Os autores agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por meio do projeto 306087/2014-6 e a Jovem Equipe Associada ao IRD (Instituto francês de Pesquisa para o Desenvolvimento) – JEAI-GITES Brasil (Gestão, Indicador e Território em Ambiente e Saúde no Brasil).
1A difusão de doenças constitui um dos grandes problemas que sempre afligiu a Humanidade. As alterações de sistemas fechados (homem-meio) em territórios que se tornam expostos por movimentos de população e mudanças das condições ambientais têm resultado em um grande número de mortes.
2Por exemplo, se estima que, depois da chegada de Cristóvão Colombo na América, entre 1493 e 1620, morreram aproximadamente 100 milhões de indígenas em consequência de diferentes epidemias. Um dos códigos Astecas relata a epidemia de varíola de 1538 e revela a trágica dimensão do projeto europeu de colonização. Do outro lado do oceano, na Europa Central, um monumento na praça da Santíssima Trindade em Budapeste lembra as epidemias de peste de entre 1691 e 1709, que castigaram a população urbana.
3O livro de Leonhard Ludwig Finke, “Versuch einer allgemeinen medicinisch-praktischen Geographie” (1), publicado em 1792, é a primeira obra em que se define o campo de estudo denominado “geografia médica” e que, sob o paradigma do determinismo, dispõe sobre a topografia das doenças. Este livro é considerado o início desta linhagem geográfica.
Figura 1: Atlas de Heinrich Karl Wilhelm Berghaus, 1852, com mapa das doenças no mundo (atlas alemão, um dos mais antigos nessa escala)
Publicado em: Havard Colection
4Motivado pela epidemia de cólera de 1854 no centro de Londres, que provocou 14.600 mortes, John Snow realizou um estudo cartográfico (2) que é considerado um trabalho clássico da epidemiologia, com grande contribuição do que seria posteriormente denominada geografia aplicada. A sobreposição de mapas mostrava uma concentração de mortes por cólera no entorno da bomba de água da Broad Street. Suas observações, apoiadas na análise espacial, o levariam a interditar a bomba, fazendo reduzir rapidamente a epidemia. Este é um claro exemplo dos mapas como ferramenta de organização e análise de dados que subsidiam decisões, podendo salvar vidas.
Figura 2: Mapa da cólera em Londres John Snow (1854)
5É a partir deste evento que se estabelece a relação entre a cólera e a pobreza, o que gera um grande interesse pelos mapas sociais, por meio dos quais se pode avaliar a distribuição socioespacial da população das cidades. Os mapas produzidos entre 1886 e 1903 por Charles Booth, entitulados “Descriptive map of London poverty” (3) são exemplos da busca por correlações espaciais entre fatores sociais e a distribuição de problemas de saúde, com forte apelo visual.
Figura 3: “Mapa descritivo da pobreza de Londres” de Charles Booth
Produzido entre 1886 e 1903
Figura 4: Detalhe da legenda do mapa do de Charles Booth
Produzido entre 1886 e 1903
6Foi também durante o século XIX que se estabeleceu uma clara divisão entre abordagens com ênfases em aspectos sociais ou ambientais. Os que possuíam uma perspectiva voltada para o social se aproximaram de uma visão higienista, centrada nos efeitos da Revolução Industrial, com especial interesse pelas condições de saúde da classe operária, suas condições de habitação e trabalho. O impacto do acelerado processo de urbanização, a deterioração das condições de vida dos habitantes das cidades e o fortalecimento do movimento operário na Europa provocou o interesse pelo estudo da pobreza nas cidades, os determinantes sociais de das doenças e principalmente a mortalidade, que constituíram bases da chamada epidemiologia social, para a qual contribuíram Louis René Villermé (França, na década de 1830), Edwin Chadwick e Friedrich Engels (Inglaterra, 1840) e Rudolf Virchow (Alemanha, 1850). Vários destes estudos utilizaram o espaço urbano como critério para distinguir condições de vida. Na América Latina, devido às guerras internas da época e o controle de uma enorme população de escravos, obviamente excluídos de toda política de equidade, a produção científica da epidemiologia social foi incipiente.
Figura 5: Mapa da história da cólera em Exeter (Reino Unido) em 1832 de Thomas Shapter.
Figura 6: A série de cartas médicas de Carney, L. H. (1874) mostrando a localização nos Estados Unidos da Pneumonia
Publicado por New York: G.W. & C.B. Colton & Co., 1874
7De outra parte, a abordagem geográfica-ambiental sobre a saúde se destaca pelo aporte pioneiro de Max Sorre (4) no início do século XX, que introduziu o conceito de “complexos patogênicos”. Este conceito alude a uma trama de relações estáveis e permanentes existentes entre os seres vivos, o homem e o ambiente, que se conformam em determinados lugares de encontro entre hospedeiros e agentes patogênicos, viabilizados por condições ambientais particulares, e na produção de doenças.
8Apesar do predomínio à época do paradigma da geografia regional, de caráter descritivo, estas ideias proporcionaram estudos de um ponto de vista sistêmico, operacionalizado pelo método de sobreposição cartográfica, combinando elementos antrópicos e naturais para a identificação e localização de habitats. Além de Max Sorre, estes procedimentos tiveram grande influência a partir de autores como Evgeny Pavlovsky, que realizou estudos sobre endemias de um ponto de vista ecológico, isto é, baseados nas relações entre seres vivos e o ambiente físico, e considerando os princípios de equilíbrio entre meio interno e meio externo, entre homem e meio, e entre agente causal e hospedeiro. Estes modelos, ainda que adequados para o estudo de algumas endemias, não permitiram compreender a distribuição espacial de doenças infecciosas emergentes e doenças não transmissíveis que se magnificaram nas últimas décadas.
9Em 1949, o Congresso da União Geográfica Internacional (UGI), realizado em Lisboa trouxe o reconhecimento oficial à geografia médica, apoiado na definição de saúde da Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1946, considerada como o estado de completo de bem-estar físico, mental e social, e não só a ausência de agravos ou doenças. Jacques May (5), em 1950, ampliou a definição dos complexos patogênicos (composto por agentes causais, vetores, hospedeiros) com o conceito de “complexos geogênicos” (aspectos sócio demográficos e econômicos). O objetivo permanecia sendo o de determinar as áreas de risco de doenças e cartografar sua distribuição espacial, principalmente, no mundo subdesenvolvido, de clima tropical. Para May, a geografia médica consistia no estudo sistémico das doenças da terra e da população.
Figura 7: Mapa de Jacques May (1951) da distribuição da cólera no mundo
Publicado em: Geographical Review, n.41, v.2, p.272-272, 1951
10Durante a segunda metade do século XX se produziu a revolução científica na geografia. A perspectiva racionalista, baseada em procedimentos de reconstituição regional de bases qualitativas, ganha escopo conceitual, que se amplia com a introdução de métodos quantitativos e a busca de modelos e leis científicas que trazem novas pautas para o estudo da distribuição espacial. Ao mesmo tempo, a visão ecológica passa a ser complementada por outra definição de estudos geográficos, correspondente ao estudo da diferenciação de espaços sobre a superfície terrestre, uma definição vertical e horizontal complementar à abordagem da dimensão espacial.
Figura 8: Mapa de Pyle, G.F.(1969) da difusão da cólera nos EUA no século XIX.
Publicado em: Geographical Analysis, 1969, n.1, v.1, p 59-75
11Durante os anos 1970 a 2000, pode-se relembrar os trabalhos de Jean-Pierre Hervouët, sobre a oncocercose e a doença do sono (Tripanossomíase Humana Africana) na África Ocidental, realizados diretamente na linha de evolução da disciplina. Desenvolvidos no contexto de programas interdisciplinares, permitiram compreender a dinâmica epidemiológica dessas doenças históricas em múltiplas escalas temporais e espaciais, mas sempre articulando informações biológicas, demográficas e geográficas nas escalas que correspondem à realidade dos fenômenos de transmissão. Assim, se libertando dos espaços delimitados a priori para reconstruir os espaços relevantes do ponto de vista da exposição e da transmissão. Jean-Pierre Hervouët (1987 e 1990) (6 e 7) abriu o caminho para diversos estudos geográficos nas interfaces entre ambientes e sociedades, realizados desde então, nas paisagens em mutação, tanto na África Subsaariana quanto em outras áreas em transformação no Sul, dando conta assim da produção de áreas de risco à saúde e suas dinâmicas.
12Na epidemiologia, observou-se um avanço dos modelos de análise, sobretudo voltados para a compreensão dos aspectos que envolvem a produção de doenças não transmissíveis. Estes estudos adotaram técnicas de coleta e análise de dados baseados em fatores de risco, entendidos não como causas diretas destas doenças, mas como elementos necessários para sua ocorrência. Surgem então os modelos multicausais e desenhos de estudos baseados em variáveis obtidas no nível individual. Os modelos de risco coletivo, genericamente chamados de “ecológicos” são desvalorizados. A geografia e sua contribuição conceitual e metodológica para o entendimento dos contextos socioambientais geradores de problemas de saúde perdem importância sob este novo paradigma. A acelerada urbanização, junto à crise ambiental mundial, introduziu, a partir da década de 1970, novas preocupações e concepções sobre a Saúde Coletiva. Os modelos que haviam sido desenvolvidos para a análise de endemias rurais se mostraram inadequados para explicar a permanência de doenças transmissíveis, como a o recrudescimento da tuberculose nas cidades, e a emergência de novas doenças.
13A epidemia de AIDS tampouco pôde ser compreendida como um fenômeno característico de grupos de risco possíveis de serem delimitados no espaço e na sociedade. A sua evolução nas últimas décadas evidenciou a necessidade de se utilizar modelos de difusão, abertos, que enfatizem a interação social como meio de propagação da epidemia. A perda de um nicho específico, onde se produzem as doenças, bem como a complexidade dos sistemas ecológicos e sociais contemporâneos exigiram a incorporação de conceitos chave de organização espacial e dinâmica socioespacial nos estudos sobre a distribuição de doenças, como os trabalhos realizados por Peter Gould (8).
Figura 9: Dimensões geográficas da epidemia da Aids de Peter Gould (1989).
Publicado em Professional Geographer, n.4, v. 1, p.71-77, 1989
14Coincidentemente, em 1976, durante um novo congresso da UGI, realizado em Moscou, se reconheceu a mudança da denominação, da geografia médica para a geografia da saúde, incluindo duas linhas de aplicação bem definidas: por um lado, a geografia das doenças (campo tradicional da geografia médica) e, por outro, a geografia dos serviços de saúde (campo tradicional da geografia dos serviços). De um lado, a preocupação principal é o estudo do processo saúde-doença. Do outro, o binômio doença-atenção. Os métodos de associação espacial se convertem em elementos chave para a compreensão da interação entre a produção de riscos, a deterioração da saúde, as condições de vida, o acesso aos serviços de saúde e a equidade dos sistemas de saúde. A análise da localização, distribuição e evolução espacial dos problemas de saúde é finalmente integrada.
15O campo de estudo da geografia da saúde, na sua configuração atual permite que diferentes perspectivas paradigmáticas possam contribuir para o entendimento dos diversos níveis de determinação dos problemas de saúde. A diversidade de temas e abordagens metodológicas verificada na atualidade demonstram a dinâmica de uma geografia da saúde caracterizada, não somente por um enfoque geográfico sobre questões de saúde, mas principalmente uma ciência aplicada à saúde, que se constitui num movimento generoso, de oferta de conceitos e métodos empregados para compreender e atuar sobre os problemas de saúde.
16Como parte da evolução epidemiológica e sanitária que acompanha a transição demográfica, a geografia da saúde tem gradualmente reservado as abordagens relacionadas às doenças infecciosas transmissíveis, e em particular às doenças transmitidas por vetores, ao campo coberto pelo conceito do complexo patogênico. Ao propor o conceito de sistema patogênico nas décadas de 1970 e 1980, Henri Picheral (1983) (9) abriu o conceito fundador da geografia médica para novos perfis epidemiológicos progressivamente dominados por doenças ligadas ao prolongamento da vida e às mudanças de estilo de vida. Em uma abordagem sistêmica, esse conceito revisitado se revela assim mais apto a analisar as heterogeneidades espaciais da saúde dominadas pelas doenças cardiovasculares, cânceres ou doenças neuro-degenerativas, mas também por acidentes de trânsito ou exposição a substâncias tóxicas que gradualmente se tornam causas de morbidade e até mortalidade. Essas transições demográficas, epidemiológicas e de saúde, atingindo mais tardiamente, mas de maneira mais rápida, nos países do Sul. Levam à coexistência de múltiplos perfis patológicos, dando à questão das desigualdades em saúde uma nova dimensão complexa através da produção de coexistências de territórios de saúde heterogêneos. Assim, especialmente nas cidades dos Países do Sul, populações caracterizadas por perfis dominados por doenças transmissíveis “históricas” (malária, sarampo, desnutrição...) estão próximas, ou mesmo entrelaçadas, com populações dominadas por novas causas de morbidade e mortalidade. Estas questões de saúde pública opostas ou até mesmo contraditórias levam aos atores e tomadores de decisão a escolhas difíceis, de modo a alocar os meios, muitas vezes reduzidos, à realidade das necessidades, muitas vezes imensas. Identificar a realidade da distribuição das necessidades, tanto em termos de populações como de espaços, coloca o território no centro do jogo científico, tornando a geografia uma disciplina importante no desenvolvimento sanitário do espaço. Ao fazer desta questão o centro de suas preocupações sobre as cidades dos países do Sul, Gerard Salem (1998) (10) desenvolveu uma reflexão sobre o propósito dos geógrafos da saúde em torno da compreensão da produção e do funcionamento dos territórios de saúde. Assim, a identificação de espaços, fronteiras, descontinuidades da saúde encontra para os geógrafos a sua razão de ser e o seu desenlace, voltando a centrar-se nesta questão central dos territórios, muito além das abordagens puramente geoepidemiológicas.
17A própria definição de problema de saúde permite a ampliação de temas e enfoques de estudos de geografia da saúde, muito além de um conjunto limitado de doenças. Segundo Castellanos (11), a situação de saúde de um grupo determinado populacional é constituída por um conjunto de problemas de saúde, descritos de acordo à perspectiva de um ator social. As necessidades de saúde, por outro lado, são estabelecidas por comunidades visando o enfrentamento dos seus problemas. Segundo este ponto de vista, são essenciais os processos participativos em que se estudam ou planejam ações sobre os problemas de saúde.
18A geografia da saúde procura compreender o contexto em que ocorrem os problemas de saúde, para poder atuar sobre territórios, não sobre os indivíduos, nem sobre organismos. Diferente de outras disciplinas, a geografia busca uma perspectiva macroscópica dos problemas de saúde, permitindo compreender a dinâmica do processo saúde-doença e de doença-atenção à saúde. A diversidade de temas da geografia da saúde é também resultado dos diversos campos de atuação da Saúde Coletiva, que reúne as ações de vigilância de doenças e seus determinantes, a atenção e organização dos serviços de saúde, e a promoção de saúde, esta última de desenvolvimento relativamente recente. Estudar estes problemas requer uma visão ampliada de saúde, que abarque desde a prevenção de doenças até o acesso a serviços de saúde, isto é, reconhecendo a inseparabilidade do processo de saúde-doença-atenção.
19Podemos sintetizar que hoje constitui o maior desafio da geografia da saúde compreender as particularidades de cada problema de saúde, e suas relações com processos gerais, como a globalização, a expansão e crise do capitalismo, a precarização do trabalho, a vulnerabilidade das populações e territórios, a degradação ambiental, a urbanização, entre outros. Esta visão ampliada de saúde requer, por outro lado, a aplicação de todo o corpo conceitual da geografia, superando dicotomias comuns da disciplina, como a geografia física e humana, urbana e rural, regional e geral, quantitativa e qualitativa, etc. Se a Saúde Coletiva é um campo de estudos interdisciplinar e diversificado, também a geografia deve dispor de um extenso instrumental, de modo de oferecer meios para a compreensão dos processos de saúde. A cartografia e o trabalho de campo são alguns dos instrumentos desenvolvidos no âmbito da geografia que podem ser empregados para a compreensão dos contextos dos problemas de saúde. Não por acaso, estes elementos metodológicos estão presentes nos diversos estudos contemporâneos de epidemiologia social, ecologia de doenças, distribuição de serviços de saúde, desigualdades sociais, difusão de doenças, entre outros. Também o uso de dados secundários, produzidos por censos e inquéritos populacionais, e dados oriundos dos sistemas de saúde, permitem a construção e análise de indicadores de saúde, que vêm sendo amplamente utilizados na geografia da saúde.
20Os diversos temas e abordagens atuais da geografia da saúde demonstram o esforço de abranger o contexto dos problemas de saúde, sua composição social, política e ambiental e suas particularidades locais.
Figura 10: Síntese da relação geografia e saúde
Elaborada pelos autores
21A geografia da saúde, por sua história, seus conceitos e métodos, permite trazer um olhar original às questões atuais relacionadas aos fenômenos de emergências patológicas, à difusão de hospedeiros e agentes infecciosos ou à produção de desigualdades em saúde. Enriquecendo-se com novas ferramentas que são cada vez mais eficientes, dados com uma abundância cada vez maior, mas às vezes de precisão incerta. Deve encontrar em suas realizações metodológicas e conceituais e nas lições aprendidas de trabalhos anteriores, a capacidade de aproveitem ao máximo este progresso para enriquecer suas contribuições científicas sem afastar de seu objeto fundamental, os territórios de saúde.