1Departamento de Geografia / Universidade Federal do Rio de Janeiro, marcospfgois@gmail.com
PLANIL em Cabo Frio: Você já sabe... Que pela primeira vez, no Brasil e no Mundo, está surgindo um centro turístico e balneário planejado (pelos arquitetos MMM Roberto) em seus mínimos detalhes? ... Que em Monte Alegre, 1ª Unidade Urbana da Costa do Sol, onde PLANIL lançará à venda lotes residenciais e comerciais, chácaras e sítios, não haverá nenhum dos problemas que costumam surgir nos loteamentos comuns: tudo foi rigorosamente previsto? (O Jornal, 25/08/1957).
- 1 Os limites da área coincidiam, ao sul, com o canal da lagoa de Araruama e, ao norte, com a foz do r (...)
- 2 Trata-se de um dos primeiros projetos do gênero elaborados pelo reputado escritório carioca de arqu (...)
2Em 1956, os jornais do Rio de Janeiro noticiaram a conclusão de um ambicioso plano diretor para Cabo Frio (RJ), município situado na baixada de Araruama, litoral leste do estado (Figura 1). Elaborado por uma equipe multiprofissional liderada pelos arquitetos Marcelo e Maurício Roberto (do escritório M.M.M. Roberto), o “Plano de Urbanização de Cabo Frio – Búzios” compreendia uma área de 400 km2, na porção norte do município1, a ser estruturada a partir de um sistema regional polinuclear formado por dezessete unidades urbanas e três centros de agricultura (M.M.M. Roberto, 1956)2.
Figura 1 – Baixada de Araruama: divisão político-administrativa (1940/1950)
Fonte: adaptado de Mendes (1948)
3O plano lançava um olhar crítico sobre o padrão de urbanização até então dominante na região:
A especulação, com uma meticulosidade e uma falta de imaginação inflexível, está destruindo o litoral fluminense. Risca na areia um gradeado – lote, rua, lote, rua, lote, rua – e anuncia e vende, e risca logo adiante, e sempre em maior. Não cogita, nem da forma a mais remota, em estabelecer o mínimo indispensável à subsistência de uma comunidade. O objetivo exclusivo é o lucro imediato. Que comprem e se danem! E vai alastrando a destruição (Correio da Manhã, 13/05/1956).
4Propunha também uma ação projetiva que, combinando os princípios urbanísticos das cidades-jardim ao planejamento econômico e ecológico em escala regional, teria o condão de criar, no estado do Rio, “as condições necessárias à formação de comunidades felizes, assim como estabelecer, na mais bela região do país, o quartel-general do turismo brasileiro” (Correio da Manhã, 13/05/1956).
5A reputada “vocação” turística do município decorreria, sobretudo, de sua situação geográfica: “O mar sempre foi e sempre será a grande atração [...]. E Cabo Frio é o mar em toda sua pujança, em todo seu esplendor” (Correio da Manhã, 13/05/1956). Com a consecução do plano, esperava-se que a região viesse a se beneficiar, de forma “estável” e “harmoniosa”, do reconhecido papel de atrator de fluxos turísticos e de veraneio característico das estâncias balneárias de fama estabelecida (M.M.M. Roberto, 1956).
6No ano seguinte, a imprensa carioca publicou diversos anúncios promovendo a venda de lotes e de imóveis na primeira Unidade Urbana da “Costa do Sol”, marco inicial da execução do plano de urbanização Cabo Frio - Búzios (figura 2). Trata-se da primeira vez, até onde foi possível averiguar, que a expressão “Costa do Sol” foi empregada para designar, ainda sem contornos muito precisos, um segmento da zona litorânea da baixada de Araruama.
Figura 2 - Anúncio da venda de lotes e imóveis em Monte Alegre, Unidade Urbana da “Costa do Sol”
Fonte: Correio da Manhã, 10/09/1957
7Não se sabe quantos lotes ou imóveis foram efetivamente comercializados na Unidade Monte Alegre. Entretanto, a concepção de conjunto preconizada no plano dos Irmãos Roberto jamais seria concretizada. Seu interesse decorre, contudo, de três aspectos interligados. Em primeiro lugar, oferece um diagnóstico do processo inicial de integração do litoral leste fluminense, especificamente, da baixada de Araruama, à área metropolitana do Rio de Janeiro. Constitui também um significativo esforço de reflexão, da perspectiva do planejamento urbano, acerca das relações entre atividades turísticas e dinâmicas territoriais. Finalmente, pela via de sua promoção comercial, o plano associa um conjunto de práticas, especialmente aquelas vinculadas ao veraneio, à construção de um novo recorte territorial, a “Costa do Sol”.
8O emprego deste topônimo se consolidaria no início da década seguinte com a crescente institucionalização do setor turístico fluminense. Em 1962, a recém-criada Companhia de Turismo do Estado do Rio de Janeiro (FLUMITUR) concluiu uma nova regionalização turística compreendendo 14 zonas, entre as quais, a “Costa do Sol”, englobando os municípios de Niterói, Maricá, Saquarema, Araruama, São Pedro da Aldeia, e Cabo Frio (O Jornal, 24/10/1963).
- 3 Artigo escrito como parte do projeto Capes-Cofecub Sh 905/18: "Balneomar: a produção da área litora (...)
9Considerando a “emergência” da “Costa do Sol” como marco final do recorte temporal aqui adotado, o presente artigo3 analisa o período inicial da “balnearização” da baixada de Araruama, que ganha impulso a partir da década de 1940. Entendemos a “balnearização” como um processo articulado de produção de formas espaciais e práticas sociais vinculadas à valorização e ao ordenamento das zonas litorâneas (Balneomar, 2018). A análise deste processo levará em conta três aspectos, a saber: seu enquadramento político-territorial, suas relações com as concepções, então em voga, para o ordenamento das zonas litorâneas, e sua efetivação a partir de um conjunto de práticas e dinâmicas associadas à rodoviarização, à apropriação territorial e ao aproveitamento turístico.
- 4 Cláudio Costa (1993) propõe a seguinte periodização para a formação do cinturão territorial turísti (...)
10A partir da década de 1930, observa-se a progressiva formação do “cinturão territorial turístico da metrópole do estado do Rio de Janeiro”, segundo expressão proposta por Costa (1993). A primeira fase deste processo, entre 1930 e 19554, transcorre em um contexto de reestruturação das bases produtivas e sociodemográficas do país e, durante a “Era Vargas” (1930-1945), de forte centralização política, autoritarismo, e de reforma administrativa do Estado. No nível estadual, o ambiente de retração econômica e de baixa arrecadação fiscal ensejou, sobretudo durante a gestão do interventor Ernani do Amaral Peixoto (1937-1945) – portanto, na vigência do Estado Novo –, uma ampla reformulação das políticas de ordenamento territorial. Estas passam a ser orientadas para a integração física e econômica das regiões fluminenses, tendo como suporte a realização de grandes obras públicas, entre as quais destacam-se a ampliação do sistema rodoviário estadual e o saneamento e drenagem das baixadas litorâneas (figura 3).
Figura 3 - Divisão Regional da Baixada Fluminense (1939)
Fonte: Arquivo Nacional
11O novo sistema em forma de leque rodoviário, planejado em parceria com o recém-criado Departamento de Estradas de Rodagem (DER), redesenharia a articulação entre diferentes áreas do estado com o Distrito Federal e a capital, Niterói, até então condicionada pelos traçados, ritmos e custos das conexões ferroviárias (Braga, 1940). As obras de abertura de estradas eram seguidas por aterramentos dos charcos, desmontes de pequenos morros, afogamentos de matas e desapropriações de terrenos (Mendes, 1948). As rodovias serpenteavam vales e aproveitavam, em diversos trechos, o traçado dos antigos caminhos de tropeiros e das linhas férreas (figura 4).
Figura 4 - Recorte da Carta Topográfica de Manuel Vieira Leão (1767)
Fonte: Biblioteca Nacional
12Para viabilizar estas e outras iniciativas, a reforma administrativa do Estado, empreendida a partir dos primeiros anos do período varguista, desempenharia um papel central. Visto que os orçamentos dos municípios eram limitados e seu corpo técnico bastante reduzido, os governos estaduais viriam a fornecer boa parte da expertise, via Departamentos das Municipalidades, e parte significativa do financiamento das obras.
13Além do controle financeiro e da assistência técnica aos municípios, os Departamentos “incorporaram funções específicas do campo do urbanismo, qualificando as administrações das cidades do interior para atuar no espaço urbano e para disciplinar o processo de urbanização” (Feldman, 2012, p. 24). Entendia-se, então, que as cidades deveriam funcionar como elos da política de integração territorial e centros de suporte às atividades econômicas a serem fomentadas. Neste sentido, à reestruturação territorial, capitaneada pelo estado, associou-se uma política urbanizadora cujas diretrizes foram sintetizadas no decreto n° 125 de 1940, que institucionalizou o Plano de Urbanização das Cidades Fluminenses (PUCF).
14Para sua execução, o plano privilegiava, além da modernização do centro urbano da capital, dois conjuntos de cidades: as aglomerações situadas no médio vale do Paraíba, e aquelas localizadas na região serrana e nas baixadas litorâneas (Azevedo, 2012). Tal seletividade indicava, de um lado, a intenção de se estruturar o processo de substituição de importações a partir do ordenamento dos núcleos urbanos onde seriam implantadas indústrias de base, como a Companhia Siderúrgica Nacional. De outro, pretendia-se que o turismo, de base urbana, viesse a constituir um atrator para a reorientação dos fluxos regionais, complementando ou não antigas funções, como mercados pesqueiros, portos ou áreas de transbordo de produtos agrícolas, e contribuindo para a esperada recuperação econômica do estado.
15A organização inicial do turismo no país remonta à década de 1920, graças, em parte, à iniciativa de associações civis como o Touring Club do Brasil. Durante a Era Vargas, o Estado assumiria o planejamento e a organização da atividade no território nacional. Buscava-se, sobretudo, diversificar e ampliar os destinos turísticos (fortemente concentrados no Distrito Federal, na região serrana fluminense e nas estâncias termais mineiras), melhorar as condições de acessibilidade e incentivar a construção de equipamentos atraentes para o público nacional e internacional.
16No âmbito estadual destaca-se a criação, em 1938, do Departamento de Propaganda e Turismo. Menos de dois meses depois, foi realizada a Conferência de Turismo do Estado que, reunindo prefeitos, associações e empresários, aprovou um plano setorial previamente esboçado pelo órgão recém-criado (O Fluminense, 20/07/1938). O plano apresentava sete linhas de ação, entre as quais: a criação de novos destinos turísticos; a construção, conservação de rodovias de turismo e organização de rotas turísticas; o incentivo à realização de excursões no interior; o estímulo à modernização e à integração das empresas de ônibus nas excursões; e a construção de novos hotéis por meio de incentivos fiscais (Revista “O Observador Econômico e Financeiro”, n. 32, 1938, p. 141-144).
- 5 Datado de 09 de julho de 1938 e ratificado pelo decreto-lei estadual no 157 de 26 de setembro de 19 (...)
17Alinhado ao plano, Amaral Peixoto assinou um decreto5 prevendo a isenção de impostos para empresas interessadas na construção de hotéis nas cidades fluminenses. Os estabelecimentos deveriam conter no mínimo 30 quartos e possuir instalações em níveis compatíveis àqueles das principais cidades turísticas do país. Valendo-se do incentivo, alguns hotéis foram construídos em Nova Friburgo, Campos dos Goytacazes, Resende e Petrópolis. Contudo, a expectativa do governo em relação à expansão dos investimentos privados no setor não foi plenamente atingida, motivando-o a se envolver diretamente na construção de hotéis, a exemplo, como veremos adiante, daquele que seria edificado na cidade de Araruama.
18Para além, portanto, de iniciativas isoladas e do entusiasmo de um pequeno grupo de empresários, o governo do estado entendia ser necessário promover ações amplas e coordenadas, de forma a incrementar o setor e atrair investidores. Foi nesse contexto que as relações entre turismo, urbanismo e desenvolvimento começaram a ser valorizadas nos debates profissionais e nos planos de urbanização elaborados a partir das décadas de 1930 e 1940 (Daibert, 2016).
19Em agosto 1942, o governo do estado organizou uma Exposição de Urbanismo que trazia a público os projetos que compunham o Plano de Urbanização de Cidades Fluminenses (PUCF). De passagem no Brasil, o urbanista Donat Alfred Agache (1875-1959) ressaltou a importância destes projetos no desenvolvimento do estado, com especial ênfase para o setor turístico:
Esse conjunto de transformações, que está se operando, já está oferecendo resultados promissores e a maioria das cidades da região vai adquirindo vitalidade, preocupando-se com a remodelação dos planos e com o equipamento necessário aos futuros desenvolvimentos: balneários se criam, hotéis se constroem sob um impulso empreendedor, iniciativas essas que vão atrair veranistas e facilitar o turismo. […] E, antes de mais nada, a cidade de Araruama, com seu hotel tipo alpestre, que está sendo construído, suas atrações esportivas (golfe, tênis, equitação, etc.) e sua linda praia de banhos será um dos focos mais interessantes da região (Diário da Manhã, 19/07/1942).
- 6 O escritório de engenharia, urbanismo e arquitetura Coimbra Bueno & Cia. Ltda., dirigido pelos irmã (...)
20A fala de Agache era, por certo, exagerada, sobretudo em relação aos efeitos territoriais concretos dos projetos apresentados. Seu tom laudatório deve ser atribuído, em larga medida, ao fato de que essa estadia no Brasil coincidia com sua recente contratação como consultor do escritório Coimbra Bueno6 para a elaboração dos planos para as cidades de “vocação” turística do estado do Rio de Janeiro.
21A contratação de Agache se devia não apenas aos seus vínculos profissionais no Brasil, mas também às suas experiências anteriores, entre as quais o “Plano de Extensão, Remodelamento e Embelezamento da Cidade do Rio de Janeiro” e o “Plano de Urbanização da Costa do Sol” portuguesa. O primeiro foi elaborado pela equipe liderada pelo urbanista francês entre 1927 e 1930, e é considerado o “primeiro plano urbanístico com caráter de plano diretor [para o Rio de Janeiro] e com implantação estimada ao longo de 50 anos” (CAU, 2009). O segundo decorre de uma encomenda feita a Agache pelo Ministério das Obras Públicas e Comunicações de Portugal, em 1933, na vigência do Estado Novo salazarista, e constitui a experiência precursora, neste país, “do planejamento alargado à escala da região, circunstância que, associada ao turismo, só encontra paralelo nos anos sessenta, com o Plano Regional do Algarve” (Lobo, 2014, p. 586).
- 7 Ao longo de sua carreira, Agache já havia participado ou viria a participar da elaboração de planos (...)
22Em ambos os planos é possível identificar os elementos gerais de uma espécie de “programa” urbanístico de balnearização de zonas urbanas litorâneas, construído em diálogo com diversas experiências nacionais e internacionais7. Além disso, embora não tenha sido adotado de forma global, alguns aspectos que o caracterizam seriam aplicados nos planos elaborados com a participação de Agache para as cidades da baixada de Araruama.
23Tal “programa” é composto por um conjunto de diretrizes e dispositivos que visam ao ordenamento territorial das zonas costeiras e ao seu aproveitamento turístico, quer em áreas já urbanizadas, quer em frentes de expansão urbana. Parte-se da valorização de uma situação geográfica, a proximidade do litoral, a qual são associadas uma ou mais funções capazes de atrair fluxos de intensidade e amplitude diversas, em particular o turismo, o veraneio, o lazer, e o uso residencial. Seu aspecto principal, contudo, consiste na formulação de uma lógica de ordenamento do espaço urbano, a qual se declina em “esquemas” projetados nas escalas do bairro (ou de um conjunto de bairros), da cidade e das regiões litorâneas.
24O primeiro esquema, baseado em um princípio de “composição”, prevê a associação de usos, equipamentos, espaços livres e vias de circulação, tendo a linha de costa como princípio ordenador e a “orla” como unidade de interface entre o espaço construído e o mar (e que pode se reproduzir na interface dos corpos hídricos adjacentes). Este esquema coincide, em linhas gerais, com o “modelo de urbanismo de carácter ‘balnear’”, tal como definido por Susana Lobo (2014, p. 559) a partir da análise dos planos de urbanização de cidades portuguesas dos anos 1930. No caso do Plano do Rio de Janeiro, o exemplo mais desenvolvido de sua aplicação corresponde ao projeto para os bairros da Lagoa e do Leblon, na Zona Sul da cidade (figura 5). Tratamento semelhante seria empregado na fachada marítima da cidade de Dieppe, para a qual Agache elaborou, entre 1927 e 1930, o Plan de Extension, Embellissement e d’Aménagement (Figura 6).
Figura 5: Projeto de melhoramentos dos bairros Lagoa e Leblon (Plano Agache)
O elemento central do projeto consistia na conclusão da via marginal da lagoa Rodrigo de Freitas, a Avenida Epitácio Pessoa. Entre o hipódromo do Jockey Club, a praia e a lagoa, o urbanista previu a remodelação completa do bairro do Leblon e a edificação do novo estádio do clube esportivo do Flamengo. Fonte: Agache, 1930, p. 200
Figura 6: Praia de Dieppe (França), pôsteres (1921 e 1936)
A comparação entre as duas imagens permite observar a fixação de uma “orla” pela associação de um passeio e de um extenso parque na interface com a “praia de banhos”. Fonte: Région de Haute-Normandie, 2010, p. 3 e imagem de capa.
25O segundo esquema, subordinado à lógica geral dos planos de orientar a “extensão” futura das cidades, preconizava a ocupação descontínua e sequencial de zonas periurbanas por meio de urbanizações do tipo “cidades-satélites” associadas a uma via de transporte margeando o litoral. No Plano do Rio de Janeiro, o traçado desta via corresponderia àquele projetado para o “metropolitano-extensão”, que costearia o oceano até alcançar a linha da Estrada de Ferro Central do Brasil no extremo oeste do Distrito Federal. Ao longo deste eixo previa-se o desenvolvimento de uma sequência de aglomerações satélites, quer ao redor de indústrias ou de estabelecimentos agrícolas, quer valorizando sítios pitorescos e novas praias, dando origem a “cidades balnearias ou de repouso muito apreciadas devido às comunicações rápidas com a grande cidade” (Agache, 1930, p. 142) (figura 7). Além disso, para garantir o afluxo de visitantes, deveriam ser criadas, nas vizinhanças destas novas urbanizações, parques esportivos, autódromos, campos de golfe e outros equipamentos.
Figura 7: Estudo esquemático dos transportes rápidos urbanos e suburbanos (Plano Agache)
Fonte: Agache, 1930, p. 152.
- 8 As plantas realizadas no âmbito do PUCS podem ser acessadas no Arquivo Digital Histórico da Câmara (...)
26Finalmente, a proposição de um “esquema” regional de ordenamento urbano balneário pode ser encontrada no Plano de Urbanização da Costa do Sol portuguesa (PUCS).8 Tendo como principal objetivo orientar o crescimento urbano de Lisboa e ampliar o aproveitamento turístico da região litorânea a oeste da foz do Tejo, o plano foi estruturado a partir dos traçados da estrada marginal entre Lisboa e Cascais e de uma nova autoestrada turística, projetada para ligar a capital portuguesa ao Estoril. Para cada um dos núcleos urbanos propunha-se o zoneamento dos usos e a adoção de esquemas de composição balnear para as áreas de interface com o mar. O PUCS considerava também a integração do sistema, tanto pela implantação de eixos transversais aos dois principais troncos rodoviários quanto pelo fortalecimento da complementaridade entre os aglomerados urbanos. Neste caso, recorria-se à repartição dos equipamentos turísticos e à diferenciação das áreas de uso residencial de acordo com um esquema de categorização social que dividia “a costa em quatro grupos sociais (Praias Populares junto a Lisboa, Praias destinadas à classe média, Praias de Saúde e Praias de Luxo e de Turismo)” (Lobo, 2014, p. 599).
27Considerando o Plano de Urbanização das Cidades Fluminenses, nota-se que a cidade de Araruama constituiu o principal foco de interesse nesta sub-região da baixada fluminense. No contrato firmado em 1941 com o escritório Coimbra Bueno para a elaboração do plano da cidade, constava um “projeto definitivo de loteamento de extensão imediata” (Azevedo, 2012, p. 187), o qual daria origem ao empreendimento conhecido como “Vila Veraneio”, atualmente o bairro “Parque Hotel” de Araruama.
28Por iniciativa própria, o governo do estado adquiriu uma área de 125 ha, onde edificou um hotel turístico (o Parque Hotel) e promoveu o loteamento da zona adjacente (Daibert, 2016). As características do projeto urbanístico elaborado para esta área (figura 8), correspondem àquelas que definem, segundo Lobo (2014), o “urbanismo balnear”. Destaca-se, em primeiro lugar, “a presença axial de uma via marginal” (Lobo, 2014, p. 560), a Rodovia Amaral Peixoto, cujo traçado se desenvolve ao longo de uma enseada na margem norte da lagoa (figura 9). Nota-se também a definição de uma zona de aproveitamento turístico ancorada a esta infraestrutura, concentrando “os equipamentos mais emblemáticos da estância balnear – o Hotel e/ou o Casino –” (Lobo, 2014, p. 560). Trata-se, neste caso, do Parque Hotel (figura 10), o qual deveria fazer parte, no futuro, de um complexo dotado de equipamentos esportivos. Por fim, projeta-se “uma Zona Residencial Balnear, reservada à moradia unifamiliar isolada, que [...] se espraia uniformemente pelo território, ao longo da costa, em núcleos de desenho mais geometrizado ou mais orgânico” (Lobo, 2014, p. 560). No projeto de Araruama, os lotes planejados para moradia unifamiliar foram dispostos nas adjacências do Hotel, enquanto os terrenos mais distantes seriam destinados a áreas de recreação e chácaras.
Figura 8: Planta do Plano de Urbanização de Araruama (c. 1940)
Fonte: CPDOC/FGV
Figura 9: Vistas parciais da lagoa de Araruama (1971) e da enseada de Botafogo (1907)
Na enseada de Araruama nota-se o recuo dos lotes em relação às pistas da rodovia, bem como o paisagismo do canteiro adjacente à “praia de banhos”, seguindo o esquema de composição da “orla” proposto no projeto dos irmãos Coimbra Bueno. Observa-se as semelhanças entre este tratamento urbanístico e aquele adotado na enseada de Botafogo (Rio de Janeiro) no início do século XX, durante a gestão do prefeito Pereira Passos. Fonte: Biblioteca do IBGE (imagem à esquerda) e Instituto Moreira Salles (imagem à direita).
Figura 10: Propaganda do Parque Hotel Araruama
Fonte: O Fluminense, 31/12/1944
29Após a inauguração do Hotel, a Comissão de Urbanização de Araruama lançou um edital para a comercialização dos terrenos vizinhos e fez edificar sete bangalôs, com o objetivo de estimular a compra de lotes e a construção de casas de veraneio (figura 11). Esperava-se que o estilo construtivo adotado servisse de “inspiração” para a futura ocupação da área, assim como o loteamento “pioneiro” da Vila Veraneio deveria servir de modelo para a extensão urbana da cidade.
Figura 11: Planta do vilino (bangalô) construído ao lado do Parque Hotel de Araruama.
No pavimento inferior, sala (2) e banheiro (3) e, no pavimento superior, quarto (1) e varanda (4) com vista para a lagoa.
Fonte: A Manhã, 04/09/1941
30A cidade de Cabo Frio também teve seu projeto de urbanização concebido pelo escritório Coimbra Bueno. De acordo com a proposta de zoneamento (figura 12), o uso turístico deveria ocupar parte da extensão marginal do Canal do Itajuru (conexão da lagoa de Araruama com o oceano) e da praia do Forte. Previa-se também a criação de áreas verdes e de lazer nas interfaces da praia e do canal com as zonas residenciais projetadas. Na frente marítima, jardins, lagos artificiais, belvederes, áreas abrigadas e aleias estariam associados a um eixo viário marginal (figura 13). Em ambos os casos se observa a composição de uma “orla”, unidade de articulação de um sistema espacial que deveria conectar os diferentes setores da “vida balneária”: a lagoa, o mar, as faixas de areia, as residências de veraneio e os hotéis.
Figura 12: Planta do Plano “Amaral Peixoto” de Urbanização das Cidades Fluminenses - Cabo Frio
Fonte: CPDOC/FGV
Figura 13: Planta do Plano “Amaral Peixoto” de Urbanização das Cidades Fluminenses - Cabo Frio / Praia do Forte
Fonte: CPDOC/FGV
31Entretanto, ao contrário do que foi observado para o ordenamento da Costa do Sol portuguesa, o Plano de Urbanização das Cidades Fluminenses não ensejou uma abordagem em escala regional para a baixada de Araruama. Isso talvez se deva à própria concepção do plano, que partia de uma tipologia funcional – “cidades turísticas” e “cidades industriais” – para selecionar os núcleos urbanos que seriam objeto das iniciativas de planejamento promovidas pelo Estado. Contudo, outros fatores viriam a contribuir para o incremento da articulação entre as cidades da região no período estudado.
32A conexão rodoviária é um processo lento que ocorre a partir da articulação seletiva de núcleos urbanos, combinada ou não a grandes projetos de integração territorial. No caso da Baixada de Araruama, as primeiras rodovias, criadas ainda na década de 1920, conectavam aglomerados urbanos que possuíam algum grau de complementariedade, como Niterói e Maricá, Araruama e Iguaba Grande, Cabo Frio e Arraial do Cabo. Somente no fim da década de 1930, com o Plano Rodoviário do Estado do Rio de Janeiro, é que se projeta uma rede rodoviária estadual, visando conectar os principais municípios fluminenses (figura 14).
33Ao longo das décadas de 1940 e 1950 são criados os eixos longitudinais das atuais rodovias RJ-106 (Amaral Peixoto) e BR-101, que articulam os fluxos da região metropolitana à baixada de Araruama e ao norte fluminense. Os trechos de rodovia construídos na década de 1920 foram, então, reconstruídos e incorporados pela Rodovia Amaral Peixoto (A Noite, 20/07/1942). O trecho entre Niterói e Macaé foi finalizado ao longo dos anos 1940, mas o asfalto só começaria a ser assentado a partir de 1952, obra que se concluiu treze anos depois, em 1965 (Teixeira, 2015). Nos anos 1970, há um novo processo de estruturação da malha viária, com a articulação dos eixos longitudinais por meio de rodovias como a RJ-114, a RJ-124 e a RJ-140, ligando as cidades do interior àquelas que compunham a zona costeira da baixada de Araruama. O elo final da rede seria criado em 1974, com a construção da Ponte Rio-Niterói.
Figura 14: Mapa do Plano Rodoviário do Estado do Rio de Janeiro (1942)
Fonte: Biblioteca Digital Luso-Brasileira
34À medida que a rodovia principal era construída, se estabeleciam as ligações internas, conectando as localidades municipais e estas aos núcleos centrais dos municípios (figura 15). Em alguns casos aproveitava-se o traçado de antigas estradas, como no exemplo da ligação Cabo Frio - Arraial do Cabo, reinaugurada em 1945 (O Globo, 03/08/1945). Em outros casos, novas vias foram implantadas para conectar núcleos formados pela criação de loteamentos.
Figura 15: Décadas de implantação das rodovias na Baixada de Araruama (até 1970)
Para a elaboração do mapa foram registradas as décadas e não os anos de implantação das rodovias visto que, em muitos casos, a data de inauguração não coincide com a de conclusão das obras. Optou-se também por representar somente os trechos de estrada denominados à época de “rodovias”, projetados para a circulação de automóveis.
Elaboração: Graphisme Soluções.
35Nos anos 1950, os anúncios de loteamentos e de lançamentos imobiliários na região destacavam sua proximidade com Niterói e o Rio de Janeiro, a ligação por meio da Rodovia Amaral Peixoto e a oferta de “farta condução” entre as duas áreas (figura 16). Valorizava-se o tempo de deslocamento, e sua redução a cada trecho de estrada aberto. Com a inauguração da Ponte Rio-Niterói quase toda a região encontrava-se a até duas horas do centro do Rio de Janeiro (Teixeira, 2015).
Figura 16: Anúncios de imóveis e loteamentos em Cabo Frio (Anos 1950)
Fonte: O Globo, 18/12/1957; O Globo, 02/04/1958
36Nos anos 1940, havia na região farta oferta de terras rurais que poderiam ser revertidas em lotes urbanos. As iniciativas de ordenamento territorial do governo do estado foram, sem dúvida, fatores indutores do processo de parcelamento. Trata-se da dinâmica de antecipação espacial, ou seja, de reserva de território, que implica em “garantir para o futuro próximo o controle de uma dada organização espacial, garantido assim as possibilidades, via ampliação do espaço de atuação, de reprodução de suas condições de produção” (Corrêa, 1995, p. 39). A “corrida loteadora” no período reproduziu, em larga medida, a antiga prática – comum às áreas periféricas dos centros urbanos brasileiros – da abertura de lotes, tendo apenas a disposição do arruamento como “estrutura” urbana implantada pelos empreendedores (Cortado, 2018).
37A operação de parcelamento da terra em série tornou-se um negócio lucrativo em razão da rápida criação dos lotes e do reduzido investimento em infraestrutura. Sua rentabilidade se apoiava no preço unitário baixo e no grande volume de pequenos lotes comercializados. Os planos elaborados no âmbito do PUCF assentavam-se em uma lógica distinta. Apostava-se que os melhoramentos urbanos implementados, quer pelo Estado, quer por empreendedores particulares, garantiriam uma renda diferencial significativa, ou seja, os custos das amenidades criadas poderiam ser compensados pelo valor unitário, mais elevado, dos terrenos.
38Assim como ocorria na cidade do Rio de Janeiro, na Baixada de Araruama prevaleceu o mercado de terras comandado por companhias loteadoras. Em geral, o processo era iniciado com a compra de grandes fazendas que seriam, então, desmembradas em lotes que variavam, em média, entre 360 e 640 m². No caso de Maricá, por exemplo, os primeiros loteamentos residenciais datam do início dos anos 1940 e a dinâmica se intensifica na década de 1950. Como identificou Ângela Martins (1986), entre 1950 e 1955, o total da área parcelada no município corresponde a cerca de 29km². Em sua maioria, os loteamentos eram criados por companhias imobiliárias, responsáveis por quase 80% da área total loteada entre 1943 e 1955 (tabela 1). O loteamento Jardim Atlântico (figuras 17 e 18) constitui um caso exemplar, não apenas por sua dimensão como por sua forma (o desenho em gradeado, a disposição do loteamento seguindo a linha de costa, bem como o tamanho, a geometria e a disposição dos lotes, privilegiando a forma alongada com a frente mais estreita), mas também por sua lenta realização (Holzer e Santos, 2015).
Tabela 1: Loteamentos de Maricá por tipo de agente loteador (1943-1955)
Condição do Loteador
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1° Distrito
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2° Distrito
|
3° Distrito
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Total
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%
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N.L
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Área
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N.L
|
Área
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Fonte: modificado de Martins (1986, p. 143)
Figura 17: Planta do loteamento Jardim Atlântico em Itaipuaçú, Maricá (sem data)
Embora a planta não esteja datada, é possível inferir que se trata de uma operação da Cia. Vidreira do Brasil em fins dos anos 1940.
Fonte: Arquivo Nacional
Figura 18: Fotografia aérea do loteamento Jardim Atlântico, em Itaipuaçú – Maricá (sem data)
Fonte: Acervo da COMINAT S/A Empreendimentos e Consultoria
- 9 De acordo com as informações levantadas por Costa (1993), o primeiro loteamento fora do centro de A (...)
39A mesma lógica também pode ser identificada no caso de Araruama, onde boa parte das áreas adquiridas nos anos 1940 só seria loteada no fim da década de 1970, à espera da valorização (Costa, 1993). Os primeiros loteamentos a serem ocupados foram aqueles situados no entorno dos centros urbanos. Além do loteamento “Vila Veraneio”, outros bairros derivados de assentamentos antigos e próximos ao centro, como Hospício e Paraty, fizeram parte do primeiro momento de expansão loteadora9. Segundo Costa (1993, p. 28), entre 1940 e 1955, foram realizados 21 loteamentos no distrito sede de Araruama, totalizando uma área de mais de 17km², aí incluída a Vila Veraneio, com cerca de 4km². Entretanto, embora próximos, os novos loteamentos não reproduziam o modelo “Vila Veraneio”, já que apenas dispunham os lotes e os acessos, sem qualquer infraestrutura básica.
40É possível afirmar, portanto, que as duas referências de urbanização – a dos planos e a dos loteamentos periféricos – coexistiram durante o período, embora o segundo modelo tenha sido dominante. Há diversas razões que explicariam isso, dentre elas, a maior rapidez para o parcelamento das terras e para a conversão fundiária e o menor esforço na execução das obras de urbanização. Estas explicações, aliás, já foram avançadas em pesquisas anteriores realizadas por geógrafos, tendo como recorte municípios selecionados da região (Martins, 1986; Costa, 1993; Holzer e Santos, 2015, Teixeira, 2015).
- 10 Tais como o “Automóvel Clube”, o “Clube Excursionista”, o “Grupo dos Turistas Cariocas”, o “Centro (...)
41Paralelamente ao processo de apropriação do solo, observa-se a difusão de novas práticas de turismo na região. Ao que parece, a aprovação do já mencionado plano estadual de turismo logrou estimular, logo nos anos subsequentes, a oferta de novos produtos por parte de organizações e empresas do setor, particularmente no vetor do excursionismo e da organização de viagens para cidades até então pouco conhecidas pelos turistas. o Touring Club do Brasil, por exemplo, realizou, entre 1943 e 1944, quatro excursões para a região. Os roteiros tinham duração de três dias e os grupos ficavam hospedados no Parque Hotel de Araruama. O percurso incluía idas às cidades de São Pedro d’Aldeia e Cabo Frio, passeios de bote na lagoa e visitas às ruínas do forte São Matheus e às obras recém-inauguradas pelo governo (A Manhã, 15/10/1943; 18/11/1943; 24/12/1943; 31/01/1944). Excursões como essa foram reproduzidos ou adaptados por outras associações e clubes recreativos da capital federal e de Niterói10, e por agências de viagens privadas.
42A produção de roteiros turísticos envolveu também o Departamento Geográfico do Estado do Rio de Janeiro, órgão ativamente engajado na elaboração de estudos e projetos para recuperação econômica do estado. Em 1954, o Anuário Geográfico do Estado do Rio de Janeiro, ligado ao Departamento, publicou um “Itinerário Turístico para Cabo Frio, as lagoas de Maricá, Saquarema e Araruama” (IBGE, 1954). O percurso foi organizado considerando a totalidade da região, a Baixada de Araruama, e estruturado por meio de duas categorias, as lagoas e as cidades. A evocação dos cenários percorridos deveria despertar no “turista viageiro” o interesse por práticas como o repouso, a contemplação e o ócio recreativo (IBGE, 1954, p. 203).
- 11 Criada em 1960, a Revista Quatro Rodas desempenhou um papel importante, sobretudo em sua primeira d (...)
43Em 1962, a Revista Quatro Rodas11 (ano 3, n. 18, janeiro de 1962, p. 36-54) propôs um roteiro turístico para a “Costa do Sol”, sugerindo um novo recorte territorial, definido pela situação litorânea e organizado a partir de uma rede de cidades de veraneio balneário. O roteiro, indicando a sequência de cidades a serem visitadas, era orientado pela rodovia Amaral Peixoto que, segundo a reportagem, “parece ter sido feita de encomenda: é naturalmente uma estrada turística” (ibid., p. 50).
44A narrativa é organizada por municípios, distanciando-se assim do enfoque regional-paisagístico associado à baixada de Araruama. Valorizam-se os aspectos históricos, paisagens que merecem ser fotografadas, praias, hotéis de qualidade e os diferentes estágios de desenvolvimento turístico observados em cada cidade. Nesse sentido, Niterói “é a vizinha da mais conhecida cidade brasileira”; Maricá “está meio por fora do ciclo turístico”; em Saquarema “os turistas já descobriram o quê primitivo e bravio”; Araruama “está em pleno progresso graças aos loteamentos para turistas e aos seus hotéis”; São Pedro d’Aldeia “ficou meio de lado, obscurecida pelas suas vizinhas” e em Cabo Frio “dezenas de milhares de turistas a procuram todos os anos, atraídos por suas praias, pela pesca, pelos clubes e pela intensa vida social das épocas de veraneio” (ibid., p. 50-52). Nota-se o início de uma hierarquização turística na rede de cidades balneárias da nova “Costa do Sol”, posicionando Cabo Frio como o principal destino turístico da região.
45Portanto, antes do “boom” do veraneio de “segunda residência”, que só ocorreria a partir da década de 1970, as práticas dos roteiros e itinerários turísticos conectaram cidades, mares, lagoas, e praias da “Costa do Sol” do lado de cá do Atlântico.
- 12 Entre 1940 e 1950 o crescimento populacional da Região das Baixadas Litorâneas (que engloba os muni (...)
46Nas décadas de 1940 e 1950 observa-se uma “bifurcação” na trajetória da ocupação da baixada de Araruama. Encontram-se aí as bases do processo de balnearização que se tornaria, nas décadas seguintes, a modalidade preferencial de integração desta porção do litoral fluminense à metrópole do Rio de Janeiro. São indicadores deste processo a aceleração do crescimento populacional, predominantemente urbano, dos municípios da região,12 sobretudo a partir da década de 1970, e, na atualidade, o domínio do uso de “segunda residência” na paisagem urbana, o intenso afluxo de turistas às praias e os gigantescos congestionamentos que ocupam as vias de acesso à região nos meses de verão e em feriados prolongados, bem como os problemas sazonais de sobrecarga da infraestrutura urbana.
47No período aqui estudado, as cidades da costa fluminense, incluindo o Distrito Federal e a capital do estado, Niterói, constituíram lugares de experimentação privilegiados para o desenvolvimento de um “programa” de ordenamento urbano de caráter balnear que, nas décadas seguintes, repercutiria em escala regional e nacional. Os “esquemas” urbanísticos projetados buscavam soluções para os problemas e desafios contemporâneos das cidades e regiões litorâneas, tal como estes eram definidos no âmbito, sobretudo, de certos órgãos do Estado e de alguns círculos profissionais (com destaque para arquitetos, engenheiros, urbanistas e, também, geógrafos). Sobressaem então propostas ligadas à atração dos fluxos turísticos e de veraneio, ao controle do “problema” do crescimento urbano, à ocupação das áreas de interface entre o mar (e também as lagoas) e a cidade, e à valorização dos terrenos resultantes de projetos de extensão da malha viária e da conversão fundiária de terras rurais.
48A despeito da intenção dos planejadores, o período foi marcado por um processo acelerado de apropriação via parcelamento do solo que, no entanto, não foi acompanhado pela ocupação efetiva do espaço loteado. Grande parte dos lotes continuaria desocupada por muitos anos e as práticas de apropriação dominantes no período resultariam, sobretudo, na difusão do modelo de loteamentos periféricos. É o que testemunha a exposição do plano de urbanização dos Irmãos Roberto, em seu jamais consumado anseio de edificar uma cidade do amanhã no segmento da “Costa do Sol” que havia escapado, até então, da “sanha dos especuladores insaciáveis” (Correio da Manhã, 13/05/1956).
49A rodoviarização também desempenharia um papel central no processo de balnearização da Baixada de Araruama, alterando os tempos, os custos, as práticas e as expectativas de conexão (figura 19).
Figura 19: Praia das Conchas – Cabo Frio (1950 e 1973)
Fotos: Wolney Teixeira. Fonte: Trindade, Mauro (org.) Wolney Teixeira: o Sal da Terra – Fotografias da Região dos Lagos (1930-1970). Rio de Janeiro: Documento Histórica, 2011, p. 85 e 86
50Entretanto, nos anos 1940 e 1950, as estradas eram precárias e as condições de habitabilidade nos loteamentos recém-criados, mínimas. Não à toa, as práticas turísticas ligadas às viagens curtas, conectando os lugares da região por meio de roteiros e itinerários, eram muito mais comuns do que o veraneio associado à “segunda residência”.
51De fato, com exceção talvez da extensão urbana da cidade de Araruama, na área adjacente ao Parque Hotel, mal se percebia qualquer transformação nas “paisagens culturais” da região, ainda associadas às atividades salineiras, à pesca, às manchas de atividades agropecuárias e aos “vastos tratos de terra [abandonados] ocupados por brejos e capoeiras” (Mendes, 1948, p. 86). Como observaria a geógrafa Lysia Bernardes (1957), mesmo no fim da década de 1950, a atividade turística havia influído pouco ou quase nada na fisionomia e na vida das cidades. Neste sentido, a oficialização do termo “Costa do Sol”, no início dos anos 1960, constituiu também uma forma de antecipação espacial.
52Portanto, entre a balnearização como “projeto”, “aposta” e alternativa para a estagnação econômica dos municípios fluminenses, e a balnearização no “terreno”, como conjunto de formas e práticas associadas à transformação efetiva das zonas litorâneas, houve um período de experimentações, incertezas e de muita especulação.