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Nas trilhas de Paris, David Harvey e a capital da modernidade

Sur les traces de Paris, David Harvey et la capitale de la modernité
On the tracks of Paris, David Harvey and the capital of modernity
Tadeu Alencar Arrais

Résumés

Paris, capitale de la modernité peut être lu comme une sorte de synthèse des travaux de David Harvey car il réunit deux caractéristiques remarquables de sa trajectoire intellectuelle. La première a trait à l'intérêt pour les études urbaines, en consacrant une tradition qui remonte à l'oeuvre littéraire La justice sociale et la ville (Harvey, 1980). La deuxième, c’est la préoccupation d'expliquer les relations entre le capital et la production de l'espace. Le capital, en Harvey, n’est jamais une notion abstraite. Il se déplace et, à chaque fois, transforme les formes et les contenus de l'espace. Quand il qualifie Paris comme “la capitale de la modernité”, le géographe fait de la ville l’icône de cette période historique, résultant à l’élaboration d'une cartographie exhaustive des conflits propres de la production de l’espace urbain. De les traces laissées par l’auteur, nous étudions la constitution de la zone urbaine de la capitale française pour, peu de temps après, analyser la façon de voir la ville de Honoré de Balzac (de 1799 à 1850) et comment intervenir dans la ville de Eugène Haussmann (1809 -1891). Ensuite, nous parlerons de la pertinence de l’approche de la ville proposé par David Harvey a partir de ce qu’on qualifie comme mémoire politique du paysage.

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Texte intégral

1Paris, capital da modernidade é, certamente, um dos livros mais expressivos do geógrafo David Harvey. Um livro que foge aos enquadramentos disciplinares, seja da geografia, de maneira específica, seja das ciências humanas, de maneira geral. As pistas para decifrar o processo de produção do espaço no capitalismo são reunidas, na narrativa do autor, no sítio urbano de Paris. A cartografia dessas mudanças no capitalismo do século XIX, que reverberavam em Paris, é o pano de fundo para o estudo da geografia urbana e da modernidade. Como o espaço, em David Harvey, não é algo passivo, optamos por uma breve descrição do sitio urbano da Paris medieval. A paisagem urbana herdada propriamente dita. Em seguida, discutimos as duas principais fontes que subsidiaram as duas primeiras partes do livro e encerramos com uma abordagem, por assim dizer, metodológica, adjetivada de memória política da paisagem.

O sítio político

O subsolo de Paris, se o olhar pudesse penetrar sua superfície, teria o aspecto de uma madrepérola colossal. Uma esponja não tem mais buracos e sinuosidades do que o torrão de terra de seis léguas de circunferência sobre a qual repousa a antiga grande cidade. Sem falar nas catacumbas, que são subterrâneos à parte, sem falar na inextrincável rede de canos de gás, sem contar o vasto sistema tubular de distribuição de água potável, que vai a todos os chafarizes, só os esgotos formam sob as duas margens uma prodigiosa rede tenebrosa; labirinto que tem por fio seu declive.

Victor Hugo, Os miseráveis, 2014, p. 1308.

2O mapa Paris vers 1530: plan dit "d'Arnoullet" (Arnoullet, 1906) apresenta algo que se repete em muitos outros mapas que representam a cidade entre os séculos XVI e XVIII. A representação cartográfica não deixa dúvidas da importância do rio Sena na configuração do sítio urbano da capital francesa. O exagero na escala da calha é proporcional à importância do rio na morfologia urbana da capital. O mapa é uma síntese da Paris medieval: densa, com os grupos de muralhas desenhadas que operam uma separação funcional entre a paisagem urbana e a paisagem rural. No exterior da muralha, reconhecemos áreas de cultivo, pântanos e florestas, moinhos, castelos, fortificações e algumas igrejas. No intramuros, sempre em destaque, a Île de la Cité, além de outras duas ilhas aluvionais, tendo em uma de suas extremidades a Catedral de Notre-Dame de Paris.

  • 1 A divisão administrativa em arrondissements data do final do século XVIII, quando Paris foi dividid (...)

3Os meandros do Sena, historicamente, não apenas desenharam a morfologia urbana de Paris, mas também favoreceram uma rede de proteção e circulação interna e externa. Às suas margens, construíram portos para circulação de pessoas e mercadorias, cujo exemplo mais notável é a Place de Grève, atualmente Place Hotel de Ville, área que se constituiu em ponto de carga e descarga de mercadorias e concentração de trabalhadores. Os diferentes círculos de muralhas e os meandros do Sena, portanto, formavam uma simbiose só completamente desfeita a partir do terceiro quartel do século XIX. Não é por acaso que Paris seja menos conhecida pelos seus arrondissements e mais pela divisão entre margem esquerda e margem direita.1

4A história da ocupação do sítio urbano deve ser lida a partir do incremento populacional que seguiu, até os primeiros quartéis do século XIX, o modelo tradicional de urbanização medieval. Na proporção em que se expandia a população, novos muros foram construídos. Nada menos que cinco muros e/ou fortificações, desde a tradicional muralha galo-romana, foram construídos ao redor de Paris (Brès & Sanjuan, 2012). A descrição de Le Goff (1998, p. 71) ajuda a compreender a morfologia dessa cidade:

A cidade da Idade Média é um espaço fechado. A muralha a define. Penetra-se nela por portas e nela se caminha por ruas infernais que, felizmente, desembocam em praças paradisíacas. Ela é guarnecida por torres, torres das igrejas, das casas dos ricos e da muralha que a cerca.

5Concentrada em um pequeno espaço, o controle do tempo e o controle da circulação eram as chaves desse modelo de urbanização. Mumford (1998) lembra que, mesmo nas maiores cidades medievais, a área ocupada não se expandia em faixa superior a oitocentos metros a partir do centro. No caso de Paris, no entanto, mesmo no século XVII, essa área ultrapassava um raio de um quilômetro a partir da Île de la Cité. A forma de ocupação vertical resultou da utilização multifuncional do espaço para habitação, produção e comércio.

6Desde muito cedo Paris conviveu com uma espécie de verticalização. As residências verticais de três, quatro, cinco ou mesmo seis pavimentos predominavam na paisagem da capital. Seu uso por diferentes frações de classes era outra característica. A cada andar, partindo do primeiro até o sótão, o espaço não apenas era mais denso, como também mais precário e, portanto, habitado pelos inquilinos mais pobres. Nem mesmo as primeiras pontes do Sena escaparam da presença de casebres. Essa Paris medieval, frequentemente, é retratada por autores como composta por três partes: a cité, sítio da ocupação primitiva e função portuária, a université, área tradicional de estudantes, no Quartier Latin, e a ville, na margem direita do Sena (Benevolo, 2005).

Figura 1 - Extensão da área construída e as muralhas de Paris.

Figura 1 - Extensão da área construída e as muralhas de Paris.

Fonte: Brès & Sanjuan (2012)

7Mas o sítio urbano de Paris apresenta outras particularidades. A densa Paris, desde muito cedo, guardou segredos em seu subsolo. A construção da cidade, cujos monumentos atestam a riqueza do trabalho de operários e artesãos, mas também a demanda por materiais de construção, indica a importância da extração mineral – calcário, argila, areia etc. O Atlas souterrain de la ville de Paris (Fourcy et al., 1859) localiza as faixas de exploração mineral, concentradas na margem esquerda do Sena. A exploração das pedreiras subterrâneas, em virtude dos perigos de desabamento, foi proibida em 1776, mesmo período em que foi criada a Administração Geral das Galerias Subterrâneas.

Figura 2 - Evolução da população de Paris

Figura 2 - Evolução da população de Paris

Fonte: Dados organizados pelo autor a partir de Combeau (2011).

8O incremento demográfico ao longo do século XIX foi extraordinário (Figura 2). A partir do terceiro quartel do século XIX, a cidade se expande horizontalmente. Estatísticas publicadas por Cochin (1864) sobre a população e a indústria de Paris informam uma população de 1,7 milhões de habitantes em 1864. Impressiona, no entanto, a informação de Cochin (1864) sobre a existência de 55.000 maisons, o que resultou em uma densidade de 35 habitantes por maison no ano de 1864. As partes centrais de Paris, especialmente os arrondessenments 1º, 2º, 4º, 3º e 6º, eram as mais povoadas. A aproximadamente 1,8 quilômetro da margem direita do Sena, no sentido Norte, até a Praça da República, assim como uma área de aproximadamente 1,2 quilômetro a partir da Praça de la Concorde até o Teatro da Ópera, o que incluía o quarteirão do mercado Les Halles, localizavam-se as áreas mais densas. Na margem esquerda, os arrondessenments 5º, 6º e 7º cobriam uma área linear às margens do Sena, seguindo até aproximadamente dois quilômetros no sentido sul, na direção da Gare Montparmasse, localizada no 14º arrondessenment.

9É suficiente, para comprovar a predominância da estrutura vertical das edificações, um olhar sobre as fotos de Charles Marville. Nelas, o predomínio para edificações verticais de quatro a seis andares – modelo da casa burguesa ou mesmo dos alojamentos – foi descrito pela literatura. Impressionam os registros do Cour de la Bièvre, afluente do Sena, que deságua em sua margem esquerda. As fotos do 13º arrondessenment não deixam dúvidas quanto à situação geral do saneamento, da circulação e da habitação: ruas estreitas e irregulares, vielas, pouco sol, calçamento de pedra, esgoto a céu aberto, edifícios sem recuo, cortiços, pensões, pequenas indústrias de panificação, curtumes etc., e, é claro, um turbilhão de gente a flanar pela cidade.

Figura 3 - Margens do rio Bièvre nas ruas Gobelins e Pont-aux-Biches, Paris

Figura 3 - Margens do rio Bièvre nas ruas Gobelins e Pont-aux-Biches, Paris

Fonte: Marville (sem data). Disponível em: <http://chanvrerie.net/​paris/​images/​marville-ile-de-la-cite/​>.

10O século XIX, que anuncia a modernidade, herda essa estrutura urbana cuja densidade, fragmentação espacial e a contínua necessidade de recursos naturais estão entre suas principais características. Paris, centro da produção da França. Paris, espelho da Europa. Paris, em constante reconstrução por Republicanos e Monarquistas, tem um preço a pagar. Imagine-se, por exemplo, a demanda por lenha nos rigorosos invernos para se aquecer e cozinhar. Pai Goriot, personagem de Balzac, em seu progressivo declínio econômico, não apenas solicita passar para o segundo andar da pensão Vauquer, medida para economizar dividendos para sua mesquinha prole, como também deixa de acender a lareira em seus aposentos durante o inverno.

11Victor Hugo, em Os miseráveis, descreve de maneira majestosa o que chamou de “intestino de Paris”. É pelas vísceras da cidade que Jean Valjean salva Marius, depois do insucesso da barricada na Rue de la Chanvrerie. Victor Hugo ensina como o sítio urbano formado por terra, lama, ladeiras, vielas, esgotos subterrâneos pode servir para propósitos políticos. O forçado Jean Valjean conhece, como poucos, essa Paris do século XIX que oscila, a cada barricada, entre o desejo pela República e a nostalgia da Monarquia.

Os personagens da modernidade

  • 2 As ilustrações de Honoré Daumier são abundantes e traduzem a paisagem social em que transitaram tan (...)

12A pesquisa de David Harvey (2015) é rica em personagens que auxiliam o geógrafo a decifrar os segredos de Paris. Os financistas Péreires, o fotógrafo Charles Marville, escritores como Émile Zola, Victor Hugo, Gustave Flaubert e Charles Baudelaire são alguns exemplos. Não são apenas memórias dos costumes que os personagens, agora fontes, nos oferecem. São memórias de uma paisagem em transição. Memórias do momento e do espaço de constituição da modernidade. Entre tantos personagens, se destaca a figura de Honoré Daumier (1808-1879). O ilustrador francês ocupou-se em demonstrar, em imagens satíricas, o universo político parisiense, sempre com um ácido tratamento para a monarquia, tanto quanto para a burguesia.2 Segundo Hussey (2011, p. 292), “Daumier era engraçado e mordaz, e, não menos que Balzac, resumia a época em seus desenhos”. Não obstante David Harvey (2015) utilize Daumier como ícone visual, é em Honoré de Balzac (1799-1850) e Eugène Haussmann (1809-1891) que o geógrafo reconhece que as contradições e rupturas da modernidade são reveladas de forma mais explícita. Trata-se de síntese de uma época de continuidades e rupturas que são reveladas na pena do primeiro e no “compasso” do segundo.

Esse aspecto da Paris moral prova que a Paris física

não poderia ser diferente do que é.

Honoré de Balzac, A menina dos olhos de ouro, p. 351.

13Não é difícil compreender as razões pelas quais David Harvey (2015) elegeu Balzac como um dos principais intérpretes da modernidade. Segundo Harvey (2015, p. 44):

Sustentarei que a suprema realização de Balzac foi dissecar e representar as forças sociais onipresentes no útero da sociedade burguesa. Ao desmistificar a cidade e os mitos da modernidade com a qual ela foi permeada, ele abriu novas perspectivas não somente sobre o que a cidade era, mas também sobre o que ela poderia ser.

  • 3 Para mais esclarecimentos sobre as obras de Honoré de Balzac, bem como detalhes de sua biografia, c (...)

14O plano da obra de Balzac, descrito como A comédia humana, é composto, considerando a última tradução para o português, por dezessete volumes, dos quais onze são dedicados às cenas da vida privada, da vida provinciana e da vida parisiense.3 No “Prefácio” de A comédia humana, Balzac deixa claro seu objetivo: “[...] fazer o inventário dos vícios e virtudes” da sociedade francesa (Balzac, 2013, p. 108). Mas quais características dessa fértil obra ajudam a compreender a capital da modernidade?

15A paisagem de Paris pode ser decifrada a partir de uma lógica de comunicação dos personagens balzaquianos com os fragmentos da cidade. É possível identificar tanto uma fisionomia dos tipos urbanos quanto uma fisionomia das paisagens urbanas na obra de Balzac. A imagem gráfica da casa burguesa, das pensões, das ruas, dos bairros, assim como da província, conduz o leitor, a todo o momento, a imaginar a totalidade da vida social em Paris. As ruas possuem qualidades humanas, tanto quanto revelam os vícios da sociedade burguesa. Benjamin (2006, p. 51) escreveu que Balzac “foi o primeiro a falar das ruínas da burguesia”. Balzac parece ser fascinado por uma espécie de topografia social, motivo pelo qual parte significativa do seu enredo seja construída na emergente cena pública burguesa. Essa é, de fato, uma das principais características da cidade burguesa que tornou imperiosa a apropriação do espaço público como forma de se fazer ver e de se fazer ouvir por meio do consumo de mercadorias e de lugares. Os códigos e os rituais dessa sociedade criaram um tipo específico de civilidade. Civilidade, como nos ensinou Sennet (1998), implica forjar laços sociais, mesmo quando considerando os outros como estranhos, fato comum nas grandes aglomerações urbanas do século XIX. As ruas, os salões, os cruzamentos, os cafés são locais privilegiados nos enredos de Balzac. Nas primeiras páginas de Ferragus ou o chefe dos devoradores encontramos extraordinários exemplos dessa topografia: “A Rue Traversiére Saint-Honoré não é, acaso, uma rua de infâmia? Há nela pequenas casas de duas aberturas onde se encontram a cada andar crimes, vícios e misérias” (Balzac, 2013b, p. 41).

16Nenhum bairro de Paris é mais horrível nem, digamos, mais desconhecido” (Balzac, 2002, p. 30-31) que o bairro da pensão Vauquer, situada entre o Quartier Latin e o Faubourg Saint-Marceau, escreveu em O pai Goriot. A detalhada descrição da pensão apenas perde para a descrição da fisionomia dos pensionistas. Como espaço social, o enredo se desenvolve a partir de encontros. A pensão é a materialização de uma Paris por onde gravitam as aspirações de ascendência social de vários tipos humanos: velhos, viúvas, solteironas, jovens, condenados etc. O próprio Eugène de Rastignac, estudante de direito, é um migrante provinciano. O que é interessante nessa novela, tanto quando em Ferragus e também em A menina dos olhos de ouro é a incursão diária que os personagens fazem pela cidade. Há uma visão clara da fragmentação espacial e social da cidade, o que coaduna com a visão de Hussey (2011), para quem o universo de Balzac em Paris gravita entre o Faubourg Saint-Marceau, região pobre localizada na margem esquerda, o Faubourg Saint-Honoré, área de negociantes e de comércio, e o Faubourg Saint-Germain, da velha aristocracia.

17A ambição pela mobilidade social implica, de igual maneira, ampliar a mobilidade espacial, inclusive no momento da morte ou mesmo nos momentos de lazer, traduzidos, por exemplo, no veraneio no campo. A descrição dos tipos humanos em A menina dos olhos de ouro coloca em evidência essa perspectiva de análise.

O operário que morre velho aos trinta anos, com estômago curtido pelas doses progressivas do álcool, talvez seja, no dizer de certos filósofos bem instalados, mais feliz que é o armarinheiro. Um morre de uma vez só e o outro no varejo. (Balzac, 2013c, p. 341-342).

18Por seu turno, em que consistem os desejos do burguês?

O sabre da Guarda Nacional, um cozido invariável, um lugar decente no Père-Lachaise, e, para a velhice, um pouco de ouro, legitimamente ganho. A segunda- feira dele é o domingo. Seu repouso é o passeio ao campo, num carro de aluguel. Passeio durante o qual mulher e o filho engolem alegremente a poeira ou se assam ao sol. (Balzac, 2013c, p. 343).

19Ainda encontramos uma descrição da realidade urbana burguesa:

O ar das casas em que vive a maior parte dos burgueses é infecto, a atmosfera das ruas cospe miasmas cruéis nas peças interiores das lojas onde o ar se rarefaz; mas, além dessa pestilência, os quarenta mil prédios dessa grande cidade mergulham seus alicerces em imundícies que o poder público não quis ainda seriamente cercar de muralhas que impeçam a lama mais fétida de filtrar-se através do solo, de envenenar os poços e de fazer perdurar subterraneamente em Lutécia seu nome célebre. Metade de Paris jaz entre exalações pútridas dos pátios das ruas e dos esgotos. (Balzac, 2013c, p. 349).

20A ironia, a ilusão da vida do pequeno-burguês, como sugerem inúmeras ilustrações de Honoré Daumier, ganha vida na escrita de Balzac. Ao que parece, os burgueses ainda procuravam se adaptar aos elementos da modernidade, e o romancista reconhece nisso um apelo pela vaidade. A moral burguesa é resumida na ambição desmedida que frequenta a maior parte dos primeiros volumes de A comédia humana. Renda, soldo, pensão vitalícia estão entre as principais preocupações do universo balzaquiano. Seus personagens, talvez porque angustiados com a turbulenta história política francesa, se preocupam demasiadamente com o futuro financeiro. Aquela transitoriedade, típica da modernidade e evidenciada por Berman (1986), justifica o temor diante do futuro. E Paris pressiona os personagens balzaquianos cotidianamente. Mas a ilusão de frequentar salões, de passear nas carruagens lustrosas, de pagar por um corte alinhado nos alfaiates, de um bom chapéu, do consumo de artigos da última moda adquiridos na Champs-Élysées, de um Camarote na Ópera oprime homens e mulheres. Em Paris tudo é máscara.

  • 4 Os habitantes da província, a julgar pelos relatos iniciais em O ventre de Paris, de Émile Zola, de (...)

21Essa Paris encontra-se em constante transformação. A representação da cidade como centro de realizações e mesmo centro da perversão de uma sociabilidade primitiva, como nos ensinou Willians (1998), parece ser compartilhada por Balzac. A oposição entre cidade e campo, província e metrópole, indica a percepção hegemônica de Paris: lugar de consumo, de desmedidas ambições, do desfrute de homens e mulheres que cultuam a aparência. Paris, diante da província estagnada, marcada pelo imobilismo e pela monotonia.4 O jovem estudante provinciano Eugène de Rastignac, a duras penas, percebeu como se movimentar nessa capital. O movimento não é apenas horizontal, mas, sobretudo, vertical, marcado pela ascendência social. “Suas ilusões de infância, suas ideias provincianas haviam desaparecido” (Rónai, 2012, p. 54). Paris, centro do mundo, celeiro de realizações técnicas, abrigo de Exposições Universais que não têm outro motivo senão celebrar o mundo da mercadoria. Todos querem conhecer Paris. Querem consumir Paris. Essa visão de Paris como centro de realizações e de liberdade dos valores provincianos é compartilhada por Emma, em Madame Bovary, personagem de Gustave Flaubert. A jovem desposada pelo provinciano Charles sonha com os fascínios de Paris a ponto de, a partir de um mapa, subir os bulevares e desejar o mundo do consumo reservado aos burgueses (Flaubert, 2011).

22Mas essa Paris, aos olhos de Balzac, como descreveu Rónoi (2012), não tem nada de idílico. É mais “Cidade-Chama” do que “Cidade-Luz”.

A Paris de Balzac, para dizer a verdade, pouco tem de idílico. O seu brilho lembra o da chama que atrai insetos noturnos para queimá-los. Se os insetos pudessem refletir! Se olhassem um instante sequer o chão, cheio de asas queimadas, de corpos carbonizados de seus semelhantes! Eles, porém, só sabem olhar para a luz, só têm uma vontade, chegarem-se a ela o mais possível, aquecerem-se a ela. (Rónai, 2012, p.142).

23Também a versão do anonimato da grande cidade é, frequentemente, encontrada: “Deixe os parisienses com os seus pequenos casos” (Balzac, 2013b, p. 46, grifo do autor), advertiu o pedreiro, diante de um Augusto de Maulicour obcecado por descobrir os segredos da jovem senhora. Esse é o caráter da modernidade presente em uma grande cidade como Paris. Não se trata, apenas, da possibilidade de flanar em Paris, verbo bastante utilizado na literatura francesa do século XIX. Flanar é apropriar-se visualmente das cenas públicas, dos cafés, dos restaurantes, das galerias. É estar preparado para refugiar-se diante das chuvas, imagem clássica que sempre acompanhou o cotidiano dos parisienses.

O pedestre em Paris é então obrigado a deter-se imediatamente, a refugiar-se numa loja, ou num café, se é bastante rico para pagar a forçada hospitalidade, ou, conforme a urgência, sob uma porta, asilo da gente pobre mal vestida. (Balzac, 2013b, p. 64).

24A fisionomia espacial de Paris muda a todo o momento. Em Ferragus, o bisbilhoteiro se vê diante da “febre de construções” (Balzac, 2013b, p.73) que atormenta toda cidade. O movimento da cidade, indicado pelo fervilhão da construção civil, revela o aspecto espacial da modernidade parisiense, que é, justamente, remover aquele recente passado que Balzac eternizou em suas obras.

Figura 4 - Vista do Père-Lachaise. À esquerda, monumento do General Foy, 1829.

Figura 4 - Vista do Père-Lachaise. À esquerda, monumento do General Foy, 1829.

Fonte: Bibliothèque Nationale de France (B)

25A cena que se segue ao enterro do pai Goriot é uma das mais lembradas na obra de Balzac. Ao olhar da pequena colina na direção dos meandros do Sena, o então estudante de direito Eugène de Rastignac, agora não mais debutante diante da cruel burguesia, desabafa: “Agora, é entre nós dois!”. O que a cena mais uma vez revela é uma imagem topográfica de Paris tão característica nas obras de Balzac. A perspectiva de vista da cidade a partir do cemitério Père-Lachaise é reveladora das hierarquias sociais que o jovem ansiava por vencer. Sem dúvida, como relatou Balzac em A casa Nucingen (Balzac, 2013d), Rastignac venceu. “Agora, é entre nós dois!” também poderia, perfeitamente, constituir-se em epígrafe inicial das memórias do Barão de Haussmann, que assume, em 1853, a tarefa de domar a morfologia espacial da velha Paris.

26-Eugène Haussmann (1809-1891)

Não se deslocam 350.000  pessoas e os estabelecimentos industriais ou comerciais explorados por muitas delas sem ocasionar  uma mudança geral,  da qual as massas, não podendo avaliar a indispensável necessidade, se cansam rapidamente, principalmente quando isto se prolonga durante uma série de 17 anos!

Eugène Haussman, Mémoires du Baron Haussmann, 1890, p. 458.

  • 5 Carlos Luís Napoleão foi eleito pelo voto, inaugurando a II República Francesa, em 1848. Em 1851, i (...)

27Engels (1979) talvez tenha sido um dos primeiros autores a compreender a natureza das transformações efetuadas por Eugène Haussmann, quando este assume, sob a tutela de Napoleão III, a prefeitura de Paris, em 1853.5 Sua análise se desenvolve a partir de três premissas. A primeira é que a burguesia resolve a questão da habitação a partir do deslocamento espacial. A segunda é que esse tipo de estratégia, além fragmentar as classes, capitaliza os segmentos da burguesia. A terceira premissa é que, por detrás do embelezamento e alargamento das ruas, residiria uma estratégia para conter as barricadas. Engels (1979, p. 48) não circunscreve sua análise apenas a Paris, encontrando evidências desse processo em Londres, Manchester, Liverpool, Berlim e Viena. “Este método tem um nome: Haussmann”.

28Mas em que consistiram as alterações urbanas efetivadas, entre 1853 e 1870, por Eugène Haussmann?

29Jones (2013) argumenta que a reconstrução de Paris entre 1853 e 1870 aconteceu “de dentro para fora”. O que isso significa? Em primeiro lugar que as transformações na ordem urbana não atenderam, apenas, às demandas internas da cidade. A cidade moderna é uma cidade aberta ao mundo. Não é por acaso que Hobsbawm (1988) localize a era do capital entre 1848 e 1875. A era do capital é a era de Londres. É a era de Paris. Na escala regional, era imperioso favorecer a fluidez. Reforçar a centralidade de Paris. As ferrovias haviam, definitivamente, ultrapassado as muralhas. Não é por acaso que Haussmann tenha reformado as principais estações ferroviárias, integrando-as aos grandes bulevares, cujos exemplos mais notáveis são a Gare de l´Est e a Gare de Montparnasse. Em segundo lugar, era preciso garantir as condições para a produção da circulação das mercadorias, o que implicou, especialmente, criar as condições técnicas para circulação e consumo do capital. A técnica, traduzida na utilização do ferro e na iluminação dos bulevares, ajudou a adequar o tempo e o espaço ao novo regime de consumo. A fórmula de Harvey (2011), que nos ensina que a circulação de capital implica movimento espacial, se encaixa perfeitamente no quadro parisiense dos últimos quarteis do século XIX. Mas como fazer isso?

30Entre as condições materiais, particulares do momento histórico, o conjunto de obras ajudaria, para usar a expressão de Harvey (2015), a absorver os excedentes de trabalho e capital. Harvey (2015) assinala que, em 1860, nada menos que um quinto da população estava empregado na construção civil. Estatísticas de 1864 publicadas por Cochin (1864) destacam os setores da construção e de alimentos como aqueles com maior número de empregados. Esse é o grande campo de batalha, o canteiro de obras, tão importante quanto conter as barricadas. O desemprego, condição estrutural da velha Paris, traduzido na fome e nas péssimas condições de habitação, era o principal combustível das barricadas. E o método para tal empresa foi a demolição, seguido da reconstrução. As palavras encontradas com mais frequência no terceiro volume das Mémoires du Baron Haussmann são: decreto, utilidade pública, expropriação, prolongamento, alargamento, abertura e demolição. A publicação de vários decretos, como indicados em suas memórias (Haussmann, 1890b), instituindo áreas de utilidade pública para fins de desapropriação, funcionou como um verniz para esconder o processo autoritário que colocou abaixo milhares de residências de operários. Esse momento do desenvolvimento urbano foi adjetivado por Benevolo (2005) de “cidade pós-liberal”, cuja maior característica é a celebração do pacto entre a administração pública e o mercado imobiliário. O objetivo da administração, para recorrer a Harvey (2015), é reduzir as “barreiras espaciais”. Benjamin (2006, p. 49), nas Passagens, assim interpreta esse fato:

A eficiência de Haussmann insere-se no imperialismo napoleônico. Este favorece o capital financeiro. Paris vive o auge da especulação. A atividade especulativa nas bolsas supera as formas do jogo de azar herdadas da sociedade feudal.

Figura 5 - Paris, balanço das demolições, construções e reconstruções entre 1852 e 1860.

Localização

Casas demolidas

Construções e reconstruções

Paris antiga (1852-1860)

4.349

9.617

Paris ampliada (1860-1870)

15.373

34.160

Antes da zona suburbana

3.084

27.890

Após anexação da zona suburbana

4.682

30.820

Total

27.448

102.487

Fonte: Organizado a partir do segundo volume das Mémoires du Baron Haussmann (1890)

31A escala da remoção, mesmo considerando as possíveis imprecisões nas informações, é assustadora. Mais de 350.000 pessoas, a julgar pela ocupação média domiciliar, por assim dizer, “trocaram” de lugar. Um deslocamento espacial. Observa-se, por exemplo, a relação entre construções e reconstruções na Paris antiga, comparando-as ao subúrbio, como indicado na Figura 5. Há, claramente, um deslocamento de habitações e alguns tipos de indústrias para as faixas suburbanas, motivo pelo qual outro anel foi incorporado, via decreto, ao sítio de Paris, formando os vinte arrondissements atuais. Haussmann ambicionava o controle total do espaço, só assim poderia criar novos bairros e sacralizar sua política de deslocamento e fragmentação do espaço urbano. Esse descolamento se justifica, fundamentalmente, pela reformulação do sistema viário, como mostra a Figura 6.

Figura 6 - Principais inclusões no sistema viário na gestão Haussmann, entre 1854 e 1870.

Figura 6 - Principais inclusões no sistema viário na gestão Haussmann, entre 1854 e 1870.

Fonte: Figura redesenhada e reformulada, com inclusões de pontos marcantes, a partir de base extraída de: https://reggiewang.wordpress.com.

32O ritmo frenético da transformação do espaço é um dos pontos singulares da reforma de Paris. Haussmann não inventa o mercado imobiliário, apenas instrumentaliza as condições para a maximização de sua exploração, o que já era um feito enorme, dado que a cidade ainda respirava ares medievais. Da mesma forma, seria ingenuidade supor que Haussmann inventou a segregação residencial. O que muda, e isso é considerável, é, por um lado, a escala e, por outro lado, o protagonismo do Estado a partir de um regime de exceção de leis de uso e regulação do solo urbano. O solo, mais do que nunca, passa a ter valor, e seu controle transformou-se em insumo indispensável para a modernização. Em dezessete anos o solo de Paris foi impermeabilizado e o subsolo cortado por redes de água, esgoto e gás. Entre um ponto X e um ponto Y, ao traçar um bulevar, nada haveria para impedir a modernização. O mapa que mais chama a atenção refere-se ao sistema viário, interligando, por exemplo, a Place l´Étoile, o Les Halle, o Hotel de Ville, o Louvre e a Sorbone. Haussmann (1890b) escreve que a largura média das ruas passou de doze metros para vinte e quatro metros e de treze metros para dezoito metros na área suburbana. Entre as mudanças no sistema viário, interpretada a partir da Figura 6, destacamos:

  • Bulevar Sébastopol, no sentido Norte-Sul. Na margem direita, estende-se até as proximidades da Gare de l´Est, conformando uma das avenidas mais extensas de Paris.

  • A reformulação da rua Rivoli, no sentido Leste-Oeste, na margem direita, interligando a já famosa e também reformulada avenida Champs-Élysées, centro de consumo e, agora, preparado para receber as grandes lojas de departamento.

  • sistema radial concêntrico que lembra uma estrela a partir da Place l´Étoile. As antigas estradas foram realinhadas, tornando o Arco do Triunfo o ponto de convergência de doze avenidas.

33Esse conjunto de alterações na estrutura viária demandou a padronização das fachadas e o alinhamento das quadras. A perspectiva do embelezamento é clara, motivo pelo qual Hall (2009) citou Haussmann como um dos precursores do movimento City Beaufitul. A expansão e o alargamento dos bulevares reduziram o deslocamento no interior da cidade, facilitando, ao mesmo tempo, o consumo, afinal as galerias registravam declínio progressivo. Ainda nas proximidades da Rue de Rivoli, no 4º arrondissement, o mercado Les Halles foi “modernizado”. A vitalidade desse mercado, local em que Émile Zola desenvolve o enredo de O ventre de Paris, é exemplar da natureza das transformações promovidas por Haussmann. O mercado é o ponto de convergência da produção regional (legumes, frutas, peixes, carnes, flores etc.) que alimenta Paris. Florêncio, personagem central da novela de Zola, estranha a transformação do mercado, agora, com sua grande abóboda e suas estruturas de ferro, funcionalmente zoneadas em pavilhões. O estranhamento é uma característica da modernidade.

34Autores como Benjamin (2006), Mumford (1961) e Lefebvre (1969), seguindo a tradição de Engels (1979), argumentam que o primeiro objetivo de Haussmann era conter as barricadas. É possível, muito embora o testemunho de Haussmann não revele isso, que estejam corretos, afinal o Barão foi um disciplinado funcionário do II Império. No entanto, é necessário assinalar que, como indicam Jones (2013) e Harvey (2015), muitas alterações em Paris já estavam em curso. Haussmann não partiu do zero. Não há como negar, entretanto, que sua ampla reconstrução de Paris foi funcional para o capital, em um sentido amplo, uma vez que eliminou as “barreiras espaciais” para a produção, a circulação e o consumo segmentado. Capitalizou, via crédito, os agentes do mercado imobiliário. Como garantia o aparato legal, que permitiu, a um só tempo, aproveitar o excedente de mão de obra, abrir espaço para novas lojas, embelezar a cidade e construir conjuntos de apartamentos confortáveis para determinadas frações da burguesia. Dessa leitura resulta a originalidade da pesquisa de David Harvey. Barricada e barreira espacial são sinônimas. A primeira, edificada com móveis velhos e colchões, para recordar o cenário da luta de Jean Valjan, foram pontuais no sítio urbano, dada a natureza da estratégia de guerrilha. A segunda, apoiada por máquinas, equipamentos modernos e todo aparato institucional, foi, aparentemente, mais eficiente que a primeira, porque construiu uma imagem eficiente da modernidade e tentou apagar, desse modo, a memória das barricadas. Mas a paisagem é também memória política.

A memória política da paisagem

A paisagem geográfica da produção, da troca, da distribuição e do consumo capitalista nunca está em equilíbrio.

David Harvey, O novo imperialismo, p. 84.

35O método utilizado por David Harvey é o que garante o efeito da narrativa. Há três características centrais nessa narrativa. A primeira é a discussão sobre a modernidade. Harvey (2015) critica o poder de persuasão da ideia de ruptura radical da modernidade. A modernidade aparece como o fenômeno de amplitude geográfica que pode ser traduzido, para lembrar Berman (1998), em uma nova experiência do tempo e do espaço. E essa experiência ocorre em um sítio privilegiado (Paris) e em um tempo específico (século XIX, com ênfase nas transformações a partir de 1848). Considerando a questão urbana, Harvey (2015, p. 13) identifica as seguintes mutações:

Antes havia pequenas lojas ao longo de ruas estreitas e tortuosas ou em galerias. Depois vieram as imensas lojas de departamento que tomaram conta dos bulevares. Antes havia o utopismo e o romantismo, depois vieram o gerencialismo prático e o socialismo científico.

36A segunda característica resulta da valorização da relação entre espaço-tempo e memória-paisagem. Essa perspectiva é fundamental na compreensão da última parte do livro Paris, capital da modernidade. Primeiro, a Comuna de Paris, fervendo na planície do Sena. Em seguida, o processo de construção da Basílica de Sacré-Coeur, na colina de Montmartre. Sacré-Coeur, para além de local turístico e de celebração dos ritos do catolicismo, é compreendida como uma espécie de tentativa de reconciliação política, afinal estima-se que mais de duas dezenas de milhares de communards tenham sido mortos. Sem a guilhotina medieval, optou-se pelo fuzilamento. Uma memória política da paisagem da cidade é construída a partir de Sacré-Coeur. Harvey, de fato, para usar uma expressão conhecida, “parece saber onde os mortos estão enterrados”. Paris mais uma vez ardeu em fogo e brasa. O objetivo da Comuna não era simples. Não se tratava mais de uma oposição entre República e Monarquia que motivou as barricadas anteriores. Tratava-se, sim, de uma revolução sem precedentes históricos que pressupôs a institucionalização de novas formas de produzir e distribuir a riqueza social, além de novas formas de participação política. A proposta de autogestão das fábricas e oficinas, da abolição do trabalho noturno e da suspensão do pagamento de aluguéis, para fixar-se em alguns exemplos, objetivamente, desagradava tanto os segmentos simpatizantes da Monarquia quanto os segmentos burgueses associados à República. A modernidade não poderia suportar essa experiência. A chamada Semana Sangrenta pôs fim à primeira tentativa genuína de um governo popular e operário, e a paisagem de Paris, mais uma vez, testemunhou tudo isso. Marx, em seu estudo sobre a Comuna de Paris, bem traduziu o espírito da Paris sitiada:

Paris de M. Thiers não era a verdadeira Paris da “vil multidão”, mas uma Paris fantasma, a Paris dos francfileurs, Paris masculina e feminina dos bulevares, a Paris rica, capitalista; a Paris dourada, a Paris ociosa, que agora corria em tropel para Versalhes, Saint-Denis, Rueil e Saint-Germain, com seus lacaios, seus escroques, sua boemia literária e suas meretrizes. A Paris para qual a guerra civil não era senão um divertido passatempo, a que acompanhava as batalhas por meio de binóculos, contanto os tiros de canhão e jurando por sua própria honra e a de suas prostitutas que aquele espetáculo era muito melhor do que os que representavam em Porte-Saint-Martin. (Marx, 1999, p.110).

37A terceira característica resulta da preocupação com a produção do espaço a partir das determinações do capital. Em Harvey, o capital e o espaço não são noções abstratas. Em tradição que remonta ao livro Os limites do capital (Harvey, 2013), o geógrafo indica como os excedentes de capital se movem e organizam o espaço da cidade. A partir de sua ação totalizante, o capital fragmenta a cidade. A cidade, ela própria, é vista como um artefato de consumo. Paris é o exemplo do movimento de constante expansão e acomodação do capital. Todo movimento da construção civil, movida por obras no solo e no subsolo, absorveu os excedentes de mão de obra e capital, o que reordenou, totalmente, as relações espaciais na cidade. A ampliação das relações espaciais na cidade foi proporcional à eliminação das barreiras espaciais do antigo modelo de urbanização. Decretos, desapropriações, remoções, demolições, alargamentos de vias públicas foram os métodos utilizados para eliminar as barreiras espaciais para forjar um novo modelo de urbanização patrocinado pelo forte braço do Estado.

38Essas três características permitem a compreensão histórica e geográfica da totalidade de Paris. Cada fragmento da paisagem urbana (Les Halles, Sancré-Couer, l´Ópera, Place l´Étoile, Rue de Rivoli, Père-Lachaise, Muro dos Confederados, Gare de l´Est etc.) é portador, para utilizar a expressão de Santos (1998), de rugosidades que permitem decifrar a totalidade da cidade. Cada evento (barricadas de 1830 e 1848, Restauração, II República, 18 de Brumário, Exposição Universal, Semana Sangrenta etc.) é portador de interesses que convergem, de algum modo, para cristalizar no sítio urbano o aspecto da transitoriedade e do conflito. Cada personagem (escritores, pintores, banqueiros, pequenos burgueses, operários, artesãos, militares, comerciantes etc.), por viver nos fragmentos e compartilhar os eventos políticos, desenvolve uma imaginação política sobre a capital da modernidade. O que Harvey oferece é uma trilha, um caminho, um método para que possamos reunir fragmentos, eventos e personagens em uma totalidade chamada cidade. A paisagem, em Harvey, não é outra coisa senão a acumulação de tempos políticos, motivo pelo qual o geógrafo alerta a todos que as análises unidimensionais do fenômeno urbano não permitem uma leitura da totalidade da experiência urbana.

Considerações finais

39Em 1889 ocorreu, em Paris, mais uma Exposição Universal. Ao contrário das demais exposições sediadas pela capital, essa tinha um motivo muito especial: celebrar os 100 anos da Revolução Francesa. Para tanto, inaugurou-se, no Campo de Marte, um monumento que ficaria mais conhecido que a própria Revolução Francesa: uma torre de ferro de mais de trezentos metros de altura. Esse evento não mereceu a atenção de David Harvey. O monumento mais visitado de Paris transformou-se, sem dúvida, no maior ícone da modernidade. Miniaturas desse souvenir parisiense, fabricado na China, são comercializadas na base da torre por migrantes africanos. Se Sancré-Cauer pretendeu uma espécie de reconciliação com o passado, a Torre Eiffel, celebrando a técnica e a República, mirou em um futuro de alegria e cosmopolitismo.

Figura 7 - Panorama da Exposição Universal de 1889

Figura 7 - Panorama da Exposição Universal de 1889

Fonte: Bibliothèque Nationale de France (1889)

40Festiva. Tranquila. Colorida. A Figura 7, do final do século XIX, apresenta uma Paris totalmente adaptada ao mundo da mercadoria. Benjamin (2006, p. 43) estava certo ao escrever que as “Exposições universais são lugares de peregrinação ao fetiche da mercadoria”. Mas nada na capital da modernidade pode ser tranquilo. A transitoriedade é uma característica fundante da modernidade. A Bela Époque apenas prenunciou mais um século de tumultos cujo ápice foi a ocupação nazista. Menos de três décadas após Adolf Hitler regozijar-se diante da Torre Eifel e de uma Champs-Élysées deserta, as barricadas de 1968 reviveram uma tradição secular. A jovem Torre Eiffel testemunhou tudo isso e continua a oferecer uma visão de 360º de Paris. Podemos ver isso de várias formas. Uma é como o próprio turista, registrando, em seu smartfhone, a imagem oblíqua da Catedral de Notre-Dame e dos espigões de La Défense, os meandros do Sena e os bulevares ladeados por árvores. Um selfie, propriamente dito, com Paris de testemunha. Podemos, também, tentar remover as camadas da paisagem e perceber que aspectos da Paris medieval e da Paris moderna ainda sobrevivem nessa paisagem híbrida. Um sítio urbano denso em história e geografia, cujas maiores testemunhas são Honoré de Balzac, Charles Boudelaire, Émile Zola, Victor Hugo, Honoré Daumier, Charles Merville, Eugène Haussmann, operários e operárias, cortesãs, communards etc. Mas não há melhor testemunha de toda essa história que o Sena, com sua calha magra, transportando, ao longo dos séculos, sedimentos, vinho, madeira, cereais, esgotos e muitos corpos. O Sena meandra Paris. É seu eterno flâneur e testemunha ativa da construção da memória política da capital da modernidade.

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Bibliographie

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Notes

1 A divisão administrativa em arrondissements data do final do século XVIII, quando Paris foi dividida em doze arrondissements. Em1860, na gestão do Barão de Haussmann, mais oito arrondissements foram criados, o que resultou na ampliação do sítio da capital francesa.

2 As ilustrações de Honoré Daumier são abundantes e traduzem a paisagem social em que transitaram tanto Balzac quanto Haussmann. O catálogo de suas obras está disponível em: <http://www.daumier-register.org/login.php?startpage>. Acesso em: 20 jun. 2015.

3 Para mais esclarecimentos sobre as obras de Honoré de Balzac, bem como detalhes de sua biografia, consultar Balzac e a Comédia humana, de Paulo Rónai (2012).

4 Os habitantes da província, a julgar pelos relatos iniciais em O ventre de Paris, de Émile Zola, desenvolvem uma representação bastante negativa de Paris. A representação da senhora François, camponesa viúva, que se desloca de Nanterre todos os dias para comercializar seus produtos no Les Halles, é exemplar: “Nunca a senhora François falava de Paris, que não fosse com ironia e desdém; tratava-a como se fora uma cidade que ficasse muito longe, e que lhe pareceria inteiramente ridícula e desprezível, em que ela só poria os pés à noite” (Zola, 1956, p. 21).

5 Carlos Luís Napoleão foi eleito pelo voto, inaugurando a II República Francesa, em 1848. Em 1851, impedido de candidatar-se em nova eleição em virtude das normas constitucionais, protagoniza um golpe de Estado, transformando-se no Imperador Napoleão III. É o fim da II República e início do II Império, que dura até 1870, quando se inicia a III República. A análise das circunstâncias políticas do golpe a partir dos pactos entre burguesia e campesinato em detrimento dos interesses do proletariado, além dos aspectos ligados ao culto da tradição relacionados ao personalismo de Napoleão III foram objeto de estudo de K. Marx, em O 18 Brumário de Luis Bonaparte (Marx, 2008).

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Table des illustrations

Titre Figura 1 - Extensão da área construída e as muralhas de Paris.
Crédits Fonte: Brès & Sanjuan (2012)
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/confins/docannexe/image/10942/img-1.png
Fichier image/png, 1,3M
Titre Figura 2 - Evolução da população de Paris
Crédits Fonte: Dados organizados pelo autor a partir de Combeau (2011).
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/confins/docannexe/image/10942/img-2.png
Fichier image/png, 17k
Titre Figura 3 - Margens do rio Bièvre nas ruas Gobelins e Pont-aux-Biches, Paris
Crédits Fonte: Marville (sem data). Disponível em: <http://chanvrerie.net/​paris/​images/​marville-ile-de-la-cite/​>.
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/confins/docannexe/image/10942/img-3.png
Fichier image/png, 1,4M
Titre Figura 4 - Vista do Père-Lachaise. À esquerda, monumento do General Foy, 1829.
Crédits Fonte: Bibliothèque Nationale de France (B)
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/confins/docannexe/image/10942/img-4.png
Fichier image/png, 2,3M
Titre Figura 6 - Principais inclusões no sistema viário na gestão Haussmann, entre 1854 e 1870.
Crédits Fonte: Figura redesenhada e reformulada, com inclusões de pontos marcantes, a partir de base extraída de: https://reggiewang.wordpress.com.
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/confins/docannexe/image/10942/img-5.jpg
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Titre Figura 7 - Panorama da Exposição Universal de 1889
Crédits Fonte: Bibliothèque Nationale de France (1889)
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Pour citer cet article

Référence électronique

Tadeu Alencar Arrais, « Nas trilhas de Paris, David Harvey e a capital da modernidade »Confins [En ligne], 27 | 2016, mis en ligne le 19 juillet 2016, consulté le 09 décembre 2024. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/confins/10942 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/confins.10942

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Auteur

Tadeu Alencar Arrais

UFG, Universidade Federal de Goiás, tadeuarraisufg@gmail.com

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