1De acordo com a ÚNICA (União Brasileira da Indústria de Cana de Açúcar) o cultivo de cana-de-açúcar tornou-se um dos principais produtos agrícolas no Brasil após a década de 70, responsável por 3,5% do Produto Interno Bruto – PIB, e por US$ 8 bilhões em exportações, empregando mais de 1 milhão de pessoas (ÚNICA 2017). O cultivo de cana de açúcar pode ser entendido como como um cultivo flexível (PIÑEROS LIZARAZO, 2018; MCKAY, SAUER, et al., 2016; BORRAS JR, FRANCO, et al., 2014), caracterizado pelos múltiplos produtos que podem ser agroprocessados atendendo as demandas do mercado mundial e nacional, ou seja, para a exportação da commodity açúcar e/ou etanol (anidro ou hidratado) para o consumo interno e exportação. Esse último é considerado um tipo de agrocombustível, derivado da biomassa, para substituir parcial ou totalmente combustíveis derivados do petróleo e gás natural. Além disso, outros subprodutos a partir desse cultivo são a energia elétrica e o polietileno verde, os quais complementam o leque de mercadorias verdes representadas pelo setor canavieiro como ambientalmente sustentáveis que contribuem como Mecanismos de Desenvolvimento Sustentável -MDL- (GAMEIRO, 2017).
2No entanto, Thomaz Júnior (2009) afirma que a expansão da indústria sucroalcooleira no Brasil levanta importantes contradições em vários âmbitos, sejam de aspecto ambiental, social e principalmente nas questões referentes à exploração do trabalho. O autor destaca a mudança ou transição técnica e ocupacional oriunda da reestruturação do capital canavieiro nas primeiras duas décadas do século XXI, caracterizadas pela intensa mundialização do capital com o controle da produção e terras por grandes grupos transnacionais sob a forma de filiais (p.ex. British Petroleum -BP-) ou por meio de joint-venture que representam alianças com capitais nacionais (p.ex. RAIZEN conformada por capitais da multinacional Shell e do grupo brasileiro Cosan).
3A transição técnica e ocupacional atrelada à mecanização das funções agrícolas no setor canavieiro é um processo que se inicia, de acordo com Alves (1991), na década de 1960 com as pesquisas e testes para a mecanização da colheita, impulsionado por diversos fatores, principalmente aqueles relativos aos custos da produção e os protestos e greves de trabalhadores no corte manual e outras funções, como aconteceu na década de 1980 no Estado de São Paulo (BARRETO, 2018). Já, no início dos anos 2000, após a crise do setor nos anos 1990, o etanol passa a ser o carro chefe do setor, apoiado por políticas públicas e crédito do BNDES, sendo que houve aumento da demanda interna do etanol pela utilização de tecnologia flex-fuel nos carros vendidos no país, assim como a demanda externa, atrelada à parceria comercial e política entre o Brasil e os Estados Unidos para consolidar o mercado mundial do etanol (PIÑEROS LIZARAZO, 2018; FREITAS, 2013). Além disso, com a mundialização do setor, a regulamentação referente à sustentabilidade ambiental da produção agrícola no mercado mundial do açúcar e também do etanol, controlada pelos países compradores, especialmente europeus, alicerçou a reestruturação do processo produtivo para adequá-lo aos princípios dos protocolos de Quioto e, desde 2015, de Paris. Tudo isso influenciou na primeira década do século XXI a diminuição gradativa da prática da queima para a despalha da cana por meio da mecanização da colheita, isto, através das legislações ambientais, tanto estaduais quanto federais, e também pelas ações voluntárias do setor para aumentar a área colhida com máquinas colheitadeiras. O fato de mecanizar o corte de cana diminuiu quantitativamente o número de empregos no corte manual, especialmente no Estado de São Paulo, maior produtor nacional de açúcar e etanol.
4No estado de São Paulo, a mecanização é impulsionada e acelerada em 2007 com a assinatura voluntária de uma grande parte do setor canavieiro do Protocolo Agroambiental do Estado de São Paulo para o setor sucroenergético (PrAA-SP), acordo junto à Secretaria de Ambiente do estado de São Paulo para antecipar para 2014 o fim da despalha por meio da mecanização nas áreas com declividade de até 12% e para 2017 nas áreas acima do 12% (PIÑEROS LIZARAZO, 2018, p. 190). Em decorrência, tendo em consideração as análises de Baccarin (2016, p. 135) para o Estado de São Paulo, nas ocupações que compõem o grupo de trabalhadores canavieiros concentrou-se a maior diminuição do emprego formal no período 2007-2014, que passou de 186.738 para 76.436 empregos, ou seja, houve uma variação de -110.301 empregos (-59%). Nesse grupo estão contemplados os cortadores manuais, demostrando a magnitude do desemprego de homens e mulheres gerado pela mecanização da colheita, muitos destes, migrantes sazonais oriundos de outros estados, principalmente do Nordeste (Minas Gerais, Maranhão, Piauí etc.).
5Entretanto, de acordo com Reis (2017), a mecanização não contribuiu para melhora das condições de trabalho, ou seja, os trabalhadores desse ramo de atividade ainda trabalham em condições penosas pois, apesar de toda a inovação tecnológica, a questão central permanece inalterada: o pagamento ser de acordo com a produção. Compreende-se então que apesar da maciça mecanização ocorrida no estado de São Paulo nos últimos anos, ainda se prevê a manutenção de trabalhadores para o corte manual para atender as áreas que ainda não foram mecanizadas. Portanto, a compreensão das condições do cortador de cana se faz necessária para debater a questões da continuidade dessa forma de exploração, ainda que quantitativamente seja menos expressiva.
6Nesse contexto, esse artigo visa apresentar os resultados de pesquisa de campo junto a cortadores de cana, a qual foi realizada no período de 2009 a 2011 no Pontal do Paranapanema, área de expansão do cultivo de cana-de-açúcar a partir do ano 2000, e que aumentou rapidamente o percentual de colheita mecanizada. No entanto, essa transição técnica e ocupacional não atingiu a totalidade dos canaviais paulistas, segundo Barreto (2018) em 2017 o percentual de mecanização da colheita atingiu mais do 80% dos canaviais, realidade que expressa a persistência do corte manual. Em alusão ao Pontal do Paranapanema, tomando como referência os 53 municípios da Região Administrativa de Presidente Prudente, a autora afirma que o índice de mecanização oscilava entre o 80 e 90% (BARRETO, 2018, p. 181). Isto é, os dados coletados e analisados nesse artigo oferecem uma perspectiva do medo, sofrimento e sobrecarga física no corte manual no momento em que a mecanização começa a se espalhar pelas empresas canavieiras como paradigma da sustentabilidade ambiental e aumento da produtividade, porém não suprimiu o corte manual que ainda hoje é realizado por número expressivo de trabalhadores que vão atrás das áreas onde ainda há empregos nessa função, e que se combina com novas formas de degradação do trabalho oriundas da reforma trabalhista aprovada em 2017 e das formas de organização do trabalho pelas empresas canavieiras.
7O trabalho no corte da cana-de-açúcar pode ocasionar desgastes físicos e psíquicos no trabalhador. Isso ocorre principalmente devido a remuneração ser por produção, isto é, quanto mais cana cortar, mais ele recebe. Dessa forma, o trabalhador não respeita seus limites físicos, sua idade e, consequentemente, o desgaste natural devido a ocupação, o que pode levar o trabalhador a literalmente morrer de tanto trabalhar (Alves, 2006). O desgaste físico pode levar a exaustão, pois para cortar 12 toneladas de cana por dia, o trabalhador tem que caminhar 8.800 metros, realizar em média 133.300 golpes de podão e 36.630 flexões e entorses torácicos, perdendo em média 8 litros de água por dia (Alves, 2006; Novaes, 2007).
8De acordo com Rocha, Marziale e Tobazzi (2007), o trabalhador do corte de cana-de-açúcar inicia sua rotina ao chegar à lavoura, recebendo um pedaço de terra semelhante a um campo quadrado chamado de “eito”. Cada eito tem de 100 a 150 metros de extensão e é composto por cinco ruas, as quais representam as linhas nas quais é plantada a cana. A sua remuneração baseia-se no desempenho, seu pagamento é em função do número de metros cortados diariamente. Considera-se que o trabalhador sofre perda salarial relativa a esta forma de remuneração e, além disso, não tem controle sobre a contagem de metros cortados.
9Em cada “eito” existe uma rotina de trabalho diferente. Em determinadas situações a cana está disposta deitada, devido às intempéries ambientais como ventos fortes ou irregularidades do terreno. Em outras situações ela está entrelaçada uma na outra exigindo maior esforço físico do trabalhador, ocasionando uma menor produtividade ao final do dia de trabalho. Nestas situações, o corte mecanizado não é utilizado nem indicado. A precisão para um corte bem feito, considerando todas as irregularidades e variabilidades do ambiente e produto ora apresentados, não permitem a utilização da máquina colheitadeira, pois ela não tem tecnologia nem adaptação para realizar um bom corte em condições desfavoráveis, o que ocasiona perda da sacarose que se encontra na parte baixa da cana, próximo do solo. Observa-se, portanto, que a habilidade humana supera a máquina. O trabalhador realiza manualmente o corte da cana com precisão e destreza, mantendo a qualidade na sua produção.
10A cana pode diferir em peso, resultando em pagamento menor ao final do dia. Os motivos para essa ocorrência são diversos, entre os quais destacam-se o tipo de terreno em que é plantada (se aclive, declive ou plano) e quanto às características da plantação, que pode ser a primeira, segunda, terceira ou mesmo quarta colheita.
11Considerando que parte do corte da cana continua a ser realizado manualmente em combinação com a mecanização e, considerando que apesar de responder por aproximadamente 90% da colheita do estado de São Paulo, a mecanização não elucidou questões da organização do trabalho (REIS 2017), é importante compreender a exposição desse trabalhador as cargas psíquicas oriundas do seu trabalho, já que as físicas são conhecidas (Alves 2006, Rocha et al. 2007). A exposição a outras cargas de trabalho e não somente as físicas desse trabalhador, apresenta-se como um fator a mais na sua degradação (SILVA et al 2014).
12Por essas razões, é necessário estudar o real significado do trabalho para o cortador de cana, pelas as ambiguidades relacionadas à sua rotina de trabalho e remuneração. Em particular, é necessário salientar o prazer e sofrimento em relação ao trabalho e quantificar os desgastes físicos sofridos devido aos posicionamentos adotados durante o corte.
13Diante disso, é necessário conhecer se o etanol é legítimo como fonte de energia limpa em termos da saúde dos trabalhadores, considerando que atualmente 90% da colheita da cana no estado de São Paulo é realizada por máquinas.
14Este estudo analisou os determinantes do trabalho de cortadores de cana da região do Pontal do Paranapanema/SP. Os dados foram coletados em canaviais da região no período de 2009 a 2011, sendo que nesse período a região do estudo era 30% mecanizada e, as demais regiões do estado de São Paulo apresentava 40% da sua produção com mecanização (IEA 2017).
15É um estudo exploratório de corte transversal, realizado com cortadores de cana-de-açúcar de usinas sucroalcooleiras em duas etapas distintas.
16A primeira etapa ocorreu no local de moradia dos cortadores de cana, a segunda em seu local de trabalho. Elas serão descritas a seguir.
17A primeira etapa do estudo foi por meio de pesquisa etnográfica. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas tendo como eixo principal a organização, abordando com os trabalhadores o significado do seu trabalho, relacionamentos e sentimentos. Para maior fidedignidade na coleta dos dados, essa etapa ocorreu fora do local de trabalho na residência dos trabalhadores. A população de trabalhadores que participaram dessa etapa são moradores de três assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST na região do Pontal do Paranapanema/SP, a saber: Gleba XV de Novembro com 560 famílias, localizada entre as cidades de Euclides da Cunha e Rosana; Primavera com 120 famílias e Tupãciretan com 75 famílias, ambas localizados na cidade de Presidente Venceslau. Após contatos prévios com a liderança dos assentamentos, foram agendadas visitas e reuniões com aproximadamente 30 trabalhadores do corte manual da cana de açúcar que trabalham em usinas próximas aos assentamentos. Para uma melhor exposição por parte do trabalhador de sua realidade de trabalho, as entrevistas ocorreram nas suas residências, em seu dia de folga, sempre aos domingos. Todos os trabalhadores entrevistados eram do sexo masculino, com idade entre 20 e 40 anos. O tempo decorrido de cada entrevista foi de aproximadamente 3 horas, e a validação dos dados com os participantes foi realizada posteriormente.
18A segunda etapa do estudo ocorreu durante o trabalho in loco em usina produtora de açúcar e etanol também na região do Pontal do Paranapanema do oeste do estado de São Paulo. Os canaviais onde se deram a observação estavam localizados nas cidades de Santo Anastácio e Marabá Paulista.
19Instrumentos básicos para a observação do trabalho foram utilizados, seguindo os princípios da AET – Análise Ergonômica do Trabalho, tal como descrita por Güérin (2001). Essa metodologia de observação do trabalho procura identificar atividades reais que são realizadas rotineiramente para atender a tarefa prescrita pelo empregador. A AET procura identificar quais os reais determinantes do trabalho, assim como as estratégias adotadas para minimizar as cargas físicas e mentais inerentes ao trabalho desenvolvido. Dessa forma, é possível entender como o trabalho se organiza e como o trabalhador adota modos operatórios estratégicos para poder realizar seu trabalho com qualidade atendendo ao que é prescrito. Também foram utilizados os princípios da psicodinâmica do trabalho na interpretação dos dados, de acordo os princípios estabelecidos por Dejours (2004).
20Para análise postural, além das observações in loco durante toda a jornada de trabalho, foram coletadas imagens por meio de câmera de vídeo durante a realização do trabalho real. Estas observações e imagens foram analisadas pelo método de análise postural WinOWAS, sendo este, um sistema baseado na amostragem da atividade em intervalos constantes ou variáveis, verificando a frequência e o tempo gasto em cada postura. O método analisa as posturas e as categoriza em níveis que pode ser de 1 a 4. O nível 1, indica postura normal, que dispensa cuidados, a não ser em casos excepcionais; nível 2, indica que a postura que deve ser verificada durante a próxima revisão rotineira dos métodos de trabalho; nível 3, indica que a postura merece atenção a curto prazo; e o nível 4, indica que a postura merece atenção imediata. Ao todo, foram analisadas aproximadamente 800 posturas adotadas durante o trabalho no corte da cana.
21Todo o processo de análises e coletadas dos dados in loco foram acompanhadas pelo fiscal de corte, chamado de “feitor”, que normalmente faz a fiscalização do trabalhador durante o seu trabalho.
22O trabalho foi desenvolvido respeitando-se a Resolução CNS 196/96 sobre pesquisas envolvendo seres humanos (1996). De fato, esse projeto faz parte de um projeto maior intitulado “Os desafios da ergonomia na biomecânica ocupacional no trabalho do corte da cana-de-açúcar”, sendo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FCT/UNESP, Processo no. 46/2009.
23Os voluntários do estudo, de ambas as etapas, foram convidados a participar da pesquisa, preenchendo o “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido”, concordando com a sua participação no estudo. Foram informados sobre os procedimentos e etapas do estudo, bem como sua liberdade de interromper sua participação no estudo, independente da etapa em que ele se encontre. Foi também preenchido pelos pesquisadores um “Termo de Compromisso” onde se comprometem a respeitar os aspectos éticos no desenvolvimento desta pesquisa.
24Os resultados serão apresentados dentro dos seguintes recortes:
25De acordo com os relatos dos trabalhadores, a questão que mais leva ao sofrimento é a forma de pagamento, ser por produção, ou seja, cada trabalhador recebe pelo peso da cana cortada, sendo que desta forma, ao final da jornada de trabalho, esse indivíduo não sabe quanto receberá pelo seu dia de trabalho. O fato arbitrário dessa forma de remuneração é que, todo o processo de pesagem é realizado fora do local de trabalho e longe do trabalhador, a cana cortada é pesada somente na usina. Outro fator agravante, já citado na introdução, é que a cana tem pesos diferentes dependendo do tipo de solo em que é plantada, e, também das características da plantação se é cana de primeiro, segundo, terceiro ou quarto corte.
26Também, esse método não significa que o trabalho mais pesado será mais bem remunerado. Mesmo que a cana esteja em condições ruins de ser cortada como é o caso da cana conhecida como Cana Bisada (se está deitada ou entrelaçada), como observado na Figura 1, exigindo maior esforço físico do trabalhador, ela pode apresentar diferenças de peso e consequentemente diferença de pagamento.
Figura 1 – Cana bisada, ou de difícil corte devido estar entrelaçada e deitada
Fonte: Material autores, 2010
27Na Figura 2 apresenta-se a rotina de trabalho destes indivíduos, sendo possível observar que são constituídas em um ciclo de atividades. Na Figura 2 (A) o trabalhador se posiciona frente a cana, realizando flexão do seu tronco para abraçar um feixe de canas (constituído de quatro a seis canas) com seu membro superior direito; na Figura 2 (B) observa-se a realização real do corte quando o feixe de cana é golpeado na base rente ao solo algumas vezes para o completo corte; na Figura 2 (C) o trabalhador caminha de 3 a 10 metros carregando o feixe de cana que acabou de cortar para jogá-lo no monte de cana que, posteriormente ao final da jornada de trabalho, será levado a usina a usina pelo caminhão para pesagem; na Figura 2 (D), o trabalhador retorna ao eito para iniciar um novo ciclo de corte.
Figura 2 – Ciclo de trabalho do corte manual da cana:
(A) Trabalhador flexiona o tronco para o corte. (B) Realiza o corte golpeando o feixe com o facão. (C) Caminha de 3 a 10 metros com o feixe de cana nos braços para jogá-lo no monte a ser transportado pelo caminhão a usina no final da jornada. (D) Retorna ao eito para iniciar novo ciclo.
Fonte: Material autores, 2010
28Ao final do dia, os montes de cana cortados são transportados pelo caminhão à usina para a pesagem e realização do cálculo do pagamento ao trabalhador pelo empregador, sem a presença do trabalhador.
29Já, no corte realizado por máquinas colheitadeiras, o pagamento é realizado por indicadores de desempenho (Reis 2017) expressivo nos bônus por produção oferecidos aos motoristas da dupla colheitadeira-trator, e aos trabalhadores da turma, tudo isso segundo as metas de colheita indicados pela empresa. Isto indica que o pagamento por produção permanece, apesar de toda inovação tecnológica que o modelo atual de produção do CAI implementou no Brasil e no estado de São Paulo. Portanto, mesmo com a mecanização, a face cruel do aumento da produtividade no setor canavieiro se baseia na intensificação do trabalho e na incerteza oriunda das formas de pagamento, que acabam sendo formas de dominação dos indivíduos, fundamentadas no medo e na representação do bom trabalhador (MORAES SILVA, 1996)
30Nos resultados são apresentados relatos dos trabalhadores que demonstram a angústia e incerteza do ganho real do seu trabalho. Podemos observar isso pelas palavras de um dos trabalhadores entrevistados “... sabe o que é trabalhar sem saber quanto vai ganhar?... as contas estão em casa, e eu trabalho o dia sem saber quanto vou ganhar...”
31O relato do modo como o trabalhador representa os argumentos pessoais que o impulsionam para ultrapassar seu limite físico e garantir uma boa colheita e, consequentemente uma boa remuneração ao final do dia, que satisfaça a sua necessidade imediata de reprodução da força de trabalho, mas que pode levá-lo a grande exaustão física.
32Nos relatos do grupo de estudo, é evidente o medo, e consequentemente, o sofrimento que envolve o trabalho do cortador de cana de açúcar. Nas falas fica óbvio a desconfiança que o trabalhador tem de seus empregadores pelos efeitos da bebida e pelo descarte dos mais velhos, que são substituídos pelos mais novos, mais fortes e saudáveis. Isso se extravasa na crença de que seu empregador quer envenená-los com a bebida isotônica distribuída pela usina durante a rotina de trabalho. Essa bebida, chamada por eles de suco, tem a função de fazer a reposição das perdas hídrica e eletrolítica do organismo, devido à intensa atividade física realizada. Sua distribuição é uma determinação jurídica, com o objetivo de melhorar a hidratação do trabalhador. Na etiqueta onde consta sua composição, verifica-se que o produto é reconhecido pela ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária, órgão regulador brasileiro. Entretanto, apesar da aparente fidedignidade do produto, o clima de desconfiança de que aquela bebida é para tirar a capacidade para o trabalho é evidente. Observamos o relato transcrito onde observa-se o medo e desconfiança referente ao empregador:
“... eles (o empregador) querem a gente fora na próxima colheita. Sabe como é, cara novo no corte, corta mais. Eles colocam algo no suco que faz mal... Eu não tomo esse suco, tem veneno.”
33Todos os trabalhadores entrevistados se recusavam a tomá-la, pois acreditavam fortemente que em sua composição existia algum componente químico "...colocado pelos usineiros...” para lhes fazer mal, impedindo-os de trabalhar nas safras seguintes para contratar outro trabalhador mais novo, e, portanto, com um custo mais baixo para o empregador. Os sintomas relatados pelos trabalhadores como oriundos da bebida isotônica eram: náuseas, enjoo, mal-estar generalizado, dores de cabeça, vômitos, tonturas, entre outros, todos os sintomas ocorridos logo após a ingestão da bebida. Tivemos relatos de associarem impotência sexual com a bebida ingerida “...não sinto disposto lá em casa, a mulher cobra, mas o suco está me deixando fraco...”. Entretanto, existe uma grande contradição nesses relatos, pois eles não tomam a bebida durante o trabalho, mas a levam para serem consumidas em suas residências pelos seus familiares (filhos e esposa), e, de acordo com suas falas, para a família o suco não causa nenhum prejuízo. Essa contradição, observado pela psicodinâmica do trabalho, indica que o medo já está sendo um sofrimento na relação empregado-empregador.
34Nos dados coletados durante o trabalho in loco, teve-se a presença de fiscais observando atentamente o trabalho, conforme podemos observar na Figura 3. Esses fiscais, tem por função oficial verificar se o trabalho de corte está sendo realizado de forma correta. Mas nas observações in loco observou-se que os ficais de eito davam voz de comando para estimular o trabalhador a cortar em um ritmo contínuo. Nas análises de desenvolvimento de LER/DORT – Lesão do Esforço Repetitivo ou Doença Osteomuscular Relacionada ao Trabalho, Clot e Fernandez (2005) indicam que a patogenia da hipersolicitação biomecânica em trabalho repetitivo se dá, entre outros, pela não possibilidade de o trabalhador utilizar sua margem de manobra na realização de suas atividades de trabalho. Dentro do escopo da ergonomia da atividade descrita por Guerin (2001) entendemos que as margens de manobra são formas do trabalhador realizar o que lhe é prescrito por tarefa, adequando para seu trabalho real, ou seja, fazer o que lhe é prescrito dentro de suas reais atividades de trabalho. Nesse contexto, a presença dos fiscais de eito é uma prescrição a mais no trabalho do cortador de cana. Isso se traduz na forma como eles se referem aos fiscais, chamando-os de feitores, termo esse que remete aos fiscais dos escravos do período colonial brasileiro. Esse é outro ponto que entendemos que o trabalho do corte manual da cana leva constantemente o trabalhador a ter medo, o que de acordo com a psicodinâmica do trabalho, leva um sofrimento imensurável desencadeando o adoecimento do trabalhador (Dejours, 2004).
Figura 3 – Observação pelo fiscal do corte, chamado de feitor, durante trabalho do cortador de cana em canavial de usina localizada na região do Pontal do Paranapanema/SP
Fonte: Material autores, 2010
35De acordo com os dados analisados pelo método Win-Owas, as fases da postura adotada para o corte da cana são: (i) - O tronco em flexão anterior com uma leve rotação e inclinação. (ii) O braço que irá realizar o corte se encontra acima do nível do ombro; (iii) a posição é ortostática (em pé), com o peso do corpo apoiado em uma perna; (iv) o trabalho é realizado sob a ação de uma carga/força entre 14 e 16 kg, que é o peso do feixe (conjunto) de canas cortados em um procedimento de corte.
36Nas fases da postura adotada para o corte observou-se que 45% foi categorizada pelo método Win-Owas na categoria 3 e 51% na categoria 4, indicando que mudanças e ações a curto prazo e imediatas devem ser adotadas a fim de se prevenir alterações musculoesqueléticas devido ao trabalho nestes profissionais.
37Pela análise ergonômica das atividades de trabalho, observou-se que em uma hora da jornada diária de trabalho (jornada diária de oito horas), os trabalhadores do estudo realizavam aproximadamente 2.880 movimentos de flexão de tronco e 3.015 golpes com o facão, que também é chamado de podão.
38De acordo com a observação in loco e relatos coletados durante as observações, foram comuns as câimbras musculoesqueléticas durante a jornada de trabalho. Devido ao ritmo de trabalho associado ao esforço físico, esse sintoma é associado à exaustão física, ocasionada pelo excesso de trabalho. Os sintomas se assemelham a um ataque epilético e/ou cardíaco, sendo bastante intensos levando o trabalhador a se contorcer no chão. O socorro é lento e não está disponível quando eles se iniciam, é necessário aguardar o ônibus ou carro da usina, para o transporte até a instituição de saúde da cidade mais próxima. Muitas vezes, o profissional da área de saúde que realiza o atendimento do trabalhador não está apto para reconhecer os sintomas apresentados como de exaustão, ou seja, não sabe o diferenciar de ataque epilético e/ou cardíaco. Importante destacar que os trabalhadores se acostumam a essas situações. Segundo relatos, quando tais situações ocorrem, o clima de ansiedade e tensão é grande:
“... o trabalho é muito cansativo, as vezes um cai com câimbra perto. Aí fica esperando a ambulância chegar e ninguém sabe o que fazer...”
39De acordo com suas falas, o normal “...de um bom cortador...”, é cortar em média 12 a 14 toneladas/dia de cana. Alguns chegam a cortar até 20 a 25 toneladas/dia, e aquele que corta em média 7 toneladas/dia, “...pode saber que estará fora na próxima colheita...”.
40A angústia por não saber quanto receberá ao final do dia, os fazem de fato excederem seus limites físicos, pois além da própria subsistência, não querem ser considerados fracos, ou, em suas próprias palavras, “...impotentes...” para o trabalho que executam. Se não cortar a média que cortam seus pares, por diferentes questões como saúde, desnutrição, idade, sexo, entre outros fatores, se sente diminuído moralmente.
41A insegurança em não saber qual será o valor do seu pagamento diário, o conduz muitas vezes ao ponto de literalmente "morrer de tanto trabalhar", fato já ocorrido em usinas do estado de São Paulo (Alves 2006). Essa insegurança induz ao medo, pois o trabalhador sente-se esvaído de qualquer controle da sua vida laborativa, inclusive nem sobre seu próprio ganho ele tem controle. Esse sentimento o leva a um grande sofrimento que antecede seu adoecimento real.
42Pelos dados é evidente sua revolta contra o empregador, gerada pelo medo, fruto da insegurança em sua rotina de trabalho. Esses sentimentos, geram sofrimento mental que, associado aos desgastes físicos, expõe de forma mais agressiva a saúde deste trabalhador. O pagamento ser por produção induz um grande esforço físico na realização do trabalho, porém sua dignidade como indivíduo que está vendendo sua força de trabalho é prejudicada.
43Nesse sentido, o agrohidronegócio na região do estudo expõe, na esfera da Geografia do Trabalho, o quão destrutivo são as relações considerando o trabalho, saúde e ambiente, e consequentemente o processo adoecer e morrer, indicando degradação das relações sociais de trabalho e produção (Thomaz 2014).
44É necessário repensar a questão do trabalho penoso e danoso, não somente do escopo físico, mas principalmente mental, pois a grande contradição é sua associação como produção de energia limpa. Como já descrito, é fato que mortes ocorreram durante o trabalho de corte por exaustão física. Mas o ponto gatilho foram as cobranças pessoais do trabalhador para realizar um bom trabalho e consequentemente obter um maior ganho. Apesar da legitimidade de escolha do trabalhador ser livre para decidir sobre o trabalho que deseja desempenhar, a brutalidade de esforços e sofrimentos pode o levar a se assemelhar ao trabalhador escravo do período Brasil-Colônia, século XVIII.
45A intensidade dos movimentos associados a grande repetição destes na execução das suas atividades de trabalho encontrados na população do estudo, favorecem o desencadeamento de lesões e traumas musculoesqueléticos, estando de acordo com os estudos de Rocha, Marziale e Robazzi, 2007. Isoladamente, este seria um grande risco de exposição a saúde física deste trabalhador, mas que associado a carga mental oriundas do medo e sofrimento, apresenta um trabalho mais árduo.
46Outras variáveis que podem aumentar as cargas de trabalho, não foram abordadas neste estudo, mas são presentes neste posto de trabalho. As ferramentas e roupas de trabalho não são adequados para as atividades realizadas, e conjuntamente com a presença de animais peçonhentos podem favorecer a ocorrência de acidentes de trabalho.
47As condições ambientais e exposição a diversos fatores de risco, como exposição a poeira e fuligem resultantes da queima da cana realizada no dia anterior ao corte, são outros agentes de risco presentes na jornada de trabalho. Apesar da Lei no 11.241/2002 apresentar em seu 2º. artigo uma tabela que prevê a eliminação da queimada para o ano de 2021 para áreas mecanizáveis e 2031 para áreas não mecanizáveis, observamos que o corte manual permanece mesmo que em pequena proporção, devido aos interesses de custos da produção realizando uma combinação do manual e mecanizado (Reis e Alves 2014). Portanto, a queimada permanecerá em menor escala, mas não será totalmente eliminada. Importante citar que essa lei não tem origem na melhora das condições de trabalho, mas sim em se evitar a queimada da cana quando o corte é manual, de acordo com o PrAA-SP. Tal queimada gera exposição não somente dos trabalhadores, mas também de toda a população ao entorno dos canaviais. Essa é uma questão de caráter ambiental associada a essa monocultura, sendo que discussões a esse respeito são realizadas diferentes âmbitos.
48Importante debater como ocorre a capacitação desses trabalhadores para executarem outra função na produção do etanol, que é considerado um biocombustível, mas os requisitos profissionais exigidos nas outras etapas do processo produtivo não incluem todos os trabalhadores. De acordo com estudos de Sibien (2014) a capacitação não absorve todos os trabalhadores, sendo que os deixados de fora, serão homens e mulheres que migrarão de suas regiões à procura de outros trabalhos, perpetuando dessa forma a precarização de vida e trabalho desses indivíduos. De acordo com a autora, políticas públicas são necessárias para conter o desemprego estrutural quando o trabalhador é substituído pela máquina sem a devida qualificação, ficando a mercê da sociedade capitalista e marginalizados por um sistema opressor.
49Os resultados do estudo apontam que o trabalhador do corte da cana de açúcar da região oeste do estado de São Paulo apresenta cargas físicas no desenvolvimento do seu trabalho. Entretanto, esse fato é duplamente intensificado pelo não controle que ele tem sobre a sua rotina de trabalho e principalmente sobre o seu ganho. Pela ótica da psicodinâmica do trabalho observa-se que as cargas psíquicas geradas pela rotina de medo constante e, consequentemente gerando grande sofrimento, expõe esse trabalhador a uma dura rotina de trabalho. Esse ambiente de intenso controle pelos fiscais de eito, sua desconfiança constante em relação ao empregador, seu desejo por boa remuneração o levando a cortar desenfreadamente para obter um bom ganho no dia, já causou mortes por exaustão e lesões não somente físicas, mas psíquicas pela sua impotência frente a um sistema mortífero. Mesmo o cortador manual tenha diminuído quantitativamente da paisagem agroindustrial da cana-de-açúcar, ainda há um número expressivo destes que migram na procura de áreas onde as máquinas não conseguem cortar, portanto essa persistência do cortador de cana requer de pesquisas que analisem tanto o descarte, quanto as formas novas e velhas de exploração.
50É fato que a mecanização tem se tornado intensa no estado de São Paulo. Também é fato que mesmo com a maciça mecanização o corte manual ainda permanece assim como as problemáticas aqui apresentadas. Os indicativos do estudo sugerem a importância da implantação de políticas públicas efetivas que neutralizem o sofrimento dos atuais trabalhadores do corte de cana de açúcar. Também se faz necessário a capacitação daqueles que foram substituídos pelas máquinas e não foram realocados para outro trabalho dentro da usina. Estes, não só perderam seus vínculos empregatícios, e, consequentemente de subsistência, perderam também suas diretrizes, ficando suscetíveis a uma maior exploração do sistema capitalista. Isso reforça que, os atuais trabalhadores do corte da cana, por um lado se destacaram em suas habilidades e produtividade para permanecerem empregados, por outro entendemos que as cargas para ele são maiores que as apresentadas aqui. Pois o medo, o sofrimento e a exaustão física outrora presentes, aumentaram pelo medo constante da sua substituição pela máquina. Na verdade, a sua competição é sagaz e desumana, pois ele concorre diariamente com a máquina que cada dia se aperfeiçoa para o substituir.
51Finalizamos considerando que embora sejam aplicadas e atendidas as normatizações e regulamentações vigentes, e, tenham ocorrido reorganização do trabalho com a introdução das máquinas, esses fatores não amenizaram essa atividade de trabalho, mas tem contribuído para o aumento do medo, do sofrimento e da grande sobrecarga física já conhecidos e relatados.
52Os autores agradecem a FAPESP pelo apoio a esse estudo desenvolvido com recursos do Projeto Temático Mapeamento e Análise do Território do Agrohidronegócio Canavieiro no Pontal do Paranapanema São Paulo Brasil: Relações de trabalho, conflitos e formas de uso da terra e da água, e a saúde ambiental, Processo FAPESP No. 2012/23959-9 - BIOEN