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Comunidades tradicionais quilombolas do nordeste de Goiás: quintais como expressões territoriais

Communautés traditionnelles de quilombolas dans le nord-est de Goiás: les arrière-cours comme expressions territoriales
Traditional quilombola communities in northeastern Goiás: backyards as territorial expressions
Maria Geralda de Almeida

Résumés

Les communautés “quilombolas” Kalunga, du Nord-Est de l´état de Goiás, au Brésil, contribuent à la préservation du “Cerrado” (savane) puisque, grâce à leur culture, ces populations interagissent avec la nature, établissent leur médiation avec le monde et construisent une manière de vivre particulière. Nous tâchons de donner un exemple de cette interaction des Marrons avec la nature par l'existence des jardins potagers Kalunga, “territoire culturalisé”. Ces jardins potagers Kalunga constituent un bien culturel et participent à la formation de l'identité culturel Kalunga. On a fait appel à l'observation et à des entretiens avec les Kalunga, comme le préconise la recherche qualitative, pour comprendre l'organisation socio-territoriale de ces jardins potagers, leurs usages et leurs nouveaux usages pour et par le tourisme. Malgré la proximité de la végétation native, les plantes du “cerrado” sont rares dans ces jardins potagers. 

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Index de mots-clés :

Afro-descendants, identité, tourisme, culture, cerrado

Index géographique :

Goiás
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KalungaAfficher l’image
Crédits : http://www.incra.gov.br

1O Cerrado já esteve praticamente em todo o estado de Goiás, cobrindo 98% de seu território. Atualmente, esparsas manchas ainda podem ser encontradas nas áreas das unidades de conservação e nos planaltos do nordeste goiano. Sua diversidade biológica está sendo estudada por vários ramos das ciências. Borges (2009), ao fazer sua análise, afirma que ele apresenta um altíssimo nível de endemismo para plantas, uma vez que 4.400 espécies, das 10.000 conhecidas, são endêmicas, representando 1,5% da flora de todo planeta. Entretanto, essa biodiversidade da natureza está ameaçada, podendo ser totalmente destruída até o ano de 2030 se o atual modelo de ocupação continuar (MACHADO et al., 2004).

2A despeito da intensa ocupação pelo agronegócio e pecuária, ainda persiste o Cerrado em manchas, e populações tradicionais ali procuram sua sobrevivência. Contudo, algumas dúvidas perduram: de que maneira essas populações demonstram sua valorização e apreço a esse bioma? Quais estratégias tais populações adotam para assegurar seu sustento? Os Kalunga ainda mantêm o interesse pelos alimentos e remédios oferecidos pelo Cerrado? Os quintais Kalunga situados na franja “mato de Cerrado” e casa de moradia espelham uma identidade Kalunga “cerradeira”?

  • 1 Este é um estudo do Projeto de Pesquisa “Identidades territoriais e políticas de desenvolvimento te (...)

3Ao procurar esclarecer essas dúvidas, simultaneamente, essa pesquisa1 buscou investigar como o valor atribuído ao quintal reflete na relação dos Quilombolas com o bioma. Um indicador desse apreço será o conhecimento e a presença de espécies consideradas típicas do bioma “domesticadas” nos quintais. O quintal é o espaço singular do entorno das moradias no qual se produz a vida, pelo que se cria, pelo que se cultiva, pelo cuidado em sua manutenção e pelas várias atividades do labor e da socialização cotidianamente ali desenvolvidas. Nas comunidades rurais ele é a transição entre o domesticado e a natureza “mato”, no linguajar dos homens do campo.

4Empregou-se pesquisa qualitativa, no período de 2013 a 2015, quando seis visitas foram feitas ao Sítio Histórico e Patrimônio Cultural dos Kalunga nas comunidades de Engenho II, de Vão de Almas, de Ema, do Ribeirão e de Diadema. Realizaram-se rodas de conversa com os Kalunga, entrevistas com as lideranças e donos dos quintais, caminhada transversal para elaboração da trilha dos quintais agroecológicos, observação e registro fotográfico dos quintais. As análises foram complementadas com consultas a sites, dados estatísticos e dissertações elaboradas sobre o Sítio.

5Serão dadas prioridades a três categorias analíticas – território-lugar, bem cultural e identidade territorial –, que serão a base para compreensão e descerramento do tema. Ao longo do texto, elas serão explicadas e detalhadas. Inicialmente, haverá a descrição do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, tratando do território-lugar e das populações, posteriormente, apresentar-se-ão os quintais dos Kalunga, como bem cultural, com seus usos, e como eles se inserem, também, em uma nova proposta de revalorização pelo turismo.

Território-lugar e sociedade quilombola

6As comunidades Quilombolas ou Kalunga estão no Nordeste de Goiás, no Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga (Figura 1). A presença do território Kalunga é um fator importante para a manutenção do Cerrado. A sociedade brasileira desprezou os conhecimentos de vários grupos tradicionais, como os índios e os povos cerradeiros. “Os saberes locais, há muito tempo desqualificados pela modernização agrícola, estão em regressão por estarem enfraquecidos por não serem transmitidos”, denunciam Pinton e Aubertin (2007, p. 20).

Figura 1 - Entrada do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, proximidade de Engenho II, em Cavalcante

Figura 1 - Entrada do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, proximidade de Engenho II, em Cavalcante

Foto: Almeida, M. G., 2014

7Almeida (2003, p. 79), apoiando-se em Escobar (1999, p. 96), considera que biodiversidade é “Território Culturalizado”, aquele que é primeiramente apropriado pela cultura das populações tradicionais que se relacionam intensamente com a natureza. A biodiversidade tem uma parte considerável criada e mantida por grupos sociais cujas práticas de gestão dependem de saberes que não podem ser reduzidas a uma única dimensão naturalista, pois a cultura é determinante nos usos feitos da natureza (ALMEIDA, 2003, EMPERAIRE et al., 2008).

Figura 2 – Localização do território quilombola Kalunga.

Figura 2 – Localização do território quilombola Kalunga.

Autoria: Nascimento, D. T, 2015

8Contudo, as populações que permaneceram nas áreas remanescentes nesse bioma vêm delineando suas configurações e modos de vida entre os significados tradicionais e os valores modernos. Elas persistem na utilização de recursos naturais, sobretudo em razão das dificuldades financeiras para a aquisição de produtos industrializados. Dessa maneira, asseguram a sua sobrevivência, embora dificultada pela redução da área do bioma, com desmatamentos frequentes, construção de barragens e ameaças de implantação de uma moderna agricultura. Esses novos usos comprometem a biodiversidade do Sítio dos Kalunga.

9As referências culturais como língua, relações sociais e visão de mundo constituem elementos essenciais das práticas culturais. As populações, estando bem informadas dos debates nacionais e internacionais a respeito da conservação de suas práticas, requalificam e valorizam seus saberes tradicionais, que podem ser usados de modo a exigir novos benefícios e direitos (TVEDT, 2006, STRAUS, 2008). Também, ao se observar como as populações tradicionais conhecem as espécies do Cerrado para os seus diversos usos (Tabela 1), surgem preocupações em assegurar que elas se beneficiarão da possível comercialização futura dessas espécies.

Tabela 1 - Usos, nomes populares e científicos de espécies e famílias identificadas no Cerrado do Norte do Estado de Goiás. Municípios de Colina do Sul, Cavalcante e Alto Paraíso

Tabela 1 - Usos, nomes populares e científicos de espécies e famílias identificadas no Cerrado do Norte do Estado de Goiás. Municípios de Colina do Sul, Cavalcante e Alto Paraíso

Fonte e Org.: Ferreira, H. D., Silva, W. S. S., Suares, N. O (pesquisas em 2001 e 2002).

10O conhecimento é rico principalmente de plantas medicinais e de alimentos. A presença de raizeiros produzindo garrafadas para mais diversos usos ainda é comum. Ao longo do ano, conforme a “época” se encontram frutos como: caju-do-mato, araticum, a cagaita, pequi, baru, jatobá, buriti entre outros. Os frutos possuem principalmente uma importância para o consumo familiar, a despeito da existência de uma crescente demanda pela indústria de sementes ricas em proteínas, sorvetes e de picolés. Ainda do cerrado retiram a madeira para construções diversas e lenha para fogão.

11A partir dessa leitura da biodiversidade entende-se que o Cerrado, conjuntamente aos seus habitantes, é rico em diversidade biológica, mas também de populações com identidades ligadas diretamente a esse bioma. Na região também estão povos indígenas, grandes pecuaristas, os investidores em grãos como a soja e o arroz e, a cana-de-açúcar. Esse é um “palco de territorialidades sociais e culturais, um mosaico em constante construção e revitalização”, afirmam Borges e Almeida (2009, p. 203). Nessa compreensão, um exemplo de povo, com os quilombolas, os Kalunga, como são denominados aqueles afrodescendentes, é apresentado. Eles, também, são populações tradicionais.

12Pode-se considerar que a permanência dos Kalunga na região está relacionada principalmente à presença de relevos dobrados e altamente dissecados da região, onde predominam vãos, serras, morros, colinas, depressões, vales estreitos e rios encaixados. Essas características resultam da estrutura e fenômenos geológicos que ocorreram na região e que imprimiram na paisagem feições geomórficas exuberantes, como as imponentes escarpas com afloramento de quartzito.

13As comunidades, em número de 62, contemplam população de cerca de 4 mil habitantes que se espalham pelos 262 mil hectares do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga: Vão de Alma, Vão Contenda, Riachão, Ribeirão, Engenho, Vão do Moleque, Sucuri, Corriola, Ema, Taboca, Areia, Maiadinha e Capela, nomes atribuídos a algumas comunidades, que fazem alusão aos animais, rios, natureza, frutos do Cerrado e eventos históricos e/ou religiosos. Isso desvela territorialidades consubstanciadas na vivência e relação intrínseca dos Kalunga com seu ambiente.

14Os Kalunga possuem uma organização social elaborada a partir de uma etnicidade cujas estratégias de reprodução utilizadas têm como finalidade maior garantir o direito à terra, conforme discutido anteriormente (ALMEIDA, 2010). Essa população é objeto de políticas governamentais que ensejam uma integração e um aumento da rentabilidade econômica para melhoria da qualidade de vida.

15É o caso do projeto, da Universidade Federal de Goiás, de introdução de gado curraleiro no Vão do Moleque, com os Kalunga tornando-se criadores. A Universidade Nacional de Brasília desenvolveu o “Projeto Viver Kalunga” (2007-2009) e a Universidade Federal de Goiás desenvolve, desde 2010, o “Programa Kalunga Cidadão”, já na segunda edição do evento. Há, ainda, políticas específicas desenvolvidas pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), pelo Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária (Incra), pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e pelo Ministério do Turismo (MTur) com o apoio do Serviço de Apoio às Micros e Pequenas Empresas (Sebrae), que têm atraído turistas interessados em conhecer as belezas naturais do Sítio Histórico, principalmente na Comunidade Engenho II.

16Diversas ONGs têm manifestado interesse em desenvolver ações destinadas ao ambiente e aos Kalunga. As diversas comunidades configuram-se como territórios precários e também de conflitos institucionais nos quais se confrontam diversos atores e sujeitos sociais. Políticas ditas de desenvolvimento e de conservação da natureza aparecem, contraditoriamente, contemplando o Cerrado conforme Almeida (2010).

17No caso das políticas destinadas à conservação, à proteção ambiental, destaca-se a criação da Área de Proteção Ambiental (APA), de Pouso Alto, e Área de Proteção Permanente (APP), articuladas com as políticas de valorização dos serviços ambientais. Neste caso, são estimuladas cadeias produtivas de plantas medicinais e do extrativismo, certificação dos produtos da agrobiodiversidade – Produtos do Cerrado – e do manejo de matas ciliares nas propriedades rurais com pagamento da “bolsa verde”. Os Kalunga ainda não são contemplados com essas modalidades de valorização dos serviços ambientais.

18Podem-se ainda salientar as iniciativas de treinamento e capacitação para uso e aproveitamento de plantas e frutos do Cerrado pelo Sebrae, pela Empresa de Assistência Técnica e Rural (Emater) e pela Universidade Federal de Goiás. Outra iniciativa, a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (PNPMF), do mesmo modo, se preocupa com esses conhecimentos populares, incentiva à pesquisa, à produção, à inserção e à adequação no mercado, bem com seu controle e segurança de uso. Os Kalunga, contudo, ainda não são beneficiados por essa política.

19Estas populações vivem basicamente da agricultura. A Comunidade Engenho II diferencia-se das demais por práticas do turismo, do qual tem duas fontes: nos últimos dez anos acrescentou o “pedágio” dos visitantes para o ingresso no Sítio Histórico e Patrimônio Cultural e o pagamento aos condutores locais para as visitas obrigatoriamente acompanhadas por um Kalunga às cachoeiras, que são consideradas como as mais bonitas de Cavalcante.

20Os espaços de cultivos são distinguidos por alguns produtos. Tomando como exemplo duas comunidades nos municípios de Teresina de Goiás, Ema e Ribeirão dos Bois, na de Ema, nos roçados se cultivam abóbora, feijão e milho, os moradores de Comunidade de Ribeirão dos Bois preferem plantar nos roçados arroz, feijão, inhame, batata-doce, maxixe, já no município de Cavalcante, na Comunidade Engenho II, os roçados geralmente são distantes, em terras alheias e neles se cultivam milho, feijão, arroz, melancia e abóbora.

21A roça é onde se planta maior quantidade visando a uma produção equivalente ou superior ao cultivado, para fins às vezes comerciais ou de troca Os cultivos são feitos com rotação de terras, dificultada pela escassez de terras férteis, e pela necessidade de recorrerem ao sistema de “meia” para plantar nas terras de fazendeiros na região. Além disso, muitas vezes a escassez de água torna-se um desafio para as práticas culturais até então respeitosas do meio ambiente. De modo geral, há carência alimentar e uma pobreza na produção agrícola, em virtude destas escassezes, da ausência de sementes apropriadas, de equipamentos agrícolas e de transporte adequado das áreas de plantio, aspectos que afetam o homem, o provedor do lar.

22A distinção homem-mulher em seus diversos termos tem um caráter social, é uma construção social. É a sociedade que cria as duas figuras que lhes outorga traços próprios, o que os diferencia no cotidiano, nos comportamentos, no trabalho e nas relações sociais. Geralmente, nas comunidades tradicionais, o homem responsabiliza-se por manter o roçado, recorrendo ocasionalmente ao trabalho da mulher em algumas etapas da produção. O Kalunga não é diferente. À mulher Kalunga cabe um grande encargo para assegurar a educação dos filhos, dos cuidados domésticos e a alimentação básica diária para a família.

23A dura realidade da sobrevivência ainda confronta-se com a precariedade e quase ausência dos setores de educação e saúde, da escassa oferta de serviços básicos e de renda, da mão de obra formal respectivamente. Isso resulta em um território precário e uma maior dependência dos governos municipal, estadual e federal, sobretudo das bolsas assistencialistas, o que não impede que o Sítio seja, para os Kalunga, o território-lugar deles. Com esse termo composto reforçamos ser um espaço de relações de poder, conforme foi visto, e, simultaneamente, um espaço no qual reproduzem elementos simbólicos e de pertencimento. Para as mulheres, a referência aos seus quintais se revela um sentimento de orgulho, trabalho seu, e em um espaço a ser cuidado, afinal, contêm, simbólica e biologicamente, vida.

Quintais: universo da reprodução familiar e da natureza

24Ao propor o quintal como lugar, deve-se levar em conta a afirmação de Tuan (1983, p. 15), que defende o valor do lugar, e esse depende da intimidade da relação humana, e “na ausência da pessoa certa, as coisas e os lugares rapidamente perdem significado”. As plantas e as criações têm sentido para a mulher Kalunga, que sabe suas utilidades e como prepará-las, e conhece seus efeitos. Para essa pessoa, o quintal tem um significado, pois as plantas e os animais que ali se encontram inserem-se na sua vivência.

25O quintal como lugar não está de forma alguma desvinculado do global, considerando a afirmação de Carlos (1996) de que o mundial se concretiza no lugar, é ali que ele ganha expressão. Pode-se afirmar que o quintal é também território e diretamente influenciado pelas relações que ocorrem em uma escala geográfica maior, uma vez que as plantas dependem das águas dos rios e fatores climáticos de escala regional, nacional e de impacto global.

26Além do meio físico, outros aspectos modificam a dinâmica dos quintais, hipotetizando que a facilidade em adquirir alimentos e medicamentos industrializados de grupos multinacionais também instiga mudanças no quintal. Ainda, outra hipótese é que políticas assistencialistas podem desestimular a produção de alimentos em quintais, pois a transferência de renda governamental possibilita que mulheres rurais consumam mais produtos adquiridos nos centros urbanos. Estariam os quintais perdendo sua importância na atualidade? As mulheres perdem, com isso, seu território-lugar?

27A organização social do espaço, a produção e a reprodução do espaço aparecem sutilmente mediatizados pela condição masculina ou feminina. O espaço resulta em elemento- chave na discriminação feminina e, nesse sentido, são as reflexões teóricas espaciais que sustentam a necessidade e a possibilidade de um discurso geográfico a partir da condição feminina. Nota-se que o espaço da mulher é configurado de acordo com o esquema elaborado com base em uma concepção masculina. Trata-se de um espaço dual.

28Por um lado, há o espaço da produção, o roçado, o espaço da economia, o espaço produtivo, o espaço do poder, o espaço da política, o espaço do trabalho, o espaço da atividade, o espaço dos ativos. É o espaço socialmente simbólico, o espaço masculino ou masculinizado. A ele correspondem os elementos simbólicos do poder político, do poder econômico, do poder ideológico, do poder religioso.

29Por outro lado, há o espaço da reprodução doméstica. Na visão masculina, trata-se de um espaço amorfo, indiferenciado, dependente. É o espaço do não trabalho, um espaço à margem da economia, o espaço dos “inativos”. Aparece como um espaço sem valor, sem símbolos socialmente relevantes. É o espaço doméstico, o espaço da vizinhança e, na maioria das vezes, dos quintais.

30O quintal, para aqueles que vivem no meio rural, é o espaço dos saberes (Figuras 2 e 3). É nele que a mulher, principalmente, reproduz seus conhecimentos sobre as plantas, sejam plantas medicinais ou de alimentos. Trata-se de conhecimentos adquiridos historicamente, passados por gerações, de mãe para filha, de avó para neta. Configura-se como espaço cultural, simbólico, de saúde e de segurança alimentar.

Figura 3 - Horta medicinal na comunidade do Engenho II. Cavalcante, GO.

Figura 3 - Horta medicinal na comunidade do Engenho II. Cavalcante, GO.

Foto: Pitman, L., 2014.

31Os quintais são lugares-territórios onde as experiências, as práticas dos saberes e a vida acontecem. As mulheres podem deixar neles suas marcas ao perpetuarem os saberes sobre as plantas, passando-os para novas gerações. Desde adolescentes, aprendem que o carrapicho reduz a febre, que a quina é para problemas de garganta, que o leite de mangaba é para dor de barriga, que sumo da folha de algodão e mastruz são para ferimentos.

32Esse conhecimento popular das plantas tem atraído a atenção de cientistas. Em pesquisa realizada por Massarotto (2009), sobre conhecimento de plantas medicinais por parte dos Kalunga, ela selecionou quatro comunidades para efetuar sua amostra – Ema, Ribeirão dos Bois, Limoeiro e Engenho II –, todas no Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga.

33Na comunidade Ema, localizada em Teresina de Goiás, Massarotto visitou onze casas, entrevistando sete homens e quatro mulheres. A senhora P. P. da V., 70 anos, citou vinte e quatro espécies com seus usos. Em nossas pesquisas sobre os quintais, os Kalunga dessa comunidade disseram que eles plantam mandioca, feijão, cana, mamão, banana, também o milho e diversas hortaliças como cebolinha, coentro, cenoura, quiabo, mostarda, jiló e pimenta.

34A comunidade Ema, segundo Massarotto (2009), citou oitenta e sete espécies (189 citações). A maioria delas (68 espécies) foi apontada para fins medicinais (145 citações), sendo as mais referidas: Desmodium adscendens (6,2%), Ocimum sp, Vernonia polyanthes e Dostenia asaroides (4,8%). Para fins de alimentação, quatorze espécies (21 citações) foram citadas. As principais foram Caryocar brasiliense e Hancornia speciosa, sendo 19% cada. Foram mencionadas onze espécies de construção (14 citações). Destacaram amburana cearensis (24,4%) e Myracrodroun urudeuva (14,3%). Quatro espécies foram apontadas para outros fins, com destaque para Nicotiana tabacum (55,5%) e Magonia pubescens (22,2%).

35Importante ressaltar que 70,1% das 87 espécies citadas são nativas do Cerrado, 17% das espécies citadas são cultivadas e 10,3% são espécies introduzidas de outros biomas ou estrangeiras domesticadas como o Eucaliptus. A forma de preparação mais usada é de chá e fazem uso das plantas para tratamento de gripe (17%), dor de barriga (7%), corrimento e ferida (5,9%), febre e inflamação (5,3%) e tosse (4,1%).

Figura 4 – Percentual de origem das espécies encontradas na Comunidade Engenho II.

Figura 4 – Percentual de origem das espécies encontradas na Comunidade Engenho II.

Fonte: Massaroto (2009), Org.: Almeida, M. G., 2016.

36No caso da Comunidade Ribeirão dos Bois, também no Município de Teresina de Goiás, oito homens e quatorze mulheres foram entrevistados nas vinte e duas casas visitadas por Massarotto. Nos quintais, os Kalunga preferem o gergelim, o quiabo, a mandioca, a banana, o jiló, a cana e hortaliças diversas, constatado em pesquisas locais.

37Os moradores mencionaram 126 espécies (394 citações). Para fins medicinais, referiram cem espécies (274 citações): vinte e nove para alimentação (71 citações), vinte e duas espécies para construção (47 citações) e duas espécies para outros fins (4 citações). Dessas espécies, das 126 citadas, 65,9% são nativas do Cerrado, 25,4% são cultivadas e 6,3% são espécies introduzidas, conforme explicado. O maior uso é feito para tratamento de gripe (23%), dor de barriga (8,1%), febre (7,6%), ferida (6,2%), pressão alta (5,3%), inflamação (5%), dor de estômago (3%), dentre outras.

Figura 5 – Percentual de origem das espécies encontradas na Comunidade Ema.

Figura 5 – Percentual de origem das espécies encontradas na Comunidade Ema.

Fonte: Massaroto (2009), Org.: Almeida, M. G., 2016.

38No município de Cavalcante na Comunidade de Engenho II, foram entrevistados por Massarotto cinco homens e nove mulheres, nas quatorze casas visitadas, e o destaque foi para a Sra. Maria, 64 anos, que cita 43 espécies. Nos quintais, algumas mulheres já introduziram a técnica de mandala e diversificam os cultivos de repolho, batatinha, alface, beterraba, pimentão, cebolinha e coentro.

Figura 6 – Percentual de origem das espécies encontradas na Comunidade Ribeirão dos Bois.

Figura 6 – Percentual de origem das espécies encontradas na Comunidade Ribeirão dos Bois.

Fonte: Massaroto (2009), Org.: Almeida, M. G., 2016.

39Foram citadas cento e oito espécies para fins medicinais (194 citações), trinta e cinco espécies para alimentação (114 citações), dezessete espécies para construção (27 citações), treze espécies para outros fins (24 citações). Das 148 espécies citadas, 57,7% são nativas do Cerrado, 32,7% são cultivadas e 6,2% foram introduzidas. As preparações medicinais visam ao tratamento de gripe (20,2%), de tosse e resguardo (6%, respectivamente), de dor de barriga e febre (4,8%), de coceira (4,4%), de problemas no fígado (4%), de dor de cabeça (3,6%), e tratamento de ansiedade e de vermes (3,2%, respectivamente).

40Uma boa parte das plantas utilizadas é cultivada nos quintais das casas. Mudas e sementes são trocadas entre vizinhos, amigos e parentes. As relações fortes e frágeis materializam-se na diversidade e pobreza de variedade de plantas presentes nos quintais. A sobrevivência familiar, conforme já foi dito, depende do que é cultivado nos quintais, fazendo que os Kalunga tenham certa preocupação com a conservação da biodiversidade local. O cultivado é, também, elemento de troca entre vizinhos, amigos e parentes para ter mais variedades de frutas, legumes e verduras e plantas medicinais para a alimentação e casos de doenças.

41A Comunidade Engenho II possui maior diversidade de conhecimento e, de modo geral, as comunidades Kalunga revelaram um valioso acervo de conhecimentos tradicionais sobre o uso medicinal de plantas do Cerrado. Daí entendermos ser o território culturalizado aquele que reflete o saber e uso tradicional da biodiversidade natural. E o quintal, onde boa parte dessas plantas é cultivada, ser um bem cultural, constituindo um patrimônio. O bem cultural é um produto de concepção humana, dotado de um valor singular qualquer para nós, porque representa um testemunho, o registro da história do homem.

42Ao se considerar os quintais como bem cultural, é conveniente esclarecer sobre o sentido de cultura. Haja vista que pela cultura as populações interagem com a natureza, fazem a sua mediação com o mundo e constroem um modo de vida particular. Para Claval (1999), é “pela cultura que as populações interagem com a natureza”. Almeida (2009) afirma ainda que, por ela, os Kalunga conhecem e se apropriam da natureza, afirmativa confirmada por estudos posteriores de Massarotto (2009).

43Os Kalunga constroem um modo de vida próprio, enraizando-se no lugar, que é, então, permeado pela cultura. Para Almeida (2008), “muitos laços de identidade se manifestam na convivência com o lugar”, e o quintal reflete as preferências de comida, o conhecimento das plantas para cuidar da saúde e as interdições alimentares pelos animais criados. A identidade Kalunga se revela ainda no que se produz para o uso diário da família.

44Nos quintais das moradias, as plantas e seu manejo – e a disposição dos elementos – têm um sentido para o Kalunga. O homem Kalunga estabelece uma boa relação com as plantações feitas no fundo da casa, mas é na colaboração com as mulheres que ele trabalha no plantio, nos cuidados e na colheita. O mesmo produto, embora cultivado no quintal e no roçado, tem destinação diferenciada. O uso da mandioca plantada no quintal é diferente daquela produzida na roça. A do quintal, por exemplo, é consumida cozida, já a mandioca da roça, produzida em maior quantidade, é utilizada na fabricação de farinha.

45Na Comunidade de Vão do Moleque, foi Elsa, a esposa do “Preto”, quem começou a configurar o quintal logo que se casou, plantando primeiro milho e mandioca. Segundo ela, quando é estação das chuvas planta-se mais e, por consequente, trabalha-se mais no quintal.

46Estudo feito por Pereira e Almeida (2012) apresenta dois quintais expressivos. O Sr. Francisco, 60 anos de idade, tem em sua casa um quintal de oito anos que “estruturou” quando se mudou. Ali, “Seu” Francisco plantou frutas como abacaxi, banana três-quinas (antes havia banana-maçã), maracujá, manga, laranja, mamão, abacate, jaca e pimentas. Também há capim-de-cheiro e algodão para remédios. Um pilão é usado para socar arroz no quintal. Tudo é irrigado com água do Rio Esporco (ou Rio dos Porcos). Entretanto, “Seu” Francisco tem na memória que em 2008, por não chover em setembro e ser muito “calorido, o rio cortou”, o calor ocasionado pela falta de chuva fez que o rio secasse.

Figura 7 - Croqui do quintal da casa do Senhor Joaquim Mochila”, no Vão do Moleque

Figura 7 - Croqui do quintal da casa do Senhor Joaquim “Mochila”, no Vão do Moleque

Elaboração: Pereira, B. M., 2010

47Em outro quintal visitado, na casa do Sr. Joaquim Mochila (Figura 7), havia uma horta de aproximadamente 13 m x 13 m. Tal tamanho não é muito comum entre os quintais Kalunga e quem cuida da manutenção da horta são os filhos e a esposa. Foi construída uma caixa d’água próxima para irrigar as hortaliças. “Seu” Mochila relata que em época de festejos são vendidos os produtos da horta, mas normalmente não são comercializados. O quintal encontram-se pimentas, cana, mandioca e bananeiras. Há também algumas plantas para chá, como algodão, boldo e outras ervas. “Seu” Mochila diz que, anualmente, elas são plantadas.

48Evidencia-se, pelo croqui (figura 7), que galinhas e porcos fazem parte do quintal. Os porcos são fechados em um chiqueiro para evitar problemas com as plantas. Já as galinhas, apesar de existir o galinheiro, são soltas, uma prática para que elas se alimentem do que encontrarem. Isso foi observado em todos os quintais visitados. Elas ciscam entre as diversas plantas, menos nas hortas, geralmente cercadas.

49No lado externo da casa do “Seu” Mochila, há uma parede com várias plantas ornamentais, em vasos improvisados pendurados ou ao longo da parede, que recebem a mesma atenção que as demais plantas do quintal (Figura 8). A maioria delas é de mudas provenientes de jardins urbanizados, o que mostra uma tentativa de levar a cidade para o Sítio dos Quilombolas.

Figura 8 - Plantas ornamentais na parede da casa do Senhor Joaquim Mochila”, Vão do Moleque.

Figura 8 - Plantas ornamentais na parede da casa do Senhor Joaquim “Mochila”, Vão do Moleque.

Foto: PEREIRA, B. M., 2010.

50Do exposto conclui-se que há uma relação intensa entre a família Kalunga e o quintal de sua casa, e as inúmeras plantas presentes nesses quintais apresentam uma rica diversidade biológica. Portanto, é pertinente incorporar os aspectos culturais ao conceito de biodiversidade e referir-se ao quintal como uma dimensão da identidade Kalunga.

Expressão de identidade? Turismo e cultura nos quintais

51Os Kalunga construíram seu território. Conforme já afirmamos (ALMEIDA, 2008, 2010), território é, antes de tudo, uma convivialidade, uma espécie de relação social, política e simbólica que liga o homem à sua terra. Os Kalunga criam seu território e, ao mesmo tempo, constroem sua identidade territorial. “Enraízam-se” no território, produzindo uma paisagem cultural que se torna um patrimônio e objeto de turismo cultural.

52Há um súbito e crescente interesse pelos bens culturais, pelos saberes, pelos grupos étnico. Tal fato explica o fato de o Sítio dos Kalunga ter se transformado em um dos atrativos turísticos mais visitados no Estado de Goiás pela população do Distrito Federal, embora a motivação dominante atual sejam as visitações às cachoeiras. Acerca do impacto causado por essas visitações falar-se-á posteriormente, ressaltando somente que os elementos materiais e imateriais dos Kalunga turistificam seu patrimônio histórico-cultural, banhado de elementos imateriais e intangíveis que se revelam no cotidiano, nos conflitos, nos risos, nas festividades, nas lidas, nas cores, nas sonoridades e nos odores.

53O turismo é um fenômeno social que manifesta um crescimento constante, considerado como uma importante fonte de riqueza econômica e como oportunidade para impulsionar áreas deprimidas nos aspectos econômicos e sociais. Por esse motivo, ele foi introduzido no território Kalunga com o apoio do Sebrae, parceiro da Goiás Turismo no fomento dessa atividade. Natureza, cultura, mitos, fantasias criaram a imagem Kalunga e os atrativos turísticos para tal.

54Portanto, o turismo é uma atividade já em prática no Sítio há mais de uma década decorrente das atrações naturais. Destacam-se: Mirante Serra da Nova Aurora e Cachoeira Ave Maria no trecho de Cavalcante que dá acesso ao Engenho II, a Cachoeira Kandaru, Cachoeira Capivara e a Cachoeira Santa Bárbara considerada como a de maior beleza da Chapada.

55O lugar/paisagem Sítio Patrimônio Histórico Cultural Kalunga emerge palpitante de vida, de movimento e de sonoridade, que atribuem significado e valor ao local. A paisagem cultural pode ser uma maneira de demonstrar a identidade territorial que os turistas buscam ao visitar aquele território: um lugar de quilombolas, um sítio Kalunga

56Com o intuito de valorizar os aspectos culturais, pesquisadores da Universidade Federal de Goiás discutem com a comunidade de Engenho II, depois de dois anos, a elaboração e montagem de um roteiro turístico, ressaltando os quintais: “Vivência Interpretativa na Trilha Cultural dos Quintais Kalunga”. Esta proposta foi concebida por um Kalunga, condutor de turismo, e contempla o seguinte roteiro:

57Partida: Centro de Atendimento ao Turista – CAT.

58Ponto 1 – Horta Medicinal Kalunga: localiza-se perto do Centro de Atendimento dos Turistas pelas condições do solo serem favoráveis. Ela é coletiva e diversas plantas são cultivadas para males distintos, sendo a maioria já de plantas domesticadas.

59Ponto 2 – Capela Santo Antônio: é local importante para a comunidade. Construída por eles nela ocorre, anualmente a principal festividade com a Folia de Santo Antonio. É um momento para conhecer mais sobre as tradições e história do Engenho II. Os quintais alimentam o corpo, a religião e a fé alimentam o espírito, o que justifica a inclusão da capela no roteiro Kalunga. Aproveita-se a proximidade com a escola para comentar sobre o surgimento da primeira escola e sobre os professores pioneiros.

60Ponto 3 – Barracão de Festas e Casa da Farinha: este local é significativo para a história da comunidade, e os condutores podem versar sobre as festas principais, as comidas de festejos, os roçados e os quintais para a produção da mandioca, além do processo de fabricação artesanal da farinha. Para chegar ao próximo ponto, passa-se pelos quintais da família da Senhora Daniela (parteira), que faleceu em 2013 e que é uma figura importante para a comunidade. Trata-se de uma oportunidade para conhecer mais sobre a função da parteira na cultura Kalunga.

61Ponto 4 – Fonte Daniela: também conhecida como “banheiro natural da comunidade”. A fonte é muito atraente por sua beleza natural. Sua utilização é feita principalmente pelos Kalunga, dada a proximidade com as moradias.

62Ponto 5 – Campo de Cerrado: é uma ocasião para comentar sobre a biodiversidade natural existente nessa vegetação. O trajeto por ele propiciará, ainda, o conhecimento da paisagem, uma explicação sobre solos e a fertilidade recomendada para os cultivos nos roçados e nos quintais.

63Ponto 6 – Poço da Tia Nel: situa-se no mesmo rio no qual se encontra a Fonte Daniela. Seria um local para conhecer a biodiversidade de animais aquáticos do Cerrado e sua utilização também é explicada por meio do contexto histórico. Outros quintais existem até a próxima parada, com possibilidades de serem visitados a depender do tempo.

64Ponto 7 – Angico: é local em potencial para apresentar a diversidade das árvores do Cerrado e seus usos pela comunidade. O angico é considerado uma das árvores mais antigas e altas que se conhece naquela região.

65Ponto 8 Cemitério: lugar importante para se comentar sobre aspectos da culto aos mortos, problemas de saúde e mortalidade no Sítio, apresentar alguns personagens importantes que tiveram túmulos diferenciados. O cemitério possui os túmulos distribuídos aleatoriamente.

66Ponto 9 – Quintal da Dona Leotéria: é o último ponto de parada da trilha. Constitui-se em um quintal com diversidade de plantações e ainda há criação de animais. D. Leotéria o mostra com orgulho, nomeando cada planta e explicando seus usos. Sua história pessoal diz muito sobre as dificuldades enfrentadas pelos moradores de Engenho II. Chás e sucos com produtos do quintal poderão ser servidos aos visitantes.

67Ponto 10 – Final da Trilha: Centro de Atendimento ao Turista – CAT.

68O mapa com o local de todos os pontos pode ser visualizado a seguir (Figura 8), nomeado como Trilha Cultural e Quintais Kalunga.

Figura 8 - Trilha Cultual e Quintais na Comunidade de Engenho II.

Figura 8 - Trilha Cultual e Quintais na Comunidade de Engenho II.

Elaboração: Nascimento, D. T. F., 2014. Fonte: Folder Vivência Interpretativa na Trilha Cultural dos Quintais Kalunga.

69A figura é bastante esclarecedora na localização das moradias, da igreja, escola, locais de hospedagens e restaurantes e, simultaneamente, as trilhas para as cachoeiras e a trilha sugerida pela comunidade e seus arredores, de dimensão Cultural pelos Quintais Kalunga no Engenho II.

À guisa de conclusão

70O propósito deste estudo foi investigar como as populações tradicionais, os Kalunga, detentores do principal território/bioma Cerrado do estado de Goiás, em face do processo de transformação econômica e social, ainda conseguem manter e valorizar seus saberes e práticas socioculturais. Há ressignificação da cultura e da natureza como valores de mercado, que interessa ao turismo e à indústria farmacológica. No novo cenário, esses aspectos passam a ser valorizados sob uma ótica capitalista, sendo necessário dialogar com vários interesses.

71No caso do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, há um excesso de instituições, com ações se sobrepondo, direcionadas de cima para baixo, atuando no Sítio Histórico e criando dúvidas e conflitos sobre algumas determinações governamentais. O assistencialismo predomina nos dias atuais, retirando a autonomia da comunidade.

72Os Kalunga redescobrem os recursos naturais induzidos pela presença de instituições. Com o apoio do Sebrae, atentam para a renda propiciada pelo artesanato, ONGs e Universidades também. Essas instituições apontam para o turismo de natureza e os usos diversos de frutos, flores e sementes do Cerrado, como geleias, doces, artesanatos diversos de palha, sementes, farinhas e sabão. Esses produtos do trabalho da mulher já estão expostos e são comercializados no Centro de Atendimento ao Turista – CAT –, em Engenho II. Contudo, estas evidências de valorização do Cerrado são contraditórias com a pouca importância atribuída no plantio e presença de plantas do Cerrado nos quintais.

73As trilhas pelos quintais é uma proposta que proporciona uma valorização do conhecimento do Kalunga de plantas medicinais e como os quintais fornecem uma nova possibilidade para a prática do turismo no local. Elas revelam aos visitantes facetas de sua identidade. Os quintais representam um bem cultural e fortalecem a identidade Kalunga. Como bem cultural, trazem, em seu bojo, razões de ordem espiritual e motivos práticos dos quais compartilha uma sociedade ou parte dela.

74Pode-se afirmar que o conhecimento dos quintais reverbera positivamente, como um novo olhar sobre o Cerrado e sobre o papel da mulher no contexto da atual geração de renda. Acredita-se que as visitações aos quintais fortalecem e dignificam o trabalho da mulher, haja vista a motivação dela para a proposta da trilha turística sobre os quintais e cultura. Todavia, os condutores de visitantes ainda não adotaram esta trilha para apresenta-la como um produto mercantilizado. Preferem conduzir os visitantes que ao chegar já anunciam: “vamos nas cachoeiras” e nem apresentam as trilhas dos quintais que, também, pela distância teria um valor menor.

75Entretanto, é inegável que o turismo também contribui para propagar a identidade Kalunga e, ao mesmo tempo, transformá-la em um slogan para as conquistas e em mercadoria para atrair os visitantes. Os Kalunga têm uma identidade territorial vinculada com o Cerrado que se torna revalorizado, pois a natureza apropriada ressignifica a mulher e o seu quintal.

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Notes

1 Este é um estudo do Projeto de Pesquisa “Identidades territoriais e políticas de desenvolvimento territorial e ambiental na Reserva da Biosfera Cerrado”, financiado pelo CNPq – Bolsa Produtividade

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Table des illustrations

Titre Figura 1 - Entrada do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, proximidade de Engenho II, em Cavalcante
Crédits Foto: Almeida, M. G., 2014
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Titre Figura 2 – Localização do território quilombola Kalunga.
Crédits Autoria: Nascimento, D. T, 2015
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Titre Tabela 1 - Usos, nomes populares e científicos de espécies e famílias identificadas no Cerrado do Norte do Estado de Goiás. Municípios de Colina do Sul, Cavalcante e Alto Paraíso
Crédits Fonte e Org.: Ferreira, H. D., Silva, W. S. S., Suares, N. O (pesquisas em 2001 e 2002).
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Titre Figura 3 - Horta medicinal na comunidade do Engenho II. Cavalcante, GO.
Crédits Foto: Pitman, L., 2014.
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Titre Figura 4 – Percentual de origem das espécies encontradas na Comunidade Engenho II.
Crédits Fonte: Massaroto (2009), Org.: Almeida, M. G., 2016.
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Titre Figura 5 – Percentual de origem das espécies encontradas na Comunidade Ema.
Crédits Fonte: Massaroto (2009), Org.: Almeida, M. G., 2016.
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Titre Figura 6 – Percentual de origem das espécies encontradas na Comunidade Ribeirão dos Bois.
Crédits Fonte: Massaroto (2009), Org.: Almeida, M. G., 2016.
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Titre Figura 7 - Croqui do quintal da casa do Senhor Joaquim “Mochila”, no Vão do Moleque
Crédits Elaboração: Pereira, B. M., 2010
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Titre Figura 8 - Plantas ornamentais na parede da casa do Senhor Joaquim “Mochila”, Vão do Moleque.
Crédits Foto: PEREIRA, B. M., 2010.
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Titre Figura 8 - Trilha Cultual e Quintais na Comunidade de Engenho II.
Crédits Elaboração: Nascimento, D. T. F., 2014. Fonte: Folder Vivência Interpretativa na Trilha Cultural dos Quintais Kalunga.
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Référence électronique

Maria Geralda de Almeida, « Comunidades tradicionais quilombolas do nordeste de Goiás: quintais como expressões territoriais »Confins [En ligne], 29 | 2016, mis en ligne le 17 décembre 2016, consulté le 01 décembre 2024. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/confins/11392 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/confins.11392

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Maria Geralda de Almeida

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