1Há um caminho estruturalista muito fértil, que, de maneira incompreensível, a nosso conhecimento, foi pouco explorado pelos geógrafos: a análise estrutural da etnologia e da antropologia. É na antropologia de Claude Lévi-Strauss que se iniciou o estruturalismo no sentido em que foi empregado pelas ciências humanas e sociais que tanto marcaram o mundo intelectual francês e depois mundial a partir dos anos 1950.
2Analisaremos alguns postulados de Lévi-Strauss e os contatos já antigos que tiveram a geografia e antropologia, em particular nas obras de Ratzel, Pierre Deffontaines, Le Lannou, Pierre Monbeig, Marcel Mauss, Leroi-Gourhan. Também nos referiremos à artigos mais recentes que trataram dessa relação da disciplina geografia com a antropologia (Hérvé Théry, Collectif USART, 2008).
3É a partir de Lévi-Strauss e de seu estudo As estruturas elementares do parentesco publicado em 1949 que a paisagem cientifica e intelectual francesa será mudada e alimentara tantas reflexões e polêmicas. Essa escolha inicial de Lévi-Strauss entre tantos estruturalistas tem suas motivações, pois é esse autor que estará durante duas décadas no centro de todos os debates e nos anos 2000 estará sendo relido e redescoberto pelas jovens gerações de pesquisadores, de antropólogos e de filósofos. Mas a razão, maior ainda, é que a antropologia (englobando a etnologia e a etnografia, assim que em contatos permanentes com a sociologia), é muito próxima da geografia, em particular da Geografia Humana. Partilha com ela a preocupação com o “campo”, com o “terrain”, como dizem os franceses; e, também, desde seu início esse campo do saber está situado num entre dois, tendo como “objeto” o ser humano e o “meio físico”, a cultura, a sociedade, e a natureza.
4A relação da Antropologia com a Geografia tem sua fonte batismal pelo menos desde a Antropogeografia de Ratzel e da antropogeografia de Carl Sauer, mas também na França por meio de pesquisadores como Marcel Mauss, Jean Malaurie, Pierre Deffontaines, Pierre Monbeig (nos voltaremos mais adiante a essas relações entre a antropologia e a geografia, tanto humana como física, com esses autores). Nas palavras de Lucien Febvre comentando o livro de Ratzel em 1922 (Febvre foi um dos fundadores com Marc Bloch da escola dos Annales de Histoire Economique et Sociale e autor de um livro que pretendia debater o “lugar” da Geografia no campo das ciências humanas realizando uma Introdução Geográfica à História):
(...)[na Antropogeografia] é toda a vida dos homens, toda a atividade múltipla dos homens e dos grupos humanos, das sociedades humanas, que é estudada metodicamente, racionalmente, em conjunto, em função do meio geográfico. (nossa tradução) (FEBVRE, 1922, p.22).
5Em efeito, Ratzel escreve em capítulo da Antropogeografia que “(...) a nossa ciência deve estudar a Terra ligada como está ao homem e, portanto, não pode separar esse estudo do da vida humana, tampouco da vida vegetal e animal.” (RATZEL, 1990, p.32,). Apesar de Ratzel se referir à natureza, ao ambiente, como “imutável” ou “pouquíssimo mutável” em relação ao homem. Esse com relação ao homem que significa uma relação da sociedade com a longa história geológica da Terra nos dá, talvez, uma dimensão relativa do determinismo e indica uma “modernidade” do pensamento de Ratzel (apesar de se constatar hoje que com as mudanças ocasionadas pela emissão de gás carbônico e a utilização da energia fóssil, o clima tem tido alterações aceleradas com conseqüências inúmeras sobre a vida na Terra, portanto demonstrando o quanto mutável esta o conjunto do planeta associado à utilização da energia fóssil, conforme uma síntese sobre essa questão Christophe Bonneuil e Jen-Baptiste Fressoz, L’événement anthropocène. La Terre, l’histoire et nous, Seuil, 2013).
6Lévi-Strauss se refere à Geografia de maneira episódica, como a condição de possibilidade das sociedades estudadas de maneira geral. Mas é influenciado direta ou indiretamente por certa geografia humana como veremos mais adiante em sua relação com Pierre Monbeig. Esses empréstimos à geografia também serão desenvolvidos por suas relações com Boas seu mestre nos Estados Unidos que era geógrafo e etnólogo, discípulo de Ratzel, e que demonstrou as associações entre o meio e as crenças e instituições sociais dos povos indígenas:
Não poderemos esquecer que Boas, geógrafo de formação e discípulo de Ratzel, tomou consciência de sua vocação etnológica durante seu primeiro trabalho de campo, na revelação, para ele fulgurante, da originalidade, da particularidade e da espontaneidade da vida social de cada grupo humano (...) (Lévi-Strauss, Antropologie Structurale, 1974 [1958], p.18
7E Lévi-Strauss de completar sobre Boas
Não somente geógrafo em sua formação universitária, mas também físico, é bem um objeto científico e uma amplitude universal que ele assinalava às pesquisas etnológicas: ‘Ele dizia frequentemente que o problema era de determinar as relações entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo do homem tal qual ela toma forma nas diferentes sociedades. ’ (Idem, p.18)
8Essas relações entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo das instituições e mitos será a tarefa que se fixará Lévi-Strauss na sua vasta obra. Então, estamos no coração do tema, um Método que utiliza do espaço topológico (abstrato) e concreto (espaço, territórios, lugares) como forma de buscar estruturas comuns, um solo comum, que permitirá extrapolar “leis” para encontrar invariantes nas diferentes sociedades estudadas, em particular por meio da análise dos mitos.
9No sistema da natureza de Humboldt, bem anterior à Ratzel, também se nota uma gênese do pensamento associando natureza-sociedade: se sai de um quadro descritivo da época clássica, para uma dinâmica associada e comparativa dos aspectos físicos da natureza (altitude, clima, latitude) associados à vegetação (biogeografia) ou ainda se inaugura uma espécie de Geografia Regional com as descrições da Nova Espanha. Humboldt (ver, sobre Humboldt e sobre Ritter, a analise epistemológica da chamada geografia clássica de Horace Capel en Filosofía y ciência em la geografia contemporânea, Barcelona: Barcanova, 1981) se inscreve desse modo naquela ruptura epistemológica invocada por Foucault dos “quadros da natureza” (da língua, das riquezas e dos animais, vegetais e da terra) para um sistema de correlações e comparação entre diferentes aspectos físicos: a vida (a sua biogeografia associando vegetação, altitude, solo etc. diferentes em diferentes lugares) e da natureza associada ao homem buscando “sistemas da natureza” e se inspirando para isso em Kant (Cf. Capel, 1981.) que irá desembocar na conformação da ciência humana, da Geografia, da Antropogeografia e da Geografia Humana.
10Essa Antropogeografia que será denominada na França de Geografia Humana, ganha ali corpo com Paul Vidal de La Blache e as monografias regionais (lembremos que bem antes desse movimento na França se atribui à Humboldt com o Ensaio político da Nova Espanha, sobre o México, do inicio do século XIX uma obra de Geografia Regional) que expõem os traços característicos de uma Região. Foi a constituição de uma ciência das relações do homem com a natureza no presente e no passado. O interesse por essa Geografia Regional foi tal que um entusiasta de Geografia na época anuncia “(...) a geografia encerra todas as ciências, abre os horizontes, comporta todos os conhecimentos humanos (Albert Favre, 1917 citado em FEBVRE, 1922, nossa tradução).
11Ecos desse entusiasmo e pretensão serão reverberados nas pretensões da antropologia estrutural dos anos 1950-60, a antropologia estrutural, segundo Lévi-Strauss, pretende transcender a divisão tradicional natureza-cultura e “pode estender suas considerações ao conjunto do gênero humano” (Lévi-Strauss citado em Dosse, 2007, vol. 1, p.243). A relação antropologia e etnologia com a geografia, para além dessas afirmações gerais, desde o início do século XX foi atravessada de polêmicas entre Durkheim e Vidal de La Blache sobre a importância ou não das determinações, relativas ou não, territoriais sobre a sociedade, entre a “morfologia social” e a “geografia humana”, conforme expõe Febvre, historiador, que pretende domar a Geografia.
12De certa maneira os historiadores adotarão os métodos da Geografia Regional – e os geógrafos “regionalistas” serão aos poucos criticados, de maneira muitas vezes injusta, por uma aparente falta de “cientificidade”, em particular nos anos 1960 e 1970.
13O caso mais emblemático desses geo-historiadores é o de Fernand Braudel (Cf. O La Méditerranée et Le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II e Civilização material, economia e capitalismo. Século XV e XVII). Yves Lacoste escreveu um texto intitulado Braudel geógrafo demonstrando como na obra de Braudel a geografia desempenhou um papel importante (Braudel geógrafo in Ler Braudel, livro organizado por Yves Lacoste e contanto com diversos outros autores, São Paulo: Papirus, 1988).
14De fato essa relação com a sociologia, a antropologia, a etnologia e a história, da geografia humana ou da geografia simplesmente, está na fundação do método regional francês - com forte conexão com os aspectos da geografia física - basta ver as descrições que faz Vidal de La Blache das camadas geológicas quando discorre sobre as regiões no Tableau de la Géographie de la France de 1911. Ele se refere a uma influência do meio sobre o homem e vice-versa, destacando o acaso, assim, precisa Vidal de La Blache, em sua Geografia Humana, publicado postumamente em 1922: “Tudo que diz respeito ao homem é tocado de contingência...” (Vidal de La Blache apud Maurice Le Lannou, 1949).
15Mas, não se deve esquecer que Jean Brunhes - ao qual rende homenagem Yves Lacoste por sua abordagem dos problemas geopolíticos e por ser um dos primeiros a utilizar a fotografia nas interpretações dos fenômenos geográficos (Zanotelli, 2004) - já havia escrito uma Geografia Humana em 1910 e foi o mestre de Pierre Deffontaines, um dos primeiros professores da escola de Geografia da USP e um dos fundadores da AGB em 1934 no Brasil (Deffontaines será posteriormente professor da Universidade do Brasil no Rio de Janeiro e publicará dezenas de artigos sobre inúmeros aspectos do Brasil, donde uma Geografia Humana: Geografia humana do Brasil,1940). Foi colega de Lévi-Strauss - assim como Pierre Monbeig, Roger Bastide e Fernand Braudel - na missão francesa que veio participar do ensino da recente fundada USP.
16Lévi-Strauss descreverá em Tristes Trópicos páginas memoráveis sobre a sociedade paulista e sobre a cidade de São Paulo: cidade que atinge a decrepitude antes de atingir a idade adulta (um livro será publicado sobre sua relação com São Paulo, Saudade de São Paulo e outro na França com uma publicação de uma seleção de 200 fotos sobre milhares que fez no Brasil e em particular em São Paulo: Saudade do Brasil). Lévi-Strauss faz uma comparação interessante sobre a velocidade como se constrói e como apenas construídas as casas e prédios começam a se deteriorar nas Américas:
Para as cidades européias a passagem dos séculos constitui uma promoção; para as americanas, aquela dos anos é uma decadência. Pois elas não são somente construídas recentemente: elas são construídas para se renovar com a mesma rapidez que elas foram erguidas, quer dizer mal. (Tristes Trópicos, p.106)
17E continua Lévi-Strauss:
Visitando New York ou Chicago em 1941, chegando em São Paulo em 1935, não foi a novidade que mais me espantou, mas a precocidade do estrago do tempo. Eu não fiquei surpreso que faltasse a essas cidades dez séculos, eu fiquei impressionado de constatar que tantos de seus bairros tivessem cinqüenta anos. (T. Trópicos, p.106).
18Tristes Trópicos guarda uma percepção que 80 anos depois me parecem justas em particular quando se refere às oligarquias paulistas e à Júlio Mesquita Filho dono do Jornal O Estado de São Paulo na época e um dos financiadores da USP que pretendia criar a universidade como forma de demonstração de poder e para formar as elites que deveriam governar o país ou pelo menos se contrapor àquelas que estavam no poder com Getúlio Vargas. Porém, de maneira involuntária, ao mesmo tempo, a USP formou aqueles que iriam contestar essa dominação oligárquica, que, diga-se de passagem, está ainda viva na vida política nacional nos dias atuais (veja-se a importância das famílias à frente dos impérios midiáticos que fazem e desfazem reputações e influenciam e pretendem fazer e desfazer governos). Como dizia à época o cônsul da França em São Paulo, Pingaud: “A Universidade de São Paulo quer ser um instrumento do imperialismo intelectual paulista no Brasil” (citado por Emmanuelle Loyer, Lévi-Strauss, 2015, p.151). Projeto de influência nos meios culturais e de se servir desse cartão postal politicamente.
19Lévi-Strauss realizará expedições com Pierre Monbeig, Fernand Braudel et Jean Maugüe em São Paulo e seu entorno, mas também no Oeste paulista e no norte do Paraná acompanhando Monbeig, como diz Emmanuelle Loyer:
(...) a interdisciplinaridade se desenvolve na amizade que liga Claude Lévi-Strauss à Pierre Monbeig, o geógrafo das expansões pioneiras no Oeste paulista e o Norte do Paraná, que se interessará trinta anos mais tarde à integração da Amazônia ao Brasil. No curso de sua longa permanência em São Paulo, de 1935 à 1949, Monbeig tomou a medida dos fenômenos americanos, redefiniu as escalas, as distâncias, os ritmos, para parir um grande trabalho sobre as “paisagens nômades” que são as franjas pioneiras. É à pé e à cavalo, as vezes em caminhão, que Lévi-Strauss, na falta de expedições etnográficas (tornadas impossíveis por causa da ausência de Índios nos subúrbios de São Paulo...), acompanha seu colega e amigo aos desmatamentos florestais e a sociedade movente dos pioneiros, uma marchetaria étnica européia(...)(Loyer, 2015, p.163)
20Haveria, para além da amizade uma influência incontestável de Lévi-Strauss sobre Monbeig que se revelaria em seu capitulo sobre “A psicologia “bandeirante” no livro Pioneiros e fazendeiros de São Paulo de 1952 (Cf. artigo do Coletivo USART, páginas 2 e nota 1 página 12) ou ainda a nota que publica Pierre Monbeig nos Annales de géographie (1951), quando faz uma resenha de um artigo publicado por Lévi-Strauss em 1948 e depois retomado no livro Tristes Trópicos em 1955 sobre os Índios Nambikwara do plateau dos Parecis no Noroeste do estado Mato Grosso. Nessa resenha Monbeig demonstra a importância do artigo de Lévi-Strauss quando analisa a maneira como os indígenas se adaptam e transformam o meio, mas não são um puro produto do meio, assim o diz Monbeig (Annales de Géographie, Ano 1951, Volume 60 Número 322 pp. 376-379, nossa tradução):
A sociologia já renunciou a ter por simples as instituições e a estrutura dos grupos de “primitivos”. A geografia deve renunciar a ver no gênero de vida dos habitantes da grande floresta e da savana as imposições brutais e exclusivas do meio natural. Vislumbra-se na floresta amazônica e naquela do Brasil tropical, contatos de povos, lutas e a herança de um passado que tem grande chance de ficar desconhecido, que contribuíram para a implementação de tribos e à modelar o gênero de vida. A limitação da savana é impotente a tudo explicar. Devemos ser gratos a Levi-Strauss, etnógrafo, de ter trabalhado como geografo e para os geógrafos .
21Esse apelo de Monbeig aos geógrafos para renunciar à ver nos gêneros de vida dos habitantes da grande floresta e da savana “imposições brutais e exclusivas do meio natural” pode ser explicada pelo que Mikessel já escrevia em 1967 (Apud Collectif USART in EchoGéo, n.7, 2008, p.2): a geografia é muitas vezes vista como a adaptação do homem à natureza e não uma adaptação do homem conjuntamente com natureza que é transformada e transforma o homem. Como o indicava, inclusive o próprio Lévi-Strauss. Para Monbeig os gêneros de vida são um tecido de heranças e influências sobre as sociedades de uma longa história, assim as atividades no planalto dos Parecis dos Nambikwara não se reduzia a ter perspectivas puramente culturais e/ou que as culturas seriam produto puro e simples do meio. Tanto a herança do meio social como o meio natural em simbiose explicam a forma de vida e, em última instância, os próprios mitos indígenas.
22Em conclusão de sua resenha do artigo de Lévi-Strauss, Monbeig escreve: “tem se que ser grato à Lévi-Strauss, etnógrafo, de ter trabalhado em geógrafo e para os geógrafos”!
23As possibilidades abertas com esses contatos de trabalho conjunto nos tempos atuais estão postas para a geografia e a antropologia, há potencialidades de estudos comuns como indica o artigo citado do coletivo URSART que conta com membros do CNRS e do CREDAL da Escola de Altos Estudos da América Latina e que busca estudar da Amazônia um problema tanto antropológico, como dizem, como geográfico, mas sob a condição de que os geógrafos reconheçam o espaço como uma construção social.
24Mas há também uma influência evidente de Monbeig sobre Lévi-Strauss e isso se revela claramente em Tristes Trópicos, como escreve Hervé Théry, podemos identificá-la na influência sobre a obra de Lévi-Strauss de conceitos desenvolvidos por Monbeig (Pierre Monbeig, Pioneiros e fazendeiros de São Paulo, São Paulo: Hucitec 1984 [1955] assim, esse último, desenvolve a noção de “franja pioneira” a propósito da progressão da “colonização”, em particular no Oeste paulista e no Brasil Central, de terras naquilo que se chamava até então de “front pioneiro” (Cf. Monbeig apud Hervé Théry, Claude Lévi-Strauss, Pierre Monbeig et Roger Brunet in EchoGéo, 7, p.2, 2008). Lévi-Strauss integra essa noção em Tristes Trópicos (Conforme Tristes Trópicos, p. 102 apud Hervé Théry). Lévi-Strauss, por outro lado, em Tristes Trópicos faz obra de geógrafo regional e urbano quando descreve uma tipologia das cidades da zona pioneira paulista que Hervé Théry traduz em um modelo cartográfico no artigo citado. Lévi-Strauss encontra nesses povoados nascidos da expansão das zonas de plantação do café e d’outras produções agrícolas que seguem a penetração dos rios e dos caminhos e estradas de ferro uma oposição no plano - em forma de tabuleiro - entre ruas centrais e ruas periféricas, em função de elas serem paralelas ou perpendiculares à estrada de ferro. As primeiras, no sentido do trafego recebem os comércios e nas vias perpendiculares à estrada de ferro se concentram as habitações (Cf. Tristes Trópicos, p.136 e Théry, p.2). Hervé Théry nos diz que essa tipologia poderia ser aplicada a todas as cidades da franja pioneira paulista. Théry no mesmo artigo invoca, igualmente, o fato que Lévi-Strauss na própria descrição da estrutura espacial no capitulo “Bons selvagens” dos Bororos em Tristes Trópicos aplica essa metodologia de “colocar sob a forma espacial” as estruturas sociais (H. Théry, p.3). A análise que Lévi-Strauss faz da forma de organização espacial dos Bororos é perspicaz e nos permite entender a estrutura sócio-espacial do grupo: a organização circular das casas dos Bororos no entorno de uma clareira onde se encontra, ao centro, a casa dos homens, bem como as divisões geométricas entre as duas metades onde há dois grupos (ao norte e ao sul, os Cera e os Tugaré), assim como a partilha entre clãs e sub-clãs se orientando por aqueles que estão à montante e à jusante do rio e superposta à primeira divisão juntamente com classificações sociais diversas.
Figura 2 Modelo gráfico de uma descrição de cidade pioneira
25Fonte: Hervé Théry 2009
26Essa complexa organização social e espacial nos permite de compreender as relações entre os grupos e os clãs e as trocas e as alianças matrimoniais nessa comunidade indígena (Cf. p.253-255, Tristes Trópicos), mas também as relações com os mitos e com o cosmos, demonstrando uma inscrição na terra e nos corpos de uma estrutura social em relação com a natureza de extrema importância para a vida social e a prática dos cultos, Lévi-Strauss escreve (Tristes Trópicos, p.255, nossa tradução):
A distribuição circular das cabanas no entorno da casa dos homens é de tal importância, no que diz respeito à vida social e a prática do culto, que os missionários salesianos da região do Rio das Garças compreenderam rapidamente que o melhor meio de converter os Bororos consiste a fazer com que eles abandonem sua aldeia por outra onde as casas são dispostas em um ordenamento paralelo. Desorientados em relação aos pontos cardinais, privados do plano que fornece um argumento a seus saberes, os indígenas perdem rapidamente o sentido das tradições, como se seu sistema social e religioso (nos veremos que eles são indissociáveis) fosse muito complicado de existir sem o esquema tornado evidente pelo plano da aldeia.
27Para além do aspecto das estratégias religiosas para “converter” os indígenas, observa-se uma linguagem espacial por parte dos Bororos que solidariza o aspecto empírico, prático, com a percepção associando o sensível ao inteligível (a natureza e a cultura), dando-nos o exemplo de como a ocupação espacial é muito mais que uma simples organização atendendo a interesses puramente econômicos e financeiros, como se direciona de maneira proeminente a organização do espaço hoje.
28Essas descrições de formas de ocupação do espaço concreto e sua percepção em dois momentos distintos, nas cidades da franja pioneira e nas aldeias indígenas, foram para Lévi-Strauss, segundo Hervé Théry:
(...) uma espécie de transição, onde as estruturas profundas das variantes novas de nossas sociedades aparecem com maior evidência, pois elas se observavam no estado de nascimento, no momento onde elas conquistavam terras novas, e elas foram de fato uma espécie de iniciação à descoberta de sociedades indígenas (...) (H. Théry, artigo citado, p.5, nossa tradução).
29Na continuidade das relações com geógrafos havia outro amigo de Lévi-Strauss que fez parte do comitê editorial da revista L’Homme, criada por Lévi-Strauss, e que o apoiou em sua entrada no Collège de France, Pierre Gourou, geógrafo tropicalista, que o apresenta a outro geógrafo geomorfólogo, Jean Mallory - que estava encarregado da coleção “Terres Humaines” da editora Plon - é nessa coleção que será publicado Tristes Trópicos, livro ao mesmo tempo “cientifico”, literário e recito de viagem onde a “subjetividade” de Lévi-Strauss vem à tona e onde ele descreve aquilo que normalmente não se diz nos livros acadêmicos: as dificuldades e as aventuras de um etnólogo. Mas, o livro é bem mais que isso, Tristes Trópicos é uma epopéia com uma escrita clássica, mas, ao mesmo tempo, de uma ironia e um furor critico em relação ao meio acadêmico.
30Jean Malaurie esteve próximo de Lévi-Strauss em diversos aspectos. É um especialista dos Inuits vivendo no circulo polar Ártico, participa de duas expedições às regiões polares da Groenlândia organizadas por Paul-Emile Victor, e em uma expedição em trenó, descobre na região de Thulé, Noroeste da Groenlândia, a existência de uma base militar americana construída secretamente e sem consulta dos autóctones e que será objeto de seu primeiro livro Os últimos reis de Thulé que inaugura a coleção “Terre Humaine” (Cf. E. Loyer, p. 412). Estudando a zona boreal é fascinado pela possibilidade de no Ártico poder descobrir éboulis (moraina ou morena) que tem 8 mil anos pelo fato do recuo, no quaternário recente, de uma imensa geleira (a cerca de 8 mil anos) que revelou essa imensa massa de blocos de pedras. Fascinado por poder andar no escudo arqueano dessas zonas (voltando 700 milhões de anos no tempo). Interessava-se por pesquisar essas enormes massas de pedras que descem as vertentes das falésias. (Cf. Zanotelli, 2005, p.39). Nessa entrevista em dialogo com Yves Lacoste ele nos revela que para compreender esses fenômenos de erosão, de inventário, teria que se tentar compreender como as coisas acontecem no infinitamente pequeno e é por isso que aos poucos se interessou pelas pedras, descobrindo que existe um ecossistema das rochas é função de uma petrografia. Malaurie nos diz que “Os granitos e os calcários têm uma resistência mecânica e depois sofrem fortes agressões destrutivas do gelo, da umidade e da geoquímica. Assim, há um compromisso de formas e de dimensões que leva a um certo tipo de pedra que não varia em função do clima, e isso representa os grandes equilíbrios da natureza” (Zanotelli, 2005, p.39). Daí a partir da busca de um equilíbrio dos grandes sistema da natureza, Malaurie se interessou pelas populações Inuits e nos diz que os homens estão nesses lugares há 30 mil anos, como as populações transiberianas, e há dez mil anos como os Inuits, esse equilíbrio se inscreve sensorialmente no pensamento dos homens (Malaurie apud Zanotelli, 2005)
Essa ordem sensorial lhes permite melhor compreender o que diz respeito a uma inteligência do destino das civilizações e do destino do homem. Esta análise desemboca no xamanismo, que é uma compreensão, uma inteligência e uma interrogação sobre o lugar do homem nos grandes equilíbrios naturais. E é com uma potência de um imaginário quase divino, pois o xamanismo se inscreve da pedra até o cosmos. Muito bem, essa dialética homem-natureza, pedra-alma é o que eu chamo antropogeografia. Eu acredito que essa visão vertical completa, felizmente, a visão horizontal que encontramos nas grandes civilizações humanas, as civilizações industriais.
31Portanto, nos encontramos aqui no mesmo gênero de problemas que se coloca a antropologia e em particular as análises mitológicas de Lévi-Strauss, convergência de visões, retorno da denominação antropogeografica e limites não explicitados muito claramente entre as duas disciplinas
32Retornemos no tempo para ver como se colocava essa questão exatamente no pós-segunda guerra mundial. A Etnologia, a Antropologia, a Sociologia, a Geografia e a História em disputa pelo seu “objeto” e pelo espaço no meio acadêmico francês desde o inicio do século XX, muitas vezes encontram pontos de convergência, pois analisam sociedades e grupos humanos em sua relação com o meio, com a natureza. As disciplinas são muito próximas e, muitas vezes, difíceis de separar. Em 1949, Maurice Le Lannou, buscando distinguir a Etnologia da Geografia afirma:
Diferentemente da geografia humana, que é uma ciência do presente, a etnologia é uma sorte de reconstrução histórica dos fatos anônimos ou obscuros que são o subsolo da evolução das sociedades. Um etnólogo declarou sem rodeios: “Nós temos por campo todos os tempos e todos os países, fora essa banda estreita da civilização moderna”. Essa banda estreita é o domínio do geógrafo. (Maurice Le Lannou, p.22-23, 1949, nossa tradução).
33Ora, Pierre Deffontaines, em 1948, com André Leroi-Gourhan (antropólogo e autor da frase citada acima por Le Lannou) fundou a Revue de Géographie humaine e d’Ethnologie. Como diz Leroi-Gourhan nessa revista, o interesse comum é pelo elemento “espaço” e pelo elemento “homem” (Janeiro-março, 1948). Essa iniciativa foi louvável, apesar da visão de Leroi-Gourhan de que a diferença entre as duas disciplinas era que uma, a geografia, fala da “natureza e do homem” e a etnologia fala do “homem e da natureza”, dando a entender que o “geógrafo passa do solo ao homem” e para o etnólogo, inversamente, o homem “se dirige ao solo”. Reiterada questão que já havíamos invocado anteriormente onde a prioridade parece ser para a geografia a natureza e seu determinismo e para a antropologia a prioridade sendo o homem e os usos que faz da natureza.
34Mas, os domínios que tanto Le Lannou como Leroi-Gourhan querem definir para a Geografia e a Etnologia serão muito mais complexos e demonstrarão que não somente se fará etnologia dos tempos presentes (e também a história do “tempo presente”), como a geografia se lançou e se lançara na história. Da mesma forma, tanto a antropologia faz uso de modelos espaciais e referências à natureza e sua importância na compreensão das sociedades, como a geografia adentra, como vimos anteriormente com Malaurie e outros geógrafos, os aspectos simbólicos das civilizações.
35Mas, não deixa de ser interessante de notar como que a etnologia e antropologia de Lévi-Strauss, nessa mesma época (1949), inverterão em relação ao invocado por Leroi-Gourhan – primeira inversão na antropologia ela se ocupa da sincronia no tempo presente de sociedades outras que não as ocidentais - a questão falando de uma sincronia de dados apreendidos num instante presente em oposição à diacronia (a acumulação da história) diferenciais no espaço e no tempo, mas com permanências. Transformando, dessa maneira, a etnologia, introduzindo um Método que busca invariantes explicativas em milhares de sociedades ditas “selvagens” – não há aqui evidentemente nenhum pré-conceito, ao contrário (vide sobre esse aspecto Zanotelli, 2014) - com suas instituições e mitologias. Lévi-Strauss estabelece, dessa maneira, com a história um dialogo sulfuroso, reservando para a etnologia e a antropologia um quadro explicativo que transcenderia a diferença natureza-cultura (Apud Dosse, vol. 1, p.243) e que se ocuparia do “tempo presente” de sociedades outras que não as ocidentais, sociedades que têm mecanismos internos relativamente – nunca absolutamente, pois mudanças sempre acontecem - estáveis de reprodução e não estão na mesma história que o Ocidente, apesar de estarem no mesmo mundo. Sociedades que sofrerão como demonstrará Lévi-Strauss uma desestabilização maior e um integração/assimilação crescente aos cânones ocidentais, apesar das resistências, adaptações e das lutas frente a esses processos.
36Figura 3 A aldeia Bororo de Kejara
Plan retravaillé du village Bororo de Kejara dont Claude Lévi-Strauss donne la description dans un article du Journal de la Société des Américanistes en 1936
37Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Plan_de_Kejara.png
38Assim, por meio do estruturalismo de Lévi-Strauss o papel daquilo que seria um “quadro” relativamente estável, a natureza, a sociedade, o que presidiria à estrutura no sentido da geografia de Paul Vidal de La Blache e da relação do homem com ela (a “estrutura” no sentido clássico de uma armadura arquitetural, de um continente externo das sociedades), as permanências sobre as quais a história e a etnologia viriam se incrustar se transforma, pelo menos no Método, na própria estrutura social e cultural (permanências internas das estruturas mentais dos povos ditos “selvagens” que produzem mitos, signos, significados e significantes que tenderiam a certo numero de invariantes, replicando entre as séries vegetais/animais/Terra e a série sociedade/grupos indígenas uma compreensão do mundo).
39Lévi-Strauss opera uma segunda inversão nessa perspectiva antropológica e geográfica digamos clássica, pois as disposições adquiridas graças ao meio externo (relações com a natureza: animais, vegetação, geologia) se replicariam e organizariam o pensamento, a natureza-cultura é algo indissolúvel e passa pela própria forma da organização social, nesse sentido saindo da dicotomia natureza-cultura.
40O relativamente estável - relativamente posto que nunca absolutamente estável, pois a história estará sempre aí, em particular a do clima e do meio em interação com a sociedade, mas em escalas temporais muitas vezes milenares – é a sociedade que reproduz seus mecanismos por meio da estruturas mentais, e não os “quadros da natureza” que serão referência para essas mudanças, portanto, em última instância essas relativas permanências, associadas à “natureza” e ao universal, que mudaria em longos períodos (as eras geológicas) serão determinantes.
41Mas, na “era industrial” os processos de transformação do meio também se aceleram, porém Lévi-Strauss não modificará as bases do que chamou, para efeito de explicação das invariantes nas sociedades, de “natureza”, mas, buscará, em parte, no próprio processo orgânico e biológico, no cérebro humano, a fonte dessas mudanças, ou seja, no processo interno à natureza do homem, mas que é, por outro lado, inextrincável em suas relações com o meio externo, rompendo com a divisão espírito-matéria tão cara à ciência e física clássica: o processo de co-determinação interna e externa está presente no método e na teoria estruturalista sob a forma imanente. O que nos revela, como indicou Viveiro de Castro, que as bases dos estudos das mitologias de Lévi-Strauss são explicitadas desde a conclusão das Estruturas Elementares e do Pensamento selvagem, assim abrir-se-ia a oportunidade de ultrapassar a oposição da natureza e da cultura. Oposição que fundou a metafísica ocidental e que por meio do “pensamento selvagem” adotada para si (Lévis-Strauss dirá que considera que os estudos dos mitos são eles mesmos um mito a partir dos mitos, não dando nenhuma prioridade a um pensamento especifico sobre um outro qualquer), Lévi-Strauss tentará sair dessa metafísica. Mas, como nos diz Derrida, após ter constatado que a etnologia estrutural nasce num momento de descentramento da cultura européia e da história da Metafísica e de seus conceitos já iniciadas por Nietzsche, Freud e Heidegger, a cultura européia deixando de ser considerada como o elemento de referência (Derrida, op. citada, p.235), que a pretensão de Lévi-Strauss de sair dessa Metafísica não poderia ocorrer pois:
A etnologia – como toda a ciência – surge no elemento do discurso. E é em primeiro lugar uma ciência européia, utilizando, embora defendendo-se contra eles, os conceitos da tradição. Consequentemente, quer o queira quer não, e isso depende de uma decisão do etnólogo, este acolhe no seu discurso as premissas do etnocentrismo no próprio momento em que o denuncia. Essa necessidade é irredutível, não é uma contingência histórica.
42Derrida diz que “não se pode negar totalmente o signo” pois se nega a si mesmo, aquilo que se faz”. Ora, no desenvolvimento posterior dos livros sobre as mitologias (sobre os quais quando Derrida escreveu o que escreveu somente havia o primeiro volume publicado), como já indicado, Lévi-Strauss se “dissolverá” na mitologia indígena, portanto, não mais se colocando na Metafísica ocidental, como quer Derrida, mesmo se ele utiliza para isso a linguagem ocidental (o logos ocidental, e, portanto, a formatação do pensamento passada pela e na língua), mas nela ele traduz a linguagem indígena que é feita também de empréstimos múltiplos. Estaria aqui Derrida querendo impor um limite à Lévi-Strauss e dizendo “opa não mexam com a Metafísica” e defendendo o campo da filosofia? Vasta questão que ficará para outro trabalho.
43Chamamos a atenção no artigo sobre as conexões entre antropologia e geografia pouco exploradas a nosso entender, bem como das questões epistemológicas e ontológicas da relação sociedade-natureza que são abordadas de maneira original por Lévi-Strauss e que mereceriam de ser mais desenvolvidas em conexão com uma “outra geografia” que pense o espaço como a construção cultural e o liame entre natureza e cultura.
44O espaço é de fato a estrutura ela mesma, a estrutura interna (de organização simbólica que define a estruturação social com suas crenças) e a estrutura externa (que por meio da simbiose entre os vegetais, os animais e os minerais) que estabelecem conexões com os homens. Esses últimos inscrevem a natureza no coração de suas próprias crenças e disposições corporais materiais e imateriais. Assim, as sociedades são transformadas pela natureza e a transformam incessantemente. Mas essa transformação e torções sucessivas em espiral não são da ordem de um determinismo simples natureza-homem e homem-natureza ou de predominância do espaço sobre o tempo. Essa dicotomia é resolvida pela teoria estruturalista de Lévi-Strauss por meio da inscrição dos símbolos no coração da natureza e da natureza no coração dos símbolos e as metamorfoses que se operam entre tempo e espaço e entre História e Geografia.
45Talvez com a teoria estruturalista de Lévi-Strauss tenha-se encontrado o elo epistemológico e ontológico perdido da natureza e da cultura e, portanto, ofereça a possibilidade de reatar a reflexão geográfica do passado com a qual ele dialogou e da qual recebeu influência e influenciou.