1A dengue, doença viral febril aguda, atualmente, é a mais importante arbovirose que afeta o ser humano, constituindo-se um sério problema de saúde pública mundial, especialmente nos países tropicais, onde as condições ambientais atreladas aos problemas sociais favorecem o desenvolvimento e a proliferação do Aedes aegypti, principal mosquito vetor da doença (BARRERA et al., 2000; GUBLER, 2002a; GLUBER, 2002b; BRASIL, 2006).
2Schatzmayr (2008) aponta o vírus da dengue como o mais difundido geograficamente, sendo encontrado em áreas tropicais ou subtropicais. A intensidade e rapidez dos fluxos, como as viagens de pessoas e de bens possibilita o aumento da circulação dos vírus e vetores, e auxiliam na manutenção e disseminação da doença (CATÃO, 2012), ao passo que sua adaptação aos seres humanos mantém a circulação dos vírus em áreas urbanas especialmente as grandes cidades de países tropicais (GLUBER, 2004).
3Segundo a OMS, são estimados 50 milhões de casos anualmente, e 250 a 500 mil casos de FHD no mundo todo (WHO, 2018). Desde a reintrodução do vírus no Brasil, na década de 1980, mais de 60% dos casos notificados de dengue na Região das Américas ocorreram no Brasil (NOGUEIRA et al, 2007).
4São nos espaços urbanos, sobretudo nas cidades médias e metrópoles brasileiras que os casos de dengue ocorrem de maneira mais frequente e onde as epidemias se propagam com maior facilidade. Nesses espaços constatam-se: mudanças no clima local; concentração populacional; precariedade dos serviços de saúde, infraestrutura e equipamentos de uso coletivo; baixa renda; fragilidade e localização da moradia. As características climáticas e socioeconômicas são condicionantes do comportamento da dengue no espaço urbano (MENDONÇA, et al., 2004).
5Em Fortaleza, capital do estado do Ceará, a dengue se manifestou de forma endêmica com o registro de seis picos epidêmicos nos anos de 1987, 1994, 2001 e 2008, 2011, 2012, e tendência crescente em número de casos e incidência desde sua primeira notificação em 1986 (CEARÁ, 2014a).
6Nesse sentido o presente artigo visa evidenciar e analisar o arranjo espacial da dengue em dois episódios epidêmicos subsequentes, o ano epidêmico (2012) e pós-epidêmico (2013). Estes anos foram escolhidos visto que em 2012 ocorreu a maior epidemia de dengue do estado do Ceará e da cidade de Fortaleza, tornando o ano seguinte um ano pós epidêmico, o que permitiu identificar as porções da cidade onde continuaram ocorrendo casos da doença e constatar que a doença atingiu grupos populacionais de forma diferenciada no tempo e no espaço.
7O município de Fortaleza está localizado no litoral norte do Estado do Ceará. Possui uma área de 313,8 km² e uma população de 2.447.481 habitantes, resultando em uma densidade populacional de 7.892 habitantes por km² (BRASIL, 2010). Limita-se ao norte com o Oceano Atlântico, ao sul com os municípios Itaitinga, Pacatuba e Maracanaú, a oeste com os municípios Caucaia e Maracanaú e ao leste com o Oceano Atlântico e com os municípios Eusébio e Aquiraz (Figura 01).
Figura 01 - Mapa de Localização de Fortaleza
Elaboração: Gledson B. Magalhães. Fonte: Base cartográfica – IBGE,2010.
8Realizou-se o levantamento e construção do banco de dados climáticos, epidemiológicos e socioeconômicos, que através do tratamento geoestatístico permitiram identificar o comportamento da dengue na cidade, os bairros com dados mais alarmantes, a dinâmica da doença, a diferenciação intramunicipal e a relação entre as variáveis. A base de dados foi construída visando a leitura dos valores médios e diários.
9Os dados epidemiológicos, climáticos e socioeconômicos foram adquiridos conforme as especificidades abaixo:
-
Temperatura do ar, umidade relativa do ar e totais pluviométricos horários, diários e mensais junto a Estação Meteorológica do Campus do PICI/UFC (03° 44’ Lat. S e 38° 33’ Long. W; Altitude: 19,5m).
-
Incidência e total de casos de dengue, Índice de Infestação Predial (IPP) mensais por bairro, através da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará (SESA) e da Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza (SMS). O IIP correspondente ao número de imóveis com a presença de larvas do Aedes aegypti pelo número total de imóveis inspecionados.
-
Dados socioeconômicos do censo demográfico de 2010 realizado pelo IBGE e do Ministério da Saúde através do DATASUS.
10Confeccionaram-se gráficos com informações diárias dos elementos climáticos e epidemiológicos representados de forma concomitante, acrescidas de cartogramas de kernel mensais dos casos de dengue.
11No tratamento geoestatístico, adotou-se o bairro como unidade de agregação. A escolha dos indicadores socioeconômicos (Quadro 01) pautou-se nos estudos coordenados por Barata e Confalonieri (2011) e Confalonieri (2005) ambos abordando a vulnerabilidade da população às mudanças climáticas.
Quadro 01 – Variáveis socioeconômicas
VARIÁVEIS
|
SIGLA
|
População Total
|
PT
|
Média de Moradores por Domicílio
|
MMD
|
% da População Alfabetizada com 10 anos ou mais
|
PA10
|
Renda Média Mensal das pessoas de 10 anos ou mais
|
RMMP10
|
% de Domicílios com Renda Per Capita de até 1/4 Salário Mínimo
|
DRPC14
|
% de Domicílios com Renda Per Capita de até 1/2 Salário Mínimo
|
DRPC12
|
% da População Extremamente Pobre
|
PEP
|
% de Domicílios com Serviço de Coleta de Lixo Realizado por Serviço de Limpeza
|
DSCL
|
% de Domicílios Ligados a Rede Geral de Água
|
DLRGA
|
% de Domicílios Ligados a Rede Geral de Esgoto ou Pluvial
|
DLRGEP
|
12Utilizou-se o coeficiente Alfa de Cronbach para medir a consistência interna e estimar a confiabilidade do conjunto de variáveis com maiores covariâncias, através da identificação e eliminação de fatores redundantes. Em seguida, estabeleceu-se correlações de Pearson entre as variáveis socioeconômicas, e entre este e a incidência de dengue, para mensurar o grau de relação entre os mesmos.
13Na fase seguinte utilizou-se o Índice de Moran global e local para avaliar a autocorrelação espacial da dengue e das variáveis socioeconômicas correlacionadas significativamente com a doença, observando se as variáveis estão concentradas no espaço através do grau de associação espacial presente no conjunto de dados, identificando clusters espaciais.
14Objetivando visualizar a propagação da dengue em território contínuo optou-se em auto correlacionar espacialmente as variáveis utilizando o método dos “polígonos contínuos” (polygon contiguity), ou seja, os vizinhos de primeira ordem.
15Os 2 episódios analisados correspondem aos meses de fevereiro, março, abril e maio de 2012; e abril, maio, junho e julho de 2013. Os meses foram escolhidos com base em diagramas de controle, definindo o mês de início e fim das epidemias, o mês de pico epidêmico e tempo de duração.
16O cruzamento das informações fornecidas através da análise das condições atmosféricas, dos fatores epidemiológicos e das variáveis socioeconômicas forneceram um entendimento do comportamento da dengue na cidade, aproximando os estudos do que acreditasse ser um padrão comportamental da dengue em relação às condições atmosféricas e socioeconômicas em Fortaleza.
17Entre os anos de 2012 e 2013 o vírus da dengue alterou seu potencial epidêmico, passando de uma epidemia explosiva que evoluiu em curto período de tempo para uma circulação endêmica com menor número de casos.
18De abril a julho de 2012 totalizaram 36.048 casos de dengue. O aumento constante na quantidade de casos ocorre a partir da última semana de fevereiro, semana em que apesar de temperaturas mais baixas que as semanas anteriores, apresentaram umidade elevada e precipitações bem distribuídas (Figura 2). O mês de maio teve 21.902 casos de dengue configurando-se como o mês de pico epidêmico até o dia 14 quando foram registrados 1064 casos. Esse aumento de casos durou 12 semanas. A partir da quarta semana de maio os casos começam a diminuir, confirmando 259 casos de dengue no dia 31. A epidemia chega ao fim na segunda semana de agosto.
19Nos meses investigados em 2012 a predominância de dias com temperaturas máximas acima de 30°C, e temperaturas mínimas acima de 20°C, evidencia as excelentes condições térmicas para a reprodução do Aedes aegypti. A precipitação foi irregular, sendo o mês de maios o menos chuvoso, porém com maior quantidade de casos de dengue. A distribuição das precipitações nos meses anteriores favoreceu as elevadas umidades e o aumento de criadouros do mosquito. Constatou-se que os meses de fevereiro, março e abril tiveram condições climáticas mais propícias à proliferação da dengue que o mês de maio (Figura 2).
20A susceptibilidade da população de Fortaleza ao vírus circulante acarretou a maior epidemia da história da cidade. Essa epidemia apresentou uma velocidade de disseminação maior que a do ano de 2011 e foi mais intensa, visto a alta susceptibilidade da população de Fortaleza ao sorotipo D4. A disseminação de casos de dengue nesse episódio caracteriza um padrão de difusão por expansão rápida que se assemelha ao tipo de expansão que ocorre nos casos de doenças infecciosas que são transmitidas diretamente, ou seja, transmitida por contágio.
21Em fevereiro, os maiores números de casos e incidências ocorreram nos bairros da região oeste da cidade, que em conjunto constituem um cinturão de bairros onde a epidemia iniciou com mais intensidade. Em março, o ‘cinturão’ de bairros na porção oeste da cidade fica nitidamente configurado, se estendendo de norte a sul de Fortaleza e se expandindo para a região central do município (Figura 3).
22Os bairros localizados a nordeste, constituem bairros com baixas incidências e número de casos. Esses bairros possuem população com renda média elevada e áreas com maior homogeneidade na sua paisagem, com intensa verticalização, tanto para fins residenciais como para atividades do terciário. Possuem as maiores porcentagens de população alfabetizada e áreas residenciais de melhor padrão, articuladas por eixos viários que concentram os serviços e comércio de melhor qualidade, evidenciando segregação socioespacial. A atuação do mercado imobiliário articulada com o Estado garante a esses bairros um alto valor do solo urbano.
23Uma reserva de mata natural, correspondente ao Parque Ecológico da cidade abrange parte do setor nordeste do município, e funciona como barreira geográfica para a propagação da dengue, haja vista que o Aedes aegypti se prolifera onde tem a presença de seres humanos. Essa barreira geográfica contribui para as baixas incidências nesse setor da cidade e influencia no tempo de propagação espacial da doença.
24As correlações estatísticas entre a incidência e a renda média mensal da população economicamente ativa (Quadro 2) e as figuras 2 e 3 indicam que a dengue se propagou mais rapidamente nos bairros com renda média mensal menor que um salário mínimo, alguns deles constituíram o cinturão epidêmico de 2012 na região oeste da cidade. Mesmo com a dengue disseminada por toda a cidade em abril e maio, constatou-se que a maior quantidade de casos e incidência se mantiveram nos bairros da região oeste e nos bairros localizados da periferia sudeste da cidade.
25Os bairros com menor renda média mensal foram onde houve as maiores incidências de dengue entre o início da epidemia em fevereiro até o pico epidêmico em maio (Figuras 2 e 3).
26A variável PEP (% da população extremamente pobre) mostrou correlação com o episódio de 2012, com expressão estatística para o mês de abril (Quadro 2). Os maiores adensamentos de pessoas em situação de extrema pobreza encontram-se nos bairros das porções sudoeste e sul da cidade (Figura 3).
27Nos cartogramas da figura 2 observa-se uma concentração de casos na região Oeste do município se propagando rapidamente em território contíguo a partir de seus hotspots. As poucas correlações estatisticamente significativas entre a incidência de dengue e as variáveis socioeconômicas refletem a rápida disseminação do vírus e a eficiência da circulação viral devido a susceptibilidade da população ao sorotipo D4 (Quadro 2).
28Estudos de difusão da dengue em diferentes áreas urbanas mostram a associação espacial entre os casos de dengue e as condições socioeconômicas da população (CARVALHO, MAGALHÃES, MEDRONHO, 2017; ZELLWEGER et al, 2017; LIPI et al, 2018), evidenciando que ela é marcada pela conjuntura social situada em um contexto de evidentes contradições.
29A diferenciação socioespacial no espaço urbano garante que parte da população da cidade seja vulneravel a varios tipos de agravos a saúde. Estudos como o de Faria et al (2017) para o Rio de Janeiro, identificaram forte associação entre as infecções parasitarias intestinais e o status socioeconomico da população. Soares et al (2010) e Chaiblich et al (2017) analisando a distribuição da leptospirose nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, respectivamente, encontraram associação entre os determinantes socioeconômicos e a respectiva doença.
30A heterogeneidade espacial das doenças no meio urbano tende para um maior impacto nas camadas mais pobres da sociedade, aquelas que sofrem com problemas de carência ou má qualidade dos serviços urbanos, como saneamento, transporte, moradia, etc (SILVA e BARROS, 2002).
Figura 2 – Casos diários de dengue e elementos climáticos no período de fevereiro a maio de 2012
Fonte: FUNCEME e SMS/SIMDA. Org.: Gledson B. Magalhães.
Quadro 2 – Correlações entre as variáveis socioeconômicas e epidemiológicas
Figura 3 – Cartogramas episódio 2012
Fonte: Base Cartográfica – IBGE,2010; Dados: IBGE, Ministério da Saúde, SESA-CE, SMS-Fortaleza. Org.: Gledson B. Magalhães.
31O ano de 2013 configura-se um ano pós-epidêmico, com uma redução de 97% no número de casos em relação a 2012. O episódio corresponde aos meses de abril a julho. A quantidade de casos registrados por dia, assim, como a incidência, mostrou pequenas oscilações dentro da faixa endêmica, com a maior quantidade de casos em junho (2725 casos) e a menor em abril (1176 casos).
32O ano de 2013 configurou-se como um ano seco, com chuvas abaixo da média, os poucos dias de umidade acima de 75%. Apesar disso as precipitações tiveram uma distribuição mensal similar entre os meses, com abril e maio registrando 16 dias de chuva cada um, enquanto junho e julho registraram 15 e 14 dias de precipitação respectivamente.
33A temperatura do ar permaneceu em faixas ótimas para a reprodução do Aedes aegypti, com destaque para a temperatura mínima com temperaturas superiores a 20°C. O mês de abril configurou-se como o mês de maiores temperaturas (Figura 5).
34No episódio de 2013 verificamos mais correlações com nível de significância abaixo de 0,05. No quadro 2, observa-se que as maiores incidências de dengue se correlacionaram com os bairros de baixa renda, com déficit na educação e saneamento, principalmente no mês de início da epidemia. Neste ano as poucas chuvas e a baixa umidade, que o caracterizaram como ano seco, dificultaram a proliferação do mosquito vetor. Com grande parte da população imunizada aos sorotipos D1 e D4 e sem a circulação dos sorotipos D2 e D3, o ano de 2013 configurou-se com um ano de poucos casos da doença.
35No quadro 2, observa-se que as correlações são mais fortes e com maior significância nos meses de início das epidemias, quando a doença ainda não está totalmente disseminada pela cidade.
36Neste episódio as maiores médias de incidências foram nos bairros periféricos da cidade, principalmente os bairros cortados pelo Rio Maranguapinho na porção oeste do município, e nos bairros do setor sudeste.
37No mês de abril os casos de dengue concentraram-se inicialmente nos bairros da porção sudoeste, centro-oeste e sudeste da cidade. Juntos configuram-se um conjunto de bairros com contiguidade territorial, que se estende de leste a oeste formando uma faixa de bairros com elevadas incidências e quantidade de casos (Figura 4).
38De abril a julho a doença não se disseminou por toda a cidade, ficando restrita a porções específicas. Todavia, percebe-se um leve aumento no número de casos e uma distribuição espacial que engloba os bairros vizinhos aos que tiveram maiores incidências em abril, principalmente na porção oeste da cidade onde se verifica o aumento da incidência. A região nordeste da cidade é constituída por um conjunto de bairros com nenhum ou poucos casos da doença.
39Verificou-se que a circulação do vírus fica circunscrita nos mesmos setores da cidade onde se iniciou a epidemia de 2012 e onde ocorreu a maior quantidade de casos. Há uma estreita relação entre os bairros com maior parcela de população de baixa renda, detendo estes, fração significativa de população analfabeta, e as piores condições de infraestrutura domiciliar relacionadas ao abastecimento de água, coleta de lixo e esgotamento sanitário. Grande parte destes bairros estão localizados nas margens periféricas sudoeste e sudeste da cidade (Figura 4).
40Na epidemia de 2012 fica evidente que, como a quantidade de indivíduos suscetíveis diminui em algumas áreas, a circulação do agente continuará a expandir-se rapidamente para outras áreas, atingindo igualmente os bairros com melhores condições socioeconômicas, embora o ponto de partida da epidemia não tenha sido nesses últimos. Já no episódio de 2013 a configuração espacial da dengue é restrita a porções da cidade cujo os bairros apresentam baixos valores dos indicadores socioeconômicos.
41Há uma estreita relação entre a localização espacial dos grupos que possuem desvantagens sociais e os bairros onde a dengue foi mais impactante. Ocorre uma superposição das precariedades que não se concretizam isoladamente, contribuindo para a manutenção da dengue em áreas específicas da cidade. Nesse sentido a distribuição da dengue na cidade também reflete uma situação de exclusão decorrente da superposição de carências de diferentes naturezas e a incapacidade de prevenção e combate à doença.
42Para Sabroza et al (1992), a heterogeneidade de incidência e/ou de distribuição de casos está relacionada às condições de vida dos diferentes estratos sociais. A maneira como os espaços são ocupados por populações de diferentes estratos socioeconômicos pode tornar tais espaços vulneráveis e criar condições favorecedoras para produção e reprodução de doenças.
Figura 4 – Cartogramas episódio 2013
Fonte: Base Cartográfica – IBGE,2010; Dados: IBGE, Ministério da Saúde, SESA-CE, SMS-Fortaleza. Org.: Gledson B. Magalhães.
Figura 5 – Casos diários de dengue e elementos climáticos no período abril a junho de 2013
Fonte: FUNCEME e SMS/SIMDA. Org.: Gledson B. Magalhães.
43O cálculo I de Moran apresentou resultados estatisticamente significativos para todos os indicadores socioeconômicos, com valores maiores que 0, configurando autocorrelação espacial positiva, isto é, as áreas tendem a ser similares entre si quanto a cada indicador. Para a incidência de dengue, das 15 amostras de dados utilizadas 5 apresentaram autocorrelação espacial, enquanto para o IIP apenas o 2º levantamento de infestação do ano de 2012 apresentou padrão aleatório (Quadro 3).
44Não encontramos autocorrelação espacial para a variável incidência de dengue no episódio de 2012. O I de Moran não foi significativo nos testes feitos para cada mês e na incidência total de dengue do episódio. A ausência de autocorrelação espacial pode estar associada à rápida propagação da doença pela cidade, logo o banco de dados da incidência na escala de tempo mensal não evidencia uma possível autocorrelação espacial quando a epidemia se propaga rapidamente. No episódio de 2013, foi possível identificar grupos de bairros que se autocorrelacionam. Nesse episódio a doença não se propagou por toda a cidade, podendo assim perceber regiões onde ela predominou.
Quadro 3 – Resultados dos I de Moran para as variáveis socioeconômicas e epidemiológicas
Variáveis socioeconômicas
|
|
Incidência
|
|
Índice de Infestação Predial
|
Indicador
|
Moran’s
|
p-value
|
|
Indicador
|
Moran’s
|
p-value
|
|
Indicador
|
Moran’s
|
p-value
|
MMD
|
0,34
|
<0,05
|
|
fev/12
|
0,17
|
<0,05
|
|
1º IIP 2012
|
0,12
|
<0,05
|
PA10
|
0,39
|
<0,05
|
|
mar/12
|
0,11
|
<0,05
|
|
2º IIP 2012
|
0,13
|
>0,05
|
RMMP10
|
0,51
|
<0,05
|
|
abr/12
|
0,12
|
>0,05
|
|
2º IIP 2013
|
0,21
|
<0,05
|
DRPC14
|
0,36
|
<0,05
|
|
mai/12
|
0,26
|
>0,05
|
|
IIP Episódio 2012
|
0,11
|
<0,05
|
DRPC12
|
0,47
|
<0,05
|
|
abr/13
|
0,27
|
>0,05
|
|
IIP Episódio 2013
|
0,21
|
<0,05
|
PEP
|
0,19
|
<0,05
|
|
mai/13
|
0,28
|
<0,05
|
|
|
|
|
DSCL
|
0,15
|
<0,05
|
|
jun/13
|
0,25
|
<0,05
|
|
|
|
|
DLRGA
|
0,40
|
<0,05
|
|
jul/13
|
0,28
|
<0,05
|
|
|
|
|
DLRGEP
|
0,74
|
<0,05
|
|
Inc. Episódio 2012
|
0,12
|
>0,05
|
|
|
|
|
|
|
|
|
Inc. Episódio 2013
|
0,18
|
<0,05
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
45Os cartogramas de autocorrelação espacial apontaram-no com destaque os valores extremos dos dados em forma de conjunto (Figura 6 e 7). Identifica-se um conjunto de bairros na área central da cidade que apresentam autocorrelação espacial para os indicadores MMD, PA10, DRPC14, DRPC12, PEP, DLRGEP. Os resultados em vermelho apontam para condições socioeconômicas que facilitam a propagação da dengue, enquanto a cor azul indica condições que dificultam.
46Os resultados evidenciam que os bairros da área central da cidade, possuem, dentro dos indicadores supracitados, condições que dificultam a difusão da doença. O reflexo disso são as baixas incidências encontradas nos episódios investigados. Cabe ressaltar que o bairro Centro é um bairro comercial com grande fluxo de serviços, desse modo, é possível que ocorram casos nesse bairro que sejam registrados nos bairros de residência dos trabalhadores do Centro.
47Os bairros: Benfica, Centro, Cidade 2000, Cocó, Damas, Dionísio Torres, Fátima, Joaquim Távora, Meireles e Praia de Iracema, apresentaram bons resultados para os indicadores MMD e RMMP10. Nesses bairros não foi identificado clusters ou outliers para incidência e índice de infestação predial, todavia nos 2 episódios eles tiveram baixa incidências no início da propagação da doença (Figura 6 e 7).
48Se contrapondo a área central, na figura 6, identifica-se bairros na porção oeste, sudoeste e sudeste que exibem maus resultados para as variáveis PA10, DRPC14, DRPC12 e PEP. Neles a dengue se propagou mais rapidamente nos anos de epidemia e se manteve no ano pós-epidêmico. A maioria dos bairros não se enquadra nos agrupamentos, pois possuem distintas características socioeconômicas, quanto as variáveis escolhidas.
49Para a incidência de dengue, os cartogramas mostram correlação espacial nos 2 primeiros meses da epidemia de 2012. No mês de fevereiro percebe-se 6 bairros localizados na porção oeste da cidade que apresentam valores altos e próximos identificados no cartograma pela cor marrom. São eles: Quintino Cunha, Álvaro Weyne, Monte Castelo, Vila Ellery, Antônio Bezerra e Padre Andrade (Figura 7).
50No mês de março o número de bairros que integram o conjunto de clusters com alto valor muda de configuração acompanhando o leito de um afluente do rio Maranguapinho. São os bairros: Álvaro Weyne, Vila Ellery, João XXIII, Antônio Bezerra, Padre Andrade, Presidente Kennedy e Dom Lustosa. Para esses dois meses o bairro Floresta apresentou valores baixos próximos a um conjunto de valores altos. Provavelmente isso pode ter ocorrido tanto por uma quantidade elevada de subnotificações ou pelo registro de casos desse bairro para os bairros vizinhos. O bairro Maraponga no mês de fevereiro e os bairros Aerolândia e São João do Tauape no mês de março tiveram valores altos que não se agrupam por estarem em meio a bairros que detinham baixa incidência. Esses bairros não constituem nenhum cluster de alguma das variáveis socioeconômicas, todavia apresentam relação entre o número de casos, a densidade demográfica e as condições socioambientais (Figura 6 e 7).
51No ano de 2013 identificou-se, a partir do segundo mês do episódio, três conjuntos de bairros com alta incidência de dengue. Em maio agrupam-se na região sudoeste (Bairros: Presidente Vargas, Canidezinho e Parque Santa Rosa), na porção sudeste (Bairros: Pedras, Paupina, Parque Santa Maria e Ancuri) e na porção centro-oeste (Bairros: Rodolfo Teófilo e Parque Araxá). Em junho a configuração muda e revela comportamentos distintos para o grupo de bairros da região sudoeste, onde se acrescenta ao cluster mais 3 bairros (Conjunto Esperança, Planalto Ayrton Senna e Mondubim), mostrando a propagação da doença para os bairros adjacentes a leste e a manutenção de elevadas incidências nos bairros Presidente Vargas, Canidezinho e Parque Santa Rosa (Figura 7).
52Na porção sudeste da cidade verifica-se uma diminuição do número de bairros que constituem o cluster do mês anterior. Para o mês de Junho somente o bairro Pedras apresenta elevada incidência, o que mostra uma diminuição da propagação da doença naquela região. No mês de julho ocorre o contrário do mês anterior, onde o conjunto de bairros a sudoeste com altas incidências diminui enquanto o conjunto de bairros a sudeste aumenta. A incidência do episódio de 2013 mostra que os bairros Ancuri, Canindezinho, Parque Araxá, Parque Presidente Vargas, Parque Santa Rosa, Paupina, Pedras e Rodolfo Teófilo constituíram os clusters de incidência com valores altos próximos (Figura 7).
53Somente para o episódio de 2013 é possível visualizar espacialmente uma relação entre a incidência de dengue e o índice de infestação predial através da identificação de clusters e outliers. Na porção sudeste da cidade identificamos clusters altos quanto à incidência de dengue e IIP (Figura 7).
54No conjunto de cartogramas se visualiza uma relação espacial entre os clusters das diferentes variáveis. No extremo sudeste da cidade, identifica-se um conjunto de bairros com valores altos para a “incidência de dengue” e IIP, e valores baixos para a variável “DLRGEP”. Nesse mesmo setor, clusters com valores baixos também foram identificados para as variáveis PA10 e DSCL (Figuras 6 e 7).
55Mondini e Chiaravalloti Neto (2008), encontraram clusters de maior incidência de dengue nos setores censitários com piores níveis socioeconômicos para a cidade de São José do Rio Preto em São Paulo. Teixeira e Cruz (2011) para a cidade do Rio de Janeiro encontraram associação direta significativa entre a incidência de dengue e índice de Gini.
56Todavia, há episódios epidêmicos cujas incidências de dengue e as variáveis socioeconômicas não se auto correlacionam, como observado nos estudos de Barbosa e Silva (2015) para a cidade de Natal. Destaca-se que os padrões espaciais de distribuição da dengue estão submetidos não somente as variáveis socioeconômicas, mas também a fatores relativos a ecologia da doença e as condições climáticas.
Figura 6 – Cartogramas de autocorrelação espacial das variáveis socioeconômicas
Fonte: SMS-Fortaleza; IBGE,2010. Org.: Gledson B. Magalhães.
Figura 7 – Cartogramas de autocorrelação espacial das variáveis epidemiológicas
Fonte: SMS-Fortaleza; IBGE,2010. Org.: Gledson B. Magalhães.
57As condições atmosféricas favoráveis no epicentro da epidemia constituíram um fator que impulsionou a intensidade da transmissão do vírus. A cidade cria um clima próprio, e modifica intensamente sua paisagem, em uma tendência em que o clima favoreça ainda mais a proliferação do Aedes aegypti, seja através do impacto direto como o aumento das temperaturas do ar ou indiretamente pelo aumento de ambientes que, associados à chuva, propiciam mais criadouros do mosquito.
58Constatou-se que houve concentrações de bairros com maiores incidências e que a queda no número de casos em cada episódio analisado pode ser atribuída ao esgotamento de indivíduos susceptíveis, intervenção do controle vetorial e condições naturais desfavoráveis, como a diminuição das precipitações e da umidade, reduzindo a densidade vetorial.
59No presente estudo constata-se que Fortaleza se enquadra no contexto cuja a magnitude das epidemias que têm ocorrido em alguns dos grandes centros urbanos do Brasil é prova de que o padrão de comportamento do vírus da dengue é uma consequência das condições de vida prevalentes nas cidades modernas (GLUBER, 1998; BARBOSA et al, 2002; TEIXEIRA et al, 2002).
60Os resultados da pesquisa evidenciam que o espaço social habitado é considerado um dos principais fatores que determinam as características epidemiológicas e o ressurgimento da dengue ao longo das últimas décadas em vários países ao redor do mundo (KOURI et al, 1986; GLUBER, 2004; CHADEE, 2005).
61Em cada complexo urbano deve haver um ou mais áreas que são mais receptivas à circulação do vírus da dengue, e da qual o vírus se espalha. Cada cidade pode ter seu próprio epicentro, sendo estes os lugares em que são detectados os primeiros casos. Em Fortaleza as correlações apontam a associação entre a incidência de dengue e as variáveis socioeconômicas. A espacialização dessas variáveis mostra que os primeiros casos do episódio de 2013 foram registrados nos bairros que detinham as piores condições socioeconômicas e/ou de saneamento.
62Considerando a manifestação da doença em pessoas, estas não estão distribuídas aleatoriamente no espaço, sendo influenciadas por fatores socioeconômicos. Assim a distribuição desigual da dengue entre os bairros de Fortaleza se revela através das características de cada bairro que facilitam ou dificultam a propagação da doença.
63As maiores concentrações de casos ocorreram nos setores da cidade que apresentam maior densidade populacional e condições socioambientais que favorecem a proliferação da doença.
64A desigualdade imposta pelo modelo social vigente garante que os impactos de uma epidemia de dengue em Fortaleza sejam diferentes tanto no tempo cronológico como na intensidade do fenômeno epidêmico. A deterioração das condições de vida da população, particularmente no que tange a localização do território, as condições de moradia e de serviços e equipamentos de consumo coletivo implica diretamente no comportamento da doença na cidade.