“Citizen’s bond and
commitment to democracy
is renewed and played out every day
in the little things.”
Osvaldo M. Iazzetta
1Instituições flexíveis aprimoram a democracia? Quais são as implicações democráticas de instituições de governança flexíveis e / ou incompletas? Qual o papel desse novo desenho institucional em países onde a democracia não é uma tradição? Qual é a função da flexibilidade e da incompletude em contextos em que o desenho institucional não aumenta a crença na legalidade das regras do jogo (Weber, 1978)?
- 1 Este artigo é resultado de uma pesquisa (‘New-Dem: Do flexible institutions enhance democracy? A co (...)
2Para responder a essas questões, este artigo1 parte da proposição de que na ciência política, em geral, bem como no campo das políticas públicas, em particular, conceitos como “flexibilidade” ou “incompletude” podem não necessariamente produzir efeitos democraticamente benéficos - mas sim "rigidez". Segundo Goodin (1996), por exemplo, as instituições políticas precisam ser flexíveis, mas não “frágeis”, isto é, deveriam apenas “ser capazes de se adaptar a novas circunstâncias, sem serem destruídas por elas”. Lowndes (2014), por sua vez, considerou a incompletude como “um desenho institucional com valor em si”, já que ela não é
“uma coisa nem boa nem má (por si só), mas uma propriedade intrínseca do desenho institucional. Significando estabilidade (i.é., um compromisso que ‘funciona’, pelo menos por um período) ou instabilidade (uma pontuação dentro da trajetória histórica), a noção de incompletude se refere também a ‘mais ou a menos’, i.é., refere-se aos ‘conceitos de deficit ou superavit’” (Tradução livre).
3Combinando essas abordagens com a noção de flexibilidade, definida como “um desenho institucional razoável ou suficientemente razoável” (Lowndes & Roberts 2013), e dadas as realidades do enraizamento institucional das democracias avançadas (incluindo, é claro, o caso do Reino Unido), a incompletude, assim como a flexibilidade, são noções que podem não só facilitar o aprimoramento de inovação e aprendizagem institucionais, mas também promover mudanças institucionais, quando apropriado, incrementando a qualidade da democracia.
4Considerando alguns países latino-americanos, no entanto, poderíamos nos aproximar das questões apresentadas no início deste artigo afirmando que, nestes casos, a flexibilidade institucional e / ou a incompletude podem tanto favorecer aspectos perniciosos da vida política - como a cidadania de baixa intensidade (O'Donnell 2005) - quanto incrementar efeitos nocivos da forma pela qual se faz política – como, por exemplo, o clientelismo (DaMatta 1995; Nunes 1984). Afinal, o déficit democrático, em alguns desses casos, pode levar a uma situação em que as regras simplesmente não “pegam” para todos - mas apenas para um público pequeno. Em todo caso, em contextos em que os componentes liberais e republicanos de uma poliarquia (Dahl 1971) parecem estar ausentes, a “autonomia inserida” do Estado - significando que sua relação com a sociedade é mediada por uma burocracia comprometida, meritocrática e eficiente (Evans, 1995) - abre espaço para o “insulamento institucional” (Nunes, 1984); com isso, a qualidade democrática das instituições políticas esvanece.
5Pelo que foi dito até aqui, este artigo visa desafiar a suposição de que existe uma correlação forte (e positiva) entre a flexibilidade / incompletude institucional e a emergência de novos canais de participação política, bem como o engajamento da sociedade civil nos processos de políticas públicas (formulação, implementação e avaliação de políticas públicas). Além disso, argumenta-se também que uma maior atenção deve ser dada à relação entre desenhos institucionais e qualidade da democracia. Isso porque a qualidade democrática depende não só das continuidades (ou descontinuidades) das políticas, em termos do alcance da legalidade do Estado em várias regiões de um país (O'Donnell 2004), mas principalmente da medida em que a vida política e o desempenho institucional das políticas públicas coincidem (ou não) com as aspirações dos cidadãos (Vargas Cullell 2004).
6Assim, como resultado da agenda de pesquisa compartilhada pelo Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo com o Institute for Local Government Studies da Universidade de Birmingham, de 2014 a 2016, nossa investigação partiu da proposição de que, considerando a perspectiva “norte / sul”, a ideia de que arranjos institucionais específicos operaram em diversos ambientes locais deve ser questionada, pois, implicando visões de mundo diferentes, esses arranjos permanecem geograficamente situados. Tudo isso nos leva de volta à necessidade de olhar para a relação entre a abordagem referente ao desenho institucional (em termos de flexibilidade / incompletude / rigidez) e àquela da qualidade da democracia.
7O foco inicial de nossa investigação se debruçou sobre a questão: instituições flexíveis fortalecem a democracia? Porém, esta questão foi rapidamente questionada por dois documentos iniciais provocativos. Um deles, intitulado “Conceptualising Incomplete Institutional Design”, foi elaborado por Vivien Lowndes (2014) do Institute for Local Governement Studies – INLOGOV; o outro, “Conceptualising Quality of Democracy”, foi produzido por Marta M. Assumpção-Rodrigues (2015) do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas - NUPPs / USP. Este último trabalho seguiu Guillermo O’Donnell, especialmente com respeito a sua definição de “instituições” como
“padrões regularizados de interação que são conhecidos, praticados e aceitos regularmente (embora não necessariamente aprovados normativamente) por agentes sociais dados, que, em virtude dessas características, esperam continuar interagindo sob as regras e normas incorporadas (formal ou informalmente) nesses padrões. Às vezes, mas não necessariamente, as instituições se tornam organizações formais; materializam-se em edifícios, carimbos, rituais e pessoas que ocupam funções que as autorizam a ‘falar pela’ organização” (1991: 27).
8Como consequência, os debates sobre essas reflexões iniciais foram rapidamente seguidos por uma preocupação teórica derivada (Skelcher e Romão Netto 2016), que reformulou nossas questões, uma vez que nossa pesquisa estava interessada em explorar a incompletude intencional:
9Quais são as implicações democráticas de novas instituições flexíveis de governança? Quais são as consequências democráticas da flexibilidade / incompletude / rigidez institucional? Como os governos e os cidadãos podem desenhar instituições inovadoras que melhorem a qualidade da democracia na formulação de políticas públicas? Ou será que mais poder deveria ser dado às elites políticas ou atores estatais (como servidores públicos, profissionais do Estado etc.)?
10O estudo comparativo dos regimes democráticos experimentou várias reviravoltas interessantes nas últimas décadas. Das idas e vindas dos regimes políticos democráticos, cuja textura elástica parece estar sempre aberta a novos desenvolvimentos, aprendemos muito. Assim, pode ser útil começar esta seção com a ideia de que a democracia é um fenômeno político incompleto por natureza.
11Para ilustrar este ponto, vale a pena enfatizar que, nas décadas de 1970 e 1980, por exemplo, os desenvolvimentos políticos no sul da Europa (O'Donnell et.al. 1986), na América Latina (O'Donnell e Schmitter, 1986) e nos países da Europa Central e Oriental (O'Donnell et.al. 1986) suscitaram a preocupação de vários estudiosos com relação à mudança de regime, em geral, e com as transições para a democracia, em particular.
12No entanto, na medida em que a terceira onda de democratização (Huntington, 1991) foi se espalhando para outras partes do mundo, os estudiosos mudaram seu foco para a consolidação democrática (Mainwaring e Hagopian, 2005; Mainwaring, 199; Diamond e Plattner, 1997) ou, como afirmou Plattner (2005), o foco passou “das formas pelas quais os regimes democráticos se constituíram para as formas em que são processados de maneira estável e segura”.
13Hoje, porém, num mundo em que líderes autoritários estão governando cada vez mais, uma dupla preocupação parece prevalecer em relação ao estudo dos regimes democráticos. Por um lado, três das maiores democracias são comandadas por líderes de extrema direita (Brasil, Índia e Estados Unidos), enquanto dois dos maiores países não democráticos tomaram, de forma decisiva, o rumo ao autoritarismo (China e Rússia). Por outro lado, o surgimento de semidemocracias – que Skelcher (2012) nomeou “regimes híbridos” – provocou um novo interesse no estudo de legados autoritários (Levitsky e Way, 2010) no contexto das novas democracias, do autoritarismo competitivo e até mesmo das novas ditaduras (como ilustram os casos da Hungria, Polônia e Turquia). De fato, o estudo das dinâmicas da democracia nunca perdeu seu apelo; pelo contrário, é uma preocupação cada vez mais central no debate da ciência política contemporânea.
14Já, com o fim da Guerra Fria e a expansão da democracia liberal pelo mundo, acadêmicos e políticos profissionais começaram a refletir não mais sobre a “transição” para a democracia ou a “consolidação” do regime democrático, mas sim sobre a “qualidade da democracia” – um termo que parece ter se tornado quase destoante, especialmente para os cientistas políticos de contextos mais tradicionais. Sobre esse assunto, Adam Przeworski (2010), por exemplo, escreveu: “todos nós que acompanhamos a liberalização, a transição e a consolidação descobrimos que ainda há algo a ser aprimorado: a democracia”.
15Neste sentido, além de tratar das características principais dos regimes democráticos contemporâneos em todo o mundo, a qualidade da democracia tem sido associada também a uma vertente particularmente útil para lançar alguma luz sobre os dilemas que as novas democracias têm enfrentado com respeito à natureza do regime democrático (Diamond e Morlino 2005; Vargas Cullell 2004), da governança (Bovaird e Loffler 2015) e do processo de formulação de políticas, incluindo o desenho institucional (Hallerberg et al 2009; Stein e Tommasi 2005; O'Donnell 2004).
16Ademais, se antigas formas de instabilidade que levaram ao colapso de regimes autoritários e às transições (Linz e Stepan, 1996; Przeworski, 1986) deixaram de ser uma preocupação central para o mundo acadêmico - particularmente na América Latina -, novos tipos de instabilidade sob a forma de presidencialismo de coalizão (Abranches 2018) ou coalizões políticas fracassadas (Llanos e Marsteintredet 2010; Pérez-Liñán 2007), crises constitucionais episódicas (Boniface 2002; Brinks 2010), fragmentação e disfuncionalidade do sistema partidário (Mainwaring e Torcal 2006; Mainwaring 1999) e o crescente protesto político seguido muitas vezes de intolerância (Mainwaring e Pérez-Liñán 2013) abundam.
- 2 Por “trajetória histórica” nos referimos à teoria da ciência política que trata da forma pela qual (...)
17A despeito do fato de que essas novas formas de instabilidade - que Lowndes (2014) chamou de “pontuação dentro da trajetória histórica” (path dependence)2 - não representam um risco imediato de colapso do regime democrático, elas podem certamente deixar cicatrizes profundas nas relações políticas entre os vencedores e os perdedores em eleições, entre cidadãos e autoridades, entre governo e oposição, apresentando ameaças claras à legitimidade do regime. Ao mesmo tempo, e de acordo com uma visão mais otimista, vários estudiosos afirmaram que a ineficiência de democracias novas e antigas em responder a novas e antigas demandas - como a crise de representação pode expressar - está relacionada ao aumento do experimentalismo com novas formas de participação política e de deliberação (Pogrebinschi, 2014; Avritzer e Santos 2002; Avritzer 2000) – que Lowndes (2014) se refere como “um compromisso que 'funciona' pelo menos por um tempo”. Essa nova realidade produz ou reforça não apenas um forte contraste em níveis cognitivos sobre a compreensão do que a democracia é, como também é fundamental para o apoio e legitimação do regime. Todas essas dimensões são componentes essenciais das democracias existentes.
18Desta forma, compreender se e quando essas novas alternativas constituem uma forma de capturar “novas receitas” para a governança democrática (Avritzer 2017; Diamond e Morlino, 2005) é também importante. No final das contas, legados afetam o grau de respeito pelo império da lei, os níveis de confiança nas instituições e da incompletude institucional, assim como as formas de participação política.
19Do ponto de vista das democracias mais tradicionais, esses dilemas foram também inflacionados pela emergência de novos modos flexíveis e de canais de participação direta dos cidadãos, de protestos políticos e de tolerância política. O debate sobre os novos e complexos arranjos de governança que vieram à tona, e seus desafios para a democracia representativa clássica e para suas principais instituições (Feldman e Khademian 2007; Vangen e Huxham 2003), envolveram políticos, organizações da sociedade civil, a alta burocracia do estado, bem como pesquisadores acadêmicos. Além disso, no centro deste debate está a questão de como governo e cidadãos podem desenhar instituições inovadoras que aprimorem a democracia na formulação de políticas e também aumentem as estruturas de transparência, responsividade e responsabilização (Filgueiras 2018; Olsen 2013; Skelcher et al. 2005). Se tudo isso ocorrer em condições que incluam a tolerância política para enfrentar as diferenças políticas é também um outro aspecto crucial desse novo quadro democrático.
20A comparação entre Brasil e Reino Unido se justifica pelo fato de os dois países exibirem algumas semelhanças no desenvolvimento de novas formas de governança pública flexível, apesar das diferentes condições democráticas em que estão localizadas e sobre as quais elas serão impactadas. Por exemplo, em ambos os casos, novas instituições de governança foram desenvolvidas para preencher a lacuna entre o Estado e a sociedade civil, abrindo novos espaços para fins de articulação, deliberação e resolução de reivindicações dos cidadãos sobre os recursos do estado, a forma e a operacionalização das políticas públicas.
21Com o processo de democratização, o Brasil passou a ser considerado como um caso em que herança autoritária foi seguida por esforços tanto sociais quanto administrativos para remodelar as instituições democráticas e a cultura política (Romão Netto 2015; 2010; Bresser Pereira e Spink 2006). A Constituição de 1988, sob a influência das ações de ONGs e movimentos sociais que vinham lutando contra o autoritarismo, permitiu que novos tipos de organizações populares se incorporassem à estrutura do Estado. Algumas dessas organizações se relacionavam à tomada de decisões sobre políticas públicas; outras, ao processo de monitoramento de políticas. Além disso, outros instrumentos de participação social direta - como plebiscitos, referendos e iniciativas legislativas populares, bem como Conselhos Gestores de Políticas Públicas (Saúde e Educação etc) (Doimo e Assumpção-Rodrigues 2003) e Orçamento Participativo (Gurza Lavalle 2011; Avritzer 2009; Coelho e Romão Netto 2004) – foram também criados.
22Neste sentido, a principal inovação que acompanhou o processo de democratização brasileiro da década de 1980 foi a expansão, por parte do Estado, dos mecanismos institucionalizados de participação popular. O objetivo principal dessas iniciativas foi o de enfrentar a falta de governabilidade (Skelcher e Romão Netto 2016). Vale lembrar também que, a partir da Constituição de 1988, o Brasil se torna uma república federativa.
23Contudo, as relações entre a sociedade civil brasileira e as estruturas políticas e administrativas do governo durante o período de democratização têm sido também objeto de uma série de estudos que criaram os termos "ingovernabilidade" e "desgovernaça" (Aguilar Villanueva 2009; Melo 1995) para abordar a incapacidade do governo em atender as demandas sociais por participação - o que acabou resultando numa insatisfação generalizada por parte da população (Assumpção-Rodrigues, 2018). A resposta a esse problema envolveu tanto a mobilização dos recursos institucionais do Estado (em suas dimensões política e técnica), quanto a capacidade dos governos para formar coalizões políticas que reforçassem a democracia. É desnecessário mencionar, no entanto, que diversas tentativas para estabelecer mecanismos de comunicação com a sociedade, incluindo o projeto de Reforma do Estado da década de 1990, proposto pelo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado do governo Fernando Henrique Cardoso (Skelcher e Romão Netto 2016), fracassaram.
24Mais recentemente, no entanto, essas coalizões que envolvem, por um lado, a interpenetração de diferentes esferas de atividade - governo, empresas, sociedade civil, organizações sem fins lucrativos -, bem como, por outro lado, interconexões estruturadas por meio de organizações paraestatais - como parcerias público-privadas, gestão colaborativa e redes de políticas – demonstram ser perniciosas, na medida em que facilitam a disseminação da corrupção, clientelismo e outras informalidades que O'Donnell denominou “práticas particularistas” (2010).
“Essas são práticas particularistas que se manifestam não só na forma de corrupção pura, mas também como nepotismo, clientelismo, através da aplicação discriminatória de regras legais, ou pelo uso abusivo das regalias ofertadas pela posição, entre outras ...
“Porém, mesmo estando o estado, neste sentido, ‘presente’, o estado como sistema legal evaporou, devido a uma perversa privatização, através da qual o aspecto público do estado, enquanto lei, é ‘vendido’ por meio de transações particularistas” (Tradução livre).
25No Reino Unido, ao contrário, onde há uma longa tradição de democracia representativa e governo parlamentar, as crises de legitimação estimularam uma forte narrativa política que tem promovido um maior envolvimento da sociedade civil (cidadãos e ONGs) na formulação e entrega de políticas públicas (Durose et al., 2009). Nesse caso, tais envolvimentos são frequentemente localizados em “parcerias”, que foram ativamente desenvolvidas pelo governo de Blair, de 1997 a 2008, e incentivadas por um regime de financiamento que exigia a criação de parcerias entre os interessados. Tais parcerias visavam obter acesso a recursos, além de um ethos gerencial que valoriza o envolvimento de cidadãos e outros atores nos processos de políticas públicas. Posteriormente, ocorreu também o desenvolvimento de outro propósito de órgãos públicos que passaram a operar com alguma autonomia a partir políticos eleitos.
26Em geral, no caso do Reino Unido, houve um crescimento substancial de instituições quase-governamentais nos níveis locais, municipais e regionais nos diversos campos das políticas públicas. Esses órgãos moldam políticas, decidem por vezes alocações orçamentárias e supervisionam a prestação de serviços públicos (Sullivan e Skelcher, 2002). Além disso, tem havido também um forte interesse político no desenvolvimento do engajamento público na governança de bairros (nos níveis urbano e subnacional), envolvendo tanto o desenho das relações entre os profissionais do serviço público e os ativistas da sociedade civil, quanto a supervisão da entrega de políticas públicas.
27Em resumo, todos esses desenvolvimentos no Brasil e no Reino Unido fazem parte de um processo global de reforma do serviço público que resultou em uma grande variedade de inovações institucionais para moldar, executar e entregar políticas públicas. Tais instituições, porque operam a partir de políticos eleitos e muitas vezes são fortemente influenciadas por atores não-estatais (cidadãos, profissões, empresas, ONGs), têm normalmente um maior grau de flexibilidade ou incompletude em sua concepção do que no caso dos ministérios e departamentos de governo convencionais - especialmente em países que têm uma constituição formal e sistema de direito público, como o Brasil. Consequentemente, questões relativas à qualidade democrática, em termos de como a democracia pode ser reforçada e o poder político distribuído ou acessado, não podem ser ignoradas. Essas instituições debatem e decidem a distribuição do bem-estar público aos cidadãos ou usuários dentro de sua jurisdição. Este é um processo inerentemente político, e a eficácia com a qual se aplicam as salvaguardas constitucionais normais torna-se um assunto importante para a investigação acadêmica e o debate político.
28Respostas assertivas a muitas questões importantes colocadas pela nossa investigação necessitam de pesquisas comparativas futuras. Neste ponto, no entanto, vale notar que nosso movimento intelectual foi apenas envolver a abordagem referente à incompletude / flexibilidade / ou rigidez institucionais com a da qualidade da democracia, que foram entendidas por pesquisadores de diferentes partes do mundo como conceitos entrelaçados.
29Nestes termos, a própria noção de qualidade da democracia que surgiu dessas discussões referiu-se ao grau em que as práticas coincidem (ou estão muito longe) das expectativas dos cidadãos em relação não apenas ao que é uma democracia ou como deva funcionar, mas principalmente a como as políticas públicas são concebidas e implementadas (pelos governos e seus parceiros) e avaliadas pelos cidadãos.
30No que diz respeito à cidadania, a relação entre desenho institucional incompleto / flexível e qualidade da democracia foi considerada a partir de uma dupla perspectiva. Por um lado, não apenas os direitos dos cidadãos reconhecidos em âmbito democrático protegem os cidadãos, mas esses direitos também os capacitam, no sentido de oferecem a eles oportunidades para lutar por novos direitos que podem estar lhes faltando (Iazzetta 2004). Por outro lado, e especialmente em contextos onde há déficit democrático, o desenho institucional como coisa inacabada (i.é, flexível / incompleta), ao invés de incrementar a eficácia das instituições e aumentar a participação social, leva a uma situação em que a rigidez torna-se a regra do jogo, favorecendo uma situação na qual os direitos são garantidos apenas para poucos. A partir desta perspectiva, um consenso sobre a abordagem da qualidade da democracia foi, então, construído com a interface regime democrático - desempenho institucional - e cidadania.
- 3 Por “práticas políticas” nos referimos às políticas públicas que os governos implementam para forne (...)
31Tal interface implica, por sua vez, que o estudo das práticas políticas,3 estabelecidas na base do cotidiano, é crucial para entender não apenas os aspectos flexíveis - ou incompletos ou rígidos - das instituições públicas, mas, principalmente, para compreender de que maneira os cidadãos exercem seus direitos e obrigações civis e políticos com seus líderes, servidores públicos, tomadores de decisão e outros agentes, em relação à administração de assuntos públicos (Vargas Cullell, 2004).
32Nestes termos, adotou-se, então, a ideia de que a qualidade da democracia não é concebida como um conceito geral de todo o sistema democrático, mas sim como o efeito acumulado da performance institucional e das interações dos cidadãos em múltiplas frentes (Pérez-Liñan 1998).
33Diversos estudiosos têm argumentado que as tentativas de desenho institucional por parte dos formuladores de políticas estão no coração da política democrática.
34Assim, de acordo com as teorias de desenho institucional, noções como incompletude e flexibilidade referem-se às ferramentas conceituais que nos ajudam a aprofundar nosso conhecimento sobre aspectos cruciais dos processos políticos e de políticas públicas em contextos institucionais distintos.
35Considerando que o conteúdo destes conceitos depende do contexto, há sempre a possibilidade de se delinear uma distinção entre diferentes tipos de incompletude / flexibilidade.
36Intenção. A motivação para criar uma instituição flexível / incompleta - A intenção de criar uma instituição flexível / incompleta em uma democracia envolve a análise da visão normativa sobre os propósitos da instituição (alegações sobre políticas, manifestos políticos, agitação de cidadãos ou funcionários etc). Além disso, uma vez que a motivação para criar uma instituição desse tipo (incompleta / flexível) pode vir de múltiplas fontes - partidos políticos, governo nacional, associações de cidadãos e / ou diversos setores trabalhando em coalizão -, mobilizar forças políticas para a criação de instituições flexíveis não é uma tarefa fácil. De fato, a mobilização pode fazer parte de uma estratégia política que pode ser a realização de objetivos substantivos relacionados tanto à entrega de políticas públicas quanto à alteração e / ou a distribuição do poder político na sociedade. Em qualquer caso, a flexibilidade / incompletude pode constituir o espaço para se alcançar objetivos específicos que as instituições existentes percebem como sendo incapazes de acomodar por uma variedade de razões - por exemplo, falta de capacidade, falta de compromisso político, controle das elites que não apoiam movimentos populares etc.
- 4 Como O’Donnell nos lembra, os cidadãos, por exemplo, devem se acostumar com o fato de que as eleiçõ (...)
37Desenho. A análise das regras formais que regem a instituição - Em relação ao desenho, a flexibilidade institucional está positivamente associada à extensão da incompletude (isto é, é uma função inversa do nível de completude nas regras que governam a instituição). Como a incompletude é uma ação, ela é percebida como uma ação de desenho em andamento. A esse respeito, vale a pena ressaltar não apenas que a própria definição de instituição (como a apresentada neste artigo) pressupõe um permanente processo em andamento - que continua, e se espera que continue amplamente, em um futuro indefinido4. Além disso, como nos ensina a teoria do contrato, uma vez que ninguém pode precisar todas as possíveis eventualidades, o desenho em andamento não é apenas compreensível, mas também necessário.
38Práticas. Comportamentos e convenções informais que emergem ao longo do tempo na maneira pela qual os atores agem dentro da instituição – De acordo com a teoria institucional, a flexibilidade surge das formas pelas quais os atores respondem criativamente a situações para as quais as regras formais não estão adequadas (Lowndes e Roberts 2013) e, ao fazê-lo, promovem práticas que envolvem comportamentos e convenções informais que emergem ao longo do tempo na forma como atuam na instituição.
- 5 Por componentes liberais de uma poliarquia (Dahl 1971: 8) entendemos os direitos civis e políticos (...)
39A abordagem da qualidade da democracia, por sua vez, ajuda-nos a esclarecer a eficácia de políticas específicas em contextos particulares, no sentido de fortalecer (ou não) a qualidade do regime político. A suposição aqui é que todo processo de democratização envolve um elemento crucial de incompletude institucional - que envolve, como vimos, “expectativas de resistência indefinida” (O'Donnell, 2001). Essa afirmação, no entanto, não significa que a incompletude institucional prevaleça apenas em contextos de democratização. Ao invés disso, pode-se afirmar que “completude institucional” é, em ambos os casos (democracias consolidadas e não consolidadas), apenas um ideal. Em outras palavras, se a ideia de desenho institucional incompleto é um ponto de partida “adequado”, a completude dificilmente é um ponto a ser alcançado em qualquer lugar. A questão, aqui, está mais diretamente relacionada à tensão entre o ideal (como completude) e a experiência (como incompletude) - ou, em termos dahlianos, entre ideais e valores democráticos e a realidade dos componentes liberais das poliarquias5 (Almeida 2004) - do que à própria definição de completude / incompletude como “um ato de poder”.
40Do mesmo modo, a definição de qualidade da democracia tem um componente normativo, que se relaciona, em primeiro lugar, com a ideia de aspirações democráticas. Para os cidadãos exigirem mais qualidade de uma democracia, suas ações dependem de um conjunto de capacidades (cognitivas, organizacionais, morais) que são moldadas por contextos sociais específicos.
41Desta perspectiva, a incompletude, em termos de flexibilidade institucional, pode ser uma “coisa boa”, uma vez que pode ajudar a aumentar a capacidade dos cidadãos de interagir na vida política cotidiana, a fim de adequar a formulação de políticas e a qualidade dos serviços públicos às necessidades sociais.
42Além disso, em termos políticos, as falhas na lei existente, na aplicação da lei, nas relações entre agências estatais e cidadãos comuns, no acesso ao judiciário são todos problemas importantes que indicam uma “grave incompletude do Estado”, especialmente na sua dimensão legal (Mendez, O'Donnell e Pinheiro, 1999).
43Esse argumento pode bem caracterizar ideias de incompletude e / ou desenho institucional incompleto em países onde a democracia e suas instituições estão sendo constantemente reinventadas (como parece ser o caso do Brasil, pelo menos, nos últimos 30 anos).
44Em outras palavras, em contextos de transição democrática, o desenho institucional incompleto pode trazer problemas políticos relevantes que afetam o modo como as instituições são (gradualmente) transformadas - como o fortalecimento da informalidade, que pode se tornar, portanto, a “regra” institucional (DaMatta 1986 1987; O'Donnell, 2007).
45Este artigo se baseou em uma pesquisa desenvolvida em parceria entre o Institute for Local Government Studies (INLOGOV - Universidade de Birmingham) e o Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas (NUPPs - Universidade de São Paulo). Ele descreveu a construção de uma estrutura conceitual aplicada em uma perspectiva comparativa, bem como as questões que emergiram de nossas discussões a partir de perspectivas historicamente orientadas - como rigidez e incompletude institucional. O artigo demonstrou que, na ciência política em geral e no campo das políticas públicas em particular, categorias teóricas assumem funções distintas em diferentes contextos.
46A análise apresentada neste artigo em relação às instituições incompletas / flexíveis teve um duplo propósito. Por um lado, demonstrou-se que em contextos onde a democracia é uma tradição, e os direitos civis e sociais dos cidadãos estão amplamente difundidos, a incompletude / flexibilidade tem uma abordagem diferente daquela em que o regime democrático foi rompido e as instituições políticas estão constantemente sendo redesenhadas e / ou “completadas”. Isso significa dizer que, enquanto no Reino Unido a flexibilidade / incompletude institucional parece ter reforçado a participação social e os procedimentos democráticos, além de facilitar a homogeneização legal e política para a execução de políticas, em países onde prevaleceu a coexistência de padrões mais ou menos constitucionais com a subsistência de tipos patrimoniais de governo, a flexibilidade / incompletude pode abrir espaço para a diminuição da credibilidade nas instituições políticas como garantidoras do bem comum de sua população. Nesse contexto, em vez de aprimorar a participação social e a eficácia das políticas, tais noções podem impor rigidez institucional e insulamento do processo de tomada de decisões – como diversos escândalos de corrupção têm demonstrado ultimamente.
47Por outro lado, este artigo também demonstrou que modos e canais mais flexíveis de participação social, de tolerância política e de protesto emergiram como uma tentativa de responder às novas (e antigas) demandas expressas pela crise de representação. No Brasil, essa emergência ocorreu após o processo de democratização dos anos 1980.
48Esses arranjos de governança, no entanto - apesar de constituírem componentes cruciais para os dois regimes democráticos -, acarretam impactos diferentes em democracias antigas e novas.
49No Reino Unido, por exemplo, formas flexíveis e incompletas de desenho organizacional alteraram significativamente as relações de políticas públicas, e esses novos e complexos arranjos engajaram cidadãos, políticos, organizações da sociedade civil, representantes de empresas, alta burocracia de estado e pesquisadores acadêmicos no debate, a fim de moldar e supervisionar a entrega de políticas locais operadas à distância das autoridades eleitas (Skelcher 2012).
50No Brasil, ao contrário, assim como em outros países latino-americanos, essa nova realidade produziu e / ou reforçou um contraste nos níveis cognitivos sobre a compreensão do que seja realmente a democracia. Neste caso, a flexibilidade (ou incompletude) institucional tende a privar a vida social de um senso de orientação coletiva, potencializando um fenômeno que O'Donnell denominou “cidadania de baixa intensidade” (2005). Além disso, políticas universalistas e equalizadoras, que foram desenhadas para fortalecer a participação social, são deixadas de lado numa sociedade desigual e fragmentada que está ligada frouxamente a um estado que desempenha mal seu papel de oferecer alguma direção e orientação ao coletivo. Em uma palavra, em contextos onde a democracia não é tradição, na medida em que o estado se desintegra na banalidade das incapacidades para produzir políticas efetivas, a política tende a compartilhar dessa banalidade.
51Para concluir, podemos dizer que o desafio que ainda temos de enfrentar, como analistas nos campos da ciência política e gestão pública, diz respeito à identificação das condições sob as quais o diálogo entre o estado, seus governos e a sociedade pode ser mantido, apesar de nossas diferenças culturais. Desta forma, como equipes de pesquisa, não buscamos oferecer “novas receitas” para as comunidades de administração pública, mas, sim, possibilidades que sejam úteis para aprimorar credibilidade de nossas instituições políticas, a eficácia de nossas políticas sociais e a qualidade de nossas democracias.