O Brasil enfrenta um futuro incerto
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1O Brasil de hoje não se parece muito com o da véspera da Segunda Guerra Mundial. Sua população era de apenas 40 milhões. Agora é mais de cinco vezes maior - 212 milhões em 2017, a marca de 100 milhões foi cruzada em 1972, a de 200 em 2012. Era um país jovem, taxa de natalidade elevada. A expectativa de vida agora se aproxima de 75 anos, mas a taxa de fertilidade é de apenas 1,69: as gerações mais jovens são menores: as escolas primárias se esvaziam. O país passou por uma rápida transição demográfica: seu plano de aposentadoria não está mais adaptado a uma população que se envelhece.
2Apesar da presença de duas grandes cidades, Rio de Janeiro e São Paulo, o Brasil era em grande parte rural. Sua população é agora mais de 85% urbanizada. Só o corredor urbano Santos - São Paulo - Campinas tem mais de 25 milhões de habitantes. 20 aglomerações têm mais de 1 milhão de habitantes, 12 das quais tem mais de 2 milhões. Mais de 56% dos brasileiros vivem em municípios com mais de 100.000 pessoas.
3O Brasil era um país agrícola. Atualmente, possui apenas 8% dos ativos nesse setor, que contribui com não mais de 5% para o Produto Interno Bruto. A indústria, limitada a um pequeno número de focos nas regiões Sudeste e Sul, estava em seu início. Proporcionalmente à sua população, ela ocupa hoje tantas pessoas quanto na França.
4De Natal à fronteira uruguaia, o Brasil populoso e ativo permaneceu limitado a uma faixa costeira mais ou menos estreita. Uma frente pioneira vinda do Sul percorreu os cerrados interioranos e dobrou a superfície cultivada, passando em meio século de 1 para 2 milhões de km2. A Amazônia está melhor integrada ao espaço nacional.
5O Brasil era apenas uma potência regional. Hoje deve ser contabilizado como um país emergente. Sua diplomacia é ativa na América Latina e cada vez mais também na África. Suas trocas econômicas o fazem um importante ator no cenário econômico mundial.
6Este grande país, país enorme, atravessa agora uma fase difícil. Atingido em cheio por uma grave crise econômica, vive ao mesmo tempo uma mudança profunda em sua organização social e em sua consciência coletiva. A mudança de um governo de esquerda para um governo de direita – uma direita extrema – traduz essas transformações e acrescenta elementos de incerteza e inquietude.
As etapas de um começo espetacular
7O Brasil no início do século XX era constituído por um mosaico de espaços economicamente diversos, mas unido por uma língua, uma religião (a esmagadora maioria da população é católica) e uma elite de grandes proprietários de terras. O Nordeste continua dominado pela economia açucareira e pelas sequelas da escravidão. O Sudeste deve seu dinamismo ao café e à frente pioneira suscitada por esta cultura; as terras roxas do estado de São Paulo e do oeste do Paraná foram conquistadas e atraíram a imigração europeia e, em menor medida, também a japonesa. O Sul justapõe espaços pouco interligados, mas que devem aos colonos alemães, italianos ou poloneses sua estrutura social mais moderna. Após a grande fase de exploração do ouro e dos diamantes, o interior dos cerrados ficou sonolento. O ciclo da borracha animou brevemente as margens do rio Amazonas e seus afluentes, mas esses espaços foram parcamente integrados à construção nacional.
8A ideia de progresso figura no lema do país - "Ordem e progresso" - mas ela dificilmente inspira mais do que empresários de São Paulo e uma pequena elite intelectual e militar, conquistada pelas ideias de Auguste Comte. O poder federal era disputado entre os três estados mais importantes, São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais.
9A Grande Depressão atingiu duramente um país cuja economia era baseada na exportação de café, açúcar e produtos de origem animal. Os brasileiros reagem tomando em suas mãos o controle de seu destino. A Primeira Guerra Mundial havia rebaixado a Europa. É ao lado das novas grandes potências, Estados Unidos e URSS, que o país procura seus modelos. Ele se lança na rota da modernização.
De Vargas a Kubitschek
10Getúlio Vargas foi a figura-chave nesta grande reviravolta. De certo modo semelhante às experiências dos regimes autoritários em voga numa parte da Europa, o Estado Novo por ele instaurado fortaleceu o poder federal com o objetivo de criar uma economia poderosa e um espaço unificado.
11A ferrovia não havia conseguido soldar as três principais bacias hidrográficas do Brasil, as do São Francisco, Paraná-Paraguai e Amazônica. A rodovia atingiu esse objetivo em meados do século XX, criando entre o Nordeste, o Sudeste e o Sul uma ligação mais rápida do que a navegação de cabotagem, existente desde o início da colonização, possibilitando assim a penetração rumo ao Oeste do país. Ocidente. O lançamento de uma política de colonização da Amazônia foi no mesmo sentido.
12A indústria tem início: os têxteis se beneficiam da unificação do mercado nacional e a indústria siderúrgica é estabelecida. Para acelerar seu desenvolvimento, grandes companhias nacionais são criadas, as empresas Estatais. Com a Eletrobrás e a Petrobras, eles dominam particularmente a produção energética, cujo baixo nível se constituía no principal obstáculo ao crescimento.
13A presidência de Juscelino Kubitschek confirma as orientações traçadas por Vargas. O que lhe confere uma expressão simbólica foi a transferência da capital do Rio de Janeiro para Brasília, no interior, bem onde as bacias hidrográficas do São Francisco, Paraná e Amazonas se encontram.
14O período 1930-1960? Um período agitado, difícil, mas essencial para o país, pois é nele em que se faz a opção pela modernidade e quando tem início o desenvolvimento desordenado que transformou o país. Mas no início dos anos 1960 ainda havia uma escolha a ser feita, entre os modelos liberal e socialista. Não há como se esquivar devido ao fato de o cenário mundial estar dominada pelo confronto entre as duas superpotências, Estados Unidos e URSS!
A ditadura militar
15A escolha pela opção liberal se fez ante as piores condições: o confronto entre as forças de esquerda e os elementos conservadores se exacerbou sob a presidência de Goulart, nos anos 1960. Em 1964 um golpe de estado impôs um regime militar. No cenário internacional, o Brasil se alinha aos Estados Unidos. Os comunistas são perseguidos. Grande número de intelectuais e líderes políticos de esquerda são exilados.
16No plano interno, os militares fizeram de tudo para completar a construção nacional. Isso se traduziu numa política de colonização e povoamento na Amazônia, marcada pela ampliação da infraestrutura de transportes, em especial da rede rodoviária, rumo ao Oeste e ao Norte. Foco também foi dado às telecomunicações, essenciais para garantir a coerência em uma área econômica tão extensa: sem esta rede rapidamente estabelecida, os bancos não teriam condições de continuar funcionando eficazmente em um período no qual a inflação atingia 3% ao dia! Sem ligações efetivas, os exportadores brasileiros não poderiam operar diretamente nos principais mercados de commodities e matérias-primas, evitando assim que a maior parte de seus ganhos fosse confiscada pelos intermediários.
17Para os militares, a independência requeria o estabelecimento de uma indústria poderosa. O país sofre neste domínio de uma desvantagem: faltam recursos de carvão. O pequeno depósito Criciúma-Tubarão, em Santa Catarina, foi usado para alimentar os altos-fornos de Volta Redonda com a retomada da siderurgia, mas a exploração era difícil e a qualidade do carvão medíocre. As descobertas de petróleo foram por muito tempo raras e limitadas à região de Salvador e ao oeste do Estado da Guanabara.
18A ditadura acelera a construção de poderosas centrais hidrelétricas. O regime lança o Programa Nacional do Álcool para reduzir a dependência ante o petróleo importado, impulsiona o desenvolvimento e a exportação do minério de ferro em Carajás, estimula a indústria siderúrgica nacional, protege a automobilística e faz eclodir indústrias de ponta, como a aeroespacial, farmacêutica, eletrônica e informática. Essas atividades são inicialmente voltadas para o mercado interno, mas a base que constituem permite que se tornem posteriormente exportadoras, como ocorre nas indústrias automobilística e aeronáutica.
19Certas medidas trazem efeitos menos positivos: ao proteger o mercado nacional, o regime militar retarda, em certos setores, a difusão de inovações - no automobilístico, por exemplo. A descoberta de abundantes reservas de petróleo na Amazônia e ao longo da faixa costeira (os depósitos do pré-sal) torna menos estratégica a produção de agrocombustíveis.
20As fragilidades das políticas impostas pela ditadura localizam-se em outros campos: na brutalidade da ocupação da Amazônia, na ausência de ação social e na incapacidade de conter a inflação.
21Essas dificuldades pesaram enormemente para o fim da ditadura.
Vinte anos de sucesso
22Tudo mudou na década de 1990. Nomeado Ministro da Fazenda em 1993 Fernando Henrique Cardoso, que representava a esquerda moderada, obteve sucesso onde seus antecessores haviam fracassado ao longo de vinte anos: esse sociólogo conteve a inflação. Sua popularidade garantiu sua eleição como presidente em 1994 e sua reeleição em 1998. A economia se beneficiou dessa nova estabilidade. O desenvolvimento se acelerou.
23A situação internacional favorecia as atividades brasileiras. Países da Europa Ocidental importavam mais e mais soja para alimentar seus rebanhos, as populações dos países desenvolvidos consumiam cada vez mais suco de laranja das grandes plantações do Estado de São Paulo e a indústria siderúrgica chinesa comprava quantidades crescentes do minério brasileiro ...
24Os fatores que limitavam o crescimento econômico desaparecem. O Brasil entra em uma nova era de abundância energética. A estruturação dos recursos hidrelétricos continua. A produção de petróleo aumenta rapidamente.
25Com a eleição de Lula, o sucesso se confirma. Acreditava-se que ele ia redistribuir enormes quantidades de terras agrícolas. Seu programa foi relativamente modesto nesse quesito. Esperava-se que ele aumentasse maciçamente as transferências sociais. Fez isso, de maneira inteligente, como alguém que sabe ajudar aos pobres.
26O resultado? Declínio maciço da miséria e a ascensão de dezenas de milhões de brasileiros à classe média. O ensino superior tornou-se mais democrático – o número de estudantes universitários ultrapassou a casa de 1,5 milhão durante os dois mandatos de Lula.
O acúmulo de problemas
O fim do consenso político
27Os receios decorrentes da eleição de Lula se dissiparam rapidamente: a implementação de seu programa social não refreou o crescimento. O emprego cresceu rapidamente e se tornou mais estável. A miséria recuou maciçamente. Um consenso político se impôs rapidamente, assegurando a Lula uma reeleição fácil em 2006.
28A eleição de 2010 se anunciava fácil para Dilma Rousseff, a candidata do Partido dos Trabalhadores, ativamente apoiada por Lula. Para seus apoiadores, ela seria eleita já no primeiro turno; quando arregimentou 46% dos votos, um bom índice, mas só vencendo no segundo turno, com 56% do sufrágio.
29O clima político tensionou-se rapidamente. Ex-ministra da Energia, ela preocupou-se com o desenvolvimento da produção hidrelétrica do país e autorizou a construção da barragem de Belo Monte, na Amazônia, à qual se opuseram ecologistas e ameríndios, cujas terras seriam inundadas. Uma cisão se desenha entre uma esquerda mais radical e outra esquerda governista, mais pragmática - e começa-se a sugerir, de modo mais enfático, a ação dos lobbies econômicos.
30A popularidade de Dilma Rousseff já estava bastante abalada quando chegam as eleições presidenciais de 2014. Seu desempenho no primeiro turno foi medíocre. Ela é eleita com uma frágil maioria no segundo turno. A recessão econômica que atinge o país leva a presidenta a reduzir os recursos destinados à política social e a retrair a medida mais emblemática da presidência de Lula, o Bolsa Família. O divórcio no seio da esquerda se acentua.
Casos de corrupção
31Em um país onde as grandes ideologias modernas tiveram, por muito tempo, menos proeminência do que na Europa Ocidental, os políticos frequentemente resistem mal à corrupção. É ainda maior a tentação com a modernização da mídia e com campanhas eleitorais mais caras. Como financiá-las sem dispor de fundos provenientes de generosos doadores? Vários setores econômicos se encontram envolvidos nessas relações ambíguas com o mundo político: 1- grandes empresas especializadas em produção agrícola e pecuária, ansiosas para obterem acesso à novas terras, prontas para implementar os processos mais modernos, mesmo que apresentando riscos ecológicos. 2- grandes empreiteiras de obras públicas, porque sua prosperidade está diretamente relacionada aos contratos que firmam com as autoridades federais, estaduais e municipais. 3- empresas nacionais, as Estatais. A privatização de alguns destas teve início com o fim da ditadura, incluindo alguns dos grupos industriais mais poderosos do país, como a Vale do Rio Doce, um conglomerado voltado para produção de minério de ferro e para a siderurgia, dirigida nos anos 2000 por Eike Batista, cujo pai foi ministro de Minas e Energia (1962-1964) e dirigiu a Vale do Rio Doce (1979-1986). A Petrobras manteve-se controlada pelo estado brasileiro. A descoberta de jazidas da Amazônia na década de 1990 e as imensas reservas do pré-sal na costa leste nos anos 2000 fizeram dela uma das maiores petroleiras do mundo. A empresa tem que alocar quantias consideráveis para acessar as minas profundas de difícil exploração. Ela não hesita em regar amplamente as mãos das autoridades de todos os partidos.
32Sabia-se que o mundo político brasileiro era corrupto, mas a massa de eleitores pouco se importava com isso. O nível de escolaridade cada vez maior e o aumento das classes médias mudaram esse fato. Os processos judiciais levados a cabo pelos tribunais são agora acompanhadas por uma grande parte da opinião pública: é difícil sufocá-las. Uma ação é realizada em 2014 contra a empreiteira de obras públicas Odebrecht. Batizada de Lavo Jato, toma grande proporção e não se restringe a envolver apenas os circuitos alimentados pela Odebrecht, como também os da Petrobras. Este caso é muito mais grave: os políticos não são os únicos acusados: o conselho de administração da petroleira foi presidido de 2003 a 2010 por Dilma Rousseff, que também foi ministra de Minas e Energia de Lula.
33O que entrou em questão não era mais apenas se este ou aquele político era inescrupuloso, mas a ideia de que um partido político estivesse acobertando tais atos. A imagem da esquerda governista - do Partido dos Trabalhadores - foi manchada. Como todos os partidos se beneficiaram desses favores, a imagem de todos foi prejudicada. A repercussão do escândalo foi muito além das fronteiras nacionais. Para obter contratos, a Odebrecht subornou políticos em cerca de vinte países. A justiça americana aproveitou-se do caso: por estes fatos, condenou em 27 de setembro de 2018, poucos dias antes das eleições presidenciais (curiosa coincidência), a Petrobras a pagar à justiça dos EUA uma multa de 853 milhões de dólares, dos quais 80% seriam revertidos ao governo brasileiro.
A crise econômica
34Foi preciso esperar até 2011 para que o impacto da crise econômica, que atingia o mundo desde 2008, fosse realmente sentido no Brasil. A produção continuava a crescer em ritmo constante: o PIB ainda aumentou 7,5% em 2010. As exportações continuavam fortes graças à força contínua do crescimento chinês. O marasmo advindo da crise internacional de 2008, marcada pela deterioração do clima de negócios, pelas dificuldades enfrentadas pelo sistema bancário e pela escassez de crédito ainda não afetava a dinâmica geral do país.
35A bela máquina econômica foi então infectada. A demanda internacional por matérias-primas cessou de crescer com a desaceleração da economia chinesa; seus preços caem. O Brasil foi então diretamente afetado. O crescimento do PIB diminuiu desde então (4% em 2011, 3% em 2013) e colapsou a partir de 2014 (- 0,5% naquele ano, - 3,8 em 2015, - 3,5 % em 2016). A atividade teve uma alta apenas modesta (1%) em 2017 graças às safras excepcionais.
36O desemprego aumentou: no auge da crise, em março de 2017, afetava mais de 13% da população ativa, 14 milhões de pessoas. Para muitos brasileiros, a janela que esteve aberta nos anos 2000 se fecha novamente, a precariedade reaparece. Em um país onde o fluxo da produção industrial depende fortemente do crédito, a demanda cai, milhões de famílias permanecem lutando para honrar seus compromissos.
37Nós nos acostumamos rapidamente à prosperidade. O despertar é brutal em um país onde a sociedade e a economia foram profundamente transformadas por setenta anos de mudanças incessantes: as aspirações, necessidades e hábitos de muitos já não são mais os mesmos, ainda que reflexos e hábitos do passado não tenham desaparecidos em uma parcela da população.
38A crise econômica afeta diretamente a maioria dos brasileiros. Isso põe em xeque a validade do modelo político nacional: sabia-se que certos ministros, deputados ou governadores eram corruptos, mas a esquerda tinha uma reputação melhor nessa área do que a direita. Descobriu-se que, desde que esteve no poder, o Partido dos Trabalhadores recebeu muito da Petrobras, da petroleira nacional e de grandes empreiteiras de obras públicas, como a Odebrecht.
O enfraquecimento das instituições e a eleição de Bolsonaro
39Uma grande crise política se abre. Dilma Rousseff é destituída em 31 de agosto de 2016. Ela é substituída por Michel Temer, logo também acusado de corrupção. Todos os partidos tradicionais estão sujos.
40As eleições presidenciais de 2018 levam ao poder Jair Bolsonaro, militar da reserva cujos discursos atacam brutalmente minorias, índios, negros e homossexuais: as classes trabalhadoras passam a considerá-las demasiadamente protegidas. Bolsonaro também desperta o velho machismo, atacando mulheres. Ele não se sustenta em nenhum dos grandes partidos tradicionais. Ao associar-se ao juiz Sergio Moro, figura central na operação Lavo Jato, atrai para si a simpatia de todos aqueles que não toleram a corrupção.
41O desenvolvimento que transformou completamente a sociedade e a economia brasileiras em três quartos de século levou a uma situação que lembra, de muitos modos, a de outras grandes democracias da Europa ou da América do Norte: um divórcio se aprofunda entre as classes dominantes, os círculos políticos e a população. Grande parte desta, agora mais escolarizada e tendo finalmente alcançado melhores condições de vida, não suporta mais o cinismo da classe política, reivindicando mais segurança (havia 64.000 homicídios no país em 1977 - em igual proporção a França teria na época cerca de 20.000, quando na realidade seu índice era de apenas 825!), um sistema educacional mais eficiente e um sistema de saúde acessível aos pobres.
42Essa separação reflete as tensões sociais de um país onde as desigualdades continuam gritantes - apesar da inclusão de milhões de pobres na classe média em aproximadamente uma década. Mas aqui, como em outros lugares, o descontentamento vem tanto do fato das pessoas se sentirem ignoradas e desprezadas, como da exploração da qual são vítimas.
43Uma grande parte da população sente ter sido traída. A evolução da opinião pública mostra isso há alguns anos. No Brasil, as eleições municipais são realizadas a cada quatro anos, como as eleições presidenciais e legislativas, mas de modo intercalado. A última ocorreu em 2016. Em várias das grandes cidades a direita venceu, como no Rio de Janeiro, por exemplo. A partir de 2017, os subsídios para escolas de samba nesta cidade foram cortados pela metade, e reduzidos a um quarto das somas iniciais em 2018. Essas medidas não geram protestos na população: era notório que o dinheiro pago muitas vezes parava nos bolsos dos donos das Escolas de Samba!
44Na primavera de 2018, as palavras de ordens transmitidas nas redes sociais levaram centenas de milhares de pessoas a se reunirem no fim de semana nas praias de Copacabana - uma dinâmica semelhante à dos gilets jaunes na França, mesmo que as equipes de Bolsonaro já intervinham no movimento.
45A eleição de Bolsonaro reflete mais as mutações do corpo social do que a adesão a um programa de extrema direita ou a uma nova forma de fascismo - a que pode, no entanto, levar. É uma crise populista semelhante àquelas que afetam outros grandes países democráticos? Com certeza! Mas traz as marcas de um contexto singular do país pelo domínio tropical e pelo peso de uma história que a modernização acelerada não apagou.
Problemas que permanecem brasileiros
46O Brasil mudou profundamente desde os tempos de Vargas. Tornou-se uma potência mundial que dispõe de uma agricultura de alto desempenho e em grande parte exportadora, de gigantescos recursos minerais, de fontes de energia fóssil (associadas a petróleo e gás natural) que enfim se descobriram abundantes, de um potencial para energia renovável que o clima tropical torna excepcional e de uma força de trabalho cuja produtividade permanece baixa, mas cuja qualificação melhora. Mas em um país onde a modernização foi muito rápida, antigos reflexos, velhos hábitos e comportamentos permanecem próximos para uma parte da população. Lembro-me de ter encontrado em Goiânia, no início dos anos 2000, um grupo de mulheres de cinquenta ou sessenta anos de idade que aprenderam a fiar algodão quando jovens, na fazenda!
Uma sociedade em busca de identidades
47O repertório de ações e técnicas cujas práticas não estão completamente esquecidas desaparecerá em dez, vinte ou trinta anos, juntamente com as gerações que lhes são portadoras. O mesmo não ocorrerá com os traços que ajudam a construir as identidades. No Centro-Oeste, Rogério Haesbaert mostrou que o avanço da frente pioneira que deixou o Rio Grande do Sul há meio século resultou simultaneamente na disseminação de círculos culturais gaúchos, que os permitem manter essa progressão. O pertencimento gaúcho se espalhou aos poucos e seduziu, ao longo do caminho, parte da população local; como Benedict Anderson apontou, identidades são sentimentos historicamente construídos e constantemente reinventadas.
48Como em vários países anteriormente desenvolvidos, a jovem geração de brasileiros não procura mais se fundir em um molde comum. Eles sentem a necessidade de afirmarem-se, reivindicando traços que os singularizam. Os descendentes de colonos alemães de Santa Catarina comemoram com muita ostentação a Oktoberfest, em outubro, seguindo o modelo da festa da cerveja de Munique, que atrai muitos turistas e relembra sua origem. A cidade de Curitiba construiu, em um grande parque, casas no estilo dos países de origem de todos os componentes de sua população, para que cada um tenha um lugar próprio e que sua participação na comunidade global assim seja afirmada aos olhos de todos.
49Um exemplo permite entender melhor o significado dessa afirmação de identidades para brasileiros de origem europeia - e seu alcance limitado. Para quem tem antepassados alemães, italianos ou polacos, bem como antepassados de origem portuguesa, é tentador privilegiar como o nome da família aquele que não é o português: presidente Juscelino Kubitschek já o fizera há mais de meio século, usando o nome de sua mãe tcheca em vez do de seu pai, Oliveira.
50O Brasil foi um país de forte imigração para uma geração, desde a década de 1880 até a Primeira Guerra Mundial. A corrente foi retomada, mas em um nível inferior, da década de 1920 até a Segunda Guerra Mundial. Novas chegadas foram raras nos anos setenta. O país se tornou um país de emigração - uma corrente fraca, mas que afeta seus estratos profissionais melhor qualificados.
51No Brasil, portanto, o problema das identidades não toma a mesma forma que na Europa ou nos Estados Unidos: as camadas populares não se sentem ameaçadas na busca por empregos devido à chegada de imigrantes prontos para trabalharem em troca de qualquer salário. O problema das identidades tem raízes no interior do próprio país: para os jovens, reivindicar hoje suas raízes ameríndias ou africanas, significa cada vez mais se levantar contra a injustiça fundamental da conquista, para os primeiros, da escravidão, para os segundos, infligida sobre seus ancestrais, e que após o fim do regime colonial no Brasil seguiram se reproduzindo ininterruptamente.
52Os cultos afro-americanos testemunham a persistência de uma identidade negra, mas, na medida em que são sincréticos, não se opunham ao catolicismo dominante. A pesquisa etnográfica consagrada a esses cultos, desde de Roger Bastide, de certa forma os reafricanizaram. As relações mais estreitas com a Nigéria, com Lagos em particular, e também com Angola, reativam esses elos.
53A dimensão reivindicatória das identidades ameríndia e negra deve muito ao exemplo norte-americano. É daí que vem os movimentos de ações afirmativas - com a reação que provocam nos brancos pobres, que acham injusto não se beneficiarem das mesmas vantagens. O papel de algumas igrejas evangélicas e ONGs é particularmente importante nesses domínios. Sem essas instituições, os problemas dos povos amazônicos ainda seriam ignorados pela opinião mundial.
54É, portanto, a afirmação da identidade de populações minoritárias, há muito tempo privadas de direitos iguais, o que provoca no Brasil tensões semelhantes às que estão ligadas, em outros lugares do mundo, aos fluxos migratórios recentes.
55Formas específicas de renovação religiosa
56Por certo tempo acreditou-se que para dar sentido às vidas dos indivíduos e dos grupos, o movimento da história iria gradualmente substituir as religiões (animistas ou reveladas) do passado por uma nova forma de crença, qualificadas como ideologias: com base em uma interpretação otimista da história, elas designariam que o futuro do mundo terreno seria atribuído por uma organização racional da vida social, permitindo o pleno florescimento de cada um individualmente e de todos enquanto coletividade.
57A dinâmica religiosa do Brasil sempre foi um pouco diferente da europeia. Como em outras colônias de países católicos, a religião estava intimamente ligada à conquista de novos territórios: ela deveria assegurar a conversão das populações indígenas e garantir a segurança do poder dominante e sua legitimidade. Ao contrário das colônias espanholas ou francesas, no entanto, o regime de padroado, importado de Portugal, acusou a sujeição da Igreja Superior ao poder real, privando-a de importantes meios financeiros e deixando aos fiéis grande parte da responsabilidade por garantir o funcionamento do culto. O cristianismo popular que se desenvolveu dessa maneira esteve menos preocupado com a pureza dos dogmas e mais aberto às derivações sincréticas; sendo especialmente sensível onde era necessário administrar populações escravizadas. A preponderância que o catolicismo assegurava era ao mesmo tempo total e frágil.
58Explica em grande medida as singularidades que a difusão dos novos sistemas europeus de crença assumiram no Brasil. As ideologias do progresso se difundiram ao curso do século XIX, mas sob uma forma religiosa: frequentemente se esquece que na França que Auguste Comte havia criado uma igreja para assegurar a propagação de suas ideias. Foi graças a isso que o positivismo se impôs no Brasil. Alguns negros livres que praticavam um ou outro dos cultos afro-americanos, consideraram pouco apresentáveis estas formas de espiritismo: eles a substituíram por aquela que Allan Kardec (pseudônimo de Hippolyte Rivail, 1804-1869) havia teorizado na França e que lhes parecia mais aceitável no âmbito de uma sociedade tomada pelo progresso. A forma instituída, o kardecismo, mantém fiéis no Brasil.
59A queda do Império implica a separação entre a Igreja e o Estado. O modelo brasileiro se aproxima assim daquele que legalmente prevalece nos países desenvolvidos há mais tempo, mas o catolicismo mantém seu papel de liderança: há 97,6% de católicos declarados no Brasil em 1890, 94,9% em 1940! A influência do Vaticano torna-se mais sensível, o que se traduz em uma "romanização" das práticas e no fim do catolicismo popular, edificado ao longo dos séculos. As ideologias de progresso, sob a forma liberal ou socialista, entram no país, mas sem prejudicar as práticas religiosas dominantes, já que a primeira fala do futuro deste mundo e a segunda das expectativas suscitadas pelo Outro Mundo.
60A modernização causa uma profunda reviravolta nas estruturas religiosas do país. Graças às novas mídias, a difusão de novas crenças se torna mais fácil. A oferta de consolos espirituais aumenta. Na Igreja Católica, onde a nostalgia das formas populares do passado é forte, alguns membros do clero se entusiasmam com as teologias da libertação, que oferecem uma interpretação da fé adaptada às condições das sociedades urbanizadas e industrializadas do mundo moderno. Igrejas evangélicas estão se multiplicando e oferecem aos fiéis que elas atraem fórmulas adaptadas às suas preocupações espirituais.
61O país permanece em grande parte religioso: 90% dos brasileiros vinculavam-se a alguma igreja no censo de 2010; os evangélicos eram então 43 milhões, mais de 20% da população; 65% dos brasileiros se declararam católicos. As religiões afro-americanas derivadas catolicismo eram praticadas, no entanto, por apenas 0,3% dos brasileiros, o que é surpreendente quando vemos o lugar que ocupam nas mídias.
62O término da imigração há três quartos de século explica o pequeno número de muçulmanos - a maioria tendo chegado com a onda sírio-libanesa por volta do ano de 1900. O Brasil ignora, assim, o fundamentalismo muçulmano – e o perigo terrorista vinculado a algumas de suas formas. Em contrapartida o fundamentalismo está presente em alguns católicos e em muitos evangélicos. Ele explica a hostilidade de uma parte da população com relação às reformas sociais que a esquerda brasileira promoveu, como em outros países ocidentais, após uma geração.
63O peso dos evangélicos é mais forte porque eles estão fortemente estruturados; o dízimo que cobram de seus fiéis lhes assegura meios consideráveis; eles controlam certos meios de comunicação e intervêm fortemente no domínio político.
64Para ler a história dos confrontos entre a direita e a esquerda ao longo de um século no Brasil, pode-se pensar que sua cena política é semelhante ao dos países europeus: instituições análogas, por vezes as mesmas etiquetas partidárias, objetivos sociais e econômicos similares. O que nos esquecemos é que a esfera propriamente laica no Brasil é mais estreita do que na Europa. Nunca reuniu mais que uma parcela da elite intelectual, notadamente aquela constituída pelo mundo universitário.
65Para quem se interessa em saber o que será do Brasil, isso é algo para não se esquecer jamais.
Um mundo tropical
66De Gilberto Freyre a Celso Furtado, as primeiras gerações de intelectuais que pedem e apoiam a modernização do Brasil, dos anos 1920 aos anos 1950, insistem sobre a natureza tropical do meio ambiente e da sociedade do país. Característica tropical de um meio em que os europeus recorriam aos escravos para realizarem os trabalhos que o clima os desencorajava de fazer. Caraterística tropical de uma natureza que, apesar de sua aparente exuberância, é mesquinha e dificilmente alimenta os homens.
67Esse pessimismo ambiental posteriormente desapareceu. Deve-se, como Pierre Monbeig já apontou, ao centro de pesquisa agrícola de Campinas, que aprendeu, desde o período entre guerras, a restaurar a fertilidade rapidamente esgotada dos solos tropicais através do uso de fertilizantes e recorreu a seleção para aumentar a produtividade. Deve-se ao progresso da medicina, que reduziu a incidência de doenças tropicais. A febre amarela, que periodicamente devastou a costa atlântica do Brasil, desaparece durante os anos setenta. A malária está controlada em todo lugar - exceto na Amazônia.
68As vantagens da tropicalidade parecem, por um tempo, maiores do que seus inconvenientes: graças aos progressos da agronomia, não oferece agora oportunidades maiores ou iguais às dos ambientes temperados para muitas produções alimentícias ou industriais? Não é um ambiente melhor para viver em todas as estações? Não fornece aos homens mais recursos energéticos renováveis do que qualquer outro lugar?
69O ponto de vista muda. O desenvolvimento agrícola da Amazônia é decepcionante: ao fim de um ciclo bastante curto de cultivo, os solos dificilmente estão adequados para algo além da simples criação extensiva. A mudança do clima aumenta a ocorrência de eventos de calor extremo, difíceis de serem suportados por todos os organismos. Multiplicam-se os episódios violentos. Isso pode levar a secas que seriam particularmente sérias para os cerrados e para uma parte da floresta amazônica.
70A consciência ecológica cresceu rapidamente no Brasil, favorecida pela grande conferência organizada pelas Nações Unidas no Rio de Janeiro em 1992. As grandes cidades administradas pela esquerda no Sul viram na ecologia uma maneira de afirmar sua progressividade – como testemunha Curitiba, autoproclamada "capital ecológica"! É especialmente na Amazônia que os problemas surgem, assumindo uma forma ainda mais apaixonada quando as questões ambientais se entrecruzam com as de propriedade indígena, desenvolvimento da agricultura e produção hidrelétrica. A presença muito forte das ONGs dá uma dimensão internacional aos debates que se abrem. Aos olhos dos nacionalistas, a soberania exercida pelo poder federal sobre esta parte do país está desse modo ameaçada.
Conclusão
71A eleição de Bolsonaro atrai novamente a atenção internacional para o Brasil. O evento é importante em mais de um aspecto. Primeiro, porque fecha um ciclo que muitas vezes é mencionado para caracterizar a evolução do país, mas que foi um ciclo muito diferente daqueles que o precederam: esse ciclo de modernização foi o primeiro a conceber conjuntamente o espaço brasileiro, e não suas regiões tomadas isoladamente, e a afetar toda sua economia, e não somente alguma atividade específica.
72Esse fim de ciclo é marcado pelo acúmulo de dificuldades e crises: a esquerda mostrou-se incapaz de administrar os sucessos que conquistou e de dividir os frutos desse crescimento, os eleitores não renovaram seu voto de confiança. Com a publicidade que agora envolve os casos de corrupção e as expectativas de uma sociedade mais exigente, todo o sistema partidário, seja de direita ou de esquerda, está em descrédito. Com a crise econômica, chega ao limite o desenvolvimento especialmente baseado na exportação em massa de matérias-primas e alimentos.
73Ruptura entre a elite e as classes média e popular, cujo apoio é essencial para a sustentação de qualquer democracia, exigência de moralização da vida pública, a ascensão de temas identitários: é isso que aproxima a singularidade atual do Brasil daquelas vividas pelas grandes democracias do mundo, e que muitas vezes tentamos resumir à ascensão do populismo, o perigo sendo ver esses países se transformarem em “democraturas”.
74Semelhança não é identidade: é isso que queríamos marcar no início desta edição que enfoca a geopolítica do Brasil na época de Bolsonaro. Que o país seja abalado por problemas identitários não deve causar estranheza: isso é observado em todo o mundo. O meio sobre o qual a modernidade se apoiou para promover a união dos grupos nacionais foi fazê-los trabalhar, graças ao progresso, na construção de um futuro comum que todos realmente pudessem compartilhar: isso tornava suportável todas as diferenças. O fim da modernidade, isto é, da fé no progresso, esfacelou essa possibilidade. Agora que a porta para o futuro se fechou, os grupos que formam qualquer sociedade tendem a afirmar suas diferenças – e a divergir – procurando suas raízes no passado ou em outros países. A maioria das democracias enfrenta os problemas criados pelas recentes ondas de imigrantes. O Brasil volta-se às demandas formuladas por dois componentes de sua população, há muito tempo dominadas, os ameríndios e os africanos.
75Identidades são representações. Os problemas que elas levantam devem ser tratados como tal. Um de seus registros é o das representações religiosas - das religiões verdadeiras, ou de seus substitutos modernos, as ideologias. O Brasil, como todos os outros países da América, não experimentou tão diretamente quanto os da velha Europa a dinâmica de competição e complementaridade dessas duas formas de crença. Como nos Estados Unidos, é menos destacado do modelo religioso tradicional: sua evolução atual não é caracterizada por uma profunda descristianização, mas pela rápida mudança de uma forma de cristianismo para outra.
76Enfim, um último elemento de singularidade: o Brasil modernizado dos anos 1990 ou 2000 tinha se esquecido que pertencia ao mundo tropical. O Brasil pós-moderno lembra-se: seja qual for o regime que o país agora conheça, doravante a consciência ecológica pesará sobre suas escolhas políticas.
77Bolsonaro está olhando hoje para os Estados Unidos de Trump. A Europa não aparece muito em seus olhos. Será que ele continuará, como seus antecessores, a apostar na herança africana de uma parte de sua população para orientar sua política externa? Em que lugar ele colocará a China, um dos principais parceiros comerciais do Brasil hoje, mas que até agora não está muito presente em seus projetos?
Table des illustrations
Titre | Figura 1 Crescimento da população brasileira 1872-2010 |
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URL | http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/confins/docannexe/image/21017/img-1.jpg |
Fichier | image/jpeg, 508k |
Titre | Figura 2 Restaurante na Oktoberfest de Blumenau (Santa Catarina) |
Crédits | ©Hervé Théry2007 |
URL | http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/confins/docannexe/image/21017/img-2.jpg |
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Pour citer cet article
Référence électronique
Paul Claval, « O Brasil enfrenta um futuro incerto », Confins [En ligne], 501 | 2019, mis en ligne le 08 septembre 2019, consulté le 20 janvier 2025. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/confins/21017 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/confins.21017
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