uma sede estável em sua vasta superfície, e dela
Nascem todos os seres, ela é a fêmea penetrada pelo arado, fecundada pela chuva ou pelo sangue, que são o spérma, a semente do Céu. Como matriz, concebe todos os seres, as fontes, os minerais e os vegetais. Gaia simboliza a função materna: é a Tellus Mater, a Mãe-Terra. Concede e retoma a vida (BRANDÃO, 2004, p. 185).
42A “Teogonia” de Hesíodo foi que ordenou e fixou as gerações divinas e estabeleceu a organização do Cosmos (BRANDÃO, 2004, p. 165). Os deuses gregos pertencem à totalidade do mundo, “não são potestades transcendentes nem deuses criadores, nem dispõem soberanamente das criaturas do céu, da terra e do mar” (SISSA, DETIENNE, 1990, p. 18). Assim, conforme Hesíodo, deuses e homens têm a mesma origem, provêm da Mãe-Terra, Gaia, que concebeu do sangue derramado por Urano e produziu sobre a terra, dentre outros, as ninfas “Cinzas”, chamadas Melíades, que produziram os seres humanos, que foram, posteriormente, descritos deitados debaixo dos freixos como frutos caídos. Em muitos outros contos o homem primordial saiu diretamente da terra, “foi a Terra quem primeiro produziu os homens, dando à luz um fruto, visto que desejava ser mãe não só de plantas insensíveis e animais irracionais, mas também de criaturas ordenadas e devotas” (KERÉNYI, 2004, p. 163-164).
43Num cosmos repleto de deuses (BRANDÃO, 2004, p. 161), o homem grego não separa o natural do sobrenatural, contudo, “nem todos os deuses homéricos revestiram-se das formas humanas, há os que permaneceram como forças da natureza” (BRANDÃO, 2004, p. 133). Assim,
- 16 Isso significa que, entre o mundano e o divino, não existe o corte radical que separa para nós a or (...)
Há algo de divino no mundo e algo de mundano nas divindades. [...] não que se trate de uma religião da natureza, em que os deuses gregos sejam personificações de fenômenos naturais16. Pois, o raio, a tempestade, os altos cumes não são Zeus, mas de Zeus; os deuses gregos são Potências. (VERNANT, 2006, p. 05-06).
- 17 No entanto, Zeus é obrigado a vigiar a tarefa de outros deuses, que o ajudam a administrar os atrib (...)
- 18 Na Grécia, os deuses nascem da terra, moram no Olimpo, vivem nas alturas, mas num lugar que é ainda (...)
44Nas epopeias de Homero e Hesíodo, Zeus17 está acima de todo o desenrolar da obra (CAMPBELL, 2004, p.153) é o senhor “dos ritmos cronológicos: manipula o raio e a chuva, [...] cuida da sucessão ordenada das estações e dos dias” (SISSA, DETIENNE, 1990, p. 59).18 É inegável que os poemas de Hesíodo e os de Homero “conservam vestígios duma época antiga, confundidos com elementos mais recentes” (RIVAUD, 1962, p. 23).
- 19 “Orfeo, os gregos criam ser mais velho do que Homero” (REINACH, 1977, p. 90), porém, segundo John B (...)
- 20 Aristóteles nos diz, na Metafísica, que a noite é anterior ao dia e constitui propriamente a mãe or (...)
45Em contrapartida, nas cosmogonias órficas,19 a Noite20, como entidade original, tomará o lugar que cabia à Oceano e Tétis, assim, o tema das Trevas, onde tudo permanece confundido antes de emergir à luz, passa a substituir o tema da fluidez das águas. A escuridão noturna reina na profundeza das águas, assim como a Noite é feita, para os gregos, de uma bruma de umidade, de uma névoa sombria e opaca. A publicação de um papiro de comentários de um poema cosmogônico de Alcmã em 1957, confirma que, desde o século VII a.C., a poesia podia inspirar-se em tradições míticas, em que as águas primordiais encontravam-se unidas à Noite original. No começo do mundo, Alcmã situa a Nereida Tétis, divindade marinha como Tétis, esposa de Oceano, apresentada como sua avó, com o mesmo poder de adotar todas as formas, a mesma inteligência ardilosa da Oceânida Métis, promovida ao estatuto de grande divindade primordial nas cosmogonias órficas, às quais o mundo ordena-se na medida em que, pelo traçado visível dos movimentos celestes, a escuridão confusa de uma massa líquida dá lugar a uma extensão organizada e delimitada. (VERNANT, 2009, p. 240-241).
- 21 Damáscio declarava que, segundo Eudemo, “a teologia atribuída a Orfeu, fez, da Noite, a origem das (...)
- 22 “Não se confunda o nosso Crono com o Crono que nunca envelhece, que produziu, de dentro de si, Éter (...)
46Para os órficos, na origem, o Ovo primordial ou Noite (KRANZ, 1962, p. 19),21 exprime a unidade perfeita, mas o Ser degrada-se à medida que a unidade se divide criando formas distintas. Assim, bem no início dessa história, relativa ao princípio das coisas, aparecia a deusa Noite, em forma de pássaro preto, e junto a ela vinha o Vento, por cujo intermédio ela botou o Ovo, que contém dentro de si Eros, ou posteriormente, Fanes. E das duas metades do ovo, “la superior formó entonces el cielo y la inferior la tierra” (GUTHRIE, 1984, p. 77). Na história mais recente, os últimos discípulos de Orfeu apresentaram Cronos,22 que “criou um Ovo de prata que girava sobre si mesmo. Portanto, o Céu e a Terra, que eram filhos da Noite foram criados por Fanes” (KERÉNYI, 2004, p. 94-95). Portanto, o orfismo se opõe à tradição hesiódica, pois,
Em Hesíodo, o universo divino organiza-se segundo um progresso linear que conduz da desordem à ordem, de um estado original de confusão indistinta a um mundo diferenciado e hierarquizado sob a autoridade de Zeus. Entre os órficos, dá-se o inverso: na origem, o Ovo primordial ou Noite, exprime a unidade perfeita, a plenitude de uma totalidade fechada. Mas o Ser degrada-se à medida que a unidade se divide e se desmancha para fazer aparecerem formas distintas, indivíduos separados. A esse ciclo de dispersão deve suceder um ciclo de reintegração das partes na unidade do Todo (VERNANT, 2006, p. 82-83).
- 23 O orfismo tinha uma doutrina do pecado original, em que a alma estava encerrada no corpo como em um (...)
47Orfeu era um antigo deus totêmico do Norte da Grécia, cuja morte e ressurreição constituem artigos de fé de um culto místico, que se estendeu por todo o mundo grego e pelo sul da Itália, tendo, possivelmente, inspirado Pitágoras e Platão, que, segundo Salomon Reinach, na obra “Orfeo – Historia General de las Religiones”, deram forma mais ou menos científica a suas concepções (REINACH, 1977, p. 90)..23
- 24 O nome Museu, discípulo mítico de Orfeu e autor epónimo da literatura oracular, teve tendência para (...)
48Nas teogonias de Hesíodo e Órfica há um estado de indistinção em que nada ainda aparece, Caos, em Hesíodo, e Nyx, Érebos, Tártaros, em certas Teogonias atribuídas a Orfeu, Museu24 e a Epimênides. Desta unidade primordial emergem, por segregação e diferenciação progressivas, pares de opostos que vão delimitar no mundo realidades e regiões diversas: o céu, brilhante e quente, o ar sombrio e frio, a terra seca, o mar úmido, “esses opostos, que chegaram ao ser separando-se uns dos outros, também podem unir-se e misturar-se para produzir certos fenômenos, como o nascimento e a morte de tudo que vive, plantas, animais e homens” (VERNANT, 2008, p. 112-113).
49Contudo, a história dos homens não começa na origem do mundo, e sim, no momento em que o mundo divino foi estabilizado por Zeus. Há uma planície em Mecona, perto de Corinto, de abundante riqueza –, onde deuses e homens vivem juntos, onde tudo cresce espontaneamente. Idade de ouro, conhecida como o tempo de Crono, em que reina a paz, é um tempo de antes do tempo. Naquele tempo, os homens permaneciam jovens, para eles não havia nascimento no sentido próprio da palavra, talvez surgissem da terra. Talvez Gaia, Mãe-Terra, os tenha posto no mundo, assim como pôs no mundo os deuses. Naquele tempo não havia trabalho, nem doença, nem sofrimento. Os homens não precisavam lavrar a terra: em Mecona, tinham a disposição todos os alimentos, todos os bens. A natureza oferece de forma espontânea e natural todos os bens da vida doméstica mais requintada e civilizada. Eles conhecem a felicidade. (VERNANT, 2000, p. 56-57).
- 25 O politeísmo grego não é uma religião do livro: não comporta nem Igreja, nem clero, nem revelação, (...)
50Há o tempo dos deuses25, a eternidade, tudo já está lá. Há o tempo dos homens que é linear, pois o homem nasce, cresce, envelhece e morre, ou seja, todos os seres vivos se submetem a isso. Há, por fim, um terceiro tempo, apresentado pelo episódio do fígado de Prometeu, que é um tempo circular, que cresce, morre e renasce, indefinidamente. Esse tempo prometeico lembra o movimento dos astros, isto é, esses movimentos circulares que se inscrevem no tempo, é semelhante ao que dá ritmo e medida à eternidade divina e que tem assim uma medição entre o mundo divino e o mundo humano. Aliás, ele é posto entre o céu e a terra, representa a época muito distante em que, num cosmo organizado, ainda não havia tempo, em que os deuses e os homens estavam misturados, em que a imortalidade reinava, e a época dos mortais, agora separados dos deuses, sujeitos a morte e ao tempo que passa. (VERNANT, 2000, p. 76-77).
51Intrínseca à miríade de deuses existentes no mundo grego, os fenômenos naturais, não eram interpretados como sendo tão naturais assim, visto que inúmeros deles ou eram consubstanciados pelos próprios deuses ou eram a partir deles que tais fenômenos eram manipulados, tais como Astreu, dele se diz que era “o antigo pai das estrelas”, bem como os ventos de origem divina, que definem as estações, como Zéfiro, o vento oeste precursor da primavera, Bóreas, o vento norte, e Noto, o vento sul (KERÉNYI, 2004, p. 160), ou quando Hélio se dirige a Zeus e lhe diz: “Olha o que fizeram! Mataram meus animais, tens que me vingar. Se não me vingares, eu, Sol, deixarei de brilhar para os deuses imortais no Éter, deixarei de brilhar para os humanos mortais que, na terra, veem sucederem-se o dia e a noite. Irei brilhar para aqueles lá embaixo, para os mortos! Descerei ao Hades e minha luz iluminará as trevas. E vós, tanto os deuses como os homens, ficareis na noite”. Zeus o dissuade. “Encarrego-me de tudo”, declara. (VERNANT, 2000, p. 117-118). Muito em breve também, os deuses serão reduzidos a simples alegorias dos fenômenos naturais. (SISSA & DETIENNE, 1990, p. 22). O Sol e a Aurora, a Noite e o Sono são divindades. Moventes, recomeçando sem falta a mesma viagem, fazem do tempo uma sucessão de fases e momentos de qualidades próprias. Por seu vaivém, sua presença ou ausência neste ou naquele ponto do espaço, introduzem a descontinuidade e a repetição na abóbada do céu. Respeitá-las significa, para os olímpicos, reconhecer nessas divindades potestades de sua classe, dotadas de poderes autônomos e temíveis. Induzi-las a se afastarem excepcionalmente de sua rotina faz parte do jogo diplomático de um abuso de poder que não deve transtornar o equilíbrio necessário do cosmos. (SISSA, DETIENNE, 1990, p. 61).
52O Sol que tudo vê e a Aurora de vestido de açafrão, a Noite rápida e o Sono sereno são personagens vivas, com biografia e memória, sentimentos e paixões e consciência segura de seu papel e classe. (SISSA, DETIENNE, 1990, p. 62). Zeus diz: Vejam, por exemplo, o Sol aqui presente, atrela seu carro e, durante o dia inteiro, dá a volta no céu, vestido de fogo e lançando seus raios. E não tem nem o tempo de coçar a orelha; pois se, por descuido, relaxasse a atenção, seus cavalos, escapando das rédeas e atirando-se fora do caminho, incendiariam todo o universo. (SISSA, DETIENNE, 1990, p. 106).
A Hélio coube em sorte mourejar todo o dia, sem jamais haver descanso algum para os seus cavalos ou para si próprio, desde que a Aurora de róseos dedos, abandonando Okeanos, sobe ao céu; pois a ele transporta-o através das ondas o leito encantador, côncavo e forjado pelas mãos de Hefesto, de ouro precioso e alado; velozmente o transporta a dormir à superfície das águas, desde a morada das Hespérides à terra dos Etíopes, onde o carro veloz e os cavalos se detêm até chegar a Aurora, filha da manhã; então sobe para o seu carro o filho de Hipérion. (KIRK, HAVEN, SCHOFIELD, 1994, p. 07).
53Já, para Aristóteles, a mitologia inteira, centrada na representação dos deuses sob forma humana, é uma tradição tardia, enxertada numa crença mais antiga, segundo a qual “os astros são deuses e o divino abraça a natureza inteira.” (SISSA, DETIENNE, 1990, p. 100). Com o passar do tempo, essas antigas cosmogonias se interseccionarão com uma nova abordagem representativa e argumentativa, servindo de referência a fundamentos cosmológicos, pois,
As cosmologias retomam e prolongam os temas essenciais dos mitos cosmogônicos. Trazem uma resposta ao mesmo tipo de questão; interrogam-se, com o mito, como a ordem foi estabelecida, como o cosmos pôde surgir do caos. Dos mitos de gênese, os milésios tomam não só uma imagem do universo, mas ainda todo um material conceptual e esquemas explicativos: atrás dos “elementos” da physis perfilam-se antigas divindades da mitologia. Tornando-se natureza, os elementos despojaram-se do aspecto de deuses individualizados; mas permanecem forças ativas e animadas, ainda sentidas como divinas; a physis, quando opera, está toda impregnada desta sabedoria e desta justiça que eram o apanágio de Zeus (VERNANT, 2008, p. 111-112).
54Diante dessa análise histórica, que tem como objetivo descrever e analisar as mais antigas mitografias de Gaia perante as cosmogonias Homérica, Hesiódica e Órfica, no antigo mundo Grego, constata-se que Gaia, apesar de não ser a entidade genética de onde partiu todo o mundo, é criada logo após as entidades primordiais, e em todas essas mitologias, é a partir dela que nascem deuses e homens, bem como é a base essencial da organização do Kosmos, propiciando, por meio destes fundamentos a formação daquelas que foram as matrizes filosófica e científica do mundo ocidental.
55Se o mito de Gaia grafa à Terra, a heterogeneidade espacial desta grafia e a diferenciação de suas formas na superfície terrestre levou ao surgimento da fisiologia e da fisiografia de Gaia. Ou seja, o mito cedeu lugar para a investigação racional que buscou compreender quais eram os agentes e os processos responsáveis pela dinâmica e transformação não mais de Gaia, mas agora do Kosmos enquanto materialidade factível de ser investigada. É neste contexto que ocorre a formação da ciência geográfica na antiguidade e a relevância das geografias de Teofrasto e de Estrabão para a antiguidade, mas também para a modernidade.