1O Brasil sediou os eventos FIFA nos anos de 2013 e 2014 e, para tanto, se viu obrigado a constituir um planejamento capaz de garantir a segurança de forma a trazer tranquilidade aos espectadores que acompanhavam o espetáculo dentro e fora das 12 cidades-sede. Entre as nações participantes dos megaeventos esportivos, o índice de violência letal intencional brasileiro era inferior apenas àqueles encontrados na Colômbia e Honduras.1As 26 mortes violentas para cada grupo de 100.000 habitantes no ano de 2012 e um histórico internacionalmente reconhecido de violência entre torcidas organizadas de futebol fizeram com que toda a comunidade internacional pressionasse o Brasil para a realização de um grande investimento na prevenção da criminalidade, de forma a garantir a ordem e a segurança durante a realização dos eventos esportivos internacionais.
2É bom lembrar que a intricada relação entre megaeventos e criminalidade urbana começa a ser desenhada com a escolha da África do Sul como sede da Copa do Mundo FIFA de 2010. A partir daí,os gastos com segurança pública se tornam exponenciais, com o objetivo de construir cidades mais seguras durante os megaeventos, especialmente a partir da "criação de um supersistema estatal de vigilância e controle de dados digitais" (Cardoso, 2013, p. 124). Esse modelo tem como propósito minimizar riscos e construir estratégias de segurança em torno de três categorias gerais: atentados terroristas, violência de torcedores e crimes urbanos (Giulianotti e Klauser, 2010, p. 4). Nesse último ponto, o objetivo maior é evitar elevadas quantidades de "crimes de rua", majoritariamente os roubos e furtos, além daqueles relacionados ao comércio e uso de drogas (Idem, p. 5).
3A partir deste marco, as políticas de segurança voltadas para a Copa do Mundo FIFA de 2014 foram pensadas pelo Comitê Gestor da Copa do Mundo de 2014 (CGCOPA-2014), criado em 2007 no âmbito do Ministério dos Esportes. Como fito de direcionar o trabalho do GGCOPA,constituiu-se a Matriz de Responsabilidades, que foi "um documento que atribui a cada um dos signatários (União, Estado, Distrito Federal ou Município) obrigações referentes à execução e planejamento de obras de infraestrutura relacionadas à Copa" (Proni,Fautino e Silva, 2014, p. 58).
4A Matriz de Responsabilidades estabeleceu como eixos prioritários da segurança pública (i) o controle dos pontos de entradas no país; (ii) a integração de instituições de Segurança e de Sistemas para a prevenção do delito, sobretudo o violento; e (iii) a Segurança do Evento, destinado a garantir a ausência de crimes nos estádios e em seu entorno. A Matriz de Responsabilidade evidenciava que o problema da criminalidade no Brasil seria tratado como questão de polícia durante os megaeventos FIFA e, por isso, os grandes investimentos realizados no campo da segurança visaram "a integração institucional, a ser realizada por meio de um processo de modernização tecnológica e de transformação/criação arquitetural" (Cardoso, 2013, p. 141).
5A partir da publicação da Matriz de Responsabilidades a preparação para a Copa do Mundo FIFA de 2014foi marcada pela "criação de uma Secretaria Extraordinária de Segurançapara Grandes Eventos no âmbito do Ministério da Justiça, encarregada de coordenarasações de segurança nos eventos" que, por sua vez, seria responsável por coordenar o aumento expressivo da "presença ostensiva da Polícia Militar no trato com a população" vis-à-vis "a possibilidade de o Exército intervir em distúrbios entre civis" (Copa, 2012, p. 74). Ganhou destaque a constituição de Centros Integrados de Comando e Controle (CICC) em todas as cidades que sediaram o evento. Nesses espaços reuniam-se membros das polícias federais (Federal e Rodoviária Federal), estaduais (Militar e Civil), municipais (Guardas Municipais), além de outras agências públicas responsáveis direta ou indiretamente por questões de segurança e defesa civil. Dois eram os subsídios para a operação do CICC: as imagens das câmeras de segurança, instaladas pelas prefeituras e estados nas cidades sede e os registros policiais de crime, decorrentes do patrulhamento da cidade, chamadas do 190 e, também, comunicações dos próprios cidadãos às delegacias de polícia.
- 2 "Os limites das áreas de exclusividade relacionadas aos Locais Oficiais de Competição serão tempest (...)
6Outra mudança introduzida na dinâmica de policiamento, também no marco da teoria das oportunidades, foi o perímetro FIFA, que passou a compor a lei geral da Copa. Com isso, os padrões de vigilância seriam mais intensos na área de dois quilômetros ao redor dos estádios onde as competições eram realizadas.2 Entre as justificativas mobilizadas para a delimitação desse espaço, que seria mais patrulhado pela Polícia Militar e, se fosse necessário, pelo Exército era a de que, nos dias dos jogos, "as cidades converter-se-iam em espaços globais, seja pela ocupação intercultural desses lugares, seja pela constituição dessas regiões em uma rede de sentidos transnacional que engendra o megaevento esportivo", o que demandava um novo arranjo institucional relativo à segurança pública para a garantia da tranquilidade da competição e integridade dos turistas e demais espectadores (Martins e Dornelas, 2016, p. 48).
7A literatura sobre os impactos de grandes eventos científicos, revisada na segunda parte deste artigo, é escassa, porém os trabalhos empíricos tendem a se fundamentar na Teoria das Atividades de Rotina para explicar as mudanças na dinâmica dos registros policiais, que pressupõe a ocorrência de delitos quando três variáveis se encontram alinhadas: "possíveis ofensores, alvos adequados e ausência de guardiões capacitados contra a criminalidade" (Cohen e Felson, 1979, p. 588). Decker, Varano e Greene (2006) chegam a propor que os megaeventos esportivos são uma espécie de tipo ideal para a aplicação desta teoria uma vez que os jogos atraem torcedores, mas também criminosos motivados; o grande afluxo de "estranhos" torna alvos como residências e carros disponíveis, já que ninguém consegue vigiá-los com propriedade; e o aumento da presença da polícia para acomodar multidões de espectadores não é suficiente para proteger todos os objetos e pessoas na área. Tomadas em conjunto, essas mudanças no "comportamento rotineiro" local têm o potencial de intensificar a manifestação criminal e a vitimização.
8A realização de parte das partidas das Copas das Confederações FIFA (2013) e do Mundo FIFA (2014) em Belo Horizonte confirmaria os postulados da Teoria das Atividades Rotineiras? A dinâmica criminal observada no período imediatamente anterior à realização dos jogos sofreu alterações significativas em sua incidência e sua distribuição espacial? O presente artigo examina essas questões, a partir dos registros de ocorrência criminal levados a cabo pela Polícia Militar de Minas Gerais. Trabalha-se aqui com as modalidades criminais mais afetas aos argumentos presentes na Teoria das Atividades Rotineiras, que são aquelas que a literatura especializada tambémindica como as mais prevalentes durante a realização de megaeventos esportivos, quais sejam: furtos, roubos e danos ao patrimônio.
9O ponto de partida da discussão teórica é a abordagem criminológica denominada de Teoria das Atividades de Rotina, que entende "as violações criminais como eventos que ocorrem em locais específicos no espaço e no tempo e envolvem pessoas e/ou objetos específicos" (Felson e Cohen, 1980, p. 390). Para os autores, a estrutura social produz crime ao produzir a convergência entre indivíduos motivados para a prática de um delito, alvos criminais disponíveis e, ainda, ausência de guardiães. Essa convergência, contudo, se produz na rotina dos indivíduos, a qual permite "que atividades ilegais se alimentem das atividades legais da vida cotidiana", como a ausência de indivíduos em casa durante boa parte do dia e padrões de policiamento que não levam em consideração a dinâmica de sociabilidade de um determinado espaço (Cohen e Felson, 1979, p. 588).
- 3 Nas palavras dos autores: "Ao contrário de muitas investigações criminológicas, este artigo não exa (...)
10A Teoria das Atividades de Rotina é uma abordagem muito "encontrada em relatórios de agentes responsáveis pela aplicação da lei ou investigadores aplicados à segurança", posto que ao invés de tentar compreender "como os criminosos realizam o seu trabalho" procura evidenciar de que maneira a mudança nos padrões de policiamento (guardiães) pode afetar a dinâmica do crime (Felson e Cohen, 1980, p. 390).3Shermanet al (1989) foi um dos trabalhos pioneiros do ponto de vista da experimentação dessa teoria desde uma perspectiva voltada para as políticas públicas ao demonstrar que mais de 50% das chamadas da polícia estão concentradas em uma área menor do que 3% da área das grandes cidades e, por isso, uma melhor distribuição dos guardiães em áreas de hot spots produziria uma redução substancial das taxas de criminalidade.
11No marco dos estudos que aplicam a Teoria das Atividades de Rotina tem-se a literatura que relaciona megaeventos e dinâmicas criminais, a qual, contudo, ainda é bastante reduzida, já que "a pesquisa sobre os impactos dos eventos desportivos nas comunidades anfitriãs tem focado predominantemente na medição dos efeitos econômicos em vez de nos sociais" (Ohmann, Jones e Wilkes, (2006, p. 2). Entre os poucos estudos existentes sobre o tema, Hall (1997) identificou uma correlação positiva entre o acolhimento de grandes eventos esportivos pelos Estados Unidos da América (como maratonas) e um aumento na quantidade de roubos, estupros e agressões registrados pelas organizações policiais.
12Campaniello (2013) descobriu que a recepção da Copa do Mundo FIFA em 1990 pela Itália levou a um aumento significativo dos crimes contra a propriedade, mas quase nada mudou na seara dos crimes contra a pessoa.De forma mais específica, os furtos de carteiras aumentaram em 80%, seguidos dos roubos de bolsas (aumento de 51%), furtosem lojas (aumento de 29%) e outros roubos (aumento de 29%). Esses crimes se concentraram em áreas onde havia elevada disponibilidade de equipamentos de turismo e atrações relacionadas aos megaeventos, sendo que o grande número de forças policiais nessas áreas contribuiu para evitar crimes que requeriam mais habilidade e tempo, como o roubo de carro, por exemplo (Idem, p.13-14).
13Na análise que Decker, Varano e Greene (2006) realizaram dos Jogos Olímpicos de inverno de 2002, realizados em Salt Lake City,ficou constatado tanto um aumento do número de chamadas para a polícia, como na quantidade de crimes registrados em geral. Por sua vez, Ohmann, Jones andWilkes (2006) analisaram a dinâmica dos registros criminais durante a Copa do Mundo FIFA de 2006 e constaram que, durante o período de realização dos jogos na Alemanha, houve um pequeno acréscimo na quantidade de crimes, especialmente os de furto de carteira, falsificação de ingressos para jogos e agressões entre torcedores. Os autores argumentam que a não ocorrência de crimes mais graves (como roubos e homicídios) deveu-se às extensas medidas de segurança adotadas pelo governo alemão, antes e durante o evento. Em resumo, na experiência da Alemanha, houve aumento de crimes, mas em proporções "baixas considerando as grandes audiências atraídas" (Idem, p. 16).
14Billings e Depken (2011), por sua vez,constataramque a atividade criminosa aumenta nos arredores dos locais que sediam os jogos olímpicos e nos dias em que os eventos esportivos são realizados.Por isso, os autores destacam que novas análises sobre a ligação entre megaeventos esportivos e criminalidade deveriam ser realizadas levando em consideração a dinâmica de registros do ano anterior ao megaevento e, ainda, a sua distribuição espacial na cidade.
15No caso da África do Sul, Copa do Mundo FIFA que antecedeu a brasileira, a preocupação com o crime urbano era bastante semelhante àquela que marcou a preparação dos eventos FIFA no Brasil. Inclusive, "uma das principais críticas levantadas à candidatura da África do Sul dizia respeito ao alto nível de criminalidade", sendo essa uma apreensão constante dos membros do Comitê Organizador Internacional (Cornelissen e Swart, 2006, p. 115), dada a elevada incidência de crimes violentos naquela localidade, como estupro, sequestro, assassinato e roubo (Cornelissen e Maennig, 2010, p. 108).Assim, "em preparação para a Copa do Mundo de 2010, os esquemas de segurança se concentraram no controle das relações entre os visitantes internacionais ricos e as populações locais", de forma a impedir os crimes contra a propriedade (Giulianotti e Klauser, 2010, p. 5).Apesar de toda a expectativa de que o crime urbano seria o maior problema da Copa do Mundo FIFA na África do Sul, o evento transcorreu com taxas de furto, roubo e lesões corporais aquém do esperado (Gibson et al, 2014, p. 114).
16Em resumo, os trabalhos que correlacionam megaeventos e criminalidade, no marco das Teorias da Atividade de Rotina, reforçam que o aumento de turistas e a mudança na dinâmica de sociabilidade nas cidades sedes implica em aumento da quantidade de delitos, sobretudo, os patrimoniais como furtos e roubos. Já os crimes contra a pessoa são apontados como resultado da dinâmica local, pois em algumas situações eles aparecem correlacionados aos megaeventos (como nos EUA) e em outras não (como na Alemanha). Além disso, a maior presença de policiamento nas áreas ao redor dos estádios que sediam as competições (que, no caso da Copa do Mundo FIFA, é denominado de perímetro FIFA) não impede crimes de menor potencial ofensivo (como furtos), mas dificulta a ocorrência de crimes mais violentos (como roubos).
17Esses estudos têm em comum o escrutínio dos registros policiais, que são susceptíveis a determinados vieses em razão da forma como as polícias realizam o seu trabalho. No entender de Campaniello (2013), durante os megaeventos, a dinâmica de registros policiais pode ser alterada pelo aumento da quantidade de homens trabalhando e, assim, eventos que não entrariam na contabilidade oficial terminam por ser registrados. Boyle e Haggerty (2007) endossam em parte essa visão, destacando que esse aumento artificial das ocorrências ocorre apenas entre os crimes que não são praticados com o uso da violência, dada a focalização dos policiais nas situações de desordem.
18Assim, para entender as mudanças que um megaevento introduz na dinâmica de criminalidade de um dado país, o melhor é concentrar a análise em crimes violentos contra o patrimônio (como roubos), que tradicionalmente são mais registrados e, também, mais afetados pela presença de policiais, em detrimento de crimes de menor potencial ofensivo (como furtos), que passam a ser registrados pela polícia em razão de sua maior disponibilidade nas ruas. Além disso, os trabalhos destacam a importância de se comparar a quantidade de registros e os locais onde os crimes foram registrados com, pelo menos, o ano anterior; já que as dinâmicas de distribuição espacial do delito não tendem a uma alteração abrupta de um ano para o outro.
19Além de compartilhar experiências semelhantes com outras cidades sede de grandes eventos esportivos, como intervenções urbanas, esquemas especiais de segurança, grande afluxo de turistas,dentre outros fatores, Belo Horizonte experimentou durante a realização dos eventos esportivos da FIFA uma onda de protestos, com rebatimentos significativos na dinâmica criminal que não podem ser ignorados. Afinal, os eventos FIFA implicaram em duas importantes mudanças na dinâmica de sociabilidade que se dá no espaço urbano. Primeiro, a maior concentração de turistas em determinados pontos da cidade, fez com que um maior contingente policial fosse deslocado para certas áreas, mantendo outras descobertas, o que pode ter contribuído para a mudança do padrão de distribuição espacial do crime, como se verá mais adiante. Segundo, os vários protestos que ocorreram na cidade, especialmente no ano de 2013, quando a ação dos blackblocs lesou inúmeros indivíduos e comerciantes, podem ter contribuído para o aumento da criminalidade registrada pela polícia. Torna-se imperativo retraçar alguns aspectos da dinâmica socioespacial dos jogos.
20A Copa das Confederações FIFA de 2013 foi um evento preparatório para a Copa do Mundo FIFA propriamente dita, sendo realizado entre os dias 12/06/2013 e 13/07/2014. Dele participam os seis campeões continentais, além da seleção que representa o país que sedia o evento e o campeão da edição anterior. Esse evento é considerado como “o grande teste para a copa do mundo” (Melo, 2012, p. 15), no qual o funcionamento da logística de transporte, rede hoteleira, receptivo turístico, serviços de segurança, transmissão de jogos, equipamentos urbanos diversos, incluindo os estádios, dentre outros aspectos correlatos aos jogos, são colocados à prova.
21A cidade de Belo Horizonte sediou três jogos da Copa das Confederações e recebeu em torno de 14.000 turistas, sendo que, desse total, 4.000 eram internacionais.4 Além da chegada dos turistas, a grande mudança na dinâmica de sociabilidade da cidade decorreu de um conjunto de manifestações populares, que movimentaram milhares de pessoas, gerando significativos impactos na segurança pública.
22Nos dias em que Belo Horizonte sediou os jogos da Copa das Confederações FIFA de 2013 os protestos foram iniciados com a concentração de pessoas no centro da cidade, na Praça Sete de Setembro mais especificamente; sendo que às vezes, a congregação se dava em frente ao edifício que abriga a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, também localizada na parte central de Belo Horizonte. Reunidos, os manifestantes começavam uma caminhada de sete quilômetros rumo ao estádio Magalhães Pinto (Mineirão), local de realização dos jogos. Ao longo da caminhada, milhares de pessoas entoavam palavras de ordem contra a corrupção; em favor da melhoria dos serviços públicos de saúde, educação e transporte; além de brados contra a realização dos eventos esportivos (Figura 1).
23Nas proximidades da via que dá acesso ao estádio de futebol (Avenida Antônio Abraão Caram), os manifestantes se deparavam com os limites do perímetro de segurança imposto pela FIFA no entorno dos locais de realização dos jogos. Tal limite era estabelecido por uma barreira física, composta de cavaletes, e uma barreira humana, formada pela tropa de choque da Policia Militar de Minas Gerais. Neste ponto, desenrolaram-se acerbos embates e confrontos entre a Polícia e os manifestantes, que insistiam em furar o bloqueio e seguir com o protesto até o estádio Magalhães Pinto. O cerco policial nas proximidades do estádio contava, ainda, com viaturas, cavalaria e o veículo de controle de distúrbio, vulgarmente conhecido como caveirão. A ação policial foi pautada no uso de armas menos letais, tendo sido empregados balas de borracha, gás lacrimogêneo e spray de pimenta contra os manifestantes.
24Essas manifestações não foram um fenômeno exclusivo da capital mineira. Os protestos foram iniciados em São Paulo pelo Movimento Passe Livre (MPL), após o anúncio do aumento das passagens de ônibus e, talvez, em razão de sua violenta repressão pela Polícia Militar daquela localidade, ganharam o restante do país(Braga, 2013). Fato é que, tal movimento, posteriormente denominado de Jornadas de Junho, teve proporções inimagináveis (Singer, 2013).
25Recapitulando a cronologia dos protestos, a primeira manifestação em Belo Horizonte se deu no dia 17 de junho de 2013, data em que ocorreu o jogo entre Taiti X Nigéria, quando cerca de 30 mil pessoas se reuniram para se posicionar contrariamente a temas diversos, com destaque para a o rechaço à realização da Copa do Mundo FIFA.5 Os manifestantes entraram em confronto com a polícia ao tentar furar o “perímetro FIFA”, tendo significativo número de pessoas se ferido no confronto com a polícia, não tendo sido revelado o número exato de vítimas. Após o confronto, os manifestantes que participavam do grupo autodenominado como blackblocs seguiram incendiando sacos e latas de lixo e quebrando portas de agências bancárias ao longo da Avenida Presidente Antônio Carlos.
26Em 22 de junho de 2013, dia do jogo entre Japão X México, cerca de 100 mil pessoas se reuniram repetindo o périplo em direção ao estádio Magalhães Pinto, onde, uma vez mais, os conflitos com a polícia se deram nas imediações do perímetro de segurança da FIFA. Desta feita, concessionárias de automóveis, agências bancárias, faculdades particulares foram depredadas, culminando em 22 pessoas detidas e 13 feridas6. Em 26 de junho de 2013, realizou-se em Belo Horizonte uma das semifinais do torneio entre Brasil X Uruguai, data em que nova onda de protestos e choques entre manifestantes e policiais foi observada. O confronto teve início no final da tarde, nas imediações do Mineirão, tendo mais de 100 pessoas sido apreendidas por atos de vandalismo, em razão das depredações ao longo da Avenida Presidente Antônio Carlos e também na região central da cidade.
Figura 1: Área Central de Belo Horizonte
Fonte: Base digital IBGE 2010. Elaboração: PALHARES, R.H. 2017.
27Em resumo, a área central de Belo Horizonte e os corredores de transporte que levam ao estádio Magalhães Pinto foram tomados por ondas de manifestantes nos dias em que a cidade sediou jogos da Copa das Confederações FIFA de 2013. Os confrontos com a polícia e os episódios de vandalismo colocaram em xeque a capacidade do Brasil de garantir a realização de megaeventos esportivos de forma pacífica, para além da dinâmica criminal urbana. Cenário bem diferente foi encontrado quando da realização da Copa do Mundo FIFA, 2014.
28A Copa do Mundo FIFA é o torneio de futebol masculino mais importante de todo o mundo, sendo disputado por seleções de distintos países, o que significa um grande número de turistas (torcedores) nos países que recebem os jogos. Na edição que marcou a primeira metade da década de 2010, o torneio foi realizado em 12 capitais brasileiras.
29Belo Horizonte sediou seis jogos da Copa do Mundo FIFA de 2014, evento esse que ocorreu entre os dias 12 de junho e 13 de julho. Nessa ocasião, a cidade recebeu 355 mil turistas, sendo 200 mil estrangeiros e outros 155 mil nacionais.7De acordo com a Teoria das Atividades de Rotina, essa quantidade enorme de indivíduos na cidade contribui, por si só, para que delitos como furto sejam mais comuns, posto que os criminosos podem escapar com os objetos subtraídos na multidão sem ser facilmente percebidos. Ao final, foram realizados seis jogos na capital ocorridos nos dias 14, 17, 21, 24 e 28 de julho e 08 de julho de 2014.
30Durante o evento de 2014, as manifestações não atingiram as proporções esperadas, tanto em termos do número de pessoas quanto em termos da animosidade em relação ao evento e à polícia. Alguns protestos ocorreram nos primeiros dias de jogo, a saber: 12, 14, 17 e 28 de Junho. Isso significa que a semifinal do mundial, realizada em 08 de julho de 2014, não contou com qualquer tipo de manifestação ou questionamento por parte de populares.
31A manifestação do dia 12 de junho, quando a cidade não sediava qualquer jogo, foi a mais contundente, tendo sido a única em que houve confronto com a Polícia. Um aspecto digno de nota é o fato de que naquele dia não ter havido jogos do mundial na cidade, tendo o protesto ocorrido inicialmente de forma difusa, em diversas regiões da cidade, posteriormente convergindo na Praça da Liberdade, onde os manifestantes se depararam com número expressivo de policiais militares do Batalhão de Choque, encetando acre confronto. Após a dispersão, feita com o uso de gás lacrimogêneo, os manifestantes seguiram pela Avenida João Pinheiro, que teve parte de suas edificações depredada. Ao longo do trajeto, os manifestantes invadiram a Delegacia de Trânsito (DETRAN), chegando a destruir uma viatura. Em seguida, o movimento seguiu em direção à Praça Sete de Setembro, onde depois de algumas horas, reiniciaram-se os confrontos com a Polícia. Ressalte-se que até aquela altura, a PMMG mantivera o mesmo padrão de operações exibido ao longo da Copa das Confederações FIFA de 2013 na contenção dos protestos.
32No segundo dia de manifestações realizadas durante a Copa do Mundo (14/06/2014), data em que Belo Horizonte recebia a partida entre Colômbia X Grécia, a PMMG adotou nova tática de contenção e ação contra os manifestantes. Inicialmente concentrados, como de costume, na Praça Sete de Setembro, os manifestantes foram cercados pela Polícia com a estratégia do envelopamento. O recurso consiste na aplicação de um cordão de isolamento em torno dos manifestantes de modo que ninguém pudesse ultrapassar o perímetro estabelecido pelos policiais, fosse para se juntar aos manifestantes congregados ao centro, fosse para sair do círculo imposto pelos policiais. Reunidos no cerne do perímetro, os manifestantes decidiram seguir em direção à Praça da Estação, tendo a polícia mantido o envelopamento dos manifestantes durante todo o percurso. Ao longo do deslocamento não houve qualquer intercorrência, sendo que após terem permanecido na Praça da Estação por cerca de 40 minutos, a multidão se dispersou paulatinamente, intimidada pela ação policial, sem atos de vandalismo ou incidentes de natureza criminal.
33No dia 17 de Junho de 2014, quando Bélgica X Argélia mediram forças em Belo Horizonte, os manifestantes se reuniram na Praça Diogo Vasconcelos, região Centro-Sul da cidade, local de concentração de torcedores e de festas tradicionais da cidade. Muitos eram os policiais ali presentes com a finalidade de conter a manifestação e realizar o patrulhamento ostensivo da região. Novamente, foi utilizada a tática do envelopamento e os frequentadores da praça sequer ouviram ou foram incomodados pelos manifestantes, que permaneceram dentro do cerco ao longo da realização do jogo e, depois dele, se dispersaram também sem qualquer atitude que pudesse implicar em dano ao patrimônio público ou privado.
34No dia 21 de Junho de 2014, ocasião em que Argentina e Irã se enfrentaram no Mineirão, uma briga, ao que tudo indica entre brasileiros e argentinos, com direito a garrafas arremessadas por ambos os lados só terminou quando a polícia utilizou bombas de efeito moral para a dispersão e realizou apenas uma prisão.8Outro incidente registrado foi a tentativa de quebra do bloqueio, quando alguns torcedores correram para perto do ônibus para saldar a seleção e foram prontamente dispersados com bombas de gás lacrimogêneo. Oito pessoas ficaram feridas.9
35No dia 24 de junho de 2014, quando Belo Horizonte recebeu Costa Rica e Inglaterra, o forte esquema de segurança delimitando o perímetro FIFA contrastou diretamente com a ausência de policiamento nos bairros próximos ao Mineirão, como Ouro Preto e Jaraguá, indicando que a preocupação das forças policiais era apenas com os torcedores, que estavam na cidade ou na região em razão do jogo da Copa do Mundo FIFA de 2014. Nesse dia houve uma tentativa de protesto, sendo que os manifestantes se concentraram na Praça da Estação. O movimento deles foi acompanhado pela Polícia Militar que, ao agir dessa forma, impediu que o protesto se expandisse, em termos de número de indivíduos participantes. Interessante notar que até a Polícia Ferroviária Federal, instituição praticamente inexistente no Brasil, foi chamada para o reforço nas áreas de acesso ao metrô.
36No dia 28 de Junho de 2014, quando a seleção brasileira entrou em campo contra o Chile, houve protesto, sendo que esse ocorreu na Praça Sete, região central, e, mais uma vez, houve um cordão de isolamento, porém mais maleável do que nos dias anteriores. Isso porque, o acesso à manifestação estava “liberado”, ou seja, os policiais não estavam proibindo a passagem das pessoas. Parte dessa mudança pode ser atribuída ao número significativamente menor de manifestantes, que ao contrário das manifestações registradas ao longo da Copa do Mundo, estimados entre 200 e 300 pessoas, naquela data mal chegava a cem pessoas10. Próximo à dispersão da manifestação, um grupo se encaminhou para o cordão policial e realizou um ato simbólico: de mãos dadas, os manifestantes fizeram outro “cordão” voltados na direção dos policiais, proferindo frases contra a corporação: “instituição corrupta e assassina”. No fim, os manifestantes se dispersaram sem qualquer incidente que demandasse a intervenção da Polícia Militar.
37No dia 08 de julho de 2014, data da semifinal entre Brasil e Alemanha, a segurança dentro do perímetro FIFA foi reforçada. Na entrada de torcedores da Avenida Oscar Paschoal, policiais do Batalhão de Choque e o veículo de controle de distúrbio, vulgo caveirão, estavam posicionados estrategicamente, com vistas a não incentivar qualquer torcedor que procurasse bloquear as entradas das seleções de cada jogo. Não foram registrados quaisquer incidentes. Importante destacar que também não foram observados protestos ou manifestações na cidade. Nem a queda do viaduto Guararapes, em 03 de julho de 2014, matando três pessoas mobilizou o engajamento dos cidadãos belo-horizontinos em novos protestos ou manifestações. Essa situação demonstra como o envolvimento de diversos jovens nas atividades lúdicas dos jogos - como FanFest, fanwalk e festas em geral - contribuíram para o esvaziamento das manifestações. Contrariamente, a ação da Polícia Militar, de evitar a aglomeração de indivíduos nos locais que tradicionalmente são considerados pontos de resistência, fez com que os manifestantes se sentissem presos no exercício de seu direito constitucional de ir e vir e terminassem por desistir dos protestos contra a Copa do Mundo FIFA de 2014 que chegava ao seu fim na capital mineira com a derrota do Brasil para a Alemanha por seis gols de diferença.
38Comparando a dinâmica da Copa do Mundo FIFA de 2014 com a Copa das Confederações FIFA de 2013 que a antecedeu, é possível constatar que poucos foram os incidentes de dano ao patrimônio público decorrentes das manifestações e protestos realizados na cidade de Belo Horizonte. Logo, é de se esperar que essa dinâmica se reflita nos dados da PMMG, que devem concentrar um número maior de ocorrências dessa natureza no ano de 2013 do que no subsequente.
39Por outro lado, a quantidade de turistas visitando a capital em 2014 foi substantivamente maior do que em 2013, o que aumenta a probabilidade de ocorrência de delitos contra o patrimônio como furto e roubo. Conforme prescreve a Teoria das Atividades de Rotina, as ofensas contra o patrimônio tendem em aumentar em tais situações, uma vez que a grande concentração de pessoas confere aos responsáveis pelos atos ilícitos grande número de alvos potenciais disponíveis, além de anonimato em meio à multidão, e fácil evasão, dificultando o flagrante policial. É provável que a correlação entre tais delitos e os megaeventos em Belo Horizonte seja maior em 2014 do que em 2013.
40Neste artigo, analisamos os registros da Polícia Militar de Minas Gerais para entender as alterações na dinâmica de crime e da violência na cidade de Belo Horizonte durante a realização dos jogos das Copas das Confederações FIFA (2013) e do Mundo FIFA (2014). Os crimes analisados foram os roubos, furtos e danos ao patrimônio que, segundo os estudos já realizados sobre megaeventos e padrão de criminalidade, são os delitos que tendem a aumentar durante os jogos. Com base nos registros administrativos de ocorrências criminais contabilizados pela PMMG para o período de 2012 a 2014, trabalhou-se a agregação e sistematização dos dados georeferenciados visando duas formas de análise: temporal e espacial.
41Para a análise temporal, filtraram-se as ocorrências relativas ao período de realização dos jogos, extraindo-se para o período em tela os eventos de furto, roubo e dano ao patrimônio para o intervalo de 1 de junho a 31 de julho. Visando a identificação de um padrão geral a partir do qual se pudesse avaliar o efeito da realização dos jogos em Belo Horizonte, procedeu-se o cálculo da média aritmética diária com base no número de ocorrências de cada modalidade de crime, no período de 2012 a 2014, para cada data do período de referência. Posteriormente, construiu-se um polígono de frequências no qual foram plotados a linha de tendência geral e os pontos com os valores específicos dos dias de jogos em Belo Horizonte, de modo a facilitar a identificar possíveis discrepâncias em relação ao padrão geral.
42A análise espacial, por sua vez, foi realizada a partir da construção de cartogramas com base na estimativa de densidade Kernel. Esta técnica consiste em um método estatístico utilizado para criar um mapa matricial de densidade (heatmap), a partir de uma camada vetorial de pontos. O estimador de densidade Kernel desenha uma vizinhança circular ao redor da cada local de ocorrência de crimes (representado por um ponto), correspondendo ao raio de influência, sendo então aplicada uma função matemática, que calcula um valor específico para cada célula, a partir da soma dos valores Kernel sobrepostos, e divididos pela área do raio utilizado na análise. Ver Câmara et al. (2002) para uma discussão detalhada da técnica. O uso desta técnica facilita a visualização de uma grande concentração de pontos interpolados, ou seja, em uma área um ponto pode estar na realidade representando várias ocorrências de crimes. Além disso, a representação não fica limitada a áreas pré-definidas, como é o caso de polígonos de bairros ou municípios (Sheather, 2004).Visando criar as condições necessárias à identificação dos efeitos espaciais da realização dos megaeventos em Belo Horizonte, partiu-se dos dados georrefereciados de ocorrências de furto, roubo e danos ao patrimônio, para o período de 1 de junho a 31 de julho para a construção dos mapas de densidade de Kernel para os anos de 2012, 2013 e 2014.
43Neste trabalho, focalizamos a dinâmica de violência urbana e criminalidade local na cidade de Belo Horizonte durante os dois eventos FIFA e, por isso, os dados relacionados a esses acontecimentos (2013 e 2014) serão contrastados com os referentes ao ano anterior (2012), quando as políticas de segurança, em especial, o CICC, ainda não estavam em operação na cidade.
44A apreciação da distribuição temporal do número médio de registros de ocorrência policial de furtos, roubos e danos em Belo Horizonte no período de 1 de junho a 31 de julho do trinio 2012-2014 revela padrão errático, marcado por grande sazonalidade, que, por sua vez, varia entre as modalidades de crime analisadas (figuras de 2 a 4).
Figura 2: Número Médio de Roubos Diários em Belo Horizonte
entre 2012 e 2014
Fonte: PMMG (2012,2013 e 2014) Elaboração: DINIZ, A., PALHARES, R.H 2017.
Figura 3: Número Médio de Furtos Diários em Belo Horizonte entre 2012 e 2014
Fonte: PMMG (2012,2013 e 2014) Elaboração: DINIZ, A., PALHARES, R.H 2017.
Figura 4: Número Médio de Danos Diários em Belo Horizonte entre 2012 e 2014
Fonte: PMMG (2012,2013 e 2014) Elaboração: DINIZ, A., PALHARES, R.H 2017.
45A Figura 2 indica que os picos no número de ocorrências de furtos encontram-se nos dias de semana. Este fenômeno se explica em função da dinâmica desses delitos, que têm preferência por espaços públicos, sendo natural a sua maior incidência nos dias de semana, período em que um maior contingente de pessoas se encontra transitando nesses espaços, gerando maiores oportunidades para a materialização de furtos. Por outro lado, nos fins de semana, os níveis de incidência de furtos são substantivamente menores.
46Adotando-se como referência o período entre 1 de junho a 31 de julho, observa-se grande movimentação nas ocorrências de furtos em Belo Horizonte entre 2012 e 2014. Em 2012, ano que antecede a realização dos megaeventos, os furtos contabilizados em Belo Horizonte no período atingiram a cifra de 12.771, passando para 25.413 em 2013, ano da realização da Copa das Confederações; e descendo a 18.023 furtos em 2014, ano de realização da Copa do Mundo.
47Acompanhando essa oscilação geral, percebe-se no exame da Figura 2 que o volume de furtos nos dias de jogos da Copa das Confederações encontra-se muito próximo à média trienal. Por outro lado, nos dias de realização de jogos da Copa do Mundo o número de furtos registrados supera de modo expressivo a média trienal, indicando que o megaevento teve relevante impacto na incidência deste fenômeno criminal na cidade. Nesta trajetória surge com destaque ainda maior os 388 furtos registrados no dia 28 de julho de 2014, dia em que Brasil e Chile jogaram as oitavas de final no Mineirão.
48O exame da Figura 3 indica que o padrão de distribuição temporal do número de roubos se assemelha àquele observado nos furtos, com a maior incidência se dando nos dias de semana, em detrimento dos fins de semana. De acordo com os registros da PMMG ocorreram em Belo Horizonte no período de referência (1/6 a 31/7) 5.924 roubos em 2012. No ano seguinte, ano de realização da Copa das Confederações o número de ocorrências chegou a 9.615; subindo ainda mais em 2014, quando se atingiu o patamar de 10.968 ocorrências no período de referência.
49Também a exemplo do que se observou no caso dos furtos, os maiores desvios em relação à média trienal de roubos estão associados aos dias de jogos da Copa do Mundo, sendo que o número de roubos registrados nos dias das partidas da Copa das Confederações encontram-se próximos ao padrão geral. Neste contexto, merece destaque o dia 24 de junho 2014, data em Costa Rica e Inglaterra se enfrentaram no Mineirão, quando 198 roubos foram registrados na cidade.
50As ocorrências de dano ao patrimônio público e privado, por sua vez, estão associadas a eventos que ocorrem principalmente nos fins de semana, sobretudo, em prédios públicos e edificações onde negócios vinculados à prestação de serviços operam (Figura 4). Como boa parte desses estabelecimentos encontra-se fechada nos fins, a ausência de vigilância favorece a prática dessas ocorrências.
51Levando-se em consideração a janela entre 1 de junho e 31 de julho, verifica-se um comportamento irregular ascendente na ocorrências de danos ao patrimônio em Belo Horizonte entre 2012 e 2014. Em 2012, os registros de danos foram 3695, subindo para 5161 em 2013 e chegando a 4548 em 2014.
52Contrariando a tendência observada em relação aos furtos e roubos, os danos foram mais significativos durante a realização da Copa das Confederações em função dos veementes protestos já relatados neste trabalho. Neste sentido, merecem destaque o número de ocorrências registradas nos dias 17, 22 e 26 de junho de 2013, este último coincidindo com a partida entre Brasil e Uruguai no Mineirão. Estes dias foram marcados por vandalismos e depredações de agências bancárias, concessionárias de automóveis, lojas, delegacia de trânsito e uma faculdade, totalizando mais de seis dezenas de eventos em cada dia de manifestações. Por sua vez, os maiores registros de ocorrência durante a Copa do Mundo se deram nos dias 17 e 24 de julho de 2014, com 54 e 55 eventos notificados pela PMMG.
53O impacto dos megaeventos na dinâmica criminal em Belo Horizonte também pode ser avaliado com base na distribuição espacial das ocorrências. A análise dos cartogramas isopléticos indica claros padrões de concentração geográfica na manifestação das ocorrências de furto, roubo e dano. Note-se como certas áreas da cidade de Belo Horizonte, notadamente o seu hipercentro e os grandes eixos viários, se destacam como lócus privilegiado da ação criminal. Tratam-se de áreas onde se aglomeram intensas atividades comerciais e prestadoras de serviços públicos e privados, e que são beneficiadas por rede de transportes terrestres de alta capilaridade. Esses fatores fazem com que seja grande a população flutuante e consequentemente as oportunidades e alvos para os crimes contra o patrimônio (Figuras de 5 a 13).
54Comparativamente, não se observam grandes rupturas no padrão espacial dos furtos tomando-se como base os meses de junho e julho de 2012. Note-se que a distribuição espacial dos furtos é essencialmente a mesma nos meses em que os megaeventos ocorreram na cidade em 2013 e 2014 (Figuras 5, 6 e 7). As ocorrências permanecem concentradas no hipercentro da cidade, sendo também detectável uma concentração que se distribui de forma linear no quadrante setentrional, definido pela Avenida Vilarinho, posicionada na Regional Venda Nova.
55Em que pese a estrutura geral ter sido a mesma ao longo do triênio, observa-se uma inequívoca intensificação das manchas de criminalidade coincidindo com a realização dos grandes eventos, sobretudo a Copa do Mundo. Também digno de nota é o fato de que durante a realização da Copa do Mundo ligeiras alterações no padrão espacial foram discerníveis, indicando um paroxismo da ação criminal no entorno imediato do Mineirão, e na porção sul da Avenida do Contorno, nas cercanias da Praça da Savassi, local de congregação de torcedores antes, durante e após os jogos. Como se viu, o policiamento pensado para o evento não teve como externalidade positiva a melhoria da segurança pública da capital.
56A análise espacial das ocorrências de roubos revela resultados semelhantes àqueles encontrados para os furtos (Figuras 8, 9 e 10). Primeiramente, o padrão espacial muito se assemelha à geografia dos furtos, da mesma forma que a análise comparativa entre a distribuição espacial de roubos em 2012, 2013 e 2014 não indica grandes alterações no padrão espacial encontrado, apesar de ser nítida a intensificação do fenômeno nos meses que coincidem com os megaeventos.
57Os três cartogramas indicam manchas importantes na porção central e ao longo de grandes eixos viários, com destaque para a Av. Don Pedro I, Cristiano Machado e Vilarinho nos três anos analisados. Em processo análogo aos furtos, também se nota o espraiamento dos roubos na parte sul da Avenida do Contorno, na região da Savassi, local de grande congregação de torcedores durante a realização dos megaeventos, sobretudo da Copa do Mundo.
58Por outro lado, a exemplo do que foi observado na análise temporal, o crime de dano teve a sua manifestação espacial alterada de forma substantiva pela realização da Copa das Confederações FIFA de 2013, em que pese a Copa do Mundo FIFA de 2014 não ter apresentado maiores repercussões em relação a este delito (Figuras 11, 12 e 13).
Figura 5: Furtos 2012
Fonte: Banco de dados: SIDS, PM, PC, CBM. Elaboração: PALHARES, R.H. 2017
59
Figura 6: Furtos 2013

Fonte: Banco de dados: SIDS, PM, PC, CBM. Elaboração: PALHARES, R.H. 2017
Figura 7: Furtos 2014

Fonte: Banco de dados: SIDS, PM, PC, CBM. Elaboração: PALHARES, R.H. 2017
60
Figura 8: Roubos 2012

Fonte: Banco de dados: SIDS, PM, PC, CBM. Elaboração: PALHARES, R.H. 2017
Figura 9: Roubos 2013
Fonte: Banco de dados: SIDS, PM, PC, CBM. Elaboração: PALHARES, R.H. 2017
Figura 10: Roubos 2014
Fonte: Banco de dados: SIDS, PM, PC, CBM. Elaboração: PALHARES, R.H. 2017
61
Figura 11: Danos 2012

Fonte: Banco de dados: SIDS, PM, PC, CBM. Elaboração: PALHARES, R.H. 2017
62
Figura 12: Danos 2013

Fonte: Banco de dados: SIDS, PM, PC, CBM. Elaboração: PALHARES, R.H. 2017
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Figura 13: Danos 2014

Fonte: Banco de dados: SIDS, PM, PC, CBM. Elaboração: PALHARES, R.H. 2017
64Comparando-se a distribuição espacial dos danos à propriedades públicas e privadas ocorridas nos meses de junho e julho de 2012 e 2014 com aquelas que se deram em 2013 (durante a realização da Copa das Confederações) nota-se a formação de um claro padrão linear ao longo da Av. Don Pedro I, um dos principais eixos viários que dá acesso ao Mineirão. Também é evidente a grande concentração de eventos de dano ao patrimônio no hipercentro da cidade, ponto de encontro dos manifestantes.
65São inegáveis os impactos deixados pelas Copas das Confederações FIFA de 2013 e do Mundo FIFA de 2014 na cidade de Belo Horizonte. Nesse sentido tem destaque as obras envolvendo a infraestrutura de transportes como a reforma do Aeroporto Tancredo Neves e os investimentos em mobilidade urbana, como o alargamento da Don Pedro I, a implantação dos BRTs da avenida Cristiano Machado, da avenida Antônio Carlos e da área central. Ainda neste sentido também merece a atenção a reforma do estádio Magalhães Pinto (Mineirão) transformado em arena multiuso, a ampliação da rede hoteleira e a intensificação da atividade turística na cidade. Os megaeventos também criaram vários empregos temporários e permanentes, tendo inclusive promovido, do ponto de vista social, a contratação de presos e egressos do sistema prisional, além de induzir uma série de cursos de capacitação e formação para trabalhadores, tanto das obras que foram realizadas quanto em outras áreas correlatas, como turismo e reciclagem de lixo.
66Todavia, os impactos negativos desse megaevento são expressivos. O superfaturamento, os atrasos e a qualidade das obras de intervenção urbana, que também promoveram a evicção de vizinhanças, além de sérios transtornos aos deslocamentos intraurbanos são alguns deles. Some-se a isso os vultosos investimentos públicos, que poderiam ser carreados para áreas onde são históricos as carências como a saúde e a educação.
67No caso específico deste estudo, constata-se que a realização dos megaeventos pouco impactou a dinâmica espaço-temporal da criminalidade contra o patrimônio em Belo Horizonte. O que se observa em relação ao comportamento dos furtos e roubos em 2012 se reproduz em 2013 e 2014, sem, no entanto, romper com os padrões temporais e espaciais identificados antes da realização do evento. Em suma, a segurança foi pensada para o evento, sem qualquer melhoria que ultrapasse as fronteiras desse do ponto de vista espacial.
68Por outro lado, a Copa das Confederações FIFA de 2013 e a onda de violentos protestos que a acompanhou geraram impactos significativos na incidência de crimes de dano contra o patrimônio público e privado em junho de 2013, no qual a Av. Don Pedro I transformou-se em um rastilho de destruição ligando o hipercentro de Belo Horizonte ao Mineirão. Durante a Copa do Mundo FIFA de 2014, no entanto, a organização espaço-temporal dos crimes de dano voltou a assemelhar-se ao padrão encontrado em 2012, uma vez que não houve grandes manifestações e os pequenos protestos foram envelopados pela Polícia Militar, o que impediu a produção de qualquer lesão aos imóveis da cidade.
69Digno de nota foi a intensificação no número de furtos e roubos em 2013 e 2014 que estariam vinculados ao crescimento geral da criminalidade na cidade de Belo Horizonte, assim como no estado de Minas Gerais acarretado pelo crescente contingenciamento das verbas destinadas à segurança pública no Estado.