- 1 Texto redigidos no âmbito do Observatório Interdisciplinar de Políticas Públicas (OIPP), Escola de (...)
1Temos a intenção de fazer um panorama geral sobre as ações estatais do Estado Brasileiro, nas suas três esferas federativas, em relação aos fluxos migratórios internacionais direcionados ao território brasileiro nos últimos anos1.
2Num primeiro momento usamos a expressão “ações estatais”, e não políticas públicas, pois é difícil entender tais atividades do Estado brasileiro como um conjunto ordenado e coeso de condutas realizadas por entes estatais brasileiros com algum grau de coordenação. Afinal quando pensamos em políticas públicas, no campo da teoria, tais ações do Estado devem estar entrelaçadas em pelo menos três etapas: formulação, implementação e avaliação das atividades (Kingdon and Thurber, 1984). Ao nos aproximarmos da realidade dos fluxos migratórios brasileiros constatamos no mínimo uma baixa coordenação entre estas ações, que geram situações das quais dificilmente poderíamos denominar como Políticas Públicas propriamente dito.
- 2 Citamos ao menos três movimentos significativos ocorridos nos últimos anos: a Coordenação de Políti (...)
3Por outro lado, também é inegável que nos últimos anos alguns passos foram dados2, ainda com um baixo de nível de coordenação entre os entes de nosso pacto federativo, mas não podemos deixar de apontar avanços institucionais e normativos, os quais pretendemos analisar no decorrer deste texto. Mas antes de qualquer avanço, desde já apontamos que se existem mudanças, estas se apresentam somente como reação a situações da realidade dos atuais fluxos migratórios brasileiros. Portanto ressaltamos mais uma vez que os movimentos dos entes estatais brasileiros, ao nosso ver, não se configuram como Políticas Públicas, sendo muito difícil enxergarmos a existência de uma Política Migratória brasileira propriamente dita, uma vez que quando tais ações acontecem são mais uma resposta a episódios da realidade migratória do que intervenções estruturadas e coordenadas. O que nos leva a um cenário no qual é muito difícil compreendermos os objetivos do Estado brasileiro, ainda mais se pensarmos em ações e/ou programas governamentais de longo prazo, pois o baixo grau de organicidade das ações voltadas para a população estrangeira fixada no território brasileiro tornam tais objetivos muito difusos e pouco concretos para as próprias populações beneficiadas, bem como para todos os outros agentes presentes na realidade migratória brasileira (Araújo, 2018).
4Entendemos que os melhores exemplos deste contexto são o recente fluxo de haitianos e o ainda mais atual fluxo de venezuelanos em estados da Região Norte do Brasil e os movimentos que usaram as fronteiras terrestres nunca antes utilizadas por fluxos migratórios significativos na história do Brasil.
- 3 Em 2018 ocorreram eleições para Presidente da República, parte do Senado Federal, a totalidade da C (...)
5Tais cenários migratórios, sem dúvida alguma, tornaram-se objeto de embates no debate público brasileiro, seja através da grade mídia ou dentro de muitos gabinetes de gestores públicos, trazendo, de forma inédita, o tema das migrações internacionais para o debate eleitoral brasileiro que se desenrolou durante 20183.
- 4 A presença da Venezuela no argumento desenvolvido por grupos políticos afinados ideologicamente à d (...)
6Para sermos mais precisos somos obrigados lembrar que a presença do tema no debate público brasileiro tornou-se mais corriqueiro desde ao menos a chegada do grupo haitiano ao Brasil, que teve o início de seu fluxo por volta de 2010. Por outro lado, não podemos deixar de mencionar que o debate em torno da chegada dos venezuelanos no Brasil assume outra dimensão, pois é fortemente contaminado pelo acirramento do debate político-ideológico instalado no Brasil desde ao menos as eleições gerais de 2014. Com a situação política e econômica da República Bolivariana da Venezuela ganhando relevância inédita, ao estarem presentes em argumentos de posições extremadas existentes nos pólos deste debate. Os quais ora apontam o regime venezuelano como modelo para a esquerda brasileira, ora como um perigo para a própria estabilidade política do Cone Sul, reservando aos seus fluxos migratórios papel central em todos estes argumentos4.
- 5 Os países que fazem fronteira com o Brasil são: Uruguai, Argentina, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezu (...)
7Destacamos, portanto, que a atual situação na fronteira brasileira com a Venezuela não é um caso específico e conjuntural, na realidade temos já faz alguns anos um novo elemento no contexto geral dos fluxos migratórios que tenham por destino o Brasil, principalmente se lembrarmos da extensa tradição que o país tem em receber imigrantes como parte importante de nossas dinâmicas demográficas. Afinal, as migrações internacionais historicamente sempre se constituíram como um dos elementos centrais paras tais dinâmicas, mas com nossas fronteiras terrestres, extensos limites territoriais que fazem divisas com 10 países5, sempre ocupando uma posição secundária (e/ou irrelevante em vários momentos e conjunturas históricas). Fato que não mais se sustenta nos dias atuais, uma vez que as fronteiras terrestres brasileiras tornaram-se um dos principais meios para a chegada de fluxos migratórios nas últimas décadas, mudança que começou a se consubstanciar a partir do momento que grupos latino-americanos passam a ser os principais responsáveis pela presença de estrangeiros em território nacional, com o início do deste movimento populacional localizando-se em algum momento do decorrer das décadas de 60 e 70 do século XX (Silva, 1997).
- 6 Em linhas gerais, apesar de no final de 2018, com a eleição do novo governo em outubro, estarem oco (...)
8Assim durante o ano de 2018 assistimos os fatores acima relacionados (crise venezuelana, acirramento ideológico no debate brasileiro, fronteiras terrestres como trajeto prioritário para fluxos migratórios) amalgamarem-se, criando, do ponto de vista do Estado brasileiro, um cenário bastante inquietante, fato inequívoco tanto para estudiosos da temática migratória, para ativistas pelos direitos dos migrantes, bem como pelos gestores públicos atuantes em órgãos do Estado brasileiro responsáveis pela gestão de fluxos migratórios6.
- 7 LEI Nº 13.445, DE 24 DE MAIO DE 2017, regulamentada pelo DECRETO Nº 9.199, DE 20 DE NOVEMBRO DE 201 (...)
9As duas seções que seguem esta breve apresentação terão dois objetivos complementares para iluminarmos um pouco o atual cenário migratório brasileiro. Na sessão I demonstraremos as principais mudanças e inovações institucionais e normativas que tal cenário vem experimentando nos últimos anos. Afinal em 2017 para surpresa de muitos ocorreu a aprovação de uma nova legislação migratória no Brasil7. Tal texto legal veio substituir, depois de longos anos de debate entre especialistas, gestores e ativistas, o denominado Estatuto do Estrangeiro (LEI Nº 6.815, DE 19 DE AGOSTO DE 1980). Nossa intenção não será discutir a nova legislação e seus efeitos na realidade dos migrantes e refugiados que compõem os fluxos atuais, afinal o texto legal vige há muito pouco tempo para que tenhamos condições de fazer um balanço apropriado de suas consequências para a cena migratória brasileira. O objetivo desta parte do texto será demonstrar que tal legislação torna-se marco legal para uma realidade bastante complexa, com muitos nós e impasses institucionais num ambiente de baixa coordenação entre os agentes que operam as ações estatais. Apontamos desde já que tal ambiente está composto por instituições que agem muitas vezes baseadas em avaliações pouco aprofundadas da realidade dos fluxos migratórios, gerando assim uma série de ações estatais que, ao nosso ver, são pouco consistentes e muitas vezes equivocadas.
10Lembrando mais uma vez que ao utilizarmos a expressão “ações estatais”, e não políticas públicas, deve-se ao fato de ser difícil entender as atividades do Estado brasileiro em relação aos fluxos migratórios como um conjunto ordenado e coeso de condutas realizadas por seus entes algum grau de coordenação. Afinal quando pensamos em políticas públicas, no campo da teoria, tais ações do Estado devem estar entrelaçadas em pelo menos três etapas: formulação, implementação e avaliação das atividades. E ao nos aproximarmos da realidade dos fluxos migratórios brasileiros constatamos no mínimo uma baixa coordenação entre estas ações, que geram situações das quais dificilmente poderíamos denominar como Políticas Públicas propriamente dito (Arretche, 2004; Souza, 2006; Kingdon and Thurber, 1984). Cenário que será discutido na seção II deste texto, momento no qual exporemos as ações de pesquisa junto a uma escola pública da cidade de São Paulo dentro do projeto “Brasil Migrante. Fluxos Populacionais, Políticas Públicas e Estruturas Estatais”, que se desenvolve nos últimos anos pelo Grupo de Pesquisa e Estudos “Fluxos Migratórios na Contemporaneidade”, que é parte integrantes do OIPP (Observatório Interdisciplinar de Políticas Públicas) na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP).
11Desde o início da década de 1980 o fenômeno migratório em território brasileiro Brasil tem ganhado maior visibilidade, a partir deste momento as migrações internacionais direcionadas ao Brasil passam a ser regulamentadas por legislação criada durante o regime militar, o Estatuto do migrante, em que a lógica predominante era a da segurança nacional, das fronteiras protegidas e da “ameaça” migrante. A mesma lei (Lei n. 6.815/1980) que estabeleceu essas normas, também criou o CNig (Conselho Nacional de Imigração) que desde então optou por uma agenda voltada à política de atender às demandas por força de trabalho estrangeira, a prática de mobilizar, selecionar e localizar, que desde sempre predominou nas políticas migratórias implementadas no país. (VAINER, 2000).
12A partir de meados da década de 1990, momento em que o Brasil já vivia sob a égide da Constituição Federal de 1988, a questão migratória volta a ter certa relevância na agenda política e social brasileira, muito mais pela emigração de brasileiros para o exterior do que pela migração em si. Ou seja, o panorama dos fluxos migratórios brasileiros havia mudado, muitos brasileiros no exterior e novos migrantes no Brasil, em especial os latino-americanos.
13No início dos anos 2010 (TABELA 1), com a chegada massiva de haitianos ao país, torna-se claro o quanto o aparato legal e normativo estava defasado em relação à realidade migratória nacional.
Tabela 1.Entradas e saídas nos pontos de fronteira do território brasileiro, segundo tipologias de classificação - Brasil, 2016 - jul/2018
Fonte: Relatório Anual 2018. Série Migrações. Observatório das Migrações Internacionais; Ministério do Trabalho/ Conselho Nacional de migração e Coordenação Geral de migração. Brasília, DF: OBMigra, 2018.
14Os debates acerca da questão migratória e os intensos fluxos populacionais (Tabela 2) no Brasil impulsionavam e pressionavam na direção de avanços necessários. São Paulo (Mapa 1), cidade que recebeu maior fluxo migratório, especialmente de haitianos, a partir dos anos 2010, mantinha intensos embates de posições e ideologias conflitivas entre a sociedade civil organizada e o poder público do município. Tendo por objetivo implementar uma política municipal para migrantes de forma transversal, intersetorial e participativa, a prefeitura de São Paulo, no âmbito da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC), criou a Coordenação de Políticas para Migrantes (CPMig).
15São Paulo abarca 41,3% das residências migrantes distribuídas em território nacional. Por serem áreas mais dinâmicas do ponto de vista econômico, o Sudeste e Sul acolhem parcela majoritária da migração, sendo importante ressaltar a importância dos migrantes haitianos, que se localizam nos estados do sul do país, que, depois de São Paulo, foram os espaços que mais absorveram essa força de trabalho (TABELA 2). Outro aspecto que se faz notar é a diminuição relativa da participação do Sudeste em favor das demais Regiões do país. (Relatório de Migrações OBMIGRA, 2018).
Tabela 2.Distribuição por lugar de residência no território nacional.
Fonte: Elaborada pelos autores
Tabela 3. Número total de migrantes, por ano de registro, segundo classificação, Brasil, 2000 a Jul/2018.
Fonte: Relatório Anual 2018. Série Migrações. Observatório das Migrações Internacionais; Ministério do Trabalho/ Conselho Nacional de migração e Coordenação Geral de migração. Brasília, DF: OBMigra, 2018.
Notas: (1) Os migrantes classificados como residentes, em função da nova lei migratória para efeito desta tabulação, foram considerados como permanentes; (2) São renovações de registro ou mudança de status, na maioria dos casos de temporário para permanente, não se tratando, portanto, de nova registro de migrante.
Mapa 1.Número de registros para migrantes de longo termo, segundo Unidade da Federação de residência, Brasil - 2010-2017
Fonte: Relatório Anual 2018. Série Migrações. Observatório das Migrações Internacionais; Ministério do Trabalho/ Conselho Nacional de migração e Coordenação Geral de migração. Brasília, DF: OBMigra, 2018.
16Pela ótica dos direitos humanos, e não mais da segurança pública, a CPMig/SMDHC, através de um comitê paritário com representantes de 13 secretarias e organizações da sociedade civil, elaborou o texto da primeira política municipal para a População migrante no Brasil, sancionada em 2016, pelo então prefeito Fernando Haddad, a Lei nº 16.478, de 8 de julho daquele ano fora aprovada por unanimidade pela Câmara Municipal de São Paulo antes de ser remetida ao executivo. Essa lei prima pelo respeito aos direitos humanos das pessoas migrantes residentes na cidade, coloca diretrizes para a atuação das secretarias municipais e cria o Conselho Municipal de migrantes, entre outras disposições.
17Essa movimentação da sociedade civil organizada ligada a questão migratória e de refúgio contribuiu para a sanção da Lei de Migração (LEI nº 13.445/2017) no âmbito federal. Um exemplo significativo é a Missão Paz, importante instituição filantrópica de apoio e acolhimento a migrantes e refugiados na cidade de São Paulo, pertencente aos missionários Scalabrinianos que atua na questão migratória desde os anos 30 do século XX, que promove um intenso trabalho de advocacy através da atuação em rede com organizações parceiras, incidindo nas esferas municipal, estadual, federal e internacional, levando contribuições e demandas observados no atendimento direto aos migrantes e refugiados e monitorando a aplicação de políticas públicas voltadas para esta população.
18No âmbito federal a Rede Solidária para Migrantes e Refugiados, que reúne aproximadamente 45 instituições do Brasil ligadas à defesa, atendimento e assistência à população migrante, articulada pelo IMDH (Instituto de Migrações e Direitos Humanos)8, com o apoio do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados)9, também é um bom exemplo de rede social engajada e organizada para influenciar a formulação, aprovação e execução de políticas públicas.
19O novo arcabouço legal representa um grande avanço no que tange a questão migratória no Brasil, em primeiro lugar porque se distancia da ótica da segurança nacional que marcava a antiga lei sancionada ainda no período militar brasileira. Segundo porque traz uma perspectiva de direitos para aqueles que emigram e para os migrantes que aqui chegam.
20Entretanto alguns vetos causaram prejuízos e se colocaram na contramão dos avanços percebidos. Por exemplo, a Casa Civil vetou o Inciso I § 1º do art. 1 º que trata da definição de migrante, utilizando o argumento de que o conceito no texto original está demasiado amplo por incluir o migrante, emigrante, residente fronteiriço e apátrida no mesmo termo. Esse veto denota a falta de conhecimento a respeito das várias dimensões dos deslocamentos populacionais. Outros vetos que nos chamam atenção são os vetos que partiram do Ministério da Justiça e Segurança Pública e da Advocacia Geral da União, instituições que defenderam o veto ao artigo referente à livre circulação aos povos originários, alegando que trata-se de uma afronta a soberania nacional. Ignora-se o histórico etnográfico do país, que conta com populações indígenas nas regiões fronteiriças e remota ao tratamento das migrações como questão de segurança pública. Apesar dos vetos prejudiciais, a nova lei é considerada um avanço para a política migratória brasileira
21Nessa perspectiva de avanços voltamos nossos olhares para a cidade de São Paulo, como locus de observação do fenômeno migratório e suas contradições. Destaca-se, nesse sentido, que a cidade abriga grande parte dos movimentos sociais organizados em prol da questão migratória. A seguir vamos discorrer sobre a experiência da escola EMEF Duque de Caxias, localizada na baixada do Glicério, uma das regiões da capital que, desde o século XX, recebe migrantes e que abriga a sede da Missão Paz de São Paulo, referência no acolhimento de migrantes.
22As territorialidades migrantes na cidade de São Paulo são historicamente datadas, com seus bairros e localidades ao longo da sua história sendo apropriados por diferentes populações migrantes, como é o caso da região central da cidade onde encontram-se os bairros do Brás, Bom Retiro, Bela Vista, Pari e entre outros. Tal processo de ocupação seguiu as transformações econômicas e urbanas da cidade. Nota-se, entretanto, que a falta de políticas públicas habitacionais e de fixação de migrantes nas cidades contribuiu para a construção desordenada destas territorialidades, as quais seguem suas particularidades, onde há a forte sobreposição de hierarquias étnico-sociais, onde uma etnia dá lugar à outra (BAENINGER, MAGALHÃES E BÓGUS, 2018).
- 10 O bairro da Baixada do Glicério, também conhecido como somente Glicério, é assim definido pela Wiki (...)
23No escopo desta nossa reflexão vamos destacar o caso da Baixada do Glicério10, região limite entre os distritos da Liberdade e da Sé, e de responsabilidade administrativa da Prefeitura Regional da Sé.
24Localidade construída historicamente como território migrante, tal ocupação étnico territorial desta porção da cidade cria um contorno específico à localidade, na qual se observa a construção de uma territorialidade migrante, com práticas transnacionais de negócios comerciais e culturais. Dessa forma, os fluxos mais recentes, sobremaneira de haitianos, distribuem-se e ocupam espaços urbanos seguindo parâmetros da lógica da inclusão desses no espaço econômico, territorial e social da cidade (BAENINGER, MAGALHÃES E BÓGUS, 2018).
25Desta maneira, os aparatos de prestação de serviços públicos do Glicério lidam com uma alta procura pelas populações de migrantes. Neste contexto está inserida a Escola Municipal de Ensino Fundamental- EMEF Duque de Caxias, onde há predominância de populações migrantes de diversas etnias e faixas etárias, já que além do ensino fundamental a EMEF oferece o Ensino de Jovens e Adultos (EJA), no período noturno. Destarte, esse aparato da rede municipal lida com uma diversidade de realidades tanto no nível cultural quanto de demandas de serviço de ensino.
Figura 1 – Arredores da Praça Doutor Mario Margarido, 35, Sé
(endereço da Escola Municipal de Ensino Fundamental Duque de Caxias)
26Visualizando esse cenário o grupo de pesquisa do projeto “Brasil migrante, Fluxos, Populacionais, Políticas Públicas e Estruturas Estatais”, financiado pelo Programa Unificado de Bolsas de Estudos da Pró-Reitoria de Graduação da Universidade de São Paulo, constatou na EMEF Duque de Caxias um objeto de pesquisa rico para um estudo de caso. O estabelecimento de uma relação com EMEF foi através do interesse mútuo entre nosso grupo de pesquisa e o Professor Guilherme de Souza, docente daquele estabelecimento de ensino básico, estabelecendo assim as bases para uma pesquisa empírica. A partir do segundo semestre de 2016 até o final do ano letivo de 2017, o grupo de pesquisa iniciou suas atividades na EMEF Duque de Caxias, com aval de seu diretor, professor José Mário de Oliveira Britto, iniciando um relacionamento entre nosso grupo e o corpo docente, discente e administrativo da escola. Tal relação estabeleceu-se com o sentido de cooperação, na qual nosso grupo ofereceria conteúdos informativos e formativos à escola, e essa, por sua vez, estaria aberta ao diálogo para a realização do campo de nossa pesquisa, que procurava compreender as dinâmicas escolares com nosso foco nas turmas do EJA do período noturno, o qual contava com uma grande quantidade de alunos migrantes.
27A parceria teve início com o oferecimento, pelo grupo de pesquisa, de palestras oferecidas para alunos migrantes do EJA. Tais encontros foram realizados entre o mês de março e maio de 2017; com os temas de Relações Raciais no Brasil, Legislação Migratória Brasileira e Mercado de Trabalho, nos quais as palestras transcorreram com tradução para o francês, idioma predominante na turma, no grupo de estudantes migrantes que acompanharam tais atividades encontravam-se 4 diferentes idiomas – Espanhol, Português, Crioulo Haitiano e Inglês. O outro passo dado pelo grupo nesta cooperação como EMEF Duque de Caxias foi uma tentativa de iniciarmos um survey no qual procuraríamos registrar a trajetória migratória dos alunos das turmas de EJA da escola. Nesta tentativa iniciou-se testes para a implantação de um questionário, mas tal ação encontrou sérias barreiras para a continuidade desta ação a partir do momento que ocorreu uma mudança significativa na direção da escola, com a transferência do Prof. José Mário para a direção de outra escola da rede municipal de educação, além outros obstáculos com a difícil comunicação entre a direção da escola e os demais agentes escolares, principalmente no que diz respeito ao esclarecimento sobre os objetivos da pesquisa e das ações conduzidas por nosso grupo.
28A escola demonstrou-se um estrato do contexto das migrações internacionais mais recentes na cidade de São Paulo, foi evidenciado um ambiente escolar com 17 nacionalidades, 8 Línguas correntes: português, espanhol, árabe, cantonês, mandarim, francês, inglês, crioulo haitiano, outras línguas e dialetos africanos. Para além do multiculturalismo presente, confirmou-se as condições infraestruturas e a ausência e não capilaridade de Políticas Públicas de educação voltadas à população migrante atendida pela EMEF Duque de Caxias. O processo de inclusão de alunos no aparato de ensino dava-se sem nenhum instrumento de mapeamento das necessidades dos migrantes e sem nenhuma adequação dos Planos Pedagógicos do EJA. Neste sentido, foi notado a assimetria entre as demandas dos migrantes e o conteúdo oferecido pelo curso, já que, por relatos dos próprios estudantes, muitos dos que frequentam a escola apenas demandam por ensino da língua Portuguesa, devido ao fato que adentram no EJA com ensino médio completo, tornado o ensino de matérias como química, física, geografia e entre outros destoante para suas necessidades.
29Apesar de tais dificuldades nossa experiência junto à EMEF Duque de Caxias foi de suma importância para observarmos algumas características do cotidiano dos migrantes fixados em São Paulo na sua relação com um serviço público fundamental oferecida por um dos entes do Estado brasileiro, a Prefeitura da Cidade de São Paulo, sendo-nos possível observar uma pequena amostra da relação de migrantes com o Estado brasileiro.
30A primeira característica observada naquela escola de ensino fundamental centra-se na ausência de uma cultura organizacional coesa de cooperação, trocas de informações e valores entre os diversos atores presentes naquele ambiente educacional. Isto ficou explícito com a desinformação dos professores acerca da parceria entre o grupo de pesquisa e a escola, o que demonstra uma falha de comunicação entre o gestor da escola, o qual havíamos estabelecido contato desde o segundo semestre de 2016. Outro ponto importante a se destacar é a existência naquele ambiente organizacional de uma multiplicidade de valores e visões sobre a realidade migratória brasileira, na qual aquela escola está profundamente entranhada. Cada professor da escola expressou diferentes compreensões sobre as questões relativas a migrações, sendo maioria baseada no senso comum, demonstrando que apesar do contexto em que vivem não há nenhuma ação organizada pela Secretaria Municipal de Educação no sentido de dar alguma formação sobre o fenômeno migratório brasileiro para aqueles docentes.
31Dessa forma podemos afirmar que a escola não funciona a partir de uma cultura organizacional única e sim de diferentes valores sobre educação e sobre como lidar com a questão migratória. A junção desse ambiente interno com o externo, marcado por ausência de definições claras de ação pública para a questão no âmbito educacional, e com marcos legais generalistas no que se refere a políticas públicas para a população migrante, coloca os atores na ponta do sistema com papel central na entrega do serviço.
- 11 Para um balanço teórico sobre a utilização do termo “Burocrata do Nível de Rua”, no qual vemos o qu (...)
32Utilizando o termo “Burocrata do Nível de Rua” largamente utilizado nos estudos sobre políticas públicas, sendo introduzido na literatura acadêmica por Michael Lipsky (1980) e que vem balizando boa parte da produção acadêmica até os dias atuais11, aqueles assim denominados podem ser médicos, enfermeiros, policiais, professores, assistentes sociais e entre outros. São os atores em contato direto com o usuário de um determinado serviço público, ou seja, são eles que prestam o acesso às políticas, sendo o elo ao qual o Estado tem contato com o cidadão e esse tem acesso ao Estado, desta maneira é por eles que ação pública se apresenta. No uso da sua discricionariedade pode se observar a distância, como aborda Arretche (2001), entre o que é formulado objetivamente e o que é implementado de fato.
33Nos diferentes campos a se observar o conceito de discricionariedade, demonstra-se que o ator munido com tal característica, e portanto detentor de um certo poder, atua dentro de parâmetros legais e organizacionais, internos e externos, sendo somente o seu julgamento sobre a realidade vivida por aquela instituição a base real para a definição em relação a melhor forma de agir no oferecimento de suas competências (LOTTA e SANTIAGO, 2018).
34A partir destas ideias podemos, portanto, analisar não só a realidade, mas principalmente a atuação dos burocratas que tivemos contato na EMEF Duque de Caxias. Primeiramente, é importante frisar a importância das estruturas normativas para a existência de espaço político e social para ação discricionária (LOTTA e SANTIAGO, 2018).
35Como já exposto, as estruturas legais em âmbito nacional e municipal carecem de diretrizes objetivas que prevejam ações estatais de fato à população migrante, restringindo-se ao caráter de garantia do acesso aos direitos sociais, dentro da estruturas educacionais da cidade não há diretrizes e nem ações do poder público que orientem as instituições de ensino para lidarem ou se adequarem às contingências dos fluxo migratórios, dando espaço para a atuação discricionária dos “Burocratas do Nível da Rua” para lidar com as ocasiões, a partir da sua interpretação de marcos normativos e institucionais abrangentes.
36Concentrando-se no ambiente organizacional da EMEF Duque de Caxias, notou-se um ambiente organizacional com várias dicotomias, fortalecendo ainda mais o ambiente para uso da discricionariedade por parte de suas burocratas de nível de rua. É dessa forma que os dois burocratas centrais atuantes na escola lidam com a questão migratória. O diretor usa da sua autonomia como burocrata e os professores usam da sua discricionariedade como burocratas de nível de rua, ambos buscam soluções paralelas ao poder público para lidar com os fluxos de migrantes na escola, frente a pouca capilaridade das ações estatais e a inexistência de ações do poder público voltadas para a população migrante de forma concreta, no âmbito do oferecimento do serviço de educação, ambos dos burocratas buscam maneiras de lidar com as necessidades dos alunos migrantes.
37Tal realidade pode ser perigosa, já que as ações discricionárias podem ter um viés xenófobo ou inadequado para lidar com uma população que, em sua maioria, encontra-se em situação de vulnerabilidade social, privando-a ao acesso à educação e, como Cury (2002) afirma, a educação é o instrumento de construção da cidadania e para o desenvolvimento humano, portanto sua privação afeta paralelamente a garantia de outros direitos sociais e ao acesso aos serviços públicos.
38Para finalizarmos nossas reflexões a respeito das ações do Estado brasileiro em torno das migrações internacionais direcionadas para nosso território, primeiro (seção II) a partir das ações da União (ou governo federal) nas últimas décadas em relação aos fluxos migratórios direcionados ao país, com especial destaque para o caso dos venezuelanos nos últimos dois anos. E em segundo lugar (seção III) analisando dados de pesquisa junto à um órgão da administração direta da Secretaria Municipal de Educação do Município de São Paulo - a Escola Municipal de Educação Infantil Duque de Caxias, localizada no Bairro do Glicério na região central da cidade.
39Por mais que as realidades de nossos objetos sejam completamente distintas, nossa reflexão procura demonstrar o quanto as ações do Estado brasileiro, em relação às migrações internacionais, são descoordenadas e pouco orgânicas. Arriscamos até mesmo a afirmar que tais ações não chegam a configurar Políticas Públicas propriamente ditas, pois há pouca racionalidade e organicidade nestas atuações do Estado brasileiro junto à população estrangeira fixada no território brasileiro.
40No caso do governo federal, como é demonstrado a partir do caso venezuelano (que repete muitos improvisos, com baixa racionalidade, encontrados quando do estabelecimento do fluxo de haitianos no Brasil), a atuação do Estado brasileiro quase que somente se circunscreve à tentativa de regularizar o status jurídico dos estrangeiros que adentram nosso território. Já que como demonstramos o governo federal não age no sentido de integrar os demais entes federados brasileiros (estados e municípios) para a construção de processos de recepção e acolhimento das populações estrangeiras no seio da sociedade brasileira. Fato que fica muito claro quando acompanhamos o noticiário em relação à “crise humanitária” que se desenrola no Estado de Roraima desde ao menos 2016, sendo patente a não existência de uma linha mestra de atuação do Estado brasileiro, que necessariamente haveria de passar por uma integração e coordenação dos diversos entes federados brasileiros.
41Já no governo municipal paulistano, vemos que na EMEF Duque de Caxias as ações voltadas para os alunos estrangeiros do EJA (Educação de Jovens e Adultos) são definidas de forma individual pela gestão da escola, sem nenhum suporte ou orientação da rede de ensino público da Secretaria Municipal de Educação. Pois em nossa experiência de pesquisa e extensão junto à este equipamento público foi-nos relatado a inexistência de ações voltadas para alunos estrangeiros que não dominam adequadamente o português quando se matriculam na escola, algo que se torna extremamente relevante para o funcionamento do próprio equipamento, afinal o número de estrangeiros no EJA é a maioria dos alunos, segundo estimativa pouco precisa da própria direção da escola. Apontamos que a ausência de dados precisos sobre o número de estrangeiros, suas nacionalidades, línguas originárias e demais dados que poderiam caracterizar os alunos estrangeiros daquela escola já demonstram o quanto as ações voltadas para estas populações carecem de racionalidade e organicidade dentro da rede pública de ensino administrada pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo.
42Para finalizarmos, apontamos a esta reflexão sobre dimensões distintas da realidade dos migrantes internacionais no Brasil nos levam a apontar uma extensa agenda de atuação para o Estado Brasileiro, além de ser também uma agenda de pesquisa extremamente interessante para trabalhos acadêmicos que venham propor a observação da relação da população estrangeira fixada no Brasil com os bens e serviços públicos ofertados à sociedade brasileira. Afinal, entendemos que a realidade de migrantes e refugiados, estrangeiros no geral, que vivem no seio da sociedade brasileira, independentemente de sua relevância quantitativa, devem passar a configurar a agenda das Políticas Públicas brasileiras, pois a realidade atual ainda é muito incipiente e precária, chegando mesmo a nos arriscar a afirmar que as ações que ora existem do Estado brasileiro direcionadas para tais populações não chegam ao patamar para podermos afirmar que existe Política Migratória no Brasil atual.