1A transição nutricional consiste no processo de transformação dos padrões de alimentação e atividade física, resultante de mudanças socioeconômicas, demográficas e culturais. Mudanças desfavoráveis na dieta e prática de atividade física em diferentes populações mundiais têm sido associadas a incrementos na prevalência de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), como diabetes, hipertensão arterial, excesso de peso e obesidade (Popkin, 2001). As DCNT constituem problemas de saúde em nível global, representando uma ameaça ao desenvolvimento humano no campo da saúde pública (Schmidt et alii, 2011). Há evidências de alteração no padrão alimentar de várias populações em diferentes países, incluindo países da Ásia, América Latina, África do Norte, Oriente Médio e áreas urbanas da África subsaariana ao longo das últimas décadas (Popkin, 2001).
2No Brasil, verifica-se um declínio acelerado na ocorrência da desnutrição entre crianças e adultos e, simultaneamente, elevação da prevalência de sobrepeso e obesidade na população brasileira. A projeção dos resultados de estudos efetuados nas últimas três décadas aponta comportamento epidêmico do problema de sobrepeso e obesidade no país, estabelecendo antagonismo de tendências temporais entre desnutrição e obesidade, uma das características marcantes do processo de transição nutricional do país (Batista Filho e Rissin, 2003).
3Mudanças nos padrões alimentares da população brasileira têm sido identificadas ao longo das últimas décadas, especialmente na análise de dados sobre despesas na aquisição de alimentos para consumo domiciliar registrados nas Pesquisas de Orçamentos Familiares (POF) realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No período de 1974 a 2003, verificou-se aumento do consumo de carne bovina e frango, embutidos, leite e derivados, óleos e gorduras vegetais, biscoitos e refeições prontos entre domicílios brasileiros; enquanto simultaneamente houve redução do consumo de arroz, leguminosas, raízes e tubérculos, peixes, ovos e gordura animal (Levy-Costa et alii, 2005).
4Em período subsequente, comparando dados da POF 2002-2003 em relação à POF 2008-2009, ocorreram aprofundamentos das mudanças identificadas anteriormente. As evidências apontam uma tendência temporal do aumento da participação dos alimentos ultraprocessados no padrão alimentar brasileiro, a partir do incremento substancial da disponibilidade domiciliar de alimentos prontos para consumo nos diversos estratos de renda. Paralelamente, registrou-se diminuição na aquisição de alimentos minimamente processados e ingredientes culinários (Levy et alii, 2012).
5O incremento do consumo de alimentos processados e ultraprocessados constitui fator preocupante em termos de tendência da qualidade global da alimentação populacional, especialmente devido à consolidação de um padrão alimentar com menor valor nutricional, apesar da abundância de alimentos disponíveis para população em diferentes faixas de renda. Assim, constatam-se alterações no perfil epidemiológico populacional, a partir da diminuição da incidência de morbidades relacionadas à carência de alimentos (como desnutrição, déficit estatural e bócio), em associação com elevação da prevalência de doenças crônicas não transmissíveis associadas à alimentação, sobrepeso e obesidade, como hipertensão arterial e diabetes tipo 2 (Batista Filho e Rissin, 2003; Schmidt et alii, 2011).
6A qualidade do padrão alimentar populacional constitui requisito básico para promoção e proteção da saúde, possibilitando a afirmação plena do potencial de crescimento e desenvolvimento humano com qualidade de vida e cidadania (Pinheiro, 2008). Cada país tem direito de definir suas próprias políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos que garantam o direito à alimentação para sua população, respeitando múltiplas características culturais dos povos (Brasil, 2006).
7A proposição de políticas públicas para garantia de alimentação adequada para uma população depende de análises detalhadas com relação a determinados parâmetros, incluindo padrão de consumo alimentar, qualidade da alimentação e características sociodemográficas e econômicas. Tais parâmetros devem pautar a elaboração de medidas governamentais efetivas, que busquem assegurar a subsistência, a promoção da saúde e a qualidade de vida de indivíduos e populações (Teixeira, 2002).
8No contexto brasileiro, há necessidade de elementos adicionais para elaboração da agenda e manutenção da governança de políticas públicas vinculadas à alimentação e à nutrição em programas integrados à promoção de saúde e à redução de riscos econômicos, que sejam efetivamente percebidos pela população como parte das estratégias de preservação do bem-estar e qualidade de vida (Pinstrup-Andersen, 2000; Sarti, Haddad e Santana, 2017). Embora resultados das análises de aquisição de alimentos constituam informações interessantes quanto à disponibilidade de recursos alimentares disponíveis à população, dados de consumo alimentar individual obtidos em inquéritos populacionais permitem avaliar com maior precisão a qualidade e a quantidade de alimentos ingeridos em um determinado período.
9Ademais, informações sobre dieta dos indivíduos permitem analisar evidências quanto a distorções no padrão de alimentação entre residentes de um mesmo domicílio em decorrência de características de distribuição intradomiciliar dos alimentos, assim como reduzir a influência do desperdício domiciliar de alimentos e, principalmente, incluir a participação da alimentação fora do domicílio na avaliação da dieta (Bezerra et alii, 2013; Brasil, 2011). No Brasil, há somente estudos de representatividade local quanto às diferenças na qualidade do consumo alimentar individual associadas aos níveis de renda da população (Mello et alii, 2018).
10Adicionalmente, há propostas de avaliação da qualidade da alimentação a partir do grau de processamento dos alimentos (Monteiro et alii, 2016), característica ainda desconsiderada nas propostas de indicadores de qualidade da alimentação atualmente vigentes (Cervato e Vieira, 2003). Os índices de qualidade nutricional constituem importantes ferramentas para avaliação da dieta de indivíduos e populações, sendo expressos na forma de indicador sintético da qualidade da alimentação quanto ao conteúdo de nutrientes e variedade de alimentos consumidos (idem, 2003).
11O Índice de Qualidade da Dieta Revisado (IQD-R) adaptado à população brasileira é um instrumento para avaliação global da alimentação com alta confiabilidade e validade, sendo aplicável em grupos populacionais com diferentes características (Previdelli et alii, 2011; Andrade et alii, 2013; Assumpção et alii, 2014; Wendpap et alii, 2014).
12Assim, considerando diferentes propostas de avaliação da qualidade nutricional do padrão alimentar dos indivíduos na população brasileira, propôs-se uma análise da influência de diferenças socioeconômicas e geográficas na qualidade da alimentação consumida pela população brasileira, a partir de dados de consumo alimentar pessoal de representatividade nacional.
13Trata-se de um estudo transversal exploratório descritivo de abordagem quantitativa, direcionado à avaliação da qualidade da alimentação da população brasileira, a partir de dados secundários de acesso público.
14A Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), conduzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), incluiu suplemento de Consumo Alimentar Pessoal com aplicação de inquérito alimentar em subamostra aleatória de 13.569 domicílios nos anos de 2008-2009, contemplando 34.003 indivíduos com idade igual ou superior a 10 anos.
15O período de coleta de dados da pesquisa iniciou-se em 19 de maio de 2008 e foi finalizado em 18 de maio de 2009. Os dados de consumo alimentar foram coletados por meio de aplicação de recordatório alimentar, incluindo descrição dos alimentos consumidos ao longo das 24 horas no dia anterior à entrevista, horário e local das refeições, quantidades consumidas em unidades de medidas caseiras e forma de preparo dos alimentos (IBGE, 2011).
16A partir dos microdados disponibilizados pelo IBGE, organizou-se um único banco de dados de registros individuais dos participantes da pesquisa, incluindo-se dados pessoais, caracterização domiciliar e informações de consumo alimentar.
17Os dados de consumo alimentar pessoal de 34.003 indivíduos da subamostra da POF 2008-2009 foram utilizados para avaliação qualitativa do padrão alimentar da população brasileira. As informações sobre quantidades de alimentos consumidos, registradas em medidas caseiras, foram convertidas em unidades padronizadas de peso (gramas) ou volume (mililitros), utilizando-se tabelas de medidas e porções padronizadas (Pinheiro et alii, 2008; Castro, 2013).
18Em seguida, quantidades padronizadas dos alimentos consumidos foram convertidas em nutrientes e classificadas em grupos alimentares, a partir dos critérios estabelecidos para estimativa do IQD-R, utilizando-se informações de tabela de composição nutricional (Brasil, 2009a), sendo complementadas por dados de preparações culinárias brasileiras e rótulos de alimentos (Fisberg e Villar, 2001; Brasil; 2009b).
19Por fim, aplicou-se uma pontuação dos componentes da alimentação conforme critérios do IQD-R (Quadro 1) para cálculo do índice de qualidade da dieta de cada indivíduo entrevistado no contexto da POF 2008-2009.
Quadro 1 - Componentes para avaliação do IQD-R do consumo alimentar da população brasileira.
Componente
|
Critério para pontuação mínima
|
Critério para pontuação intermediária
|
Critério para pontuação máxima
|
Porções
|
Pontos
|
Frutas totais
|
Ausência de consumo
0 ponto
|
Cálculo proporcional
|
1,0 porção/1.000 kcal
|
5
|
Frutas integrais
|
0,5 porção/1.000 kcal
|
Vegetais totais
|
1,0 porção/1.000 kcal
|
Vegetais verde escuros, alaranjados e legumes
|
0,5 porção/1.000 kcal
|
Cereais totais
|
3,0 porções/1.000 kcal
|
10
|
Carnes, ovos e leguminosas
|
1,5 porção/1.000 kcal
|
Leite e derivados
|
1,0 porção/1.000 kcal
|
Óleos
|
0,5 porção/1.000 kcal
|
Gordura saturada
|
≥15% do VET
0 pontos
|
10% do VET
8 pontos
|
≤ 7% do VET
|
Sódio
|
≥2,0g/1.000 kcal
0 pontos
|
1g/1.000 kcal
8 pontos
|
≤ 0,75g/ 1.000 kcal
|
Gord A|A
|
≥35% do VET
0 pontos
|
Cálculo proporcional
|
≤ 10% do VET
|
20
|
Obs.: VET = Valor Energético Total; Gord A|A = Calorias provenientes de gordura sólida, álcool e açúcar de adição.
Fonte: PREVIDELLI e col. (2011); WENDPAP e col. (2014).
|
20O IQD-R adaptado à população brasileira apresenta uma única medida sintética de várias dimensões de qualidade da dieta em uma escala de pontuação que varia de 0 pontos (pior qualidade da dieta) a 100 pontos (melhor qualidade da dieta). Os alimentos consumidos foram classificados de acordo com grupos alimentares definidos no IQD-R e, comparativamente, segundo a classificação NOVA, que propõe categorização dos alimentos de acordo com grau de processamento (Monteiro et alii, 2016), adotada pelo Guia Alimentar para a População Brasileira (Brasil, 2014).
21A pontuação global do IQD-R foi utilizada como base para avaliação da qualidade da alimentação de indivíduos da população brasileira, classificados segundo critérios demográficos, nível de renda, consumo energético total, assim como em termos comparativos de acordo classificação alternativa de grau de processamento dos alimentos consumidos (NOVA).
22Foram aplicados testes estatísticos para determinar possíveis diferenças dos valores médios do IQD-R: (1) teste t não pareado com correção de Welch para comparação de média entre dois grupos; (2) análise de variância de uma via (One-Way ANOVA) com teste de Bonferroni, para comparação de médias entre três ou mais grupos.
23Os dados foram analisados segundo características sociodemográficas, econômicas e padrão do consumo alimentar da amostra populacional, buscando-se determinar fatores de influência sobre qualidade da dieta individual, a partir de estimativa de modelo de regressão linear. O modelo estimado incluiu características individuais (idade, sexo, etnia e escolaridade), domiciliares (renda per capita, área, região e Unidade da Federação) e componentes do padrão alimentar (porcentagem de alimentos processados e ultraprocessados no valor energético total do consumo alimentar) para análise da influência sobre índice de qualidade da alimentação, a partir da seguinte equação:
24Onde: IQD-Ri = escore de IQD-R do consumo alimentar do indivíduo i; Xi = matriz de características pessoais do indivíduo i; Wi = matriz de características domiciliares referentes ao indivíduo i; zi = vetor de característica da dieta do indivíduo i, baseado na participação de alimentos processados e ultraprocessados no percentual valor energético total consumido; e εi = termo de erro.
25O processamento dos bancos de dados e as análises estatísticas foram conduzidas utilizando programa estatístico Stata®, versão 13.0, aplicando-se fator de expansão amostral para obtenção de resultados com representatividade regional e nacional, a partir de uso do módulo survey. Adotou-se nível de significância para análises estatísticas referentes ao teste de hipótese nula igual ou menor a 5%.
26As variáveis categóricas utilizadas nas análises descritivas foram: sexo (masculino = categoria de referência, feminino), etnia (branca = categoria de referência, preta, amarela, parda e indígena), área (urbana = referência, rural), região (Norte = categoria de referência, Nordeste, Sudeste, Sul, Centro-Oeste), renda domiciliar per capita (segundo quintis em comparação com grupos de salário mínimo, sendo que o primeiro quintil é utilizado como categoria de referência).
27Os resultados obtidos indicam que indivíduos classificados nas menores faixa de renda apresentam idade e escolaridade inferiores aos segmentos de maior renda. Também foi possível observar maior concentração de indivíduos com menores níveis de renda nas regiões Nordeste e Sudeste do Brasil (Tabela 1).
Tabela 1 - Características sociodemográficas, econômicas e do padrão de consumo alimentar da amostra, segundo nível de renda per capita. Brasil, 2008-2009.
Característica
|
Categorias de renda em SM - per capita
|
Quintil de renda per capita
|
Brasil
|
|
≤1SM
|
>1SM
|
Q1
|
Q2
|
Q3
|
Q4
|
Q5
|
|
|
N
|
74.985.652
|
85.525.442
|
32.108.447
|
32.100.180
|
32.103.824
|
32.100.485
|
32.098.158
|
160.511.094
|
|
Idade (±DP)
|
32,11±18,31
|
40,66±17,30
|
29,51±17,81
|
33,61±18,28
|
38,22±19,24
|
36,67±17,42
|
42,32±15,49
|
36,66±18,43
|
|
Sexo (%)
|
Feminino
|
51,45
|
51,78
|
52,58
|
52,42
|
51,64
|
51,85
|
50,29
|
51,75
|
|
Masculino
|
48,55
|
48,22
|
47,42
|
47,58
|
48,36
|
48,15
|
49,71
|
48,25
|
|
Etnia/cor (%)
|
Branca
|
34,53
|
60,69
|
26,86
|
38,24
|
47
|
58,97
|
71,26
|
48,46
|
|
Preta
|
9,97
|
6,68
|
9,91
|
10,14
|
8,94
|
7,59
|
4,51
|
8,22
|
|
Amarela
|
0,42
|
0,84
|
0,35
|
0,49
|
0,2
|
0,44
|
1,74
|
0,64
|
|
Parda
|
54,27
|
31,17
|
61,81
|
50,41
|
43,24
|
32,25
|
22,08
|
41,96
|
|
Indígena
|
0,49
|
0,43
|
0,61
|
0,46
|
0,37
|
0,67
|
0,18
|
0,46
|
|
Sem declaração
|
0,32
|
0,19
|
0,46
|
0,25
|
0,24
|
0,1
|
0,23
|
0,26
|
|
Anos de estudo (±DP)
|
6,36±9,00
|
9,04±7,15
|
5,53±8,65
|
6,63±8,12
|
7,32±8,69
|
8,48±7,68
|
11,01±6,21
|
7,79±8,14
|
|
Área de residência (%)
|
Urbana
|
75,06
|
90,96
|
65,98
|
81,12
|
85,9
|
90,09
|
94,56
|
83,53
|
|
Rural
|
24,94
|
9,04
|
34,02
|
18,88
|
14,1
|
9,91
|
5,44
|
16,47
|
|
Região (%)
|
Norte
|
10,63
|
4,91
|
12,07
|
9,71
|
6,87
|
5,11
|
4,16
|
7,58
|
|
Nordeste
|
41,61
|
15,2
|
53,60
|
35,00
|
23,08
|
13,42
|
12,59
|
27,54
|
|
Sudeste
|
31,04
|
53,4
|
20,89
|
36,93
|
46,61
|
55,85
|
54,44
|
42,94
|
|
Sul
|
10,12
|
18,71
|
7,80
|
11,31
|
15,03
|
18,42
|
20,92
|
14,7
|
|
Centro-Oeste
|
6,60
|
7,78
|
5,65
|
7,04
|
8,43
|
7,20
|
7,89
|
7,24
|
|
Consumo energético total (kcal) (±DP)
|
1736±863
|
1828±746
|
1656±882
|
1782±855
|
1768±777
|
1868±762
|
1853±706
|
1785±805
|
|
Alimentos processados* (%VET) (±DP)
|
27,96±22,46
|
34,91±19,26
|
24,71±23,21
|
29,77±21,82
|
31,31±20,51
|
34,35±19,27
|
38,19±17,81
|
31,66±21,11
|
|
Obs.: SM = salário mínimo; = média; DP = desvio padrão; VET = valor energético total.
(*) Refere-se à proporção de consumo de alimentos processados e ultraprocessados na alimentação relatada, conforme classificação NOVA.
Fonte: Elaboração própria, a partir de dados da POF 2008-2009.
|
28Em relação ao padrão de consumo alimentar, é possível verificar que indivíduos nos níveis de renda superiores apresentavam maior consumo energético total, e maior percentual de consumo energético proveniente de alimentos processados e ultraprocessados em comparação com indivíduos em níveis de renda inferiores.
29O escore do IQD-R estimado para população brasileira em geral atingiu 56,85 pontos, verificando-se similaridade na qualidade da dieta registrada entre homens e mulheres. Entretanto, foram identificadas diferenças na qualidade da dieta entre indivíduos de diferentes grupos de renda per capita (Tabela 2).
Tabela 2 - Qualidade da dieta da população brasileira, segundo características sociodemográficas, econômicas e padrão de consumo alimentar. Brasil, 2008-2009.
Característica
|
IQD-R (µ)
|
DP
|
IC95%
|
Brasil
|
56,85
|
10,46
|
56,66 ;
|
57,04
|
Sexo
|
|
|
|
|
Masculino
|
56,99
|
10,09
|
56,71 ;
|
57,27
|
Feminino
|
56,73***
|
10,81
|
56,47 ;
|
56,98
|
Etnia
|
|
|
|
|
Branca
|
56,32#
|
9,62
|
56,03 ;
|
56,61
|
Preta
|
56,61#
|
10,08
|
55,92 ;
|
57,30
|
Amarela
|
61,08#
|
8,90
|
58,51 ;
|
63,66
|
Parda
|
57,43#
|
11,33
|
57,18 ;
|
57,69
|
Indígena
|
57,71#
|
13,40
|
55,27 ;
|
60,15
|
Área de residência
|
Urbana
|
56,49
|
10,04
|
56,27 ;
|
56,70
|
Rural
|
58,70***
|
11,93
|
58,39 ;
|
59,01
|
Região
|
Norte
|
57,94#
|
14,93
|
57,55 ;
|
58,32
|
Nordeste
|
58,19#
|
12,06
|
57,92 ;
|
58,45
|
Sudeste
|
55,76#
|
4,45
|
55,40 ;
|
56,12
|
Sul
|
56,00#
|
9,47
|
55,58 ;
|
56,42
|
Centro-Oeste
|
58,84#
|
13,05
|
58,44 ;
|
59,26
|
Quintil de renda per capita
|
Q1
|
57,61#
|
11,44
|
57,29 ;
|
57,92
|
Q2
|
57,01#
|
11,03
|
56,63 ;
|
57,39
|
Q3
|
56,57#
|
10,17
|
56,17 ;
|
56,97
|
Q4
|
56,53#
|
10,04
|
56,07 ;
|
56,99
|
Q5
|
56,55#
|
9,21
|
56,06 ;
|
57,05
|
Categoria de renda per capita
|
≤1SM
|
57,09
|
11,10
|
56,85 ;
|
57,32
|
>1SM
|
56,65***
|
9,80
|
56,36 ;
|
56,94
|
Alimentos processados§
|
|
|
<50% VET
|
58,69
|
9,78
|
58,50 ;
|
58,88
|
≥50% VET
|
49,46***
|
9,65
|
49,02 ;
|
49,89
|
Obs.: SM = salário mínimo; IQD-R = Índice de Qualidade da Dieta Revisado; = média; DP = desvio padrão; IC95% = intervalo de confiança de 95% em relação ao erro padrão; VET= valor energético total; ***= p<0,001; #= p<0,001 para cada comparação entre pares de médias.
(§) Refere-se à proporção de consumo de alimentos processados e ultraprocessados na alimentação relatada, conforme classificação NOVA.
Fonte: Elaboração própria, a partir de dados da POF 2008-2009.
|
30Adicionalmente, indivíduos com padrão alimentar majoritariamente composto por alimentos processados e ultraprocessados (≥50% VET) apresentaram menor escore do IQD-R (49,46), em comparação com indivíduos com menor consumo de tais alimentos.
31A análise de regressão linear múltipla apontou significativa influência positiva da etnia amarela e da alta renda sobre a pontuação do IQD-R (Tabela 4). A área de residência rural, residir na região sudeste e proporção de energética acima de 50% do VET provenientes do consumo de alimentos processados e ultraprocessados influenciam negativamente o escore de qualidade da dieta do indivíduo (Tabela 3).
Tabela 3 - Coeficientes do modelo de regressão para qualidade da dieta (IQD-R) na população brasileira. Brasil, 2008-2009.
Variável
|
|
Sig.
|
EP
|
IC95%
|
|
60,95
|
***
|
0,35
|
60.27;
|
61,62
|
Idade (anos)
|
0,06
|
***
|
0,01
|
0,05 ;
|
0,07
|
Etnia/cor
|
|
|
|
|
|
Negra
|
-0,41
|
NS
|
0,35
|
-1,10 ;
|
0,28
|
Amarela
|
2,54
|
**
|
0,87
|
0,83 ;
|
4,25
|
Parda
|
-0,03
|
NS
|
0,19
|
-0,41 ;
|
0,35
|
Indígena
|
-1,29
|
NS
|
1,06
|
-3,36 ;
|
0,78
|
Área de residência
|
|
|
|
|
|
Rural
|
-0,42
|
*
|
0,18
|
-0,76 ;
|
-0,75
|
Quintil de renda per capita
|
|
|
|
|
|
Q2
|
0,47
|
*
|
0,23
|
0,03 ;
|
0,92
|
Q3
|
0,25
|
NS
|
0,25
|
-0,23 ;
|
0,73
|
Q4
|
0,93
|
**
|
0,28
|
0,39 ;
|
1,48
|
Q5
|
1,53
|
***
|
0,30
|
0,94 ;
|
2,13
|
Região
|
|
|
|
|
|
Nordeste
|
1,04
|
***
|
0,22
|
0,61 ;
|
1,47
|
Sudeste
|
-0,73
|
**
|
0,25
|
-1,21 ;
|
-0,25
|
Sul
|
0,27
|
NS
|
0,29
|
-0,29 ;
|
0,83
|
Centro-Oeste
|
1,32
|
***
|
0,27
|
0,79 ;
|
1,85
|
Alimentos processados§
|
-0,21
|
***
|
0,01
|
-0,22 ;
|
-0,20
|
R2
|
0,2135
|
Obs.: IQD-R = Índice de Qualidade da Dieta Revisado; = média; EP = erro padrão; IC95% = intervalo de confiança de 95% em relação ao erro padrão.
* p<0,05; **p<0,01; *** p<0,001; NS = não significante.
(§) Refere-se à proporção de calorias do VET derivadas do consumo de alimentos processados e ultraprocessados na alimentação relatada, conforme classificação NOVA.
VET= valor energético total do consumo alimentar registrado individualmente.
Fonte: Elaboração própria, a partir de dados da POF 2008-2009.
|
32Os indivíduos com renda igual ou inferior a salário mínimo per capita apresentaram maior adequação no consumo de vegetais totais (78%), vegetais verde escuros, alaranjados e legumes (74%) e carnes, ovos e leguminosas (89%) em relação aos indivíduos com renda per capita acima de um salário mínimo. Todavia, houve inadequações no consumo de frutas totais, frutas integrais, cereais totais, leite e derivados, óleos e gordura, açúcar e álcool em quaisquer níveis de renda considerados na análise (Figura 1).
Figura 1 - Adequação de pontuações dos componentes do IQD-R entre indivíduos da população brasileira, segundo níveis de renda per capita. Brasil, 2008-2009.
Obs.: SM = salário mínimo; IQD-R = Índice de Qualidade da Dieta Revisado.
Fonte: Elaboração própria, a partir de dados da POF 2008-2009 (IBGE).
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33Em termos geográficos, verifica-se menor escore de IQD-R no Amapá (54,31), Sergipe (55,13) e Rio Grande do Sul (55,24); enquanto houve melhor escore de qualidade da dieta nos estados de Mato Grosso (59, 74), Alagoas (59,74) e Maranhão (60,31) (Figura 2a).
34Considerando indivíduos com renda per capita de até um salário mínimo, há continuidade do padrão entre estados com menores e menores pontuações do IQD-R (Figura 2b); enquanto entre indivíduos com renda per capita superior a um salário mínimo, há inserção do Acre (55,50) entre estados com menor pontuação do IQD-R e Distrito Federal (59,10) entre estados com maior pontuação (Figura 2c).
Figura 2 - Distribuição do escore do IQD-R por unidades federativas no Brasil. Brasil, 2008-2009.
35IQD-R população brasileira
36IQD-R renda per capita < 1SM
37IQD-R renda per capita > 1SM
Legenda: SM = salário mínimo; IQD-R = Índice de Qualidade da Dieta Revisado.
Fonte: Elaboração própria, a partir de dados da POF 2008-2009 (IBGE).
38Mudanças no padrão alimentar da população brasileira foram identificadas em estudos anteriores, a partir das comparações de dados de aquisição de alimentos obtidas nas Pesquisas de Orçamentos Familiares conduzidas ao longo de várias décadas no país (Levy-Costa et alii, 2005; Levy et alii, 2012), indicando aumento da aquisição de alimentos ultraprocessados e redução da compra de alimentos in natura e ingredientes culinários.
39Por outro lado, índices de qualidade nutricional têm sido cada vez mais empregados na verificação da qualidade do padrão alimentar de determinadas populações, sendo também capazes de estimar o risco de desenvolvimento de DCNT, tais como doenças cardiovasculares (Rodríguez-Martin et alii, 2017).
40O acréscimo do percentual energético oriundo de alimentos processados e ultraprocessados pode contribuir à diminuição da qualidade da dieta da população brasileira, sobretudo entre famílias com renda per capita superior a um salário mínimo e nos quintis de renda mais elevados, particularmente entre indivíduos residentes nas regiões Sul e Sudeste do país, conforme resultados obtidos no presente trabalho.
41O decréscimo do consumo de alimentos in natura ou minimamente processados atrelado ao aumento do consumo de alimentos ultraprocessados promove alterações no perfil nutricional da dieta, tais como elevação da densidade energética ocasionado pela maior ingestão de gordura saturada, gordura trans e açúcar livre e menor consumo de fibras, proteínas (Bielemann et alii, 2015). A análise dos dados da POF 2008-2009 sobre consumo alimentar pessoal mostrou que alto consumo de alimentos ultraprocessados está associado à maior chance de sobrepeso e obesidade (Louzada et alii, 2015).
42O aumento do número de refeições realizadas fora do domicílio é potencialmente um fator adicional à diminuição da qualidade da dieta na população do país. A realização de refeições fora do domicílio está associada ao maior consumo de alimentos com maior densidade energética e menor valor nutricional, tais como sanduíches, refrigerantes, pizza, salgadinhos e bebidas alcoólicas (Bezerra et alii, 2013).
43As práticas culinárias tradicionais e o uso de alimentos regionais são um fator importante para consumo alimentar com menor nível de processamento, além de contribuírem para uma boa qualidade nutricional da dieta. O aumento da renda em países em desenvolvimento, como China e Brasil, contribui com o aprofundamento da transição nutricional, estando associado a alterações na composição das dietas em direção ao aumento do consumo de gorduras. Adicionalmente, o aumento do padrão de vida usualmente está associado com mudanças na composição corporal e, consequentemente, contribui ao aumento dos problemas de saúde, principalmente entre grupos populacionais de baixa renda que tiveram melhoria das condições econômicas (Du et alii, 2004).
44A maior oferta de alimentos ultraprocessados comercializados no varejo e o tipo de estabelecimento varejista frequentados pela população constitui importante determinante do consumo de alimentos de menor qualidade nutricional. A partir da análise dos dados da POF 2008-2009, estudo anterior apontou que há maior aquisição de alimentos e bebidas industrializados em supermercados, em comparação com outros equipamentos varejistas de menor porte, no Brasil (Machado et alii, 2017).
45Estratégias de comercialização do varejo supermercadista envolvendo preços, conveniência e praticidade resultam em maior influência para aquisição de alimentos com maior nível de processamento. Ademais, constatou-se que incremento de 1% na aquisição de alimentos em supermercados resulta em acréscimo de 1,83% no consumo energético de alimentos e bebidas processados (Machado et alii, 2017).
46As principais limitações do presente estudo referem-se à identificação de problemas na aplicação do IQD-R em dados populacionais, caso não sejam analisados dados de consumo energético per capita, tendo em vista que o IQD-R constitui indicador sintético relacionado à concentração de determinados nutrientes na alimentação em relação às recomendações nutricionais atuais. Assim, seria importante considerar a ingestão energética como parâmetro balizador da análise, de forma a verificar a conexão entre IQD-R, consumo energético individual e a necessidade energética de cada indivíduo.
47Paralelamente, indicadores de consumo de sódio e gordura saturada no IQD-R apresentaram pontuações elevadas independentemente no nível de renda ou da localidade, problema que possivelmente está relacionado à correção pela quantidade energética total consumida para cálculo do IQD-R.
48Outra limitação do trabalho refere-se à aplicação de recordatório alimentar de 24 horas aos participantes da POF 2008-2009, que está sujeita às falhas de memória do entrevistado, além de possíveis problemas em relação à capacidade de comunicação do entrevistador com o entrevistado.
49Por fim, também devem ser consideradas limitações referentes ao relato de medidas caseiras padronizadas previamente para cada alimento ou preparação consumida e às tabelas de composição de alimentos aplicadas para estimativa do valor nutricional das dietas individuais, que consideram receituários padrão para análise da composição centesimal das preparações culinárias consumidas.
50Entretanto, deve-se destacar que o presente estudo buscou apresentar uma avaliação da qualidade da dieta em nível populacional segundo níveis de renda, uma proposta pioneira na investigação de potenciais associações entre padrão de qualidade da alimentação, medido pelo IQD-R, em relação à proporção de energia proveniente de alimentos processados e ultraprocessados no contexto da população brasileira.
51As evidências do estudo apontaram existência de diferenças na qualidade nutricional da dieta entre grupos populacionais de baixa e alta renda, em benefício de indivíduos de menor renda, assim como pior qualidade da dieta global da população brasileira derivada de maior consumo de alimentos processados e ultraprocessados.
52As análises realizadas utilizando o IQD-R indicaram consumo insuficiente de frutas totais e integrais, vegetais totais e vegetais verde escuros e alaranjados, cereais, óleos e leite e derivados pela população brasileira, além de consumo excessivo de gorduras, álcool e açúcar na alimentação.
53A análise de dados da amostra estratificada segundo o nível de renda aponta a diminuição da qualidade nutricional da dieta entre grupos de renda per capita superior a um salário mínimo, bem como nos quintis de renda mais elevados. O resultado contraria a hipótese inicial do estudo, que estipulava qualidade nutricional inferior entre grupos populacionais de baixa renda em comparação ao restante da população brasileira.
54Em relação às diferenças de qualidade da dieta por Unidades da Federação, verificou-se significativas diferenças nas pontuações do IQD-R em diversas regiões do país, identificando-se valores inferiores de qualidade da alimentação nos estados de maior densidade populacional a exemplo de São Paulo e Rio de Janeiro, ou estados com maior déficit em indicadores socioeconômicos, no que diz respeito ao Amapá. Também foi verificado que o alto consumo de alimentos processados e ultraprocessados contribui para a diminuição da qualidade da alimentação, verificado pela baixa pontuação resultante do IQD-R.
55Assim, o presente estudo buscou demonstrar a variabilidade na qualidade da alimentação no território brasileiro, indicador sujeito à influência de determinantes culturais, socioeconômicos e demográficos, assim como em relação ao tipo de alimento consumido segundo grau de processamento. Os diferentes cenários alimentares necessitam, portanto, de ações governamentais específicas delineadas por meio de planejamento de políticas públicas focalizadas, acompanhadas por estratégias de educação alimentar e nutricional, considerando particularidades individuais, populacionais e geográficas.
56Em nível mundial, verificam-se inúmeras propostas de avaliação da qualidade nutricional de alimentos e padrões alimentares como base para proposição de políticas públicas baseadas em evidências no campo da nutrição e saúde, incluindo desde monitoramento do estado nutricional da população e regulação de propagandas de alimentos e bebidas até imposição de tributos sobre determinados tipos de produtos e regulamentação da oferta de alimentos e bebidas em programas governamentais (Labonté et alii, 2018).
57No Brasil, as políticas públicas de alimentação e nutrição têm evoluído em direção à promoção da saúde e à prevenção de agravos e doenças, particularmente a partir das décadas de 1980 e 1990. Entretanto, também é possível identificar inúmeras controvérsias quanto ao volume de recursos públicos e à efetividade das ações governamentais em saúde, alimentação e nutrição ao longo do período mencionado (Sarti, Haddad e Santana, 2017).
58O incentivo ao consumo de alimentos in natura e minimamente processados deve ser contemplado por ações de amplo espectro, de forma a buscar maior efetividade e eficácia nos programas governamentais de promoção da alimentação saudável para população brasileira. Ademais, é necessário buscar e analisar determinantes das práticas de comercialização de alimentos, especialmente itens com maior nível de processamento industrial e alto teor de lipídios, sódio e açúcar de adição.