- 1 Selecionamos os seguintes mapas e plantas para desenvolver esse enredo: a) Mapa de parte do Rio de (...)
1Nas múltiplas abordagens para entender as relações entre cidades e rios, pretendemos, neste artigo, privilegiar um caminho pouco percorrido: o papel das produções cartográficas na invenção de um território, formado no ponto de articulação entre a natureza e cultura. Averiguaremos tal aspecto a partir da leitura de dois mapas e duas plantas produzidos entre os séculos XVIII e XIX1 na cidade-região de Campos dos Goitacazes-RJ. Fruto do movimento de interiorização da colônia, tais representações indicam diferentes etapas do processo de conquista e apropriação da planície outrora habitada pelos silvícolas da nação Goitacá. Ao associar o projeto territorial que deu nascimento a esses mapas, intentamos discutir como tais “instrumentos técnicos” serviram para dilatar o poder da Coroa e dominar as duas naturezas: a dos considerados selvagens e a dos pântanos e lagoas que caracterizam a região.
2Nosso enredo será apresentado na forma de três atos, simbolizados pelos mapas e plantas, que indicam (mesmo que imperfeitamente) o grau de ocupação da região entre o século XVIII até a primeira metade do XIX. Associada à produção dessa cartografia, utilizaremos relatos e documentos da época para entender os momentos decisivos da instalação de novas redes de poder e a ampliação dos conflitos territoriais nos terrenos da vila e depois cidade dos Campos dos Goitacazes.
3O drama inicial tem seu ápice na região no final do século XVIII, momento do avanço da civilização branca nos domínios ocupados por “várias nações do gentio bravo”. A Coroa e os grandes proprietários de terra pretendem desbravar estes sertões e promover seu povoamento.
4O cenário desta trama é o norte e noroeste da antiga capitania do Rio de Janeiro, espaço habitado principalmente pelos índios Goitacazes e Puris, e agora cobiçado pelas qualidades agrícolas do solo, notadamente para a expansão da cultura da cana de açúcar e a ampliação das pastarias.
5O teatro no qual os primeiros povoadores habitam era animado pelas constantes cheias e inundações. Era uma aquarela cuja composição de cores dava um tom particular ao quadro paisagístico. Modificado ao sabor dos rios, tal cenário era animado pela melodia de uma floresta multicolorida e pelos ventos ora do norte, ora do sul, que traziam às tempestades.
- 2 A maior parte dos ameríndios na região era constituída pela nação goitacá, cujo significado do nome (...)
6Ocupando posição central na região pantanosa, capaz de interferir na disposição dos outros elementos da paisagem, encontrava-se o rio Paraíba e as inúmeras lagoas. Associados à fauna e à flora, os primitivos habitantes dependiam da força de suas águas, visto que determinava o ritmo de nascimento e morte desse particular ecossistema. Acostumados e adaptados com os campos e brejais, os “quase caranguejos2” sabiam tirar proveito do que a terra proporcionava, driblando os rios e os animais que ofereciam risco. Da natureza quase selvagem, os nativos aceitavam aquilo que era produzido em abundância, sabendo calcular os momentos de escassez. Era um ecossistema quase em equilíbrio!
- 3 Manuscritos do Capitão Couto Reis, Adição 1a p. 146, [1785], 2011.
7É nos terrenos pantanosos da planície “total receptáculo a tantos rebeldes, e facínoras”3 que se desenrola esse drama social envolvendo índios, negros aquilombados, posseiros, grandes fazendeiros, religiosos e representantes da Coroa. Para cada um desses atores, o que se impunha como exigência para sua reprodução, era a habilidade de desenvolver um “gesto técnico”. No primeiro momento, sem dúvida, dado a maior desenvoltura frente ao cenário que dominava, os protagonistas foram os índios e a esparsa população ribeirinha constituída por posseiros e quilombolas.
8A chegada dos colonizadores na região, principalmente ao final do século XVII e começos do XVIII, impõe uma nova ordem nos sertões dos índios. Muda aquele cenário assim como os papeis exercidos pelos seus principais atores. A força das armas e a capacidade de persuasão conquistada pelos atores de fora - as ordens religiosas e os demais colonos - transformariam pouco a pouco a posição ocupada pelos primitivos moradores: agora o primeiro plano desse cenário é ocupado por novos “objetos geográficos”: os aldeamentos, as fazendas, as igrejas, as freguesias e as vilas. A composição desses objetos, espalhados não aleatoriamente ao relevo pantanoso, adulteraria significativamente as funções exercidas pelos diferentes atores no terreno: no pano de fundo, em uma posição cada vez menos expressiva, estariam as aldeias e alguns pequenos aglomerados fluviais. No entanto, por um, dois, quase três séculos, a luta pelo protagonismo permanece.
9Assim, se o quase total desconhecimento da dinâmica desse particular ecossistema e a extensão geográfica dos sertões prorrogariam por alguns séculos o assentamento definitivo dos colonos, a realidade já é outra a partir da segunda metade do século XVIII. As forças naturais, que outrora afiguraram-se como empecilho para os que vieram de fora, eram cada vez mais suplantadas pelos novos métodos de controle. Inicia-se mais um momento no drama social que modificaria por definitivo a composição desse cenário: era o tempo da Coroa e de seus “funcionários”, era o tempo das igrejas, aldeamentos e vilas. Marcado, então, por uma sucessão de episódios dramáticos, o que caracterizaria essa nova etapa é o melhor esquadrinhamento do terreno promovido por toda sorte de novos atores: os mestres de campo, os capitães e os missionários. Ora em confronto direto ora fazendo alianças com os nativos, esses atores passam a ter um papel central nesse novo enredo que se anuncia. É a eloquente atuação desses grupos que transforma a história e o cenário da “terra goitacá” no século XVIII.
- 4 Ver Mary Del Priore em “Esquecidos por Deus: monstros no mundo europeu e ibero-americano (século XV (...)
- 5 Ver Soffiati (2015).
10As primeiras representações de Campos nos idos do século XVI e XVII estavam impregnadas por figuras monstruosas4, fato comum em um contexto no qual a visão mitológica fazia parte do imaginário europeu sobre o Novo Mundo. Se nos primeiros mapas tal perspectiva está presente, os que foram produzidos no século XVII diferenciam-se, em algum grau, por incorporar dados e informações dos navegadores sobre a área, quase todos das regiões que margeavam a costa, próximas a linha traçada pelo Tratado de Tordesilhas5. Além dos mapas, as primeiras representações de Campos estão registradas também em relatos, livros, diários, cartas, como por exemplo, a carta de doação da Capitania de São Tomé a Pero de Góes.
- 6 Essa expressão é empregada por Charles Ribeyrolles em 1859 ao se referir com entusiasmo a riqueza d (...)
11Quando se analisa o papel dessas representações, em particular a dos mapas, mesmo os mais imprecisos, o que já está presente é o avanço da “abstração geométrica” em serviço dos projetos coloniais. É o território dos índios que está representado: eles indicam uma fronteira em aberto, na qual em seus limites estavam, de um lado, os representantes da civilização e, de outro, à barbárie. Portanto, as novas imagens do “campos das delícias”6 seriam produzidas no momento em que a região era cada vez mais valorizada pelas qualidades das águas e potencialidades das matas. Dá-se início à dilatação dos sertões.
12Nesse contexto, o desenvolvimento de uma espécie de geografia prática, estruturada graças, também, aos saberes dos nativos, conduziu a uma melhor apropriação das dinâmicas daquele ambiente particular, servindo para auxiliar o assentamento das primeiras ermidas e fazendas na região: o funcionamento do regime dos rios, as espécies animais, as plantas e os hábitos alimentares e curativos; tudo isso passou a ser conhecido e catalogado pelos que lá passaram e resolveram ficar. Apresentados aos representantes do monarca na Corte, aquilo que era apreendido como limite e potencialidade para o futuro aproveitamento é inventariado e classificado. O então “Mapa de parte do Rio de Janeiro e do Espírito Santo, descrevendo os Campos dos Goitacazes” ilustra esse momento ao destacar as vilas, ermidas e aldeamentos da região. Ao assinalar a posição do rio Paraíba e as vastas campinas, a representação identifica, outrossim, os principais locais para circulação e produção; isto é, as áreas que estavam sob domínio do colonizador e que poderiam proporcionar à expansão das fronteiras coloniais.
Mapa 1 - Região de Campos dos Goitacazes e Espírito Santo
(meados do XVII ou início do XVIII)
Fonte: Mapa de parte do Rio de Janeiro e Espírito Santo, descrevendo os Campos de Goytacazes, desenhado por volta do século XVIII por autor anônimo. Concepção: Maria Isabel de J. Chrysostomo. Cópia quase fiel desenhada por Pascal Brunello (Universidade de La Rochelle – CTIG), 2017.
13Uma das primeiras representações que abarca uma extensa região na qual está inserida a futura cidade de Campos, aparece demarcada a vila de Paraíba na desembocadura do rio do mesmo nome, uma localidade denominada São Salvador (ao sul) e, ao norte, um outro povoado na ilha de Espírito Santo. Aparecem, ademais, duas capelas (uma delas, mais tarde, transformada na vila de São João da Barra), os campos de gado e a demarcação da região dominada pelos Goitacazes. Apesar de já situar o interior, o mapa parece ter sido feito a partir das informações extraídas do litoral, uma vez que há informações erradas da rede flúvio-lacustre como o rio Paraíba e a Lagoa Feia, ambos localizados de forma bastante distorcida em relação ao conhecimento já disponível para a época.
14Um outro aspecto que ressaltamos no mapa é a representação de um território vazio e praticamente dominado pela natureza, no qual tem destaque a posição do rio Paraíba e da Lagoa Feia. O distorcido tamanho do rio talvez não se explique apenas pelo desconhecimento da região, mas possivelmente pelo papel que desempenhava na planície campista. Cumprindo a função de principal “veia de abastecimento e escoamento”, ele é o espaço-condição para o deslocamento e assentamento daqueles grupos que por lá resolveram se instalar como bem iriam atestar vários relatos.
15Se, por um lado, tal representação demonstra a dominância de um território indígena, como pode ser visto na indicação da grande área designada como “campos dos Aitacaz”, não há dúvida que as demais localidades já indicam a marca de um poder em ascensão: a área assinalada como “campos cheios de gado” e o registro de cinco capelas são provas disso7.
- 8 Sobre os sete capitães, ver Lamego (1945). Descoberto pelo historiador Augusto de Carvalho, o Rotei (...)
16Embora sem data precisa, Sofiatti (2015) especula que seja possível que o mapa tenha sido desenhado no final do século XVII ou princípio do século XVIII a partir de informações de terceiros ou de parcos conhecimentos superficiais. Tal premissa parte de três informações existentes em tal representação: o registro dos “campos cheios de gado” na planície flúvio-marinha à margem direita do Paraíba do Sul, terreno que foi ocupado pelos Sete Capitães em 1632, em função da riqueza e disponibilidade dos pastos naturais8. O segundo indício é o registro da vila de Paraíba no lugar onde se situa a vila de São Salvador, antes de seu deslocamento. Ela está representada no povoado de Macaé (onde tal autor situa uma igreja com o nome de São Salvador), uma primitiva instalação. A terceira pista é a referência de uma cachoeira na altura da atual cidade de São Fidélis.
- 9 Este momento da história de Campos é alvo de inúmeras controvérsias.
17Sobre estes aspectos é importante tecer os seguintes comentários: as narrativas sobre o nascimento da vila descrevem que após quatro anos de instalação de Pero Góes na região, fundou-se a primeira vila -“Vila da Rainha” - em 1539-1540 em São João da Barra (foz do rio Paraíba do Sul). Sobre a vila, o próprio Pero de Góes, responsável por administrá-la durante um curto espaço de tempo, informou a seu sócio que sua intenção inicial era instalá-la às margens do Rio Paraíba do Sul, mas impedido resolveu se mudar para as margens do Rio Managé, hoje Itabapoana, mais ao norte. Tal vila possuía casa de Câmara e casebres de taipa e começava a ensaiar, aos padrões da época, uma produção regular de açúcar e gado. Este primeiro povoado foi totalmente destruído pelos indígenas em função de inúmeros conflitos. O colonizador, no entanto, não desistiu de ocupar a região e fundou uma outra vila, reconstruindo casas e estabelecendo uma nova povoação. No entanto, também em decorrência dos conflitos com os Goitacazes, a povoação seria novamente destruída. A incapacidade de vencer os indígenas levou Pero Góes a finalmente abandonar o projeto inicial de ocupar a área e somente no começo do século XVII, seu filho - Gil de Góis da Silveira - reivindicaria a posse dos domínios ao Rei de Portugal, fundando, em associação com João Gomes Leitão, uma outra povoação - Vila de Santa Catarina das Mós9. Após viver um tempo, mais uma vez em função de conflitos com os indígenas, a vila foi destruída e Gil de Góes resolveu renunciar à Capitania para Coroa em 1619. O Mapa indica com um sinal, uma povoação que talvez corresponda a essa embrionária instalação, criada quase um século mais tarde pelos padres jesuítas na foz do rio Managé.
- 10 De acordo com Lamego (1945) após o reconhecimento da área os Sete Capitães fizeram uma expedição, e (...)
- 11 Lamego (1945) relata, ainda, o caso da vila de Atafona no século XVII, que nos anos 1630 dera orige (...)
- 12 As terras teriam sido repartidas entre grandes sesmeiros por meio da escritura de “composição”, ela (...)
- 13 O título nobiliárquico Visconde de Asseca foi obtido pelo General Salvador Correa de Sá e Benevides (...)
18Os escritos têm em comum o fato de assinalarem que o domínio inicial dos colonos em Campos ocorrera somente após a doação da Capitania de Paraíba do Sul (São Tomé) aos conhecidos como “Sete Capitães” e a sucessiva implantação de engenhos10. No entanto, cabe ressaltar que paralelamente ao aumento da produção tornou-se central administrar e controlar o poder político e econômico dos grupos que habitavam essa região. Por isso é que desde meados do século XVII, período em que houve um aumento substancial da produção de cana-de-açúcar, se intensificam os pedidos (feitos pelos povoadores) para a criação de uma vila11. Este processo, no entanto, foi caracterizado por um intenso conflito de terra envolvendo grandes proprietários e povoadores12 e, também, em torno da autoridade que seria responsável pelo comando político da futura vila. A gênese de tal conflito envolveu os descendentes dos Asseca13, os padres jesuítas, os beneditinos e carmelitas, os herdeiros dos “Sete Capitães” e os vaqueiros. Com grande prestígio após ter participado da reconquista de Angola para o Reino de Portugal, o general Salvador Correa de Sá e Benevides, com aprovação da Coroa, dividiria em 1648 a sesmaria dos Sete Capitães com seus herdeiros e os religiosos das Ordens Beneditina e Jesuíta. Décadas mais tarde, com o interesse ampliar a defesa interna e externa da região de Campos, os herdeiros da família Sá recebem autorização do El Rei para fundar a vila de São Salvador e de São João da Barra. Com apenas vinte dias de intervalo, a primeira vila é instalada no interior, no ponto mais elevado da planície, e a segunda, na vizinhança do mar.
“Visconde de Asseca Martim Correia de Sá e Benevides em seu nome e como procurador de seu Irmão João Correia de Sá, solicita a Sua Alteza a autorização para se fundar duas vilas na região: huam no Porto do Mar para segurança das Embarcações, que a ele fossem, e outra no Sertão, no lugar mais conveniente de reprimir os insultos dos Barbaros, e evitar os damnos, que se seguião das revoluções dos Povos pela falta de temor ás Justiças”. (Pedido de criação da vila feito por Visconde de Asseca à Coroa, reproduzido em F.N.M., 1868)
19O nascimento dessas povoações, que reinaugura séculos de disputa de terra, assegura um processo em curso: a ampliação dos currais, engenhocas e a extração de madeiras; atividades desenvolvidas nos primitivos povoados e sustentadas pelos aldeamentos e ermidas existentes. Cada instalação, portanto, constituía-se em um ponto de apoio das atividades econômicas e sociais, isto é, um espaço de controle da pequena população, ainda bastante esparsa. Assim, mesmo que separados por longas distâncias e quase completamente isolados, os rudimentares povoamentos que ocupavam o litoral e as margens dos principais rios e lagoas de norte a sul de Campos passaram pouco a pouco a serem articulados à vila de São Salvador.
- 14 Sobre os aldeamentos e, particularmente, o de Guarulhos é importante destacar que embora tal estrat (...)
20Cabe ressaltar que o processo de conhecimento e conquista do interior da Capitania não poderia ter ocorrido sem a “docilização” dos nativos que dominavam vastas extensões de terras, por isso a instalação dos primitivos aldeamentos jesuítas possibilitou que a politica de doações de sesmarias se intensificassem, principalmente a partir de meados do século XVII. Povoados por diferentes nações indígenas, os aldeamentos constituíram-se em uma das mais eficazes técnicas de controle da mão de obra, redefinindo desde os começos, a fronteira (ainda que móvel) da expansão colonial. Vários escritos redigidos pelos herdeiros das famílias dos primeiros colonizadores destacam, como o de José Carneiro Silva, o papel de Guarulhos - primeiro aldeamento criado na região14.
“Os índios Coroados, que se tinhão aldeado na Aldeia de S. Antonio dos Guarulhos e depois pelos outros lugares, por onde forao mudando a povoação finalmente fundarão uma Aldeia a margem sul do Rio Parahyba, no lugar chamado Gamboa, que he o mesmo que ensinava (?) do que tendo noticia Luiz de Vasconcellos e Sousa, vice rei do Estado, mandou por ordem de sua majestade dois missionários capuchinhos (...) para a dita Aldea, distante da villa de S. Salvador dez legoas pelo rio acima, os quaes conseguirão, que se aldeasse em muitos índios.
A Fazenda Real assitio com as primeiras despesas, e depois o mesmo vice-rei em mil e setecentos e oitenta e hum aplicou para ellas os rudimentos dos fóros da Aldea de S. Antonio” (José Carneiro Silva, 1819, p.25)
- 15 Aspecto discutido por Heidegger em “Construir, habitar, pensar”, 1951.
21Por outro lado, a posição estratégica ocupada pelos primeiros povoados no terreno - próximos à embocadura dos rios e das barras - registra aquilo que Aroldo de Azevedo (1958) mencionava ao se referir à forte dependência que as vilas, aldeamentos e raríssimas cidades coloniais tinham dos rios e mares; verdadeiros “aglomerados marítimos-fluviais”. A estreita imbricação dos povos com a natureza exigia um conhecimento profundo da dinâmica fluvial e climatológica, já que o ritmo natural definia as formas de circulação e desenvolvimento das atividades econômicas e sociais. Assim, a cultura fluvial, estruturada em torno do habitar, definiria um tipo de comportamento social: um modo de vida no qual o “ser e estar sobre a terra”, constituía-se no “traço fundamental do ser-homem”15.
- 16 Outras imprecisões no mapa são discutidas em Sofiatti, 2015.
22Portanto, o mapa da região, mesmo que mantendo grande imprecisão cartográfica16, registra alguns importantes episódios da história regional ao assinalar as linhas limítrofes da Capitania de São Tomé, que passaram a tomar por base a foz dos rios Itapemirim, ao norte, e Macaé, (aproximadamente), ao sul. Registra também algumas das várias tentativas de implantação da vila de São Salvador e do aldeamento de Guarulhos, isto é, as diferentes estratégias de conquista da vasta região. E é nessa medida que tal representação pode ser considerada um importante instrumento para identificar os diferentes projetos territoriais e o processo de dilatação de fronteiras coloniais.
23O capítulo seguinte dessa história dá prosseguimento das práticas experimentadas na fase anterior: a guerra justa, o deslocamento forçado de índios, o nascimentos e deslocamentos de aldeamentos e a instalação de mais ermidas; algumas ascendendo à categoria de freguesia. Esses eventos culminariam na expansão desenfreada dos currais e pequenos sítios na região, o que marcaria o tempo dos engenhos e da produção do açúcar. Dava-se nascimento a “sociedade do açúcar”, como se referia Alberto Lamego ao analisar a influência política das elites campistas nesse momento.
24Nesse contexto iriam se ampliar os relatos e impressões da região descritos em pareceres, relatórios e em esboços de plantas e mapas. Não existe em Campos instrumento mais representativo das novas técnicas de controle e conhecimento da área do que o Mapa e Manuscrito elaborado pelo Capitão Couto Reis em 1785: ambos os documentos constituem-se em uma das mais completas representações cartográficas e descritivas feitas no Brasil à época. Elaborados a partir de um levantamento de campo que durou cerca de cinco anos, possivelmente foi mapeada quase toda a região ocupada e a prestes a ocupar. É possível conhecer e situar a relação da população com as atividades econômicas desenvolvidas nas seis freguesias delimitadas pelo capitão: é, em síntese, um rico diagnóstico e prognóstico da situação política, econômica e social de uma vasta e preciosa região da capitania.
25A meticulosidade das informações fornecidas para o então Vice-Rei sobre o nível de “civilização” de Campos permite compreender o Mapa e o Manuscrito como um dos mais importantes instrumentos de gestão administrativa naquele contexto, servindo de subsídio ao avanço da civilização branca nos sertões norte e noroeste fluminense. Demonstramos, abaixo, uma cópia do Mapa do Capitão, que é uma versão desenhada e digitalizada feita a partir do original de1785 e preservado ainda no arquivo do Exército.
- 17 O Distrito correspondeu a uma divisão administrativa (sem limites muito precisos) estabelecida pelo (...)
Mapa 2 - Mapa Topográfico do Distrito17de Campos 1785
Cópia Digital do Mapa Couto Reis. Acervo GESTHO/IPPUR/UFRJ.
26Elaborado numa escala maior que a anterior, o “Mappa Topographico do Districto dos Campos Goiatacaz” é fruto de uma encomenda do Vice-Rei Luiz de Vanconcellos e Sousa (1779 e 1790) ao Capitão. Sua produção está circunscrita em um período da história do Império Português marcado pelo reformismo ilustrado, no qual incentivava-se o fomento à economia visando superar o atraso e promover a civilização da metrópole e colônia. Isso é revelado na preocupação central do documento em registrar as atividades econômicas e institucionais, as formas de melhor aproveitar o terreno e os principais problemas ambientais e sociais (índios, fazendeiros, quilombos etc) que obstaculizariam a expansão do poder da Coroa.
27Ao se analisar tal Mapa, alguns aspectos relacionados ao grau de ocupação da área, em princípio, nos chamam atenção: o primeiro é a maior densidade de artefatos técnicos e de poder concentrados nos locais situados às margens dos principais rios, com destaque ao Paraíba, e em algumas lagoas (em especial a Feia). O segundo, são as áreas assinaladas como sertão, situadas na direção norte e noroeste do mapa. Em tais locais - limite norte e sul da região - nota-se a escassez de informações, tanto pelas dificuldades de penetração como talvez pela ameaça de ataque dos índios.
28Expressando, também, como no primeiro mapa, uma grande extensão de área sob o domínio da natureza, ele se distingue por definir uma fronteira mais precisa entre a área ocupada e os sertões. Detalhadamente registradas, as áreas circunscritas pelas freguesias, aldeamentos, ermidas e fazendas são todas espacializadas, o que torna possível reconhecer a importância estratégica das vilas de Campos e São João nesse contexto. A intervenção dos Assecas e demais capitães designados a servirem no Distrito (8 entre 1652 a 1693 e 13 no período de 1700 a 1780), além dos oficiais que são indicados da Praça do Rio de Janeiro para atuarem em Campos (6 entre 1730-1748) sinaliza, por outro lado, o avanço militar e, por conseguinte, o maior controle exercido pela Coroa na região (COUTO REIS, [1785], 2011)
- 18 Para compreender melhor o papel da rede eclesiástica no Brasil, ver Murillo Marx, ([1989] 2003), Fa (...)
29Esse aspecto pode ser aprendido a partir da expansão das ermidas, freguesias e aldeamentos, como podemos perceber nas informações selecionadas e retiradas do Mapa e Manuscrito de Couto Reis, no qual destacamos a constituição de uma rede de ermidas18. Esse embrionário núcleo de povoamento, quase sempre articulado aos caminhos e picadas, eram os principais responsáveis pela manutenção da ordem civil e religiosa de um povoado, dando sustentação as principais atividade econômicas.
30
Mapa 3 - Capelas, Aldeias, estradas e principais caminhos em Campos em 1785
Fonte: Mapa Topográfico do Distrito de Campos, autoria Couto Reis, 1785. Concepção: Maria Isabel de J. Chrysostomo. Elaboração: Pascal Brunello (Universidade de La Rochelle – CTIG).
31Por meio das descrições do Capitão é possível notar como os rios e pequenas picadas abertas no final do século XVIII eram os principais locais de circulação e intercâmbio de produtos, ideias e ordens. Notamos, também, uma articulação entre as pequenas povoações situadas no então Distrito de Campos e as várias localidades, dispostas ao longo dos rios Paraíba e Muriaé, configurando uma região em gestação nos limites com a região de Minas Gerais e Espírito Santo. Tanto pelos caminhos, ainda que limitados, que as povoações estavam sujeitas a percorrer como pela concentração da força militar, civil e religiosa de Campos, Couto Reis destacava a importância dessa vila, atribuindo-lhe o papel de Metrópole.
Hé a Metropoli deste Districto, a mais rica, e populoza de todas as sugeitas ao Rio de Janeiro; sustentada e engrandencida por um florescente comercio agitado pelos productos de todos os lugares seos subjacentos. Esta situada sobre a planice da Margem Meridional do Paraíba, distante do mar 6 legoas esforçadas.” (Manuscritos ... 1785: p. 106)
32A qualificação de Metrópole, empregada à época para designar um centro administrativo e político era justificada tanto em função do grau de importância que tal localidade assumia no contexto regional, ao se constituir como principal espaço de recebimento, negociação e distribuição dos produtos, como por ser o principal espaço da decisão política.
33As palavras metrópole, pays e distrito, isto é, a atribuição nominativa de Campos a um tipo de recorte espacial, que remetia à ideia de região foram empregadas para realçar as articulações e a influência da vila de Campos com as localidades situadas no seu entorno, merecendo destaque por ressaltar o papel econômico, político e cultural e a ascendência da vila nas malhas de poder na antiga Capitania do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo. Nessa medida, assinalados como uma possível área de influência da intitulada “Metrópole”, os diversos povoados que aparecem no entorno tornam-se significativos em função da distância em relação à vila de Campos e ao rio Paraíba.
34Por outro lado, o levantamento do terreno de Couto Reis, instaura, também, uma espécie de regionalização no interior dessa Metrópole, cujo critério baseava-se nas características ambientais (na citação abaixo isso fica notório) mas também em função dos aspectos econômicas e sociais de cada subárea, como é possível verificar no Manuscrito e nas anotações feitas no Mapa.
Divide-se todo Distrito dos Campos em três sortes de terreno, todas diferentes por suas qualidades, situação e fecundidade.
Os dois primeiros são baixos, planos e quase no nível do mar, um destes mais ameno por suas vistosas campinas, divididas por pequenos bosques, rios ou pantanais (...)
O segundo terreno é de mato grosso, os quais estão em muita parte destruídos pelo uso comum e falta de economia - herdado sem reparo e sem contemplação - de os cortarem e queimarem quando preparam a terra para a agricultura
Segue-se o terceiro terreno, que é mais ocidental e tanto mais elevado quanto mais se aproxima das fraldas das serras. Este é abundante de preciosas madeiras.
Além dos terrenos mencionados, segue-se ao norte do Paraíba, o das Cacimbas, que finaliza no rio Cabapuana ou Moribeca (...). É onde se acham as melhores madeiras para uso dos arsenais e não difíceis de conduzir-se. Ele é igualmente fecundo para toda qualidade de plantas, posto que chegado à vizinhança do Combro do Mar é menos produzido. (Manuscritos de Couto Reis..., parte 1, p. 50 e 51)
O desejo de incrementar a economia regional em cada parte do Distrito associava-se o grau de importância das atividades econômicas e sociais de cada freguesia, se tornando um guia para ocupação e desenvolvimento futuro do comércio na Metrópole. Por isso, como descrito na legenda do Mapa e relatado no Manuscrito, a necessidade de delimitar as freguesias e sistematizar as informações segundo as suas potencialidades e limites.
As diversas cores das águas servem de indicar o território pertencente a jurisdição de cada freguesia. O amarelo vivo mostra a de Santo Antonio dos Guarulhos, o mais amortecido a de São Gonçallo, o verde vivo o de Capivari e o desvanecido o de São João. O encarnado mais claro a de São Salvador, com mais vivo. (Mappa Topographico do Districto dos Campos Goitacaz (...), 1785)
35A importância das instalações econômicas e a população existente em cada freguesia: número de escravizados, casas, engenhos, engenhocas, curral de gado vacum igrejas foi, sem dúvida, um dos critérios mais importantes para a divisão e a delimitação de cada subárea. A tabela a seguir, elaborada a partir do Manuscrito, ilustra tal ponto de vista ao indicar o grau de ocupação e riqueza das seis freguesias de Campos.
Tabela 1- Número de engenhos, engenhocas, lavouras de mandioca, gado vacum, manadas das freguesias de Campos dos Goitacazes, 1785
Instalações e total de escravizados
|
São Salvador
|
São Gonçalo
|
Santo Antonio dos Guarulhos
|
Nossa Senhora Desterro
|
Nossa Senhora das Neves
|
São João
|
Total
|
Escravos
|
4.461
|
4.556
|
1.449
|
1.256
|
102
|
261
|
12.083
|
Engenhos
|
124
|
65
|
31
|
6
|
1
|
8
|
236
|
Engenhocas
|
5
|
3
|
-
|
1
|
-
|
-
|
9
|
Gado vacum
|
9.659
|
31.064
|
1.480
|
6.343
|
111
|
4.015
|
53.672
|
Cavalos
|
1.232
|
9.616
|
287
|
1.118
|
6
|
542
|
13.201
|
Manadas
|
38
|
68
|
4
|
6
|
-
|
104
|
220
|
Currais separados no campo.
|
19
|
164
|
-
|
21
|
-
|
14
|
218
|
Fonte: Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reys - 1785. (Descrição Geográfica, Política e Cronographica do Districto dos Campos Goitacaz), [1785). Retirado de Chrysostomo, 2006.
36No Mapa 4, elaborado, também, segundo as informações contidas no original de Couto Reis, ensaiamos representar as duas principais subáreas. Elas abarcam, principalmente, as freguesias de São Salvador, São Gonçalo e Santo Antônio dos Guarulhos.
Mapa 4 – Mancha de ocupação das principais atividades econômicas da região de Campos - 1785
Fonte: Mapa Topográfico do Distrito de Campos, autoria Couto Reis, 1785. Concepção: Maria Isabel de J. Chrysostomo. Elaboração: Pascal Brunello (Universidade de La Rochelle – CTIG).
37Passemos para a outra parte do Mapa de Couto Reis, que representa sobretudo as áreas designadas como sertões, e que eram constituídas pelos vales dos rios Muriaé, Macabu e Imbé e seus afluentes. Ao chamar atenção dos problemas climatológicos que dificultaram o seu desbravamento, o Capitão, de certa maneira, acaba definindo uma linha de fronteira à penetração, que merecia ser alvo de preocupação para os futuros povoadores.
38De fato, ao observarmos as informações contidas na Carta, o que se nota é que no caso do vale do Muriaé, que fazia limite à época com a Capitania de Minas Gerais, o rio meandrante que aparece representado era, essencialmente, a única via de penetração para atingir os sertões de Muriaé e dos Cacimbas. Mesmo que estivesse indicado na Carta um caminho de terra ao longo de suas margens, como pode ser visto no Trecho abaixo, ele atinge somente um certo ponto do rio. Esse aspecto tornava a distância para se alcançar os sertões um cálculo importante para viabilizar o projeto da Coroa de dominar os índios bravios - donos ainda dessas terras.
Trecho 1 - Região do Muriaé - Mapa de Couto Reis, 1785
Cópia Digital do Mapa Couto Reis. Acervo GESTHO/IPPUR/UFRJ.
39Essa preocupação sustentava-se pelas características que predominavam nas áreas designadas como sertões, nas quais inexistiam ermidas e vilas. Registrava-se, no entanto, a presença do colonizador nos engenhos e fazendas situados, principalmente, na desembocadura do rio Muriaé, assinalando os limites ocidentais da freguesia de Santo Antônio - amarelo mais vivo. O mapeamento das cachoeiras, brejais e morros, isto é, os principais obstáculos naturais à penetração neste sertão são também destacados, o que direciona o seu olhar nos cálculos necessários para superar tais barreiras e alcançar o rio Paraíba e a vila São Salvador. Por fim, ao discutir as dificuldades de transpor e circular nesses confins, o Capitão aconselha à adoção de medidas ambientais e sociais para facilitar a navegação de suas principais artérias com o intuito de usufruir melhor das riquezas naturais e civilizar os índios dispersos nos sertões (CHRYSOSTOMO & SANTOS, 2016).
40Expressando, também, a importância da região, um outro relato feito por um oficial designado pelo El Rei sobre Campos, possivelmente escrito nos anos de 1790 ressalta as potencialidades da área e indica, como Couto Reis, a melhor maneira de aproveitar as riquezas da terra. Embasado em dados fornecidos pelo Mestre de Campo Jozé Caetano de Barcellos Coutinho e, certamente, em outras informações, as suas colocações expressam claramente a preocupação da Coroa em melhor aproveitar as riquezas da terra e controlar os poderes locais. A seu ver, tal região constituía-se numa unidade política e econômica estratégica para o Reino e, por isso, deveria se dar maior atenção aos aspectos relacionados à religião dos índios e a baixa densidade de autoridades civis e militares. Baseado nesses pressupostos, ele fez as seguintes recomendações ao Príncipe Regente:
Por tanto parece ser da maior utilidade a Fazenda Real, e beneficio daqueles povos, e augm.to da Religião q. sua Alteza Real se digne crear ali hum novo governo independ. te da do Rio de Janeir.o , nomeando hum G.or (governador) q. reunindo em si virtudes, e conhecim.to pratico do paiz, saiba c. sua prudência activa, e a cautelada temperar o rigor das leis p. sua brandura, todavia sem degenerar em hum Governo fraco, q. de todos seria o peor; o qual deveria aplicar todos os seus cuidados.
1a á Civilização dos povos.
2o Domesticação e catechização dos Indios.
3o Plantação, conservação e cultura de todos as plantas e gêneros uteis nao só indigenos do paiz mas das outras partes do mundo.
4o Melhoram.to da navegação dos rios.
5o à Formação de hum corpo de Milicias p. a defesa e conservação do Paiz.
6o. Finalm.te á multiplicação dos Gados Vacum, o Velhum, e Cavallar.
(AMADO, Lazaro Cardoso. Carta destinada ao Príncipe Regente falando sobre Campo dos Goitacases. [S.l.], [s.d.].
41Portanto, ao sugerir a criação de “um governo único e independente da capitania do Rio de Janeiro”, além do aumento do número de milícias, ele demonstra um aspecto central quando se discute a questão da interiorização do poder nesse contexto de colonização portuguesa: a necessidade de produzir novos recortes administrativos e a designação de funcionários da Coroa para estabelecer o maior controle de uma região.
42O terceiro ato dessa história é marcado pela maior velocidade da ocupação, expressando o avanço do poder da Coroa nos sertões. As plantas que empregaremos para discutir tal aspecto foram elaboradas entre o final do século XVIII e no começo do século XIX (1805), ambas produzidas numa escala maior, e abarcando apenas algumas parcelas do terreno campista. Elas assinalam dois importantes movimentos: a afirmação do poder da vila de Campos junto às demais áreas e a maior capacidade de esquadrinhamento dos terrenos que circunscreviam a vasta região. Encontramos isso expresso na primeira planta que reproduzimos de maneira quase fidedigna. Nesta, destacamos o número total de quadras, o total de casas e a distinção de sua tipologia, os locais precisos onde havia as enchentes, assim como as lagoas. Indica-se, também, a permanência dos conflitos fundiários, aquilo que foi durante séculos um imbróglio envolvendo os padres beneditinos, Câmara e proprietários de terra sobre a propriedade do terreno onde estava instalada a vila de Campos. Ao fazer menção às construções de casas feitas por um tal Furtado e possíveis conflitos entre os Beneditos, Câmara e Vice-Rei, ele sinaliza, por fim, o aperfeiçoamento dos processos de mapeamento como meio de auxiliar os conflitos fundiários ainda presentes.
Planta 1- Planta indicando a modificações da vila em decorrência das cheias (final do XVIII)
Fonte: Campos dos Goytacazes [Cartográfico], S.L.:, 17... Concepção: Maria Isabel de J. Chrysostomo, Execução: Pascal Brunello (Universidade de La Rochelle – CTIG).
43A Planta 2 que segue, também, reproduzida de uma original representa um outro trecho da região campista, compreendido entre a Lagoa Feia e o litoral. Ela demarca a área que desde o começo do povoamento se notabilizou pela grande produção de gado e açúcar, e pela existência de inúmeros conflitos fundiários. Na representação está indicada as medições feitas nos terrenos a pedido de alguém e a definição dos limites de todas as ilhas que compõem o trecho demarcado, assim como a presença de alguns de seus sesmeiros. Mais uma vez aparece na Planta as terras dos padres Bentos, indicando possivelmente a existência de um imbróglio envolvendo os limites de seus terrenos com outros grandes proprietários, como o de Francisco Mello que aparece na planta.
Planta 2 - Identificação e Medição de uma parte do Terreno de Campos, 1805
Fonte: Carta topografia de uma parte do terreno compreendido entre a Lagoa Feia e o Oceano Atlântico [ Cartográfico], S. L. : s.n. 1805. Concepção: Maria Isabel de Jesus Chrysostomo. Execuação: Pascal Brunello (Universidade de La Rochelle – CTIG).
44O Mapa 5 é uma montagem das plantas que acabamos de demonstrar. Neste, identificamos os dois trechos que foram alvo de medição e planificação. O que gostaríamos de destacar ao fazer essa representação é o aperfeiçoamento dos métodos de controle das diferentes áreas a partir do aperfeiçoamento da cartografia.
Mapa 5 - Projetos de intervenção em Campos (final do XVIII e início do XIX)
Fonte: Mapa Topográfico de Campos dos Goitacazes, 1785; Campos dos Goytacazes [Cartográfico], S.L.:, 17...; Carta Topografia de uma parte do terreno compreendido entre a Lagoa Feia e o Oceano Atlântico [ Cartográfico], S. L. : s.n. 1805. Concepção: Maria Isabel de J. Chrysostomo, Execução: Pascal Brunello (Universidade de La Rochelle – CTIG).
- 19 Por meio da Lei No. 6. 1835, 28 de março de 1835 é determinado a criação da província e, em seu art (...)
45Elaborados em uma escala maior, as representações feitas da região são fortes indícios de um processo em curso: o fortalecimento do poder da vila, refletindo a influência de suas lideranças na história da formação territorial do Rio de Janeiro. E isso, sem dúvida, se expressa em um episódio marcante em Campos: em 1835, quando a Província do Rio de Janeiro obtém sua autonomia jurídica e administrativa, a vila é uma das quatro primeiras a se transformar em uma cidade 19. As plantas indicam, também, formas mais elaboradas de controle do crescimento populacional, a preocupação com as doenças, o melhor monitoramento da natureza e as medidas administrativas visando amenizar os conflitos territoriais.
46Ao pensar o papel dessas plantas no início do século XIX, não poderíamos deixar de mencionar a importância assumida pelos seus principais líderes políticos algumas décadas mais tarde. Ao propagar a força da economia de Campos e difundir a necessidade de fortalecimento da economia regional, suas lideranças se destacariam também em produzir outras representações sobre a região que muito influenciariam os debates sobre os rumos da política fluminense e brasileira.
- 20 Ver a esse respeito Rodrigues (1988).
47O caso de José Carneiro da Silva, o 1o Visconde de Araruama, é emblemático já que foi um dos que mais se empenhou em propagandear os benefícios em se investir na região, publicando em 1819 o famoso “Memória Topográfica e Histórica sobre Campos dos Goitacazes” e em 1836, ao publicar “Memória sobre a abertura de um novo canal para facilitar a comunicação entre a cidade de Campos e a vila de Macaé”. Retomando uma ideia antiga de interligar à vila de Campos à Macaé por meio de um canal, José Carneiro, valendo-se de sua influência política e econômica conseguiria que seu projeto fosse aprovado nas décadas seguintes, constituindo-se em uma das obras mais importantes e dispendiosas da Província. Vale ressaltar, a construção de uma grande Muralha as margens do rio Paraíba20, um outro investimento de custo bastante elevado e que foi executada graças a influência de João Caldas Vianna - outro líder campista.
- 21 Análise sobre o desempenho da economia fluminense e em Campos no decênio de 1831-1840 é encontrada (...)
48Não deixa de ser importante ressaltar que entre os anos de 1821 a 1830, o açúcar era o principal item de exportação do Rio de Janeiro, totalizando 30,1%, do valor arrecadado. A desvalorização do preço do açúcar, no decênio seguinte, sem dúvida, repercutiria na balança de poderes na Província, surtindo efeitos na cidade de Campos. Outro aspecto a ser destacado é que no ano de 1838, do total arrecadado em impostos pela província do Rio de Janeiro, três cidades sobressaíram: Campos, Niterói e Itaboraí21. Essas informações, no entanto, não deixam de refletir o que talvez seja o mais importante indicador da influência de Campos junto à região de entorno e à província: a presença majoritária de suas lideranças na Assembleia Provincial nas primeiras décadas de sua existência e a consolidação de novas redes de poder regional.
49Portanto, ao destacarmos no Mapa 6 os indícios de uma rede urbana no começo do século XIX, capitaneada pela cidade de Campos, o que gostaríamos de ressaltar é que tal rede reflete o papel econômico, político e social desta cidade-região no começo do século XIX. Distribuindo madeira de diversas regiões, café das áreas montanhosas, cana de açúcar da planície, produtos agrícolas da região das Minas Gerais e Espírito Santo, tanto para o mercado interno quanto para abastecer o mercado da capital do Império, Campos se notabilizava política e economicamente em relação às demais cidades da província. Por meio do porto de São João da Barra - o segundo mais importante da Província do Rio de Janeiro - e recebendo da capital os artigos de luxo e manufaturados, constituía-se tal cidade um verdadeiro nó de uma rede urbana. Nessa medida, é importante destacar que a indústria de embarcações e vapores, que fazia ligação da cidade recém emancipada à Macaé e a capital transportavam, também, pessoas, transformando-se, portanto, em um negócio bastante lucrativo.
Mapa 6 - Rede Urbana e economia fluvial em Campos dos Goitacazes na primeira metade do século XIX
50Construído a partir de informações de viajantes, relatos e livros escritos no século XIX, o Mapa 6 apresenta a desenvoltura de uma Metrópole, na acepção empregada por Couto Reis, isto é, o papel central exercido pela cidade de Campos no comando de uma extensa região. Portanto, ele já supunha aquilo que se confirmou no século seguinte: a importância da vila de São Salvador como principal local de distribuição de fluxos. Uma impressão que também é registrada em vários escritos do começo do século XIX, como a que o Príncipe Maxiamiliano fez ao visitar tal vila na primeira década deste século.
A situação da cidade é bastante aprazível; acompanha em longa extensão a margem do belo Paraíba e oferece panorama, especialmente quando vista da estrada rio abaixo. A paisagem ribeirinha é sempre animada; um povo atarefado, quase todo de cor, agita-se continuamente, entregue ao comércio e a outras ocupações. Pratica-se, em Campos, ativo intercâmbio de diversas mercadorias; a região do Paraíba acima produz, nesse particular, grande quantidade de açúcar; e existem grandes engenhos junto ao pequeno Muriaé, que desemboca no Paraíba na margem norte, oposta a S. Salvador. Café, algodão e outros produtos agrícolas dão otimamente; até verduras europeias se encontram nos mercados. O principal produto, entretanto, é o açúcar e a aguardente dele destilada. Há, entre os habitantes, gente opulenta, possuidora de vastos engenhos perto do rio, em alguns dos quais se ocupam cento e cinquenta escravos ou mais além da aguardente, produzem-se, em cada um desses estabelecimentos, anualmente, quatro a cinco mil arrobas de açúcar. (Príncipe Maximiliano, (18..) p. 98)
51Houvesse dúvida sobre a importância política dessa rede de intercâmbio e trocas em Campos e o papel exercido pelo rio Paraíba como veia principal de escoamento, os indícios documentais são categóricas provas da força que as representações cartográficas, manuscritas e imagéticas desempenharam. Considerados como peças publicitárias, tais instrumentos foram centrais para criar e solidificar a ideia da vila e depois cidade de Campos ser no século XIX o espaço que reunia as melhores condições físicas e sociais de comandar uma extensa região por meio dos rios e canais.
52Nesse artigo apresentamos algumas das várias estratégias empreendidas por personagens que se aventuraram nos sertões de Campos entre meados do século XVIII até os começos do século XIX. Palco de inúmeros conflitos, daquilo que hoje denominaríamos de socioambientais e territoriais, o que buscamos revelar foram as “soluções” desenhadas dos que vieram de fora assim como as suas “engenharias sociais”. De forma poética, parafraseando Nelson Omegna (1961), assinalamos a luta do “ferro contra o vegetal” empreendida nos séculos iniciais de ocupação da planície campista, ressaltando os “instrumentos técnicos” criados para viabilizar o domínio dos primeiros povoadores.
53O enredo escolhido para contar a história de desbravamento, portanto, só pode ser compreendido quando se desvenda a maneira como cada grupo se adaptou e se apropriou do espaço-tempo dos campos e brejais. As grafias particulares, os vestígios da expansão, os conflitos pela posse e uso dos terrenos revelaria, assim, o desejo contido de diferentes atores em alçarem o protagonismo nesse cenário; cenário esse, nos primeiros tempos, desenhado e ritmado na planície pantanosa pela força do rio Paraíba e suas lagoas.
54Nos mapas e plantas analisados está representada a região que no final do XVII é desbravada, repartida e apropriada por diferentes agentes que buscavam expandir o seu poder político e econômico. Se as fronteiras não estão muito bem delineadas, sobretudo no primeiro Mapa de Campos, a força das ideias aparece claramente: a despeito de ser dominada por nações indígenas, a área mapeada constitui-se já um território da Coroa, pelo menos do ponto de vista simbólico. No entanto, se seu domínio era reconhecido no papel, sua consolidação de fato, duraria quase três séculos... houve resistências!
55Quisemos também insinuar a força das mitologias naturais que forjaram o nascimento da região de Campos. Muitos símbolos foram atribuídos à natureza e aos homens em diferentes momentos, muitos deles atravessaram séculos. Os seus significados, construídos e reconstruídos pela literatura, pela pintura, nos mapas, relatos e documentos oficiais, alimentariam vários imaginários sociais, ao mesmo tempo que de forma simbiótica foram alimentados por eles. Em torno desses imaginários, projetos foram pensados e alguns, mais tarde, executados. Portanto, a paisagem que nasce dessas representações é criada e recriada por várias retóricas geográficas, engendrando um modelo ideal de ocupação, que se modificaria a cada contexto.
56Um desses mitos foi atribuído ao poder das águas: ele contribuiu para acelerar o desbravamento dessa vasta região ao ser associado à ideia da força dos campistas desbravadores. A criação de um Distrito composto por várias freguesias e controlado cada vez mais por agentes da Coroa, consolidaria tal processo.
57Nessa medida, quando a vila e depois cidade de Campos amplia a sua rede de “objetos geográficos”, o que fica marcado, como todas as demais vilas e cidades no período colonial, é a afirmação de um poder que se estabelece à medida em que se aperfeiçoam, a despeito dos conflitos, os diversos mecanismos de controle regional. A multiplicação dos objetos cartográficos foram, portanto, estratégias importantes para viabilizar tal processo.