- 1 A Etno-História aborda aspectos da trajetória histórica de grupos sociais tradicionais, como os ame (...)
1Este estudo tem por objetivo realizar uma síntese provisória dos sistemas regionais de ocupação ameríndia para a área do Planalto Ocidental Paulista, com base nas pesquisas realizadas pelo Laboratório de Arqueologia Guarani e Estudos da Paisagem (LAG - FCT/Unesp) que, há mais de 30 anos, investiga a arqueologia dessa vasta região paulista. Nos últimos anos, o LAG passou a agregar, também, uma unidade museal: o Museu de Arqueologia Regional (MAR). Busca-se, assim, contribuir para a melhor compreensão da distribuição das populações pré-coloniais no Planalto Ocidental Paulista, por meio de um diálogo entre as pesquisas do LAG e as bibliografias que tratam da Etno-História1 e da Arqueologia Regional.
- 2 O Projeto Paranapanema foi criado no ano de 1968, por Luciana Pallestrini, com o objetivo de realiz (...)
2O LAG desenvolve atividades de pesquisa e extensão desde 1988, quando teve início o Projeto Paranapanema (ProjPar2). Com a regulamentação que dispõe sobre as pesquisas em Arqueologia Preventiva no âmbito dos processos de licenciamento ambiental (a partir de 2002), o LAG teve seu raio de atuação bastante ampliado, com investigações realizadas em diferentes áreas do Planalto Ocidental Paulista (Figura 1).
Figura 1: Unidades geomorfológicas do Estado de São Paulo: o Planalto Ocidental Paulista
Fonte: a autora, 2019.
3O esforço já empreendido para se compreender a territorialização dos grupos étnicos pré-cabralinos no Planalto Paulista teve como um de seus efeitos definir o próprio conceito de sistema regional de ocupação, entendido como
a coordenação entre sítios ou conjuntos de sítios de certa região, demonstrando relações concomitantes por contemporaneidade, similaridade ou complementaridade [...]. Por exemplo, um conjunto de sítios de caçadores-coletores que, embora bastante espalhado geograficamente, mantém alguma coesão. O conjunto de sítios coordenados pela proximidade de um fator comum, de qualquer natureza, constitui um sistema local de sítios arqueológicos. (Morais, 1999-2000, p, 202)
4Tornou possível também delimitar a grande região ao norte e oeste do estado, exatamente a área de atuação ampliada da equipe do LAG/MAR, como uma área fronteiriça – de interface entre distintos sistemas regionais de ocupação (Tupi-guarani e Jê) – o que torna esse esforço particularmente significativo.
- 3 Agradecimentos especiais ao Professor Hervé Théry, da FFLCH/USP, incentivador deste estudo sintétic (...)
5Assim explica-se o recorte geográfico do estudo que, efetivamente, corresponde ao alcance dos projetos de investigação coordenados pelo supracitado laboratório. Apesar de o “estado da arte” da arqueologia na área do Planalto Ocidental Paulista estar distante de possibilitar uma compreensão profunda dessas dinâmicas territoriais, as considerações na conclusão deste texto, longe de serem definitivas, buscam lançar algumas hipóteses prospectivas para a arqueologia regional nos próximos períodos3.
- 4 Esclarece-se que, em todas essas situações, as populações kaingang e guarani coabitam com indivíduo (...)
6Para o Planalto Ocidental Paulista, os dados etno-históricos apontam a presença de três grupos agricultores indígenas em relação aos quais, pelo menos preliminarmente, também se pressupõe a presença de vestígios arqueológicos: os Guarani, do grupo linguístico Tupi-guarani; os Kaingang e os Kayapó, por sua vez, tidos como do grupo linguístico Jê. Os Guarani e Kaingang do Planalto Ocidental Paulista, depois de terem deixado suas aldeias originais por diferentes processos históricos, ocupam hoje áreas delimitadas pelo Estado brasileiro: três Terras Indígenas localizadas na região. No Planalto Ocidental Paulista estão presentes duas aldeias indígenas Kaingang: 1) Terra Indígena Vanuíre, no Município de Arco Íris (região de Tupã); 2) Terra Indígena Icatu, no Município de Braúna (região de Penápolis). Os Guarani que ainda vivem no Planalto Ocidental Paulista habitam a Terra Indígena Araribá, no Município de Avaí, região de Bauru (Figura 2)4.
Figura 2: Territórios indígenas no Planalto Ocidental Paulista
Fonte: A autora, 2019.
7O Mapa Etno-Histórico de Curt Nimuendaju (IBGE, 1987) constitui um dos documentos mais importantes sobre a ocupação indígena no Brasil e, por conseguinte, do Planalto Ocidental Paulista. Ele evidencia, a partir de relatos etnográficos da primeira metade do século XX, a localização de grupos indígenas remanescentes do processo de ocupação da frente pioneira paulista. No mapa de Nimuendaju, elaborado em 1944, verificam-se as áreas de ocupação e as rotas de chegada dos Guarani, Kayapó e Kaingang ao Planalto Ocidental Paulista. Apesar de essas rotas já terem sido descritas em relatos etno-históricos para períodos anteriores a 1944, constata-se que, naquele ano, essas áreas ainda eram parcialmente ocupadas (Figura 3).
Figura 3: Mapa Etno-Histórico de Curt Nimuendaju (1944)
Fonte: Adaptado de Nimuendaju, 1944
8Os índios Guarani, segundo Nimuendaju, entraram no Estado de São Paulo pelo Estado do Paraná. O grupo Jê, em parte, é oriundo do Estado do Paraná (Kaingang) e, em parte, do Estado de Minas Gerais (Kayapó).
9Das 31 áreas indígenas existentes no Estado de São Paulo, segundo a FUNAI, a grande maioria localiza-se na faixa litorânea e sul do estado (fora da área delimitada neste estudo) e é ocupada, sobretudo, por índios do tronco linguístico Tupi-guarani. Pelo menos desde os anos 1940 não há mais indivíduos pertencentes aos grupos autóctones Kayapó no estado. Se suas presenças resistiram, de alguma forma, foi por meio da miscigenação.
10Ao analisar as principais teorias elaboradas sobre a origem e dispersão dos povos que compõem o tronco linguístico Tupi-guarani, verifica-se que teriam escolhido espaços geográficos similares aos originais, garantindo, dessa forma, poucas mudanças em seus ambientes e seus artefatos, o que se confirma pela permanência das formas e decoração das vasilhas dessa tradição por milênios, considerando diferentes sítios arqueológicos com localização e datações distantes (Brochado, Monticelli, Neumann 1990; Faccio, 2015, 2018).
- 5 Tupiguarani refere-se às tradições arqueológicas e está relacionado com as características da cerâm (...)
11Os sítios arqueológicos Tupiguarani5 no Planalto Ocidental Paulista estão localizados, geralmente, em terras férteis, em áreas de média para baixa vertente, próximos a lagoas, nascentes e/ou córregos do rio Paranapanema, onde são evidenciados depósitos de argila, afloramentos rochosos e seixos de vários tamanhos, predominando os de arenito e de silexito – certamente rolados do leito do alto e médio rio Paranapanema.
12Na disputa pela colonização da porção sul do Novo Mundo, no início do século XVII, jesuítas espanhóis estenderam o domínio das missões nas duas margens do rio Paranapanema (Dantas, 1978). No que é hoje o lado paranaense, fundaram 13 missões e, no atual Estado de São Paulo, apenas três: Maracanã, Itamaracá e Araraá (Hernandez, 1913) (Figura 4).
Figura 4: Reduções indígenas no Guaíra 1610-1630
Fonte: Faccio, 2011.
13No contexto dos conflitos envolvendo índios e colonizadores nessa área da América do Sul, onde as coroas de Portugal e Espanha disputavam o efetivo domínio entre as áreas em torno do Tratado de Tordesilhas, as missões jesuíticas espanholas e as invasões dos bandeirantes ocuparam um espaço privilegiado. Para Leite (1998), a inconstância da presença religiosa nesses aldeamentos paulistas, associada à feroz expansão dos mamelucos de Piratininga, determinou uma curta duração das missões indígenas, as quais foram destruídas pelas bandeiras paulistas, sendo os índios capturados para trabalhar como escravos nas lavouras de São Vicente e de Piratininga. Ressalta-se que o processo de avanço dos paulistas sobre os territórios das missões espanholas avançou em direção ao Sul e a Leste, para além do vale do rio Paranapanema.
14Os Kaingang chegaram ao Sul e Sudeste do Brasil 3.000 anos antes do presente (URBAN, 1992). No Planalto Ocidental Paulista, a ocupação Kaingang é registrada pela Etno-História a partir do século XVIII. De acordo com Lima e Cava (2004), uma guerra ocorrida possivelmente no século XVIII no território das missões forçou as migrações dos Kaingang do Sul do país para o atual Estado de São Paulo.
15Em períodos mais recentes, coloca-se a hipótese de que os Kaingang estabelecidos no Planalto Ocidental Paulista se mantiveram afastados das margens do rio Paranapanema, ocupando áreas mais interiores do território paulista, sobrevivendo longe das frentes pioneiras que, a partir do século XIX, tomaram a região. Segundo Dantas (1978), os Kaingang habitavam as vertentes do rio do Peixe, dentro da mata virgem. Sampaio (1978) registra a presença dos Kaingang no vale do rio Paranapanema, mas não próximo às suas margens, caracterizando-os como hostis e belicosos. Monbeig (1984) relata que
Os caingangs, designados pelo nome de coroados, a partir do século XVIII, distribuíam-se tanto pelos planaltos paulistas, como pelas regiões do Paraná e do Brasil Meridional. No fim do século XIX, encontravam-se cinco pequenos grupos deles, entre o rio do Peixe e o Aguapeí. (Monbeig,1984, p.129-130)
16No período posterior à segunda metade do século XIX, a área foi colonizada. Monbeig (1984) relatou que uma expedição de João Teodoro, irmão de José Teodoro de Souza (conhecido pioneiro), identificou índios nas áreas do rio Capivara, dos ribeirões Laranja Doce e Anhumas, no sudoeste paulista – mesma área onde Faccio (2016b) registrou a presença de oito sítios arqueológicos com cerâmica Kaingang (Foto 1). No final do século XIX, essa área ainda constituía vasto sertão habitado por indígenas. Os fazendeiros não ignoravam a sua presença, mas “pensavam em levar as futuras ferrovias a estas paragens longínquas” (Monbeig, 1984, p. 27).
Foto 1: Cerâmica Kaingang (Krukü) - Acervo do
Museu Municipal de Paraguaçu Paulista, SP
Fonte: Faccio (2011a)
17Nas palavras do então diretor do Museu Paulista, no início do século XX, “os Kaingang são um empecilho para a colonização das regiões do Sertão que habitam, parece que não há outro meio que se possa lançar mão, senão o seu extermínio” (Von Ihering, 1911 apud Pinheiro, 1992, p. 22). Essa opinião expressa não o consenso das camadas mais cultas da época, mas “a realidade do que foi o contato entre a frente pioneira que avançava pelo Médio e Baixo Vale do Paranapanema e a etnia mais populosa nessa região” (Faccio, 2011, p. 31).
18Segundo Ribeiro (1970), em 1905 ocorreu o primeiro ataque dos índios Kaingang aos construtores das linhas férreas que percorrem a região. Depois desse, muitos outros se seguiram, resultando na morte de 15 não indígenas. Em contrapartida, aldeias inteiras foram exterminadas. A implantação da Estrada de Ferro Sorocabana (EFS) abriu a via para a ocupação do Vale do Paranapanema, e seu entorno foi povoado por agricultores que contavam com “bugreiros”, profissionais contratados para o extermínio de populações indígenas que restavam (Leite, 1998).
- 6 Para as áreas de expansão das Estradas de Ferro Paulista, Araraquarense e Mogiana será necessário i (...)
19Juntas, as Estradas de Ferro Sorocabana e Noroeste do Brasil (Figura 5) tiveram papel destacado no etnocídio e na expulsão dos índios de forma violenta (Monbeig, 1984; Abreu, 1998; Leite, 1998; Rodrigues, 2007)6. “Não havia nenhuma mediação do Governo entre os povoadores e os índios, e o meio encontrado para afastar o obstáculo era a dizimação dos silvícolas” (Abreu, 1998 p. 64).
Figura 5: Ferrovias no Planalto Ocidental Paulista
Fonte: a autora, 2019.
20O Serviço de Proteção ao Índio (SPI) garantiu um restrito espaço de subsistência aos Kaingang no oeste paulista, no início da segunda década do século XX (Ribeiro, 1970). Em 1912, foi criado o Posto Indígena de Icatu, localizado no Município de Braúna - SP e, em 1916, o Posto Indígena Vanuíre, hoje localizado no Município de Arco-Íris (na região de Tupã - SP), iniciativas tomadas, porém, quando já não havia muitos índios Kaingang na região. À época, os Kaingang já eram considerados integrados. Estavam confinados em parcelas do antigo território ou “despojados de suas terras, perambulavam de um lugar a outro, sempre escorraçados” (Ribeiro, 1970, p. 235).
21Os Kayapó emergem como principal etnia presente no norte do Estado de São Paulo, ocupando os biomas de transição com o cerrado. Monteiro (1984) localiza até mais ao sul a presença Kayapó (tendo seu suposto território se estendido até a região de Campinas e por todo o sul de Minas Gerais). Esses Kayapó meridionais (ou bilreiros) teriam resistido à invasão colonizadora do século XVI. Numa primeira etapa, sua estratégia foi a fuga – o recuo sistemático diante do português – para o interior do seu grande território. No século XVIII, pressionados pelo movimento minerador, os Kayapó reagiram violentamente, o que os levou ao seu virtual extermínio (Monteiro, 1984, p. 25).
22Esse mesmo autor relata expedições brasileiras no território localizado entre os rios Tietê e Grande desde o final do século XVI. Pouco, porém, se sabia da região até o advento do ciclo do ouro. Borelli (1984) informa sobre a penetração de mineiros na região entre o Tietê e o Grande, sobretudo no período de declínio da mineração (início do século XIX). A ocupação desse antigo território Kayapó não foi devidamente documentada, posto que esses “novos habitantes” se estabeleceram ali praticando uma agricultura basicamente de subsistência e com raros contatos com os circuitos socioeconômicos mais dinâmicos (Monbeig, 1984).
23No Estado de São Paulo, o último registro de índios Kayapó, enquanto grupo, foi em 1910, quando Nimuendaju (1944) descreveu a presença de um grupo de 30 índios próximo à margem do rio Grande (Monbeig, 1984, p. 130). Segundo Monbeig (1984 p. 230), “os caiapós dominavam as partes dos planaltos compreendidas entre o Rio Grande e o Tietê”. Foi a partir da segunda metade do século XIX que a região noroeste do estado foi devidamente incorporada ao circuito econômico do café, retalhando o “sertão do Rio Preto”. Pode-se datar desse período o extermínio ou a fuga das populações Kayapó de toda a região.
- 7 Para facilitar a classificação de sítios arqueológicos no Brasil, as tradições arqueológicas foram (...)
24Os grupos Kayapó são os prováveis descendentes históricos de grupos indígenas agricultores ceramistas relacionados à Tradição Arqueológica Aratu-Sapucaí7.
25A arqueologia tem mostrado a presença de índios Guarani, Kayapó e Kaingang no Planalto Ocidental Paulista, bem como a evidência de contato entre Guarani e Kayapó, e Guarani e Kaingang, além do contato dessas etnias com os invasores (Faccio, 2011, 2012 et alii, 2017). Revela também as áreas de maior concentração de sítios de cada etnia, o que indica aspectos da territorialidade de cada grupo. Os dados resultantes das pesquisas em Arqueologia e Etno-História, quando trabalhados em conjunto, possibilitam conhecer a área de ocupação tradicional dos grupos indígenas, sua desterritorialização provocada pela sociedade nacional, bem como a ocupação dessas terras pelas frentes pioneiras. Os aspectos da cultura material e do meio físico dos assentamentos dessas etnias indígenas, por sua vez, evidenciam importantes aspectos das paisagens reconhecidas por cada grupo.
- 8 Foram registrados outros dois sítios Guarani com contato com reduções jesuíticas no vale do rio Par (...)
26De acordo com os registros arqueológicos disponíveis, reunidos a partir dos estudos do LAG, o Planalto Ocidental Paulista apresentou densa ocupação indígena. São 147 sítios: um com arte rupestre, 45 Guarani, um Guarani/Jesuíta8, seis Guarani/Kaingang, dois Kaingang, dois Tupi/Aratu-Sapucaí, dois Aratu-Sapucaí/Uru e 88 Aratu-Sapucaí. A Figura 6 apresenta os sítios arqueológicos de grupos agricultores indígenas, da área do Planalto Ocidental Paulista, estudados no âmbito do LAG/MAR.
Figura 6: Sítios arqueológicos de grupos agricultores indígenas do Planalto Ocidental Paulista estudados no âmbito do Museu de Arqueologia Regional e do Laboratório de Arqueologia Guarani e Estudos da Paisagem, ambos da UNESP
Fonte: a autora, 2019.
- 9 Brunidura é o processo de polimento da superfície cerâmica antes da queima, o que produz brilho na (...)
27Cumpre ressaltar que dos seis sítios caracterizados como Guarani/Kaingang, destaca-se o Sítio Alvorada, no Município de Junqueirópolis. Nele, em meio à cerâmica Guarani, foi encontrada uma vasilha dupla. Embora essa peça também pudesse ser Aratu-Sapucaí, optou-se por classificá-la como Kaingang, pois, na área desse sítio, foi encontrada cerâmica com brunidura. Nos casos de sítios classificados como Guarani/Kaingang, o diagnóstico para Kaingang foi sempre a ocorrência de brunidura9 (Faccio, Baco, Zago, 2016; Faccio, 2014).
28Os grupos Guarani no Planalto Ocidental Paulista localizavam-se em uma vasta área a partir do rio Paranapanema até o rio São José dos Dourados, passando pelos rios Santo Anastácio, Aguapeí, do Peixe e Tietê. No atual estágio das pesquisas – não apenas computando as do LAG/MAR – não é possível afirmar qual porção desse território possuiu uma ocupação Guarani mais densa. Para isso, seria necessária a realização de pesquisas sistemáticas, o que ainda não ocorreu nessa região como um todo.
29O que parece claro, no atual estágio das investigações, é que as ocupações Guarani de maior porte estão nas áreas dos rios maiores, como o Paraná e o Paranapanema. Ainda não se sabe se a entrada dos Guarani em terras paulistas se deu simplesmente pela travessia do Paranapanema, via margem sul, ou se, tendo em vista serem hábeis canoeiros, teriam chegado navegando pelo rio Paraná, posteriormente subindo o Paranapanema. O que é certo, porém, é que índios Guarani acompanhados dos jesuítas atravessaram o rio Paranapanema na altura dos Sítios Arqueológicos Guarani Alvim (Município de Pirapozinho), Taquaruçu e Taquaruçu 2 (Município de Sandovalina), onde instalaram, respectivamente, as Missões Jesuíticas de Itamaracá, Araraá e Maracanã (Faccio, 1988, 2011). Destas, apenas a Araraá foi estudada no âmbito das pesquisas do LAG/MAR, sendo o sítio classificado como Guarani/Jesuítico.
30As datações para sítios Guarani na área dos rios Tietê, São José dos Dourados, Aguapeí e do Peixe, no Planalto Ocidental Paulista, ainda não foram realizadas. Na área do Sítio Alvorada I, considerado um sítio Guarani/Kaingang, foi encontrada uma vasilha dupla, característica do grupo Jê (Faccio et alii, 2011) e presente entre os Kaingang e os Kayapó. O Sítio Alvorada II apresentou evidências de ocupação Guarani, com ocorrência de cerâmica com brunidura, característica de grupo indígena Kaingang.
- 10 O presente é 2014, quando foi realizada a datação.
31Para a área do rio Santo Anastácio, a cerâmica do Sítio Arqueológico Célia Maria (Município de Mirante do Paranapanema) foi datada, por termoluminescência, em 450 ± 60 anos antes do presente10 (Pereira, 2011). O Sítio Célia Maria apresentou três manchas pretas, vestígios de antigas casas Guarani caídas e apodrecidas pela ação do tempo, bem como de restos de fogueira que foram acesas dentro das habitações. As datações para o grupo Guarani no vale do rio Paranapanema paulista são de 1.020 anos antes do presente para a área do médio Paranapanema, como é o caso do Sítio Alves, Município de Piraju (Pallestrini, 1988); de 1.668 a 750 ± 110 antes do presente para a área do baixo Paranapanema, oeste do Estado de São Paulo, como é o caso dos Sítios Ragil II e Pernilongo (Município de Iepê), respectivamente (Faccio, 2011).
32A cerâmica Guarani, anterior ao contato com os “não índios”, tem por característica a pintura policrômica em preto e vermelho sobre engobo branco, o ângulo de parede e o antiplástico caco moído, mineral e carvão (Fotos 2). A cerâmica incisa também é comum entre os Guarani (Figura 7).
Foto 2: Cambuchi encontrado em área de cemitério do Sítio Arqueológico Aguinha, localizado no Município de Iepê, próximo ao rio Paranapanema - Sítio Guarani. Nota-se a pintura vermelha sobre engobo branco e o ângulo da parede – ambos característicos do grupo Guarani
Fonte: Faccio (2011)
Figura 7: Naetã com incisões encontrado em área de cemitério do Sítio Arqueológico Pernilongo, localizado no Município de Iepê, próximo ao rio Paranapanema - Sítio Guarani
Fonte: Faccio (2011).
33Os sítios Guarani foram encontrados, de modo geral, em áreas de média e baixa vertente, com predomínio de materiais na área de baixa vertente, na forma de planície.
34Para o sítio com arte rupestre, localizado no Município de Narandiba, as pesquisas não são conclusivas, tendo em vista o fato de no seu entorno terem sido encontrados sítios Guarani e Kaingang (Foto 3).
Foto 3: Arte Rupestre do Sítio Arqueológico Narandiba - SP.
Fonte: a autora, 2016.
35Diante do exposto, mesmo com poucas datações para os sítios arqueológicos Guarani no Planalto Ocidental Paulista, parece bastante provável que a rota usada por esses índios tenha sido de sul para norte.
36Os grupos Kaingang, por sua vez, localizavam-se em uma área a partir de afluentes do rio Paranapanema até o rio Aguapeí (Faccio et alii., 2011; Faccio, 2015). No atual estágio das pesquisas, foram identificados oito sítios arqueológicos com presença de cerâmica Kaingang, dos quais seis foram classificados como Guarani/Kaingang, e dois, como Kaingang (Foto 4).
Foto 4: Fragmento de cerâmica Kaingang do Sítio Arqueológico Sítio Nantes II
Fonte: a autora, 2016
37Os grupos Kayapó no oeste paulista localizavam-se em uma área a partir do rio Grande até o rio Aguapeí, próximos de córregos de águas perenes ou de rios, na base de colinas ou chapadas, instaladas em declive suave, na direção dos corpos fluviais. Ocuparam áreas de média e baixa vertente, como os Guarani; contudo, a vegetação característica das áreas ocupadas por eles é a de transição de floresta estacional semidecídua para cerrado. Esse último bioma é apontado como o mais originário desse grupo étnico.
Fotos 5: Urna funerária Kayapó do Sítio São Luiz, Ituverava - SP
Fonte: Faccio et alii, 2019.
38Em parte dos sítios estudados da Tradição Aratu Sapucaí, como é o caso dos sítios Turvo I e Guariroba, foram encontrados materiais cerâmicos da Tradição Tupiguarani, ainda que em pequena quantidade (muitas vezes, menos de 1% do total).
39Analisando os dados apresentados na Figura 3, verifica-se que as fronteiras entre as etnias Guarani, Kaingang e Kayapó não foram definidas de forma rígida, ainda que haja evidência de uma área de predominância para cada grupo étnico. Segundo Rodrigues (2007), essas fronteiras eram móveis e (re)estabelecidas por meio de acordos baseados em suas tradições ou em lutas. A Figura 4 mostra que a ocupação Guarani deu-se desde o rio Paranapanema até o Tietê, tornando-se menos intensa a partir do Tietê, onde se verifica a predominância da Tradição Aratu-Sapucaí ou população Kayapó. Os Kaingang ocuparam desde a área de afluentes do rio Paranapanema até a bacia do rio Aguapeí.
40No noroeste do Estado de São Paulo, verifica-se uma grande quantidade de sítios da Tradição Aratu-Sapucaí. Quanto mais próximos ao rio Grande, maior a quantidade de sítios e maior o sítio em área; quanto mais ao sul, mais raros e menores eles são. Nesses sítios Kayapó, é comum a presença da cerâmica Tupiguarani, em pequena quantidade.
41A partir do Sistema de Informação Geográfica, trabalhamos com os dados da Arqueologia e da Etno-História relativos ao Planalto Ocidental Paulista. Dessa forma, podemos ter uma primeira visão de conjunto sobre os sistemas de ocupação indígena na área.
42Sobrepondo-se os dados etno-históricos aos dados arqueológicos referentes aos assentamentos indígenas, verifica-se a presença de uma área de ocupação indígena muito maior que aquela encontrada por Nimuendaju, em 1944. Diante desses elementos, colocam-se algumas considerações a respeito dos Sistemas Regionais de Ocupação do Planalto Ocidental Paulista (Figura 8).
Figura 8: Sobreposição de dados da Arqueologia e da Etno-História do
Planalto Ocidental Paulista
Fonte: a autora, 2019.
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nas áreas onde Nimuendaju, em 1944, registrou a presença de grupos indígenas Guarani, a Arqueologia também registrou em alguns pontos a presença desses índios, constatando, contudo, uma área muito maior dessa ocupação;
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nas áreas onde Nimuendaju, em 1944, registrou a presença de grupos indígenas Kaingang, a Arqueologia não registrou em a presença desses índios, constatando, contudo, outras áreas com ocupação;
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nas áreas onde Nimuendaju, em 1944, registrou a presença de grupos indígenas Kayapó, a Arqueologia registrou em alguns pontos a presença desses índios, constatando, contudo, uma área muito maior dessa ocupação;
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nos registros arqueológicos, no atual estágio das pesquisas, já se verifica que os Kayapó ocupavam aldeia e acampamentos, fato corroborado pelos dados etno-históricos apresentados por Turner (1992), quando descreve que os Kayapó ocupavam aldeia e acampamentos de períodos de seca e de chuva. Já para os Guarani, verifica-se a presença de aldeias com mais de quatro manchas pretas para as áreas próximas ao rio Paranapanema e aldeias com até quatro manchas pretas para as áreas de entorno dos afluentes desse rio, bem como para as dos rios do Peixe, Aguapeí e Tietê.
43A forma do relevo, os afloramentos rochosos, as fontes de argila, a proximidade de água e a vegetação foram fatores ambientais que os grupos indígenas do Planalto Ocidental Paulista consideraram para instalar seus assentamentos (FACCIO, 1998). Os Guarani ocuparam as áreas de floresta estacional semidecídua na média e baixa vertente dos rios Paraná, Paranapanema e de seus afluentes. Os Kayapó ocuparam áreas de média e baixa vertente dos biomas de transição de floresta estacional semidecídua e de cerrado, nas áreas dos rios Grande, Paraná e de seus afluentes. Os Kaingang ocuparam áreas de topo e média vertente, com mata ou campo próximos a afluentes dos rios Paranapanema e Paraná.
44No caso dos Guarani, as áreas dos rios Paraná e Paranapanema são de grande porte, e as ocupações ao longo dos afluentes desses rios são menores e provavelmente mais recentes. Como exemplo, pode-se citar os Sítios Arqueológicos Capisa e Ragil II (Iepê - SP), de grande porte, localizados próximo ao rio Paranapanema, datados de 850 e 900 anos antes do presente, respectivamente; e o Sítio Célia Maria (Mirante do Paranapanema, SP), de pequeno porte, localizado em afluente do rio Paraná, datado de 450 anos antes do presente. Assim, para os Guarani, ser o sítio de grande ou de pequeno porte parece estar relacionado com o período da ocupação e não com hierarquia entre os assentamentos. Considerando o estágio em que se encontram as pesquisas, essa afirmação constitui apenas uma hipótese. Para os Kayapó e Kaingang, ainda não temos datações que deem suporte às hipóteses.
45Monbeig (1984) afirma que os Guarani submeteram – mas não destruíram – populações que pertenciam às diversas ramificações da nação Jê. Analisando o contexto dos sítios arqueológicos do Planalto Ocidental Paulista com presença de cerâmica Kaingang e Guarani, verifica-se uma maior quantidade de cerâmica Guarani, o que, de certa forma, pode corroborar a afirmação de Monbeig (1984).
46As áreas mais distantes dos grandes rios, com córregos ou ribeirões, vêm sendo pesquisadas, de forma mais intensa, somente a partir de 2002, graças à Portaria 230 do IPHAN, (substituída pela Normativa nº 1/IPHAN, de 2015), que regulamenta o licenciamento ambiental em áreas de monocultura, como da cana-de-açúcar e da soja. No Estado de São Paulo, essas áreas são arqueologicamente mal conhecidas, o que compromete uma avaliação mais geral dos sistemas de ocupação. Prova disso é que os sítios Guarani conhecidos estão, em sua maioria, próximos às margens dos rios Paraná e Paranapanema, onde foram construídas hidrelétricas cujo licenciamento ambiental esteve vinculado a pesquisas arqueológicas. No entanto, várias pesquisas em áreas de cultivo de cana-de-açúcar mostram que os Guarani ocuparam também áreas distantes dos grandes rios, como é o caso dos Sítios Alvoradas I, II, III e Guariroba (Faccio, 2012), na região de Junqueirópolis, município que ocupa os interflúvios dos rios Aguapeí e do Peixe.
47Quanto aos Kaingang, apesar de a Etno-História relatar a sua presença no oeste paulista e do testemunho das populações remanescentes nas aldeias Icatu e Vanuíre, só recentemente sítios têm sido encontrados. Isso, de fato, ainda significa pouco, diante da potencial riqueza que as áreas adjacentes aos rios do Peixe e Aguapeí representam.
48Pouco ainda se conhece das áreas afastadas dos quatro principais rios da região – Paraná, Grande, Paranapanema e Tietê. Boa parte de suas margens, devido à instalação de usinas hidrelétricas, foram pesquisadas a partir da década de 1980, no primeiro momento em que a Arqueologia passou a integrar, de forma efetiva, as exigências do licenciamento ambiental. Talvez esse fato explique a pequena quantidade de sítios arqueológicos Kaingang no oeste paulista, enquanto a Etno-História regional registra a sua presença.
49Nota-se, a partir dos dados etno-históricos e dos registros arqueológicos, a ancestralidade e a resiliência dos grupos Guarani, Kaingang e Kayapó no Estado de São Paulo, na preservação de marcadores culturais, que nos permitem, hoje, conhecer e caracterizar aspectos dos Sistemas Regionais de Assentamento desses grupos indígenas.
50Diante do exposto, ressalta-se o caráter provisório e inicial desta síntese, tendo em vista as lacunas do ponto de vista dos dados da Arqueologia e da Etno-História para uma visão completa dos Sistemas de Ocupação dos Grupos Indígenas Agricultores do Planalto Ocidental Paulista.