1O setor de serviços de saúde existente em diversos países é abordado pelas diferentes ciências, desde a medicina e a saúde pública até as ciências sociais como a história, a sociologia e a geografia.
2No caso desta última há um subcampo já bastante conhecido por “geografia da saúde” que de um modo geral tem duas abordagens dominantes: uma delas, a mais tradicional e que remonta ao início desta especialização do conhecimento geográfico, é mais voltada às relações entre as formas espaciais urbanas ou agrárias, incluindo as diferenciações topográficas, e os problemas de saúde relacionados, sobretudo as questões ligadas à epidemiologia. Abordagem, aliás, que conheceu duras críticas com a emergência da geografia crítica dos anos 1970.
3A outra corrente, mais recente e dominante no que diz respeito ao volume de trabalhos pesquisados, tem como principal objeto as análises sobre o acesso aos serviços de saúde, sua organização espacial e a sua regionalização em diferentes territórios, assim como diferentes formas de análises críticas sobre as políticas públicas de saúde.
4Na discussão que ora propomos, em que pese os serviços de saúde serem fundamentais no desenvolvimento do tema, seria mais preciso classificá-la como um tema da geografia econômica sobre o campo da saúde, uma vez que nos debruçamos sobre o aparato industrial que emergiu e se estruturou para atender as demandas sempre crescentes das diferentes formações socioespaciais, particularmente as que têm maioria da população urbana e grandes metrópoles. E a estrutura produtiva do território francês no que tange à saúde é paradigmático, inclusive inspirando políticas públicas voltadas ao setor em muitos países, como é o caso do Brasil.
5Para empreender esta análise, nos utilizamos de dois conceitos centrais: o complexo industrial da saúde e sua constituição por circuitos espaciais produtivos como já o fizemos em análises anteriores para compreender a economia política da saúde no território brasileiro (Antas Jr., 2017; idem, 2015).
6Tais conceitos têm se mostrado bastante operacionais a este tipo de análise uma vez que permitem situar bem a importância dessa economia fortemente investida de inovações científicas e sua estruturação em verdadeiros complexos industriais onde participam ativamente o Estado e os diferentes agentes de mercado.
7Igualmente nos permite compreender como e porque desde os anos 1990 é um setor econômico que vem se integrando globalmente por meio da constituição dos circuitos espaciais produtivos específicos da economia da saúde e seu controle pelas corporações.
8Assim, buscamos empreender uma investigação sobre a produção de biomedicamentos no território francês, uma vez que essa especialização dos grandes laboratórios farmacêuticos está entre as mais recentes e de maior valor agregado e, particularmente, é um setor que tem engendrado novas formas de cooperações capitalistas como a “produção para terceiros” ou produção por contratos CDMO, conforme trataremos a seguir.
- 1 “Os biomedicamentos no sentido estrito do termo, têm a característica de serem produzidos a partir (...)
9Gadelha (2003, 2006) apresenta um esquema geral para explicar a constituição do complexo industrial da saúde:
Quadro 1 – Esquema geral do complexo industrial da saúde (CIS)
Fonte: Baseado em GADELHA, 2003/2006
10Com o quadro acima reproduzido a partir de duas elaborações do autor em diferentes momentos, entendemos que há uma boa síntese das grandes estruturas que compõem o complexo: por um lado, dois agrupamentos abrangentes de indústrias distintos, mas que tem fortes entrelaçamentos, como é o caso da indústria dos equipamentos de diagnóstico por imagem e a de reagentes. Por outro lado, temos o universo de serviços de saúde que “que confere organicidade ao complexo” (GADELHA, 2003, P. 525) na medida em que é o grande consumidor e indutor de inovações. Importante reforçar que nesse item “Serviços em saúde” cabe ao Sistema Único de Saúde (SUS) a cobertura de 85% a 90% dos serviços prestados.
11Embora bem representativo, optamos por fazer alguns acréscimos no esquema. Um deles, na coluna da esquerda, é a “intervenção direta com empresas estatais, agências de fomento à pesquisa e universidades, Sistema Único de Saúde – SUS” especificando algumas formas fundamentais de presença do Estado no complexo. No original constava apenas “Estado: promoção e regulação”
- 2 Encontramos diversos especialistas em cada tipologia de hospitais, e os hospitais universitários co (...)
12Outras mudanças no esquema são a inserção de “hospitais públicos, privados e hospitais universitários” no quadro 1 onde constava apenas “hospitais”, pois são agentes distintos com papéis diferenciados2. Por fim, inserimos a coluna à direita com os “serviços especializados privados”, pois ao contrário do quadro “Serviços em saúde” que acolhe agentes privados mas que são fortemente financiado pelo SUS, esses serviços são exclusivamente privados e de caráter global, fazendo a conexão com as empresas de outros complexos industriais. Tais alterações levaram em conta investigações realizadas sobre os circuitos espaciais produtivos do complexo industrial da saúde.
13Os circuitos espaciais produtivos estão diretamente relacionados aos setores industriais em sua origem, mas a relação com os serviços de saúde é intensa. Entre os exemplos dessa relação, podemos aludir o fato de que os principais agentes de conhecimentos especializados que compõem os serviços, como médicos, enfermeiros e pesquisadores, frequentemente acabam tendo diferentes inserções nessas empresas em função do conhecimento científico e técnico. Assim, é comum encontrarmos profissionais da medicina que trabalham em altos cargos das empresas e/ou se tornam empresários do setor sem deixarem de atuar nos serviços, ao contrário, mantendo com eles fortes vínculos.
14Mas há muitas outras formas de interação entre as duas esferas como a dependência de pesquisa clínica por parte das empresas, novas práticas médicas a partir de inovações em maquinários e medicamentos, a capilarização do sistema de saúde em todo o território – no caso das vacinações obrigatórias vemos como isso faz enorme diferença no budget das empresas. Enfim, a lista de interações entre produção industrial e serviços de saúde nos parece ser interminável e em cada nova pesquisa vemos emergir relações surpreendentes.
15Outro aspecto a ser ressaltado é que os ramos industriais apresentados no diagrama não correspondem necessariamente à circuitos espaciais produtivos independentes. Em muitos casos temos uma especialização interna nesses ramos que podem ser analisados como um circuito espacial produtivo, em outros casos, percebe-se contextos mais abrangentes a serem considerados para definir o circuito. Bertollo (2013), por exemplo, empreendeu investigação sobre o circuito espacial produtivo da vacina com foco na produção da Influenza H1N1; Santos (2015) desenvolveu pesquisa sobre os equipamentos de diagnóstico por imagem que é um sub-ramo relacionado aos equipamentos eletroeletrônicos no esquema. Já Almeida (2014) realizou uma investigação sobre o circuito espacial produtivo dos reagentes para diagnóstico, tal como aparece na formulação de Carlos A. G. Gadelha (2003; 2006).
- 3 Esses estudos levaram em conta o complexo industrial da saúde brasileiro.
16Apontamos essas pesquisas para assinalar que no estudo de um circuito produtivo em particular, deve ser considerado o ramo de um ponto de vista técnico e tecnológico, mas também o contexto espacial em que ele está imerso, pois é o que fornece sentido ao recorte. Assim, o estudo sobre a Influenza H1N1 se deu em um momento em que o Brasil3 estava envolvido no combate ao risco de pandemia em curso desde 2009. A pesquisa sobre os equipamentos de diagnóstico por imagem, estava fortemente relacionada à expansão industrial de produção desses equipamentos, à época conhecendo forte impulso pelas políticas públicas de financiamento pelo banco de fomento à inovação brasileiro, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para internalizar esse tipo de indústria.
17Mencionamos estas pesquisas para justificar o recorte proposto para a presente análise: a produção de medicamentos baseados em biotecnologia no território francês e não o mercado farmacêutico de um modo geral, embora as evidentes relações entre o geral e o específico no âmbito da produção dos laboratórios não poderão de modo algum serem ignoradas. Levando em consideração tais pressupostos, são fatores relevantes que conduziram ao delineamento do objeto proposto:
-
a produção de biomedicamentos é uma classe mais recente de medicamentos de alto valor agregado, cuja produção vem sendo fortemente estimulada pelo Estado francês na medida em que tem se mostrado uma grande deficiência no mercado farmacêutico nacional;
-
em função da alta complexidade que envolve esse tipo de produção vemos que não é possível escolher um dos ramos da grande área “indústria de base química biotecnológica” pois o ramo de biomedicamentos envolve todos os que estão ali elencados;
-
envolve uma organização da produção industrial, com novas formas de cooperação capitalista pouco comuns para uma área de intenso investimento em tecnologia no setor farmacêutico que é a produção para terceiros. Este modelo vinha sendo empregado há não mais que duas décadas na produção farmacêutica, particularmente para medicamentos de baixa complexidade tecnológica e/ou para genéricos;
-
é um ramo altamente globalizado cuja produção envolve alguns países na produção de uma mesma marca de medicamento ou de um mesmo produto final.
18Assim, vemos como a escolha de um circuito espacial das biotecnologias aplicada aos medicamentos emerge como um dado da própria formação socioespacial francesa junto à uma produção que não está encerrada à um território nacional. É o contexto histórico e geográfico que se impõe no recorte analítico e que define os contornos do circuito espacial produtivo a ser pesquisado.
19É isto que marca uma grande diferença com as análises das cadeias produtivas cujo escopo já aparece pré-definido à esta ou a aquela produção (CASTILLO & FREDERICO, 2010). Essa característica conceitual fica patente em cenários desenvolvidos sobre determinados mercados setoriais encomendados por sindicatos patronais ou por agências/instituições estatais.
20Um bom exemplo para o caso em tela é o relatório produzido pela assembleia nacional e pelo senado da França, denominado “La place des biotechnologies en France et en Europe” de 2005, quando a produção de biotecnologias já se apresentava como um problema para a economia e políticas públicas no país. Assim, o Estado buscava analisar a questão e propor encaminhamentos para o desenvolvimento tecnológico necessário, uma vez que a França começava a apresentar um déficit em relação a outros países. Nesse relatório mencionava-se a dificuldade em abordar o tema das biotecnologias em função de um recorte muito pragmático decorrente da lógica empresarial:
Conforme destacado no terceiro relatório da Comissão Européia sobre Indicadores de Ciência e Tecnologia, é lamentável que a biotecnologia não seja considerada como um setor separado, mas apenas examinada em termos dos diferentes âmbitos de aplicação. Essa abordagem setorial, em grande parte inevitável, pode ser explicada essencialmente pela estrutura das empresas industriais (...) Em todo caso, a exploração dos indicadores disponíveis leva a estudar principalmente a difusão de biotecnologias "médicas", abordando a questão das patentes de biotecnologia e publicações nas ciências da vida. (FRANCE, 2005, p. 38)
21Esse relatório trazia um diagnóstico sobre o nascente mercado das biotecnologias no mundo com crescimento no mercado farmacêutico muito expressivo, em torno de 15% ao ano. E considerava a posição do país desalentadora “A França está muito mal no campo da inovação farmacêutica” (FRANCE, 2005, p. 44) sintetizava uma das partes do relatório.
22Entre muitos dados apresentados neste relatório, destacamos que desde 1996 até 2005 a Agência Europeia de Avaliação dos Medicamentos havia autorizado aproximadamente 230 pedidos para produtos de uso humano, sendo que 65 pedidos vieram dos Estados Unidos, 31 da Suíça, 29 do Reino Unido, 25 da Alemanha, 18 da França, 14 da Dinamarca, 6 do Japão e 6 da Suécia.
23Esse estudo também informava que mais de 600 produtos de fase avançada (II e III) em 2002-2003 estavam sendo desenvolvidos nos Estados Unidos, em comparação com cerca de 160 para a Europa, dos quais 49% estavam sendo desenvolvidos no Reino Unido e cerca de 14% na Suíça. De modo que, na fase III especificamente – a mais desenvolvida e próxima do lançamento do medicamento – havia 53 produtos: 23 para o Reino Unido, 11 para a Suíça e 1 para a França (que acompanhava outros tantos países com um ou dois pedidos).
24Por fim, é digno de nota que uma das considerações do relatório era a de que a França necessitava implementar políticas de reforço para a indústria farmacêutica, apoiando a pesquisa pública, incentivando parcerias público-privadas e fomentando a inovação para impulsionar a produção de biotecnologias assim como melhorar o ambiente regulatório e fiscal para os grupos farmacêuticos. (FRANCE, 2005)
25O empenho do Estado na busca de desenvolvimento operacional de biotecnologias se verificou prontamente. Nos anos seguintes, 2006 e 2007, foram criados por decreto sete polos especializados na economia da saúde, alguns deles visando especificamente a produção de biotecnologias.
Mapa 1 – Rede de polos de competitividade na área da saúde
Fonte: Ministério da Economia e Finanças & Direção Geral das Empresas. Elaborado por Antas Jr.
- 4 O tratamento por essa classe de medicamentos para doenças como câncer, diabetes, determinados probl (...)
26Nota-se, assim, uma forma contundente de intervenção e estímulo do Estado ao desenvolvimento do complexo industrial da saúde, pois não se trata somente de um problema de mercado, mas da manutenção e fortalecimento da autonomia do sistema de saúde no território, uma vez que sem acompanhar essa tendência econômica no mercado farmacêutico a França poderia restar dependente das importações de medicamentos de base biológica em grande quantidade para abastecimento interno4.
27Essa proposição trouxe algumas novidades. Em vez de polos de desenvolvimento, a política foi denominada de “Rede de polos de competitividade”. Em que pese ter inspiração na teoria dos polos de desenvolvimento e crescimento de François Perroux (1955), aquele pressuposto central baseado em investimento estatal no setor produtivo para atração do capital privado (PEDROSA, 2017) não se verifica cabalmente.
28Antes, o que vemos é a delimitação de determinadas áreas com prévia existência de grandes e médias indústrias e, portanto, de infraestruturas, que passarão a ter maior articulação em rede segundo diferentes formas de incentivos (WILMOTTE & HALLEUX, 2018). Isto é, há uma materialidade anterior, já acumulada historicamente, que vai conhecer fomentos para melhorias e modernizações de estruturas, incentivos fiscais e também investimentos públicos, inclusive ampliação de estatais como a EFS, ou empresas e institutos com forte participação do poder público como a LFB e o Instituto Pasteur. Vale observar que este último veio firmando parceiras muito expressivas com corporações como é o caso da Sanofi-Pasteur, no biopolo de Lyon, atualmente o maior centro de produções de vacinas do mundo (SANOFI, 2016).
29Tanto é assim, que são polos que têm a participação de corporações, muitas vezes já instaladas antes da sua criação, embora isso não se aplique a todos os casos. Como se vê, são iniciativas pragmáticas para proporcionar o crescimento da competitividade e com articulação em rede (daí a denominação rede de polos). Como é possível observar pelo mapa 1, um biopolo tem unidades em algumas regiões do território francês, inclusive dentro de outro polo, pois o que importa é reforçar as formas de cooperação capitalista em uma dinâmica de redes.
30Além disso, a rede de firmas que vai se constituindo por estímulo do Estado deve considerar que essas relações se dão igualmente entre essas corporações controladoras dos complexos industriais da saúde em todo o mundo, o que faz com que as demais firmas nacionais (grandes, médias e pequenas) sejam hegemonizadas pelas corporações em todo o setor, e isso ocorre em cada formação socioespacial onde estão presentes esses grandes laboratórios. Essa é uma estratégia que vem sendo desenvolvida desde o início da inserção dos grandes laboratórios no processo de globalização.
As redes de firmas podem ser concebidas como um subconjunto organizado de atores interdependentes, estando associadas à organização simultânea de relações de concorrência e cooperação entre seus membros, decorrentes da necessidade de compatibilizar-se a exploração de complementaridades de competências com a barganha pela apropriação dos ganhos econômicos gerados. (BRITTO, 2008, p. 102/103)
31As relações de cooperação capitalista para o estabelecimento de uma divisão territorial do trabalho em âmbito global exigem, assim, um conjunto significativo de agentes produtivos, comerciais e de serviços de nível bastante específico (logística, consultorias etc.), assim como associa empresas de diferentes marcas, às vezes com as mesmas relações de propriedade, outras vezes com diferentes formas de associações ainda que de marcas concorrentes, no estabelecimento de uma rede de firmas (BRITTO, 2008) que convergem para a produção de uma mesma mercadoria, ao menos quando observamos o caso dos agentes produtivos do complexo industrial da saúde.
32Desse modo, observamos que a proposição de redes de polos competitivos pelo Estado não luta contra a Sanofi, Novartis, Novo Nordisk, GlaxoSmithKline, Merck, Boehringer-Ingelheim entre outros grandes laboratórios presentes no território francês, mas ao contrário busca promover e facilitar a realização de novas formas de cooperação capitalista que já vinham sendo experimentadas mundo afora, onde estão presentes as grandes firmas do complexo industrial da saúde.
33E quando afirmamos que essa concepção não se bate com as corporações tampouco afirmamos que não haja condicionamentos e contrapartidas. Um dos objetivos buscados, além do crescimento do mercado de produtos biotecnológicos, é a criação de empresas de variados portes para participarem de modo ativo nesse desenvolvimento tecnológico estratégico de modo a obter um maior número de patentes de novos medicamentos biológicos sendo solicitados a partir do território francês.
34Os resultados destes polos em 2018 são expressivos: conformam atualmente 1.300 membros, incluindo 1.000 pequenas e médias empresas, instituições acadêmicas, instituições locais e hospitais. Os projetos encabeçados pelos polos apresentam uma receita próxima a 5 bilhões de euros com a participação de quase 1.000 agentes desses projetos, onde 748 empresas são médias e pequenas. Foram criadas 54 empresas desde sua criação e mais 400 produtos (Polos de saúde em rede, 2018).
35Os apoios relevantes iniciados há mais de dez anos pelo Estado francês, associados às ações corporativas e demais agentes econômicos e institucionais para incentivar a produção de biomedicamentos, acabou por fortalecer a presença de uma nova forma de relação econômica empresarial para o setor farmacêutico: a produção para terceiros. Trata-se de um novo elemento da cooperação capitalista que tem se revelado fundamental para consubstanciação da ação global das grandes corporações do setor, e que já se encontrava mais desenvolvida em outros países, como é o caso dos Estados Unidos, da Alemanha, Suíça entre outros.
36Essa forma contratual não é exatamente o que se denomina geralmente por terceirização do trabalho enquanto precarização das condições de emprego. Tampouco é sinônimo do que ocorre, por exemplo, na indústria automobilística pois é um processo mais recente e que as farmacêuticas não podiam e/ou relutavam em incorporar em função das especificidades do setor farmacêutico, segundo determinantes legais e sobretudo por razões de credibilidade junto ao seu mercado consumidor.
37A esse respeito, é interessante observar como o relatório anual da farmacêutica Sanofi (2016, p. 117) ressalta o fato de que ela produz sozinha uma série de artigos tradicionais e inovadores de seu portfólio, e também relata, porém com menos ênfase, que desde alguns anos ela vem se abrindo a co-produções com terceiros. Logo em seguida apresenta os dados positivos que essas parcerias têm proporcionado à corporação.
38Considerando a grande importância dessa nova forma contratual entre empresas no mercado farmacêutico, o sindicato patronal dos grandes laboratórios presentes no territórios francês, o LEEM (Les Entreprises du Médicament), produziu em 2017 o relatório “Enjeux et perspectives des producteurs pour tiers de principes actifs et de médicaments” exclusivamente voltado a analisar a emergência e o rápido crescimento da produção para terceiros na participação de uma ou várias fases da fabricação de produtos fármacos, geralmente contratados pelas corporações, embora não exclusivamente.
39Este “novo agente” na divisão do trabalho vem transformando profundamente o mercado farmacêutico em todo o mundo, e particularmente na produção de medicamentos à base de biotecnologia devido a novidade e o risco que envolvem as encomendas para a produção de princípios ativos e de pesquisa aplicada para o desenvolvimento de novos produtos, antes exclusividade das grandes marcas de laboratórios, as chamadas Big Pharma.
40A participação da produção para terceiros no mercado farmacêutico é muito expressiva. Em 2012, o valor de medicamentos fabricados mundialmente por essa classe de empresas foi de 32 bilhões de euros, e em 2015 já ultrapassava os 45 bilhões de euros. A maior concentração está na América do Norte com o valor da produção estimado em 20 bilhões de euros, seguido pela Europa Ocidental com 12 bilhões. Se tomados em conjunto, os países do BRICS vêm em terceiro lugar, aproximadamente com 9 bilhões de euros. (LEEM, 2017, p. 58).
41Deste modo, não seria exagerado afirmar que uma das características mais marcantes da produção farmacêutica dos últimos 20 anos, e mais acentuadamente na última década, é a produção para terceiros, ou como são denominados tecnicamente, os contratos CDMO (Contract Development and Manufacturing Organization).
42Considerando a lógica dos circuitos espaciais produtivos, trata-se de uma forma de expansão da cooperação capitalista que promove agentes especializados na produção de medicamentos, isto é, fabricantes que nasceram para colaborar na produção em grande escala de medicamentos e com parque produtivo em vários territórios, cujas marcas que fabricam pertencem aos grandes laboratórios.
43Assim, atualmente há três grupos de empresas na produção farmacêutica no território francês, inclusive para biomedicamentos, como sintetiza o mapa 2: “produção para terceiros”, “produção própria” e “produção mista”, sendo que esta última considera empresas que tanto produzem medicamentos de sua própria marca como também trabalham na produção de medicamentos e princípios ativos por encomenda.
44Como é possível notar no mapa 2, a produção para terceiros é a menos expressiva considerando os outros dois tipos, porém é a que mais cresce e a que tem maiores projeções de expansão, na França como na maior parte dos países com mercados farmacêuticos expressivos, segundo o LEEM (2017).
45Originalmente essas empresas participavam da produção em processos relativamente simples, como a fase de embalagem e produção de genéricos das marcas pertencentes a esses laboratórios, entre outras necessidades produtivas de baixa complexidade. Em alguns casos, essas empresas nasceram da venda de unidades produtivas dos próprios grandes laboratórios com contratos que garantiam prioridade de abastecimento às antigas proprietárias das plantas, mas não a sua exclusividade, pois a capacidade produtiva ociosa era destinada a produzir para outras marcas, ainda que fossem concorrentes.
46Um exemplo claro deste modus operandi é a empresa Delpharm que já adquiriu fábricas da Novartis, Bayer, Roche, Pfizer, Boehringer Ingelheim, Sanofi entre outras plantas industriais de grandes laboratórios, inclusive fora da França. Outra empresa é a Unither que na França comprou 3 fábricas da Sanofi, entre outras empresas, e também em outros países como nos Estados Unidos e Brasil.
47Assim, os produtores para terceiros iniciaram suas atividades em fases meramente ligadas a fabricação de produtos acabados, de modo a auxiliar os laboratórios a ampliar rapidamente sua produção conforme fases de breve expansão dos mercados de consumo sem que os laboratórios detentores das patentes expandissem suas instalações, evitando riscos de investimentos que em breve se tornariam ociosos, como já acontecera em outros momentos, interferindo negativamente nos balanços dessas empresas. Daí a venda de unidades produtivas que apresentavam grande capacidade ociosa.
48No desenvolvimento desse processo, o que assistimos foi a maior diversificação dos produtores para terceiros, sendo que um conjunto expressivo de empresas passaram a investir na produção de biomedicamentos e muitas delas sediadas nos biopolos em função dos incentivos proporcionados. Assim, hoje é possível encontrar empresas voltadas à produzir para os laboratórios com enorme diferenciação de complexidade técnico-científica, algumas atingindo as fases de pesquisa aplicada, produção de princípios ativos biológicos, tecidos biológicos, RNA, extratos bacterianos de microbiota, terapias genéticas entre outros processos com uso intensivo de tecnologias de ponta.
Quadro 2 - Indústrias de biomedicamentos no território francês em 2016
com contratos CDMO (Produção para terceiros)
EMPRESA
|
Relações de propriedade
|
taxa de exportação em 2016 (%)
|
Países (produção)
|
Classe de biomedicamentos
|
ABL Europe
|
Advanced Bioscience Laboratoires INC.
|
35,15
|
França (1)
|
Vetores virais
|
ACCINOV
|
independente
|
0
|
França (1)
|
Proteínas recombinantes, ARN, extratos bacterianos de microbiota, vetores virais, extração protéica, vacinas
|
AmatsiDBI
|
Amatsigroup Eurofins
|
19,47
|
França (2), EUA (1), Bélgica (1)
|
Proteínas recombinantes, Embalagem para biomedicamentos biológicos
|
BIO ELPIDA
|
independente
|
87.05
|
França (1)
|
Proteínas recombinantes, vacinas, terapias celulares, extratos bacterianos de microbiota
|
CARBOGEN AMCIS
|
Grupo Dishman Carbogen Amcis
|
64,59
|
India (1). China (3), Grã-Bretanha (1), França (1), Suíça (3), Holanda (2), Singapura (1)
|
ARN
|
CELLforCure
|
LFB / France
|
0
|
França (1)
|
terapias celulares, Terapias genéticas
|
Clean Cells
|
Independente
|
36,09
|
França (1)
|
terapias celulares, vetores virais
|
Delpharm Huningue SAS
|
Delpharm
|
11
|
França (9); Bélgica (1); Itália (2);
|
Proteínas recombinantes
|
EFS Atlantic Bio GMP
|
Etablissement Français du Sang - EFS
|
0
|
França (1)
|
Vetores virais
|
FIRALIS
|
independente
|
13.05
|
França (2)
|
Proteínas recombinantes
|
GENBIOTECH
|
Laboratoires Genévrier SAS
|
0
|
França (1)
|
Proteínas recombinantes, terapias celulares, terapias genéticas, tecidos biológicos, ARN
|
Invivogen
|
Famille Tiraby
|
0
|
França (1), USA (2), Brasil (1), Hong Kong (2)
|
ARN
|
NOVASEP
|
NVHL S.A.
|
83.44
|
França (6); Bélgica (2); Alemanha (1); Estados Unidos (1); India (1); Tailândia (1); China (1)
|
Proteínas recombinantes, vacinas, extração protéica
|
PX’THERAPEUTICS
|
Aguettant Santé
|
14,75
|
França (1)
|
Proteínas recombinantes, vacinas, extração protéica, extratos bacterianos de microbiota
|
Recipharm in Monts
|
Recipharm AB -Publica Limited Liability Co.
|
25,11
|
Suécia (11), Portugal (1), França (4), GRã-Bretanha (6), Espanha (1), Brasil (1), Itália (1)
|
vacinas
|
Sanofi Aramon
|
Sanofi
|
27.84
|
França (3)
|
extração protéica
|
Sanofi Genzyme - Lyon Polyclonals
|
Sanofi
|
62,49
|
65 países (incluindo 17 plantas industriais e 9 laboratórios)
|
Vetores virais
|
Transgene SA
|
Compagnie Mérieux Alliance
|
0
|
França (2); Estados Unidos (1); China (2)
|
Vetores virais
|
Yposkesi
|
Genethon
|
9.06
|
França (1)
|
Terapias genéticas
|
Fonte: Dados coletados e organizados por Antas Jr. a partir da Plataforma ORBIS (2018) e LEEM (2017)
49Ou seja, estamos assistindo paulatinamente a delegação da inovação pelos grandes laboratórios à agentes independentes por meio de contratos CDMO capazes de produzirem conhecimento e aplicação para a produção industrial, assim como de empresas voltadas unicamente à pesquisa de fundo, particularmente no setor dos biomedicamentos.
50Com essa maior segmentação da divisão do trabalho, tanto técnica como social e territorial, os grandes laboratórios e suas marcas globais se voltam sobretudo à administração, ao mercado financeiro, as estratégias de expansão e marketing e ao investimento em pesquisa e desenvolvimento. Mas não exclusivamente, posto que ainda são os grandes fabricantes de medicamentos, de todas as classes.
51Por sua vez, esses agentes produtores por encomenda já se encontram claramente segmentados em empresas pequenas, médias ou grandes. De um modo geral, as grandes apresentam algumas ou várias unidades produtivas, muitas em diferentes países, e as de médio e pequeno porte podem ter presença em outros países, mas em geral as unidades de produção dessas empresas estão no mesmo território com poucas ou apenas uma unidade e atendem demandas dos diversos agentes instalados no território, e também demandas do exterior, como indicam as taxas de exportação do Quadro 2 como, por exemplo, se observa a empresa Elpida que tem destaque nas exportações. Aliás, se tomamos a produção para terceiros de todas classes de medicamentos, a exportação é o maior destino para suas produções.
52Essa nova modalidade de empresa vem transformando muito a atividade na medida em que passaram a atuar em etapas antes consideradas estratégicas e secretas dos grandes laboratórios. É bom reforçar: o que garantia liderança aos grandes “players” do mercado farmacêutico era a sua maior capacidade inovativa e relativo monopólio em alguns territórios na produção de medicamentos para tratamento de certas doenças, sobretudo antes do período de globalização. Mas agora isso tem sido transferido a outros agentes produtivos com empresas de estatutos jurídicos independentes dessas corporações.
53Empresas com estatuto jurídico CDMO têm sido contratadas para a produção em uma ou mais áreas do processo produtivo dos biomedicamentos envolvendo a inovação e até criação de patentes que passam a ser compartilhadas com o laboratório contratante. Assim, participam dos testes clínicos, pesquisa clínica, produção de placebo, lotes clínicos da fase I à III, processos administrativos e acreditação que é a submissão do processo industrial para a aprovação das agências de vigilância sanitária e órgãos de controle dos medicamentos em cada país.
54Essa grande transformação está relacionada à globalização do sistema produtivo farmacêutico que demanda a existência de determinadas estruturas produtivas nos territórios em que chegam ou que já estão presentes e pretendem expandir sua participação no mercado doméstico. Investir na instalação de toda a estrutura necessária pode ser muito arriscado, e apostar na importação de todo tipo de insumo pode tornar o custo de produção inviável.
55O que se constata é uma combinação dessas duas possibilidades. Anteriormente, era imperativo que o laboratório dominasse todas as etapas do processo produtivo para garantir a qualidade do produto final e criar uma boa imagem da empresa e do produto como deixa transparecer o citado relatório da Sanofi (2016). Então, fora a matéria prima tudo o mais deveria ser produzido pela empresa.
- 5 O termo insumo produtivo é designado aqui como um produto manufaturado cuja finalidade é a de ser e (...)
- 6 Importante ressaltar que Estado Unidos e Canadá são líderes na produção para terceiros de princípio (...)
- 7 Segundo o LEEM (2017, P. 100), problemas de corrupção na China e descumprimento de algumas normas s (...)
56No bojo desse processo de globalização é que ocorreu uma transferência de certos processos à outras empresas. Um exemplo paradigmático é a produção dos princípios ativos – que já não é matéria prima, e sim insumo produtivo5 e que, portanto, já passou por alguns processos de transformação industrial. Hoje a maioria das empresas em solo europeu e norte-americano importam muitos dos princípios ativos da China e Índia, os maiores produtores mundiais dessa classe de insumo em volume (60 a 80% do mercado mundial). Porém, são princípios ativos de baixo valor agregado6, e as maiores produções industriais nesses países são de empresas estadunidenses e europeias7 (LEEM, 2017, p. 68-98).
57Este é um exemplo entre dezenas que compreendem os circuitos espaciais produtivos do mercado farmacêutico mundial. Na verdade, o conceito nos permite compreender que a globalização da produção industrial implicou nas trocas de todos os tipos de insumos produtivos, o que impulsionou o nascimento e expansão da produção para terceiros.
58Vale destacar que grande parte dos insumos produtivos que constituem um medicamento, em todo o mundo, são importados. Trata-se do modus operandi da produção capitalista globalizada, uma divisão técnica e territorial que combina diferentes países na produção de um mesmo medicamento. A França teve um volume de negócios no mercado farmacêutico que atingiu 54,5 bilhões de euros em 2016, sendo 25,7 bilhões em exportações (LEEM, 2018). E grande parte dessas exportações não são de produto finais, de medicamentos, e sim insumos.
59Não caberia aqui uma demonstração detalhada desta dinâmica, mas a título de exemplo podemos afirmar que o Brasil é um grande importador de insumos produtivos da França (na frente estão Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido), assim como o Brasil também exporta insumos produtivos para a França embora não guarde a mesma expressão em termos de valor (Antas Jr., 2017; Antas Jr. & Almeida, 2015). E um dos agentes mais importantes nessas trocas de insumos entre os dois países é a empresa Sanofi que está entre as empresas líderes do mercado farmacêutico no Brasil e na França.
60Vale lembrar que a importação de produtos não acabados conhece menor taxação que os produtos finais, como os medicamentos embalados, e isso conta muito nas estratégias dos grandes laboratórios farmacêuticos na obtenção de vantagens e manutenção da liderança dos mercados em que atuam.
61Porém, nem todos os insumos de produção são vantajosos de se importar, e aqui entra o importante papel exercido pelas empresas produtoras para terceiros. Seja na etapa de embalagem, produção de princípios ativos ou de todo o processo produtivo de um medicamento que levará a marca do laboratório contratante, o que em geral ocorre com alguns genéricos.
62Isso vale tanto para o mercado farmacêutico francês quanto o brasileiro. Tomando um caso frequentemente observável onde um grande laboratório como a Sanofi poderá realizar um contrato CDMO com a Unither presente tanto em Barretos (SP) e/ou com sua unidade em Amiens (FR) para produzir o princípio ativo de um genérico que esteja com elevado índice de vendas no Brasil. Parte dessa produção poderá ser direcionada para a Medley, empresa de genéricos da Sanofi no Brasil em Campinas (SP), mas é bem possível que uma outra parte seja enviada na forma de insumo para a França, para a produção de medicamentos que se utilizem do mesmo insumo. Além disso, não é forçoso que na França esse insumo seja utilizado pela própria Sanofi, uma vez que esta empresa também está produzindo para terceiros como se observa no Quadro 2.
63Isto apenas ilustra as imbricadas relações entre agentes produtivos, países e localidades: Unither (Barretos e Amiens), Sanofi (Suzano e alguma das unidades na França), Medley (Campinas) em torno da produção de uma mesma mercadoria. É um exemplo simplificado porque a rede de relações tende a ser muito mais complexa. E este é o princípio de método presente no conceito de circuito espacial produtivo, o de se considerar as relações entre as escalas espaciais que envolvem a produção industrial contemporânea com uma divisão territorial do trabalho que combina lugares, regiões e formações socioespaciais.
64Assim, os complexos industriais da saúde cada vez mais aparecem como um elemento estratégico para os Estados de modo a conferir autonomia aos sistemas de saúde nacionais cuja viabilidade, atualmente, depende de contínuo abastecimento dos hospitais e farmácias com mercadorias acessíveis e com fornecimento sem interrupções. Nos países onde se logra construir tal complexo, observa-se um esforço permanente do Estado em produzir uma organicidade entre a diversa gama de produtores industriais e os agentes dos serviços de saúde.
65Com isso, vemos as regiões em suas diferentes formas institucionais (estado federado, províncias etc.) num esforço em equipar ou modernizar as infraestruturas e sistemas organizacionais na construção de ambientes favoráveis à implementação de indústrias do setor, o que coloca os lugares em verdadeira disputa (para não dizer em guerra) para sediar as instalações apesar de serem poucos os lugares capacitados para acolher as empresas com suas necessidades técnico-científicas (universidades, formação da força de trabalho especializada etc.)
66Nesse contexto, os circuitos espaciais produtivos tendem a unir os complexos industriais da saúde em uma mesma lógica que conduz os grandes laboratórios à expansão da sua capacidade de acumulação se apropriando das diferentes vantagens de cada formação socioespacial. Mas a presença global impôs maior segmentação do processo produtivo como buscamos apresentar aqui.
67Um fato relevante em todo esse processo é a difusão mais rápida da inovação tecnológica e científica que se relaciona tanto com a existência do complexo industrial da saúde como a sua lógica submetida aos circuitos espaciais produtivos.
68Desse modo, constatar a existência de um circuito espacial produtivo dos biomedicamentos é igualmente entender que a produção e o consumo de tecnologia recente e inovadora não se restringem mais obrigatoriamente à um pequeno conjunto de países como ocorreu até a maior parte de todo o século XX. É constatar também, um novo paradigma de consumo e de produção no período atual.
69Por ser um resultado da totalidade do modo de produção em sua dinâmica histórica, o complexo industrial da saúde é analisado aqui segundo os seus circuitos espaciais produtivos e não somente pelas cadeias produtivas. Este tratamento distinto é devido às diferenças de perspectivas e objetivos das disciplinas, sobretudo as aplicadas em relação às disciplinas da ciência social crítica da qual a teoria geográfica faz parte.
70Engenharias, química e economia, entre outras, já partem do dado que a doença deve combatida por medicamentos baseados em profundas transformações químicas ou genéticas, assim como pelo uso de equipamentos de grande complexidade tecnológica, e portanto, é preciso resolver o problema de produzi-los com complexos sistemas técnicos e organizacionais para ter escala suficiente à demanda de massa.
71É uma atividade econômica que deve investir constantemente em inovação científica e tecnológica para ser mais eficaz no combate aos males. E, quando a pesquisa obtém sucesso e logra ter aplicação industrial (o que nem sempre é o caso), gera maior valor agregado impulsionando a lógica corporativa, como deixam claros os seus relatórios financeiros anuais. De algum modo afirmam a maioria dos relatórios da indústria farmacêutica: se a forma galênica é garantia dos lucros pela sua “banalidade” em termos de produção industrial, os medicamentos biológicos, de maior complexidade, trazem ganhos mais elevados. Deve-se então mirar neles.
72É uma racionalidade dotada de forte coerência interna, mas que não dispensa outras abordagens que sejam de certo modo “externas” à acumulação de capital stricto sensu e que são capazes de trazer uma perspectiva crítica a este modus operandi, já que o nível de ação corporativo, para impor seus produtos segundo sua capacidade de competitividade, é capaz de eliminar proposições alternativas, quiçá mais eficazes no combate à esta ou a aquela doença.
73Os circuitos espaciais produtivos têm como pressuposto que são resultantes de um processo social amplo de totalização do modo de produção. São, pois, resultantes das dinâmicas sociais e econômicas de modo indissociável. Daí que as cadeias produtivas industriais também interessam à análise geográfica, como também suas conexões com os hospitais e farmácias (em rede ou não), com as feiras que vendem produtos e projetos de ciências da saúde aplicadas, etc.
74Daí que o entendimento dessa complexa economia pelos circuitos espaciais produtivos é fundamental para a produção de uma perspectiva geográfica porque estes fornecem um método coerente para apreendermos as conexões entre todos esses ramos econômicos e instituições políticas, governamentais ou não, em torno da saúde contemporânea.
Este artigo é baseado em projeto apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), Processo N. 2017/21787-0. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da FAPESP. Também apoiou a produção deste artigo o Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento (CNPq), processo 307702/2017-0.
Agradeço ao Prof. Hervé Théry que foi o supervisor do meu estágio de pós-doutoramento no Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine (IHEAL) assim como ao Prof. Olivier Compagnon, diretor do instituto, que me recebeu e possibilitou a execução da pesquisa.