- 1 Ele consiste numa versão atualizada de trabalhos apresentados em eventos acadêmicos.
1Neste texto1 a intenção é refletir acerca da relação entre políticas consideradas desenvolvimentistas e lutas sociais, tendo a Usina Hidrelétrica de Belo Monte (UHE Belo Monte) como caso ilustrativo. Destacaremos desdobramentos no âmbito dos movimentos sociais e impactos sobre a cidade de Altamira, visando apontar tanto para a dimensão civilizatória como para a barbárie envolvidas na construção da Usina, argumentando que só a mobilização popular pode em parte transformar prejuízos em ganhos sociais. O ponto de partida é o entendimento de que grandes obras de infraestrutura, como Belo Monte, contribuem para o despontar do ativismo político e não se pode negar um sentido positivo ao resgate do isolamento político no qual estão inseridas populações tradicionais e trabalhadores nas obras, além da promoção de inegáveis vantagens materiais.
2É dessa ótica que consideramos oportuno conjecturar sobre Belo Monte, em diálogo com a perspectiva desenvolvimentista, identificada à defesa das obras de infraestrutura como via para superação das carências sociais e econômicas, e a ambientalista, que rechaça esse caminho, tecendo ao mesmo tempo comentários sobre a política econômica dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT).
3Projetada para ser a terceira maior hidrelétrica do mundo, atrás apenas da chinesa Três Gargantas e da binacional Itaipu, na fronteira entre Brasil e Paraguai, o projeto de construção da UHE Belo Monte remonta ao período da ditadura militar, passando pelo episódio ocorrido durante o Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, realizado em Altamira, em fevereiro de 1989, quando uma indígena usou seu facão para intimidar a autoridade governamental que ali defendia o projeto. Desde então ficou engavetado, voltando a ser discutido no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), marcado por forte crise energética, com o projeto finalmente retomado pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e transformado na principal obra do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) no primeiro governo Dilma (2011-2014).
4A obra foi iniciada em 2011 no Rio Xingu, no estado do Pará, na Amazônia brasileira, e tem Altamira como cidade-polo. O Consórcio para Construção de Belo Monte (CCBM), contratado pela Norte Energia S.A., reúne a grande engenharia nacional: Andrade Gutierrez, Odebrecht, Camargo Corrêa, Queiroz Galvão, OAS e empresas menores. A Norte Energia S.A. é controlada pelo grupo Eletrobras (Eletrobras: 15%, Chesf: 15% e Eletronorte: 19,98%), Entidades de Previdência Complementar (Petros: 10%, Funcef: 10%), Belo Monte Participações S.A. (10%), Amazônia (Cemig e Light: 9,77%), Autoprodutoras de Energia (Vale/Cemig: 9%, Sinobras: 1%), Outras Sociedades (0,25%).
5A Usina é sem dúvida o investimento em infraestrutura mais polêmico dos governos do PT, fortemente combatido por ambientalistas devido aos seus impactos ambientais e sociais recriminados internacionalmente. Todavia, é certo o impacto civilizador da energia elétrica, assim como os avanços em infraestrutura uma vez que o cumprimento das condicionantes estabelecidas no processo de liberação da obra representa ganhos socioambientais para Altamira, notadamente no campo do saneamento básico. Evidentemente que a construção da Usina não precisava ser o caminho para a conquista de serviços sociais básicos, mas interessa-nos a partir do fato consumado (a consecução da obra) discorrer sobre Belo Monte com o intuito de refletir sobre desenvolvimento e efeitos políticos pertinentes.
Mapa 1: Localização da UHE Belo Monte
Disponível em: https://site-antigo.socioambiental.org/esp/bm/loc.asp, acesso em 17/08/2016
Imagem 1: A presidenta Dilma Rousseff inaugura a Usina Hidrelétrica de Belo Monte (05/2016)
Disponível em: https://intercontinentalcry.org/brazilian-court-suspends-operating-license-for-belo-monte-dam/
- 2 Um panorama das duas perspectivas pode ser encontrado em Igor Fuser (2014), abordando os casos da B (...)
6A seguir enfocamos brevemente duas visões conflitivas presentes no debate sobre Belo Monte e em praticamente todos os debates acerca das grandes obras de infraestrutura na América do Sul: a visão desenvolvimentista, identificada à defesa das obras no enfrentamento das carências sociais e econômicas; e a visão ambientalista que se opõe a esse caminho. Sobre a primeira perspectiva importa recuperar a natureza em alguma medida progressista dos processos de desenvolvimento, ao passo que o segundo enfoque, com o qual iniciaremos, será abordado por meio da entrevista concedida por Eduardo Viveiros de Castro (2014) ao jornal El País. Em que pese o fato de não se tratar de um texto acadêmico, encontramos nas declarações do antropólogo renomado uma boa amostra da crítica à política econômica petista da ótica ambientalista2.
7Na entrevista, Castro (2014) condenará o que denomina uma postura passível de ser chamada de “crescimentista e centralista”, cujo objetivo seria controlar o Estado para pôr em prática uma política de combate à pobreza por meio da combinação entre crescimento econômico, consumo e transferência de renda aos mais pobres, dentro da qual a questão do meio ambiente não teria importância. Para ele, uma visão completamente antropocêntrica do mundo, característica de uma esquerda “velha”, nostálgica da União Soviética, como seria o caso da esquerda no poder no Brasil, representada à época pelo PT, nacionalista e sem visão de mundo. “Ela [essa esquerda] vê o Brasil no mundo quando se trata do mercado. Agora, quando se trata do planeta, enquanto casa das espécies, lugar onde nós moramos, ela não está nem aí”. A presidente Dilma em especial seria “um fóssil”, com a cabeça ainda no século 19:
Soviet mais eletricidade, a famosa fórmula do Lenin. O que é o comunismo? O comunismo são os soviets, que são os conselhos operários, mais eletricidade, isto é, mais tecnologia. Aí eu brincava, quando a Dilma tomou o poder: “A Dilma é isso, só que sem o soviet”. É só eletricidade... Ou seja, capitalismo. (...) essa esquerda é uma esquerda sócia do capitalismo. Acha que é preciso levar o capitalismo até o fim, para que ele se complete, para que a industrialização se complete, para que a transformação de todos os índios do mundo em pobres se complete. Para que você então transforme o pobre em proletário, o proletário em classe revolucionária, ou seja, é uma historinha de fadas. Como se pudesse separar a parte boa da parte ruim do capitalismo. (Castro, 2014)
8Conforme o antropólogo um “pacto satânico” marcaria a política econômica dos governos petistas, voltado à busca do crescimento, concedendo renda aos pobres, porém sem mexer com a riqueza dos abonados. Como entendemos, trata-se de apontar para a política de compromisso dos governos do PT, combinando crescimento econômico e alguma distribuição de renda, sem o enfretamento dos grandes interesses econômico-financeiros e abrindo mão de reformas estruturais. Assim sendo, para Castro, restaria à natureza pagar a conta, com florestas destruídas e água exportada por meio das commodities para a China na forma de boi, carne e soja - estaríamos “comendo o principal para não tocar no bolso dos ricos”, diz ele.
9Viveiros de Castro (2014) chama atenção para os limites de um modelo de crescimento que não parece levar devidamente em conta a escassez e destruição de recursos naturais finitos e suas consequências, modelo dentro do qual Brasil, China e Índia seriam “as pontas mais histéricas, porque querem crescer muito rápido”. Entretanto, suas afirmações permitem entender que, se esse “modelo” for condição para se tirar o pobre da situação de pobreza, talvez não seja a pobreza a dimensão mais negativa, talvez os pobres dos países pobres devessem seguir pobres, ao passo que os países superdesenvolvidos e desenvolvidos deveriam frear o desenvolvimento.
10Um posicionamento nada incomum entre ambientalistas e que resvala nas considerações de Castro (2014), para quem o que o Brasil e o mundo precisam é de uma redistribuição radical da riqueza acumulada: “quanto mais você redistribui, menos precisa crescer, no sentido de aumentar a produção”. Solução da qual ninguém discordaria, mas politicamente deveras difícil, muito provavelmente impossível nos limites do capitalismo. Consciente disso, o antropólogo termina defendendo que “para imaginar o não fim do mundo, nós temos que imaginar o fim do capitalismo” e vai fazê-lo apontando para a ascensão do local/comunitário nas formas de organização social, observando que a transição para outro sistema não será, obviamente, pacífica.
11O problema, para nós, seria o que fazer enquanto o “fim do capitalismo” não vem. E sem entrar na discussão sobre se não seria o próprio desenvolvimento das forças produtivas condição para o “fim do capitalismo” é preciso encarar as opções para os países periféricos como os da América do Sul. Após as experiências de governos neoliberais dos anos 1990, uma onda de governos progressistas chegou ao poder em países da região, enfrentando forte oposição das forças dominantes e dos meios de comunicação sob seu controle ou influência. Neste contexto, esses governos, pressionados pela necessidade de responder ao leque de carências sociais a fim de garantir base popular de apoio, irão priorizar as saídas rápidas e politicamente mais fáceis, como as grandes obras de infraestrutura e políticas de transferência de renda, mirando o crescimento econômico, pois se a economia não cresce a oposição ganha força e se torna difícil manter o poder e/ou prosseguir praticando políticas sociais.
12As experiências recentes de governos progressistas na América Latina parecem convergir num ponto: a demanda asiática por commodities representou uma oportunidade que governantes aproveitaram para investir em políticas sociais e obras de infraestrutura. No caso brasileiro (copiado por países da região), na esfera social seriam priorizados programas de transferência de renda e políticas de inclusão social via consumo; na esfera da intervenção desenvolvimentista as grandes obras de infraestrutura, sempre problemáticas do ponto de vista social e ambiental.
13Por sua vez, a demanda asiática por produtos primários acentuaria a especialização produtiva, tendência mesmo difícil de inibir tendo em vista a decorrente valorização da moeda dos países exportadores e possibilidade de importações de produtos industrializados asiáticos baratos. No Brasil, dólar baixo e juro alto afetariam a produção industrial nos últimos anos, com a participação da indústria de transformação no PIB caindo de 17,9% para 10,9% entre 2004-2014, com efeitos danosos para além da perda de espaço da produção industrial, já que os custos ambientais incluídos na especialização em commodities são consideráveis.
14No que toca ao consumo de energia elétrica, segundo Bermann (2011, 2012), seis setores consumiriam 30% da energia produzida no Brasil e apenas dois estariam mais vinculados ao mercado doméstico: cimento e a indústria química. Os outros quatro estariam voltados sobretudo às exportações: aço, alumínio primário, ferro ligas e celulose. Para o pesquisador: “A usina de Belo Monte, megaobra gigantesca, custos enormes, consequências ambientais e sociais seríssimas, ao lado das usinas Jirau e Santo Antonio, no rio Madeira, são exemplos da obsessão pelo gigantismo (...) em detrimento de preocupações ambientais e sociais” (Bermann, 2012, p.17).
15As grandes obras de infraestrutura - como as hidrelétricas de Belo Monte, Jirau, Santo Antônio, o porto do Suape - também levantam muitas dúvidas quanto às vantagens do desenvolvimento (saneamento básico, eletricidade, empregos melhor remunerados, escolas e assistência médica) diante da degradação do meio ambiente e modos de vida nos espaços ao redor (carestia, criminalidade, prostituição, mendicância).Os movimentos de resistência são absolutamente justificáveis e expressam as contradições de toda política com vistas ao desenvolvimento/crescimento econômico, gerando progressos materiais inegáveis e inúmeros problemas sociais e ambientais.
16De todo modo, no Brasil, após um primeiro ano de baixo crescimento econômico e muitas críticas ao que foi apreendido como mero continuísmo neoliberal dos governos FHC pelo primeiro governo Lula, o quadro começaria a melhorar em 2004 e, especialmente a partir de 2006, a economia brasileira voltaria a crescer favorecida pela conjuntura econômica internacional e por políticas internas expansionistas: a) investimentos em infraestrutura, mormente aqueles ligados ao Plano de Aceleração do Crescimento (o PAC 1 foi lançado em 2007 e o PAC 2 em 2011); b) desonerações tributárias para o setor privado, maior ativismo dos bancos públicos no financiamento da economia, expansão do crédito ao consumo (crédito consignado); c) política de valorização do salário mínimo e de reestruturação de carreiras do funcionalismo público (realização de concursos, aumentos salariais), ampliação dos programas de distribuição de renda.
17As Usinas Hidrelétricas de Jirau, Santo Antônio e Belo Monte são obras do PAC defendidas pelos governos petistas porque cumpririam um papel importante na elevação da capacidade energética e ao mesmo tempo proporcionariam desenvolvimento aos estados do norte do país, gerando empregos, distribuição de renda e desconcentração regional. No entanto, analistas criticam justamente a distância e custos decorrentes da transmissão de energia para os grandes centros de consumo. Bermann (2013) afirma que investir em novas linhas de transmissão é caro, ainda mais em se tratando das distantes hidrelétricas no Amazonas, para ele seria muito mais racional e eficiente investir na estrutura já existente, não fossem os interesses das empreiteiras e demais empresas implicadas, aos quais a construção de Belo Monte atenderia e “não à população e à economia brasileira”.
18O leque de interesses econômicos em obras como a Usina de Belo Monte é enorme, abarcado em consórcios liderados por grandes empreiteiras, em cooperações com indústrias de máquinas e equipamentos com nexos mundiais, e empresas diversas, nacionais e estrangeiras, de diferentes portes e setores de atuação, sendo cruciais as empresas fornecedoras de aço e cimento, as que transportam trabalhadores, fornecem as refeições, cuidam da segurança, limpeza e manutenção do canteiro de obras etc. (Cataia, 2013). Dessa forma, parece-nos controverso afirmar que a obra não interessa à população local e à economia brasileira, pois obras como Belo Monte movimentam a economia em várias escalas.
19Cabe ressaltar que ao indicar limites/contradições característicos da dinâmica do crescimento econômico recente em países da América Latina, com foco no Brasil, não incorremos em mera oposição – não crescer e manter os pobres na pobreza -, ao contrário, entendemos que o crescimento econômico combinado com alguma distribuição de renda tende a ser melhor que sua ausência. Certamente cabe à análise social comprometida com a mudança qualitativa da história - que pode passar pelo evolver do capitalismo – denunciar os problemas sociais e ambientais, inclusive em prol do acirramento das contradições e avanços sociopolíticos. Numa trama na qual está claro quem serão os maiores vencedores, no qual os pobres muito provavelmente seguirão pobres, porém uma história tão dura de mudar que faz do comer pelas bordas, distribuindo alguma renda e promovendo empregos, algo melhor que a ausência da lógica crescimentista, a qual é preciso impor limites, tarefa levada a cabo prioritariamente pelos movimentos populares.
20Dessa perspectiva, valendo-nos do fato de que Castro (2014) mencionou Lênin, a eletricidade e os Soviets, retomaríamos o autor russo, que, em O desenvolvimento do capitalismo na Rússia, resgata a face política progressista do desenvolvimento capitalista ao retirar do isolamento antigos sistemas econômicos, destruindo a estreiteza da vida política e espiritual que os caracterizava. Visão encontrada igualmente em Marx e Engels, já no Manifesto Comunista. Também é conhecida a leitura de Marx sobre a dominação britânica na Índia, denunciando seu caráter destrutivo para a economia indiana e, ao mesmo tempo, apontando para a dimensão positiva do desenvolvimento que a dominação britânica inevitavelmente levaria à Índia.
21Outrossim, em Imperialismo: fase superior do capitalismo, Lênin demonstra que o capitalismo se espalha pelo mundo de maneira desigual, com os Estados que saíram à frente impelindo ao desenvolvimento as regiões atrasadas, de maneira subalterna e dependente das economias centrais. Assim sendo, todo imperialismo merece condenação veemente, inclusive o verde, denunciado sobremaneira por Garcia Linera (2011), ao criticar a atuação de ONGs internacionais na Bolívia. Não obstante, a compreensão das várias histórias de desenvolvimento capitalista na periferia passa pelos saltos qualitativos impulsionados pelo imperialismo dos países mais desenvolvidos, incluído o campo das lutas sociais.
22A perspectiva acima reaparece em Harvey, que afirma não ser “possível fazer omeletes sem quebrar ovos, diz o ditado” (Harvey, 2004, p.134). Apesar da metáfora um tanto infeliz, afinal populações e seus modos de vida tradicionais não são comparáveis a ovos e omeletes, o que o autor deseja salientar é o aspecto progressista do desenvolvimento capitalista, mesmo se por efeito do imperialismo. Não retomaremos suas considerações acerca da acumulação via espoliação, que teria intensificado os mecanismos nefastos do imperialismo por meio de expedientes similares aos da fase da acumulação primitiva, interessa apenas indicar a atualidade, à luz da sua análise, do argumento ao encontro da positividade implicada na superação do isolamento político das populações tradicionais. Na linha do que afirma sobre o processo de acumulação primitiva: se uma face é tenebrosa, a outra estaria ligada à liberação das amarras feudais, tanto no que diz respeito aos avanços técnicos/materiais como aos mentais. (Harvey, 2004, p.134).
23Em suma, com os autores mencionados buscamos salientar a complexidade dos processos históricos de modernização, marcante no caso de Belo Monte e, muito provavelmente, válida para outras grandes obras de infraestrutura. A força destrutiva desses empreendimentos favorece o despontar do ativismo político, no campo dos movimentos sociais ambientalista e trabalhista, destacando-se em Belo Monte o caráter vanguardista dessa movimentação.
- 3 Pensamos no papel da memória política nos movimentos sociais, à maneira de Sidney Tarrow (2009), re (...)
24As mobilizações trabalhistas na Usina experimentaram formas autônomas e espontâneas de atuação, à margem da direção sindical (do SINTRAPAV-PA, Sindicato dos Trabalhadores da Construção Pesada do Estado do Pará, filiado à Força Sindical) e resultaram na conquista de melhores condições de trabalho (Campos, 2016). Outro aspecto que chama atenção é a junção de movimentos sociais distintos – os clássicos movimentos obreiros e os movimentos sociais novos (ambientalistas, conservacionistas) -, com indígenas, colonos, ribeirinhos se juntando à mobilização do proletariado e invadindo canteiros da obra (Souza, 2014). É certo que já em fase de conclusão da obra, o desemprego assombra o horizonte, mas sempre ficará o aprendizado de luta a ser instrumentalizado em outras experiências de trabalho3.
25No terreno dos movimentos ambientalistas relacionados às populações tradicionais, desde o Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em 1989, vai se incorporando o que haveria de mais moderno no campo desenvolvimentista: a defesa do desenvolvimento sustentável. Como apontam antropólogos, a relação homem-natureza característica das populações tradicionais passaria por transformações e mesmo populações não culturalmente ligadas à conservação ambiental foram aderindo à causa, em dimensão cada vez mais cosmopolita. (Cunha e Almeida, 2009; Fleury, 2013)
Imagem 2: Encontro dos Povos Indígenas do Xingu (02/1989)
Disponível em: http://m.memorialdademocracia.com.br/publico/image/3603
26Na esteira do ativismo indígena movimentos sociais diversos despontarão, apoiados por agremiações políticas (o próprio PT, antes do governo federal) e outras associações da sociedade civil, entidades públicas e na atuação da igreja católica em favor da preservação dos modos de vida das populações locais. Nessa história se sobressai o Movimento Xingu Vivo para Sempre (MXVPS), que foi se configurando num grande coletivo de organizações e movimentos sociais contrários à UHE Belo Monte. (Fleury, 2013; Corrêa e Oliveira, 2015)
27E não se pode desconsiderar a positividade dessa movimentação nos processos históricos modernizantes, no que tange à ruptura do isolamento político de populações tradicionais e às vantagens materiais do desenvolvimento. Desse ponto de vista é que julgamos pertinente refletir sobre Belo Monte, indicando efeitos políticos e ganhos materiais, entendendo que o surgimento e evolução dos Soviets - em sentido metafórico: do ativismo popular - se articula aos processos de desenvolvimento.
28A construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte está envolta em muitos conflitos sociais e é reconhecida como paradigmática no campo dos movimentos sociais, os de natureza trabalhista, clássicos, e na esfera dos novos movimentos sociais, relacionados a conflitos ambientalistas de natureza em parte pós-material. Os denominados novos movimentos sociais, embora possam contemplar demandas materiais, não estão diretamente ligados aos conflitos capital x trabalho e são normalmente tidos como formas de organização alternativas aos sindicatos e partidos. Mas não há porque descartar a possibilidade de fusões/associações entre movimentos sociais de natureza trabalhista e os novos, de fato é desejável que ocorra. (Souza, 2014)
29Nesse sentido, tanto Belo Monte como conflitos nas usinas Jirau e Santo Antônio constituem experiências estimulantes, marcadas pela eclosão de mobilizações e greves operárias por melhores condições de trabalho, com o apoio muitas vezes de novos movimentos sociais protagonizados por populações tradicionais, com suas próprias demandas, expressas por meio de organizações e manifestações diversas, externando descontentamentos com a carestia, precariedade dos serviços públicos e cobranças de compromissos não cumpridos. Os conflitos têm ainda uma forte dimensão pós-material, ambientalista, ligada às proposições de desenvolvimento sustentável.
30A Usina de Belo Monte em especial é um laboratório de movimentos sociais (Fleury, 2013). No campo trabalhista marcada por greves e paralisações, com vitórias significativas para os trabalhadores. É certo que as mobilizações foram duramente reprimidas, com inúmeras denúncias de abusos (demissões, prisões, tortura, restrições à liberdade de ir e vir, presença da Força Nacional), mas as condições de trabalho foram melhorando a partir de 2013, seguramente em razão das rebeliões trabalhistas, do apoio de movimento sociais diversos, da repercussão internacional e atuação de ramos do Judiciário. Ademais, deve ter pesado a proximidade das eleições presidenciais de 2014.
31Uma sondagem do Instituto de Pesquisa Datafolha de 12/2013 indicava bom índice de satisfação dos trabalhadores:
32Segundo Campos (2013), os trabalhadores da construção civil empregados nas grandes obras de infraestrutura estariam se transformando na “vanguarda do movimento operário brasileiro nos últimos anos” (p. 219), pois seria nesse setor que se constataria maior ativismo voltado à organização de ações coletivas entre os trabalhadores, mobilizações particularizadas pelo recurso à violência e por driblarem, muitas vezes, a direção dos sindicatos, experimentando formas autônomas e espontâneas de manifestação, sobretudo nas obras do PAC. O autor observa que recorre à ideia de vanguardismo, tendo em vista “o conceito marxista desenvolvido por Lênin a partir de Clausewitz, a partir do vocabulário militar, no qual vanguarda são aqueles que vão à frente de qualquer processo” (Campos, 2013, p. 219).
33De nossa parte, conferiríamos à ideia, no caso de Belo Monte, um significado mais fraco, no sentido de inovador, relacionado às experiências de junção de movimentos sociais distintos – clássicos e novos (e também novos e novos) -, com indígenas, colonos, ribeirinhos se juntando à mobilização do proletariado e invadindo canteiros da obra (Souza, 2014). E no que tange aos novos movimentos sociais, nomeadamente os ambientalistas, valorizamos o caráter supranacional, ou cosmopolita, que vai assumindo a luta política local, abarcando desde organizações governamentais e não-governamentais internacionais a celebridades estrangeiras.
Imagem 3: Ocupação do canteiro de obras UHE Belo Monte (2013)
Disponível em: http://antigo.brasildefato.com.br/node/12817, acesso em 17/08/2016
34O evento considerado inaugurador dessa história de conflitos decorrentes da construção da UHE Belo Monte foi o mencionado Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, cuja imagem do facão próximo ao rosto do diretor da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes, repercutiu internacionalmente. Conforme o Instituto Socioambiental (ISA, 2014), o encontro constitui “um marco na história do socioambientalismo no Brasil”, reunindo por volta de 3000 mil pessoas, dos quais 650 eram índios de diversas partes do país, tendo sido organizado por lideranças indígenas - Paulo Paiakan, Raoni, Marcos Terena e Ailton Krenak – e entidades da sociedade civil. O evento contou com a presença de várias autoridades, além do diretor da Eletronorte, o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), o prefeito de Altamira, deputados federais, 300 ambientalistas, em torno de 150 jornalistas e celebridades como o cantor inglês Sting. No encerramento foi lançada a Campanha Nacional em Defesa dos Povos e da Floresta Amazônica, a Declaração Indígena de Altamira e lida uma mensagem de saudação do cantor Milton Nascimento.
35Fleury e Almeida (2013), ao reconstituírem os conflitos e dilemas ligados à construção de Belo Monte, consideram que a partir desse encontro haveria uma evolução no campo dos movimentos sociais ligados à bandeira da preservação ambiental, com o despontar do adjetivo socioambiental e do “ambientalismo à brasileira”, que daria visibilidade para povos e comunidades da floresta como protagonistas de saberes essenciais para o que viria a se propagar como desenvolvimento sustentável, especialmente após Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, realizada no Rio de Janeiro em 1992.
36Como entendemos, movimentos ambientalistas relacionados às populações tradicionais emergiriam igualmente como vanguardistas, não contra o desenvolvimento e sim em defesa do que haveria de mais moderno neste sentido: o desenvolvimento sustentável. Cunha e Almeida (2009), em texto que vale muito a leitura, no qual revisitam a definição de populações tradicionais, defendem que:
Numa surpreendente mudança de rumos ideológico, as populações tradicionais da Amazônia, que até recentemente eram consideradas como entraves ao ‘desenvolvimento’, ou na melhor das hipóteses como candidatas a ele, foram promovidas à linha de frente da modernidade. Essa mudança ocorreu basicamente pela associação entre essas populações e os conhecimentos tradicionais e a conservação ambiental. Ao mesmo tempo, as comunidades indígenas, antes desprezadas ou perseguidas pelos vizinhos de fronteira, transformaram-se de repente em modelos para os demais povos amazônicos despossuídos (Cunha e Almeida, 2009, p. 277).
37Conforme os antropólogos, por “populações tradicionais” deveríamos agora compreender uma categoria de sujeitos políticos dispostos a “constituir um pacto: comprometer-se a uma série de práticas conservacionistas, em troca de algum tipo de benefício e sobretudo de direitos territoriais”. A definição abrangeria agora sujeitos em “processo de autoconstituição” (como conservacionistas) na luta política, processo em meio ao qual mesmo as populações “culturalmente conservacionistas seriam, não obstante e em certo sentido, neotradicionais ou neoconservacionistas” (2009, p.300), não mais isolados e sim inseridos na economia mundial:
- 4 Cunha e Almeida (2009) distinguem populações indígenas de tradicionais, mas aqui são abordadas em b (...)
As populações tradicionais não estão mais fora da economia central, nem estão mais simplesmente na periferia do sistema mundial. As populações tradicionais e suas organizações não tratam apenas com fazendeiros, madeireiros e garimpeiros. Elas tornaram-se parceiras de instituições centrais como as Nações Unidas, o Banco Mundial e as poderosas ONGS do “Primeiro Mundo” (Cunha e Almeida, 2009, p. 289)4.
38Na batalha contra Belo Monte as conexões internacionais seriam importantes e as populações indígenas a força decisiva e, portanto, a voz que precisava ser silenciada, segundo a procuradora do Ministério Público Federal (MPF), Thais Santi (2014), para quem um verdadeiro “etnocídio indígena” estaria ocorrendo na região desde 2012. O Plano Emergencial, criado para amparar as comunidades indígenas enquanto não fosse implementado o Plano Básico Ambiental (PBA), previsto na Licença Prévia, produziria efeitos catastróficos, levando à dependência dos indígenas face à Norte Energia S.A., num assistencialismo usado para silenciar os agentes com mais visibilidade política na resistência à hidrelétrica (Santi, 2014).
39Os indígenas teriam uma visibilidade que a sociedade civil não teria e, como exemplo, a procuradora conta que houve uma manifestação de pescadores que, por 40 dias, ficaram no rio, na frente do canteiro de obras, debaixo de chuva, despercebidos. Somente quando receberam o apoio dos indígenas, com demandas próprias, apareceu de um dia para o outro a imprensa. Nesse cenário, o Plano Emergencial teria servido, basicamente, à cooptação dos indígenas com bens de consumo, destruindo seus modos de vida de forma a enfraquecê-los:
As aldeias se fragmentaram. Primeiro, você coloca na mão de uma liderança, que não foi preparada para isso, o poder de dividir recursos com a comunidade. A casa do cacique com uma TV de plasma, as lideranças se deslegitimando perante a comunidade. Ganhava uma voadeira [barco rápido] que valia 30, vendia por oito. Fora o mercado negro que se criou em Altamira com as próprias empresas. O índio ficou com dinheiro na mão e trocou por bebida. O alcoolismo, que já era um problema em muitas aldeias, que era algo para se precaver, aumentou muito. Acabou iniciando um conflito de índios com índios, e aumentando o preconceito na cidade entre os não índios. (...) Os índios se enfraqueceram, se fragmentaram socialmente, a capacidade produtiva deles chegou a zero, os conflitos e o preconceito aumentaram. (Santi, 2014)
- 5 No entanto, cabe observar que o “estado de exceção” é uma realidade no Brasil (e no mundo, a julgar (...)
40São inúmeros os problemas apontados pela procuradora, desde habitacionais e introdução de hábitos alimentares inadequados, passando pelo alcoolismo, violência, debilidade da FUNAI (ao invés do fortalecimento prometido), com o avanço da invasão de terras indígenas e do desmatamento. E embora reconheça que os movimentos sociais “são uma marca que faz Altamira única e Belo Monte um caso paradigmático”, para ela teriam poder limitado, da mesma forma que o MPF diante do domínio do fato, na medida em que as instâncias judiciais tendem a julgar inviável a intromissão em decisões governamentais, levando em alta conta os gastos já realizados, os empregos gerados, enfim, o fato consumado. Imperaria ainda uma indistinção entre o privado e o público (Norte Energia S.A. & Estado) e a possibilidade de exploração do ouro na região por uma mineradora canadense (Belo Sun), se concretizada, agravará ainda mais os problemas nesse território marcado por uma espécie de estado de exceção, segundo o relato da procuradora5.
Imagem 5: Xingu
Disponível em: http://www.xinguvivo.org.br/2012/12/20/2817/, acesso em 17/08/2016
41Os conflitos têm sido muitos, conectando populações indígenas, pequenos agricultores, ribeirinhos, pescadores, garimpeiros artesanais, moradores da periferia de Altamira, diversos movimentos sociais, acadêmicos e ativistas. Uma batalha judicial complexa vem sendo travada desde a concessão pelo IBAMA da licença de instalação para o início das obras em 2011, em princípio contestando o licenciamento e, mais recentemente, acerca do não-cumprimento das condicionantes previstas nos acordos. São várias as instâncias e entidades abrangidas: Supremo Tribunal Federal, Ministério Público, Tribunais Regionais Federais, organizações da sociedade civil como ISA, Greenpeace, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Os movimentos sociais não aceitaram o fato consumado, seguindo com estratégias de resistências e mobilizações para impedir o prosseguimento da obra, como o encontro Xingu+23, paralelo à Conferência Rio+20, em junho de 2012, no local onde ocorriam os barramentos do Rio Xingu. (Fleury e Almeida, 2013)
42Como adiantamos, entre os movimentos contrários à Usina destaca-se o Movimento Xingu Vivo para Sempre (MXVPS), ou simplesmente Xingu Vivo, congregando mais de cem entidades, constituído a partir de 2008 em meio ao rompimento com movimentos sociais locais ligados ao PT. O coletivo é apoiado por ONGs nacionais e internacionais, tais como o Instituto Socioambiental (ISA), a Amazon Watch e a International Rivers, e por entidades vinculadas à igreja católica, notadamente o CIMI – Conselho Indigenista Missionário - e a Prelazia do Xingu, nas quais se destaca a liderança do bispo Dom Erwin Krautler. Desde 2009, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) também se faz presente na região, “diferenciando-se do Xingu Vivo pelas estratégias adotadas, parcerias e, como reforçam seus representantes, ‘pela leitura marxista-leninista do problema das barragens’” (Fleury e Almeida, 2013).
43O bispo Dom Erwin Krautler é um dos principais críticos dos efeitos de Belo Monte para a cidade de Altamira, para ele, após a euforia inicial, “um surdo desânimo” tomou conta da cidade de Altamira, as promessas de progresso não se realizaram e a cidade estaria um caos: “homicídios, assaltos, arrastões estão na ordem do dia. O povo está apreensivo e assustado”. O grande medo, afirma Dom Erwin, seria o “de que, na inauguração de Belo Monte, as prometidas melhorias em infraestrutura nem de longe estejam concluídas e, depois da festa, se desmonta o palanque e a população ficará entregue à própria sorte”. A situação na cidade em muito se distanciaria das boas condições existentes na UHE Belo Monte:
A vila possui infraestrutura completa, com escola, farmácia, supermercado, restaurantes, padaria, academia de ginástica, clube, biblioteca e áreas livres para recreação e lazer e ainda serviços de clínica geral, ginecologia, cardiologia, oftalmologia, pediatria, odontologia, pronto atendimento, laboratório e salas de raios-X e ultrassonografia. Essas comodidades de primeiro mundo estão em manifesto contraste com as condições em que vivemos na cidade da Altamira. (Krautler, 2015)
No que tange ao saneamento básico em Altamira, embora esteja praticamente concluída a infraestrutura de esgoto sanitário e de abastecimento de água previstas, parte essencial das obras, as ligações dos domicílios aos sistemas de água e esgoto, ainda não foram realizadas. Em março deste ano, o MPF ajuizou ação civil pública pedindo a paralisação emergencial do barramento do rio Xingu devido ao não cumprimento da condicionante de implantação de saneamento básico. Conforme o documento, a data para a plena operação dos sistemas de abastecimento de água potável e esgotamento sanitário em todo perímetro urbano altamirense era até julho de 2014, mas sem as ligações, o que se verifica é o agravamento dos problemas ambientais e de saúde pública em decorrência da construção da Usina, com o esgoto – doméstico, comercial e hospitalar – despejado nas ruas, no solo, no rio Xingu e nos igarapés que cortam a área urbana. A ação civil relata o mau cheiro forte quando chove e traz fotos retratando o esgoto escorrendo a céu aberto por toda a cidade, inclusive na rua do IBAMA, juntamente com os urubus. (MPF, 2016)
Pelo novo prazo, emitido pelo IBAMA em novembro de 2015, a Norte Energia tem até setembro de 2016 para que o sistema esteja totalmente concluído e em operação: “(...) fazendo no curto prazo de 6 meses o que não fez, em 1 domicílio, no prazo de 6 anos” (MPF, 2016). No site da empresa, informe de 07/06/2016 afirma que o Hospital Municipal São Rafael já estaria sendo ligado à rede de esgoto do município, tendo iniciado também ligações intradomiciliares de casas, comércios e outros prédios públicos da cidade, em benefício de 17 mil imóveis. A meta seria executar de 350 a 400 ligações intradomiciliares de água e esgoto por dia, livrando os igarapés de Altamira e também o Rio Xingu dos dejetos dessas residências.
44Muito provavelmente, o prazo, mais uma vez, será descumprido, mas é improvável que as obras não sejam concluídas. Assim sendo, a cidade de Altamira estaria prestes a receber um amplo sistema de saneamento sem o qual viveu por anos, porém, como adverte Relatório FGV (Projeto Indicadores de Belo Monte, novembro de 2014), no qual em muito se baseia a ação do MPF (2016), é imprescindível um sistema tarifário específico para a população de baixa renda, seguramente outra batalha a ser travada. Se tudo terminar bem, haverá motivos para satisfação no âmbito ambientalista, pois como afirmou Castro (2014) falta de esgoto é problema ambiental da mesma maneira como é o desmatamento na Amazônia.
45Altamira está entre os municípios que encabeçam a lista dos maiores desmatadores do país, a despeito de toda a mobilização ambientalista na região. Como registra Relatório FGV (2014), grandes obras de infraestrutura são os principais indutores do desmatamento ilegal na Amazônia, em função do crescimento econômico promovido e expansão da lógica mercantil, abertura do território por estradas, ocupações irregulares do território favorecidas pela fiscalização deficiente e baixa regularização fundiária.
46Enfim, é possível que a barbárie esteja em franca vantagem, porém é preciso analisar a totalidade dos fenômenos envolvidos nas políticas/projetos de desenvolvimento, neste sentido Belo Monte nos serviu de ilustração ao que nomearíamos uma sociedade em movimento em torno da construção da Usina desde suas propostas iniciais, num espaço onde avanços políticos-civilizatórios e catástrofe socioambiental convivem todo o tempo.
47Procuramos apontar as contradições de toda política de desenvolvimento baseada na construção de grandes obras de infraestrutura, que promove inegáveis progressos políticos e econômicos e inúmeros problemas sociais e ambientais. Além dos avanços em infraestrutura, valorizamos a possibilidade de ruptura do isolamento político no qual estavam inseridas as populações tradicionais, bem como a capacidade dos movimentos populares em impor freios à dimensão destrutiva do desenvolvimento capitalista. Neste sentido parece-nos mais interessante que populações tradicionais não estejam mais fora do sistema, que tenham se tornado agentes internacionais e que resistam à sua proletarização por meio de processos autotransformadores. E não necessariamente a inserção (o vir para dentro) tem que passar pela proletarização dos de fora, num mundo globalizado, marcado pela ascensão de movimentos ambientalistas, é perfeitamente razoável e bastante civilizado que assim não seja, a despeito da probabilidade alta disto ocorrer. Igualmente, merece destaque a capacidade da mobilização dos trabalhadores na UHE Belo Monte, que aproveitaram a estrutura de oportunidades – regime político democrático, governo progressista, o espaço amazônico e o interesse internacional que desperta, o ambiente de efervescência política com repercussão mundial – para assegurar melhores condições de trabalho, ajudados por movimentos sociais distintos dos movimentos trabalhistas clássicos.
48De todo modo, Castro (2014) está correto ao afirmar não ser possível separar a parte boa da parte ruim do capitalismo, porém, o enredo do desenvolvimento, como salienta Harvey (2004), é bastante complexo, com possibilidades efetivas de saltos qualitativos no âmbito dos movimentos insurgentes e da história político-econômica, sendo tudo que arriscaríamos afirmar acerca das possibilidades que se abrem no interior do próprio modo de produção capitalista dominante. Isto é, não nos parece crível apostas no “fim do capitalismo” a partir da mobilização popular, sob a liderança de movimentos ambientalistas, numa região periférica (o Pará) de um Estado periférico (o Brasil). Ao que tudo indica, o que a luta empreendida contra a Usina pode lograr é a imposição de limites à dimensão barbárie do desenvolvimento. O que não é pouco, ainda mais na periferia do sistema.