1O Cerrado é o bioma brasileiro que tem sofrido uma das maiores pressões antrópicas. Segundo Strassburg et al. (2017) o Cerrado perdeu cerca de 46% de sua cobertura vegetal nativa e apenas 19,8% da sua área permanece inalterada. Entre 2002 e 2011, as taxas de desmatamento do Cerrado (1% por ano) foram 2,5 vezes maiores que na Amazônia. O processo de ocupação antrópica nesse bioma intensificou-se por volta do século XVIII, especialmente por conta da mineração do ouro, mas foi a partir do seu declínio em 1750 que a região passou a se dedicar também a agricultura e à pecuária (Fernandes e Pessoa, 2011). Tais dinâmicas ganharam maiores proporções após a década de 60 do século XX, com a modernização e desenvolvimento da agricultura, consequências do Plano de Metas do presidente Juscelino Kubitschek, que elaborou estratégias de ocupação e modernização do interior do país (Silva et al., 2000).
2Segundo Bezerra e Cleps Jr. (2004), dois programas estatais tiveram grande importância para o avanço da fronteira agrícola no bioma Cerrado, os programas PRODECER e o POLOCENTRO, ambos criados entre os períodos de 1970 e 1990. Atualmente, esse processo tem alcançado ritmos intensivos. O emprego do plantio de grãos substitui riquezas naturais e a paisagem é tomada por vastas planícies de lavoura (Medeiros, 2009).
3A Microrregião da Chapada dos Veadeiros, localizada ao norte do estado de Goiás e a 240 km de Brasília, é uma importante área de expansão da agropecuária moderna e de grande beleza cênica com um importante potencial turístico. Além disso, é um território com uma dinâmica complexa, pois, além de vastas fazendas, nele estão localizados assentamentos rurais e unidades de proteção ambiental importantes para a conservação da biodiversidade do Cerrado, tais como o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, o maior território Quilombola do Brasil, o Kalunga, e a Terra Indígena Avá-Canoeiro.
4Para melhor relacionar essa complexa dinâmica de gestão territorial com os impactos provocados pelo desenvolvimento econômico regional é importante considerar o uso de dados e informações próprias de uma região, como os dados de uso e cobertura da terra. Segundo Farias et al., (2007), tais estudos dão suporte a esse tipo de análise, visto que apresentam dados de variação temporal e espacial. Além disso, são instrumentos que auxiliam atividades de planejamento e tomada de decisões (Araújo Filho et al., 2007).
5Alguns estudos demonstram o quanto é relevante esse tipo de análise. A exemplo disso estão os trabalhos de Thalês e Poccard-chapuis (2014), que utilizaram, entre diversas variáveis, os dados de uso e cobertura da terra para identificar as principais frentes pioneiras no estado do Pará; Panizza e Fournier (2008), que através dos elementos estruturantes da paisagem, propuseram um modelo espacial para o Litoral do Rio Grande do Norte; Canal e Verdum (2013), que desenvolveram um mapeamento integrado do município de Porto Alegre considerando aspectos sociais e ambientais.
6Dentro dos limites da Microrregião da Chapada dos Veadeiros, a Região de Influência do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (RIPNCV) é uma das regiões do Cerrado brasileiro situada em um cenário ativo e com transformações sociais e econômicas de grande relevância.
7Diante desse contexto, o objetivo deste estudo é desenvolver uma caracterização atual da dinâmica do território da RIPNCV, de modo que, a análise e apresentação dos dados, levantados e gerados nessa pesquisa, possam nos mostrar a dinâmica espaço-temporal da região, num período de 30 anos, para traçar o atual cenário de desenvolvimento econômico da região. Para tal, incialmente apresentaremos os procedimentos metodológicos e resultados do mapeamento o qual denominamos: Dinâmica e ocupação da área de estudo. Num segundo momento, apresentaremos uma proposta de caracterização do cenário regional o qual denominamos: A dinâmica de um território desigual. Esta estrutura foi baseada no modelo conceitual da pesquisa disponível na Figura 1.
Figura 1: Modelo conceitual da pesquisa.
- 1 Este programa tem a iniciativa de promover o desenvolvimento econômico de determinada região e univ (...)
8A Região de Influência do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, delimitada segundo o Plano de Manejo do Parque (ICMBio, 2009), é composta pelos municípios: Alto Paraíso de Goiás, Cavalcante, Colinas do Sul, São João d’Aliança e Teresina de Goiás (Figura 2). Ocupando uma área de 15.371,9 Km² e com cerca de 36.500 habitantes (IBGE, 2017), a região está situada na Microrregião da Chapada dos Veadeiros, definida pelo IBGE, e também faz parte do programa Territórios da Cidadania1.
Figura 2: Mapa de Localização da Região de Influência do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros.
- 2 Em junho de 2017 o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros foi ampliado de 65 mil hectares para 24 (...)
9A região de estudo foi avaliada como área extremamente prioritária para a conservação da vegetação, pois possui uma grande representatividade do Bioma Cerrado (Brasil, 2002). Em especial por conta do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros2 que é uma Unidade de Conservação Federal de Proteção Integral, criado em 1961 e declarado Patrimônio Natural da Humanidade pela UNESCO, em 2001. O Parque tem sido fundamental para a manutenção ambiental e econômica local, visto que a região possui grande aptidão turística, devido a sua beleza cênica. Assim, o turismo ecológico tem aumentado na região devido a duas situações: a projeção nacional e internacional da Chapada dos Veadeiros como Patrimônio Natural e o aumento da facilidade de deslocamento no estado de Goiás nos últimos cinquenta anos (Costa et al., 2015), sobretudo na parte norte do estado seguindo para o Tocantins.
10Além do Parque, existem outras unidades na região que possuem especificidades quanto a sua organização e gestão territorial. Exemplos dessas unidades são o Território Quilombola Kalunga, o maior do Brasil; a Terra Indígena Avá-Canoeiro, que durante os séculos XVIII e XIX passaram por grandes conflitos quando as fazendas de gado e lavoura foram introduzidas na região (ICMBIO, 2009); a Área de Proteção Ambiental do Pouso Alto, importante unidade de conservação estadual; cerca de 21 Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs) (Silva et al., 2016) e 14 projetos de assentamentos rurais do INCRA (INCRA, 2016).
11Nestas unidades são identificados níveis diferentes de gestão, onde os processos relativos à questão ambiental se consolidam de forma específica. Mesmo as unidades de organização do território que não possuem como principal função a conservação do meio ambiente, como a Terra Indígena e o Território Quilombola, acabam por contribuir para a manutenção do mesmo, pois suas populações possuem modos de vida tradicionais de baixo impacto ambiental e considerados sustentáveis.
12A fim de analisar a dinâmica e ocupação da área de estudo, optou-se por utilizar as ferramentas de geotecnologias, visto que estas têm sido amplamente utilizadas para coleta, processamento, análise e oferta das informações geográficas (Rosa, 2005). Além disso, elas permitemr a união de dados socioeconômicos e ambientais de fontes diversas em “bases espaciais” (Barcellos e Bastos, 1996).
13As principais etapas para a análise foram: levantamento de dados disponíveis sobre a região, coleta de imagens Landsat, processamento de imagens, métodos de classificação de uso e cobertura da terra, aplicação de técnicas de detecção de mudança, coleta e processamento de imagens do modelo digital do terreno (MDT) do programa SRTM para cálculo da declividade.
14Para as análises temporais do uso e cobertura da terra foram utilizadas imagens dos anos de 1984, 2000 e 2015. Todas as imagens utilizadas foram obtidas pela rede de satélites Landsat, que é o maior provedor de imagens da superfície terrestre (Rodriguez et al., 2000). Para os dois primeiros anos estudados utilizou-se imagens Landsat 5/TM e para 2015, imagens Landsat 8/OLI, todas disponibilizadas na plataforma do Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS) e com resolução espacial de 30 metros. As imagens utilizadas foram todas do mês de junho, a fim de minimizar a variabilidade sazonal da vegetação devido ao período de seca ou chuva.
15O método utilizado para a classificação do uso da terra foi o de interpretação visual, método este que é baseado em fotointerpretação e na classificação manual. Após testes com outros tipos de classificações este método apresentou resultados mais confiáveis que os métodos de classificação supervisionada e não supervisionada, conforme também aponta os estudos de Menke et al. (2009) e Oliveira et al. (2014). Segundo, Ferreira et al., 2007, o método de interpretação visual é o mais adaptado aos diferentes tipos de fitofisionomias do Cerrado, pois estes têm uma ampla variabilidade espectral que leva a confusão entre classes ao utilizar outros métodos de classificação.
16A aplicação do método seguiu as recomendações de Panizza e Fonseca, 2011 e Santos et al., 1981. Que diz que esse tipo de método só pode ser aplicado por alguém que já possui experiência técnica na área. Para realizar a interpretação o analista criou relações entre os elementos formando hipóteses interpretativas relacionando os objetos vistos nas imagens de satélite com fotografias adquiridas em trabalhos de campo e em imagens de resoluções mais detalhadas. Os elementos de reconhecimento da paisagem utilizados foram tonalidade e cor, forma e tamanho, padrão e textura que foram fatores-guia que auxiliaram o reconhecimento dos objetos na superfície.
17As classes utilizadas foram baseadas na classificação do Cerrado proposta por Sano et al. (2008). Após adaptações levando em conta a realidade da área de estudo, as classes foram divididas em duas categorias: cobertura antrópica e cobertura natural. Compõem as classes da cobertura antrópica: área urbana; agricultura; corpo d’água artificial; pastagem e reflorestamento. Na cobertura natural: savana arborizada, savana florestada, savana gramíneo-lenhosa e savana parque. Além da escolha das classes, a resolução espacial das imagens utilizadas também teve influência na determinação do método empregado para a classificação das imagens.
18Deve-se destacar que as áreas queimadas identificadas nas imagens utilizadas, foram reclassificadas utilizando imagens de uma data anterior do mesmo ano para poder identificar com maior precisão o tipo de uso real da área queimada e permitir uma melhor comparação entre os anos. Pois, a proporção de áreas queimadas entre os anos estudados foi muito desproporcional, considerando que, no ano de 1984, 4,43% (69.030 ha) do território apresentou cicatrizes de queimada enquanto em 2000 e 2015 os valores foram de 0,84% (12.932 ha) e 0,02% (242 ha), respectivamente.
19Para melhor compreender a dinâmica do uso da terra foi utilizada a técnica de detecção de mudança, por meio do método de pós-classificação. Essa técnica gera uma tabulação-cruzada, que permite verificar o quanto foi convertido de uma classe para a outra entre os anos estudados (Singh, 1989).
20Além disso, o mapeamento foi analisado de acordo com a declividade da região. O mapa de declividade foi gerado a partir de sete imagens do Modelo Digital de Elevação (MDE) da missão SRTM versão 3.0 (Missão Topográfica Radar Shuttle) com resolução espacial de 1 segundo de arco, ou seja, um pixel de 30 metros ideal para mapeamento na escala de 1:100.000 (Valeriano, 2004), que na sua junção (mosaico) compreende todo o território da área de estudo. As imagens também foram adquiridas na plataforma da USGS. A classificação das imagens foi baseada nos parâmetros de declividade da Embrapa (1979) em três tipos: suave (0 – 8%); ondulado (8 – 45%) e montanhoso (45% <). Para harmonizar as análises o mapa de declividade foi convertido para formato vetorial. Após obter esses resultados, foi realizado através de técnicas de geoprocessamento o cruzamento da declividade com o uso do solo.
21Como entende-se que o estudo do espaço geográfico está vinculado a muitas variáveis, de modo que o espaço ocupado pelo homem combina fatores de ordem física, natural, histórica, econômica e social (Marchand, 1996), foram também incluídos na pesquisa análises sobre a acessibilidade na região por meio do sistema viário e indicadores socioeconômicos municipais (PIB per capita e Índice de Desenvolvimento Humano).
22Os resultados da classificação temporal do uso da terra (Tabela 1 e Figura 3) demonstram que houve uma importante variação das classes. A área que corresponde a cobertura antrópica aumentou significativamente, em 1984 era de 17% (267.492 ha) e passou em 2015 para 32% (414.695 ha) da área total. Essa variação representa a perda de 231.058 ha de vegetação natural. De maneira geral, as classes de cobertura natural sofreram uma queda constante nos intervalos dos anos analisados, apontando uma tendência de aumento das classes de cobertura antrópica em todos os municípios da RIPNCV.
23Porém, de forma desigual, em São João d’Aliança, por exemplo, a classe agricultura aumentou em 50% (48.145 ha) no primeiro período da pesquisa (1984-2000) e em Teresina de Goiás, cresceu 86% (749 ha). Mesmo com um maior aumento da classe agricultura em Teresina de Goiás, o município é o menos representativo em área agrícola (2% em 2015, equivalente a 1.590 ha), enquanto São João d’Aliança é o que mais dedicou seu território para tais atividades, com cerca de 34% (114.518 ha) em 2015 da área total do município.
Tabela 1: Classes de uso e cobertura do solo da RIPNCV.
|
Hectares (ha)
|
|
Porcentagem (%)
|
|
1984
|
2000
|
2015
|
|
1984
|
2000
|
2015
|
Cobertura natural
|
1.269.591
|
1.122.389
|
1.038.532
|
|
82,60
|
73,02
|
67,57
|
Cobertura antrópica
|
267.492
|
414.695
|
498.551
|
|
17,40
|
26,98
|
32,43
|
|
|
|
|
|
|
|
|
Agricultura
|
71.323
|
151.802
|
196.602
|
|
4,64
|
9,88
|
12,79
|
Área urbana
|
594
|
1.189
|
1.475
|
|
0,04
|
0,08
|
0,10
|
Pastagem
|
194.266
|
252.878
|
280.229
|
|
12,64
|
16,45
|
18,23
|
Reflorestamento
|
1.310
|
4.131
|
7.756
|
|
0,09
|
0,27
|
0,50
|
Corpo d'água artificial
|
0
|
4.694
|
12.489
|
|
-
|
0,31
|
0,81
|
Savana arborizada
|
225.873
|
216.172
|
195.229
|
|
14,69
|
14,06
|
12,70
|
Savana florestada
|
42.372
|
41.477
|
35.591
|
|
2,76
|
2,70
|
2,32
|
Savana gramíneo-lenhosa
|
78.757
|
74.921
|
60.379
|
|
5,12
|
4,87
|
3,93
|
Savana parque
|
922.588
|
789.819
|
747.333
|
|
60,02
|
51,38
|
48,62
|
Total
|
1.537.083
|
1.537.083
|
1.537.083
|
|
100
|
100
|
100
|
Figura 3: Gráfico da variação do uso do solo em 1984, 2000 e 2015.
24Ao relacionar a dinâmica das classes de uso da terra (Tabela 1 e Figura 3) com a tabulação-cruzada (Tabelas 2 e 3), destaca-se que a savana gramíneo-lenhosa sofreu a maior queda no intervalo de 2000-2015 com uma mudança de 19%. Isso ocorre provavelmente por estar em áreas com pouca declividade no terreno e por ser uma vegetação rasteira (Cardoso, et al., 2000), se situando assim em áreas mais propícias para agricultura. A savana gramíneo-lenhosa teve 17% da sua área substituída para a agricultura entre o período de 2000 a 2015. Tal fato pode ser também percebido com o aumento da cobertura antrópica nas regiões de declividade suave conforme mostra a Figura 4.
Tabela 2: Detecção de mudança das classes de uso e cobertura da Terra de 1984 a 2000.
Tabela 3: Detecção de mudança das classes de uso e cobertura da Terra de 2000 a 2015.
Figura 4: Gráfico da cobertura do solo segundo o tipo de relevo em 1984, 2000 e 2015
25Episódio similar ocorreu com a classe savana parque que é a maior classe de cobertura. Em 1984 a classe correspondia a 60% (922.588 ha) de todo o território e entre 1984 e 2000, 10% de sua área foi revertida em pastagem. Tais práticas de conversão de cobertura natural para antrópica não se consolidaram de forma tão intensa como nas outras classes. Ainda assim as mudanças foram importantes, especialmente entre 1984-2000, onde a cobertura natural perdeu 12% (1.269.591 ha para 1.122.389 ha) de sua representatividade contra um aumento de 55% (267.492 ha para 414.695 ha) da cobertura antrópica no mesmo período (Tabela 1).
26A classe reflorestamento é uma das coberturas antrópicas que mais apresentou dinâmica e crescimento. Com a análise de detecção de mudança, foi possível perceber que 40% de sua área em 1984 foi convertida em agricultura entre 1984 e 2000, configurando então, a maior conversão ocorrida em todo o estudo. Ainda que tenha acontecido essa importante mudança, o reflorestamento apresentou crescimento nos dois intervalos do estudo, passando de 0,1% (1.310 ha) de representatividade em 1984 para 0,5% (7.756 ha) em 2015 (Tabela 1). Segundo Bacha (2008), o reflorestamento é uma alternativa de lucratividade em relação às atividades agropecuárias. No Brasil, ele apresentou nos índices de exportação de produtos florestais um faturamento de aproximadamente R$ 4 milhões no ano de 2001.
27As classes agricultura e pecuária são os tipos de uso com maior destaque para a cobertura antrópica. No primeiro intervalo de estudo (1984-2000) houve grande conversão de outras classes para agricultura, especialmente vindos das classes antrópicas (reflorestamento e pastagem). No segundo período (2000-2015), a cobertura natural foi a que mais sofreu perda em detrimento do avanço da agricultura. Atualmente essa é a segunda maior classe de cobertura antrópica da RIPNCV.
28A classe de maior representatividade antrópica é a pastagem. Apesar de apresentar crescimento de área ela também é uma das que mais cedeu espaço para outros usos antrópicos, especialmente no primeiro período (Tabela 3). A atividade antrópica vem se expandindo cada vez mais. A partir da Figura 5 e das Tabelas 2 e 3 é possível perceber que sua expansão se divide entre duas vertentes: o crescimento das atividades agropecuárias sobre a cobertura natural, como é observado no prolongamento das atividades em 2015 (representado na cor vermelha); e a conversão de usos entre as classes antrópicas em especial no sul da região.
Figura 5: Mapa temporal do uso antrópico da RIPNCV.
29Os resultados obtidos da análise da dinâmica espaço-temporal do uso e cobertura da terra podem ser relacionados com os dados do Censo Agropecuário divulgados pelo IBGE. Em 2014 o Brasil atingiu quase 70,5 milhões de hectares de área plantada, enquanto em 1990 o valor correspondia a cerca de 46 milhões de hectares. Para o Cerrado, uma pesquisa do TerraClass apresentou que cerca de 11,69% desse bioma foi destinado a agricultura perene e anual em 2013 (Brasil, 2015). Essa produção de alimentos impactou significativamente na perda de cobertura vegetal natural e um dos processos responsáveis por essa perda foi a expansão da fronteira agrícola moderna (Sano et al., 2011).
- 3 O POLOCENTRO, criado em 1975, teve o propósito de modernizar as atividades agropecuárias da região (...)
- 4 O PRODECER foi implantado no início dos anos 80 e foi resultante do acordo de cooperação entre os g (...)
30Segundo Frederico (2013), tal processo pode ser dividido em dois momentos. O primeiro ocorreu no período de 1970 a 1990 onde o Estado promoveu uma série de políticas como: o fornecimento de crédito subsidiado, possibilitando aos produtores aquisições de terras e máquinas; incentivos fiscais para a instalação de agroindústrias; criação de programas como o POLOCENTRO (Programa de Desenvolvimento dos Cerrados)3 e o PRODECER (Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para Desenvolvimento dos Cerrados)4, programas estes que apresentaram a inserção e o desenvolvimento de novas tecnologias ao Cerrado (Silva, 2000).
31O segundo momento, com início na década de 1990, teve uma menor intervenção estatal e uma participação maior de grandes produtores e empresas mundiais (tradings) que controlam a comercialização, parte substancial do financiamento agrícola e que também são responsáveis pelo fornecimento de insumos químicos e pela logística de escoamento de grãos. De acordo com Frederico (2013), a questão da logística é uma das maiores preocupações das empresas e dos produtores.
32A falta de um sistema de transporte adequado foi e ainda é um problema que afeta regiões com baixos níveis de integração (Galvão, 2009). A ineficiência de um sistema de transporte em escala nacional resultou no Brasil um efeito de baixo nível de renda e em grandes concentrações de riquezas que foram reduzidas em áreas de pequena densidade de tráfego, quase que exclusivamente, rodoviário (Galvão, 1991).
33Um exemplo dessa situação é o nordeste goiano, apesar de encontrar-se próximo a capital Brasília, possui uma rede viária dispersa. Destaca-se, nas proximidades da área, a rodovia federal BR-153, que faz ligação com Anápolis, ao sul, e com o Estado do Tocantins, ao Norte. Dentre as vias estaduais, as principais da região da Chapada dos Veadeiros são as rodovias GO-118 e GO-239 (ICMBio, 2009).
- 5 A malha viária foi atualizada por imagens Landsat 7 da Base Cartográfica planialtimétrica de Goiás, (...)
34Segundo um levantamento da malha viária do estado de Goiás realizado em 20125., a RIPNCV possui 206 km de estradas pavimentadas, apenas 7% de toda a malha viária desse Estado. Aparentemente pouco significativa, a região se manteve praticamente isolada em função do difícil acesso ocasionado pela falta de estradas pavimentadas. Devido a esse contexto, é possível observar na Figura 6, claramente que a maior parte das mudanças antrópicas ocorreram na região de maior adensamento da malha viária, no sul da região. A área mais preservada ficou concentrada na região de relevo mais montanhoso, variando de 800 a 1.670 m de altitude, e com pouco e quase inexistência de estradas, ao norte da região.
Figura 6: Mapa Integrado: rede viária, relevo e cobertura do solo.
35Segundo o Plano de Manejo do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, após o asfaltamento da rodovia GO-118 em 1985, rodovia que liga Brasília ao Nordeste Goiano, houve um aumento do número de visitações na região. Esse aumento foi significativo para que o setor terciário se consolidasse com maior força, especialmente no que se trata à prestação de serviços de hotelaria e alimentação, serviços os quais são mais observados no entorno do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, como no perímetro urbano de Alto Paraíso de Goiás e na Vila de São Jorge (ICMBio, 2009; Leuzinger, 2010).
36De forma geral, relacionar dados de uso do solo, relevo e sistema viário com elementos históricos e ao comportamento estatal como a implementação de programas de desenvolvimento, é um suporte importante para entender o atual cenário da dinâmica da Região da Chapada dos Veadeiros. Trabalho semelhante foi desenvolvido em Londrina-PR, onde os autores empenharam-se em fazer um breve histórico de ocupação para entender a dinâmica de uso do solo relacionado com a expansão físico-territorial da cidade de Londrina (Paula et al., 2013). Tais análises, quando divididas regionalmente, facilitam a identificação de características, processos e impactos da dinâmica regional. Diante destas constatações, propomos através da Figura 7 uma esquematização do atual cenário de desenvolvimento econômico da região.
Figura 7: Mapa esquemático do atual cenário de desenvolvimento econômico da RIPNCV.
37Na região norte da área de estudo, mais especificamente nos municípios de Cavalcante e Teresina de Goiás, encontram-se características próprias de um verdadeiro “cinturão da pobreza”, expressão dada ao nordeste goiano, conhecido por ser a região menos desenvolvida do estado de Goiás.
38Apesar desse estigma de pobreza, Cavalcante, que apresentou a menor mudança de uso do solo da RIPNCV no período analisado, possui o maior Produto Interno Bruto -PIB da região (Figura 8). Segundo informações da prefeitura, isso ocorreu pois eles passaram a receber royalties da Usina de Serra da Mesa, inaugurada em 1998. Ainda assim, essa variável não é refletida no seu Índice de Desenvolvimento Humano Municipal -IDH-M, possuindo os piores indicadores de educação e renda per capita (Figura 9), o que pode indicar uma má distribuição de seus recursos e um ganho para “setores economicamente interessados” (Paula et al., 2013).
Figura 8: Produto interno bruto dos municípios da RIPNCV.
Figura 9: Índice de Desenvolvimento Humano Municipal dos municípios da RIPNCV.
39A maior distância com a capital Brasília, as poucas vias de acesso e o relevo altamente acidentado, sobretudo em Cavalcante, podem ser fatores que dificultam a implantação de meios de produção que colaborem para a melhoria da qualidade de vida da população dessa região.
40A partir do mapeamento de uso da terra é possível afirmar que a região é a que possui menor dinâmica em termos antrópicos, seja agrícola ou pecuário. De acordo com as Figuras 5 e 6, é notável que uma pequena ocupação vem se consolidando de forma mais recente, principalmente na parte norte de Teresina que acompanha a Rodovia GO-118 e mais ao centro-leste de Cavalcante com uma parte significativa no território Kalunga.
41O território quilombola, importante unidade de “preservação sociocultural”, tem colaborado com a conservação ambiental da região, visto que ela possui uma identidade específica, caracterizada por uma população com um modo de vida tradicional. No mesmo sentido, o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, com boa parte localizado em Cavalcante, contribui para esse processo de conservação, visto que é uma unidade de proteção integral.
42Um acontecimento que traz preocupação quanto a esse processo de conservação são as altas incidências de queimada na região. No ano de 2017 foi detectado no município de Cavalcante, através do Monitoramento de Queimadas do INPE, 12.475 focos de queimada, representando 8,5% do total do estado de Goiás, sendo o segundo município com a maior quantidade de focos. Mesmo que o Cerrado seja um bioma adaptado ao fogo, a sua recorrência, quando descontrolado e repetitivo traz prejuízos ambientais e humanos (Klink e Machado, 2005).
43As queimadas frequentes podem afetar negativamente o desenvolvimento de árvores e arbustos (Hoffmann e Moreira, 2002), além de causar problemas relacionados à saúde humana e prejuízos à fauna e à flora (França, 2000; Klink e Machado, 2005). Por esse motivo, é necessário realizar o monitoramento na região, visto que a presença das belezas naturais é de grande relevância, o que possibilita um maior ganho econômico através de investimentos em turismo.
44Alto Paraíso de Goiás e Colinas do Sul compõem os municípios da região central da área de estudo. Alto Paraíso registrou a menor perda de cobertura natural entre 2000 e 2015 e atualmente registra 36% (94.735 ha) do seu território voltado às atividades antrópicas.
45O município apresentou, nos índices de desenvolvimento humano, melhores rendimentos em todas as variáveis com relação ao restante dos municípios da RIPNCV (Figura 9). A renda foi classificada como “alta” em 2010 e tal fato pode estar relacionado, além do aumento da atividade agropecuária, a ascensão de atividades ligadas ao turismo. Como o Parque Nacional está localizado também neste município, o aumento de serviços e comércios especializados são decorrências de um maior fluxo de pessoas que chegam a este território na busca de um “refúgio dos males urbanos” (Costa et al., 2015).
46O município de Colinas do Sul sofreu impacto significativo em decorrência da construção da Usina de Serra da Mesa que inundou parte deste município, fato que colaborou para o aumento da cobertura antrópica na região na forma da classe corpo d’água artificial (Figura 3). Um empreendimento de grande porte que impactou tanto nos fatores socioeconômicos locais como ambientais e políticos (Almeida, 2012).
47A agricultura apresentou, em 2015, 4% (7.179 ha) de todo o território de Colinas do Sul, enquanto a pastagem foi a mais representativa no município (27.415 ha). A concentração de tais atividades ocorreu mais na região central, onde as escarpas dividem o município. Tais atividades foram evoluindo após o esgotamento da mineração, no contexto do século XVIII e surgiram como uma nova alternativa econômica (Almeida, 2012).
48Apesar de Colinas do Sul compor a Microrregião da Chapada dos Veadeiros, a sua integração por via terrestre é muito precária, tendo em vista que o principal acesso que liga o município a Alto Paraíso e ao restante da microrregião é a estadual GO-239, que atualmente, só possui pavimentação até a Vila de São Jorge, a pouco mais de 30 km de Alto Paraíso de Goiás. Essa frágil articulação, tanto com os municípios da Chapada dos Veadeiros como com o restante de Goiás, é um dos elementos que refletem nos baixos Índices de Desenvolvimento Humano Municipal, sobretudo na variável educação (Almeida, 2012).
49A falta de infraestrutura viária dificulta o desenvolvimento econômico na região, considerando que o tempo de deslocamento é muito grande para a consolidação de um fluxo mais intenso, além de que seriam necessários automóveis de grande porte para percorrer a rota regularmente.
50A porta de entrada para a RIPNCV revela em sua paisagem os impactos do avanço agrícola na região. Impactos estes que foram registrados já na primeira classificação em 1984, especialmente ao sul de Alto Paraíso de Goiás e a oeste de São João d’Aliança (Figura 5), mudanças que só não se desenvolveram para leste neste município, provavelmente devido à morfologia de declividade montanhosa local, considerada árdua para o uso antrópico.
51O crescimento da cobertura antrópica na região leste de São João d’Aliança ocorreu a partir de 1984 com um avanço que se deu no sentido leste-oeste advindos da região vizinha dos municípios de Flores de Goiás (Vão do Paranã) e Formosa. Essa intensificação é um dos efeitos do PRODECER, implantado no início dos anos 80 (Bezerra e Cleps Jr., 2004). Por causa dos incentivos do programa, a região sofreu grande impacto no primeiro período de análise (1984-2000), considerando que houve aumento de 46% da cobertura antrópica.
52Atualmente, São João d’Aliança é o único município da RIPNCV que possui a área de cobertura antrópica superior a cobertura natural. Logo em 2000 o município atingiu um valor de uso antrópico que condiz com 67% (225.109 ha) e em 2015 atingiu a marca de 75% (250.312 ha) do mesmo uso, revelando então, o município com o maior índice de perda de vegetação natural.
53O valor adicionado bruto a preços básicos para a agropecuária mostra que de 2000 a 2015 houve um crescimento de 88% nesta variável, um aumento que impactou nos índices socioeconômicos com o aumento do PIB em 2010 e do IDH-M, passando da classificação “muito baixo” em 1991 para “médio” em 2010 (IMB/SEGPLAN, 2016). Isto demonstra que a região passa por um processo importante no que diz respeito a melhora da qualidade da vida humana.
54Conhecer a dinâmica espaço temporal de uma região é essencial para retratar as suas tendências e apoiar o planejamento e a gestão de uma determinada área. A partir do mapeamento de uso e cobertura do solo ao longo de 30 anos foi possível analisar a dinâmica espaço temporal da área estudada. As ferramentas de geotecnologias apresentaram-se essenciais dentro do processo de construção e análise dos dados. Elas evidenciaram a relação da dinâmica do uso do solo com a densidade e capacidade de acesso fornecido pela infraestrutura rodoviária local, que por sua vez é fortemente influenciada pela morfologia específica da região. A partir da soma dessa sobreposição de informações junto às varáveis socioeconômicas analisadas, destacou-se que a região é desigual e com dinâmicas espaço-temporais bastante específicas, podendo ser divididas em três regiões distintas: Cavalcante e Teresina de Goiás: um norte estigmatizado; Alto Paraíso de Goiás e Colinas do Sul: um centro diversificado; e São João d’Aliança: um sul explorado.
55A Região de Influência do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros é uma região que concentra diferentes unidades de organização territorial interligadas de alguma forma com a preservação do bioma Cerrado e é considerada um importante hotspot de conservação desse bioma. A forma como a fronteira agrícola tem alcançado a região nas últimas décadas é emblemática, especialmente em sua porção mais ao sul, visto que esta utilização compromete a perda de cobertura natural e influencia diretamente a qualidade do solo e da água, bem como a dinâmica da fauna e flora e a qualidade de vida da população local.
56Além disso, esse tipo de mudança impacta na beleza cênica natural, que compõe uma paisagem rica e fomenta a atividade turística local. Como tal atividade é uma alternativa ao modelo de desenvolvimento econômico atual, dado ao grande potencial da região, uma relação mais sustentável entre agricultura e conservação da biodiversidade precisa ser alcançada na região.
57Os autores agradecem ao ProIC - Programa de Iniciação Científica da UnB, ao Centro UnB-Cerrado e aos projetos JEAI-GITES IRD/UnB e LMI-OCE IRD/UnB.