1Parte de políticas públicas do poder federal brasileiro, o Programa Nacional de Uso e Produção do Biodiesel (PNPB) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), promoveram diversas dinâmicas no sertão baiano. Este trabalho teve por objetivo analisar as contradições existentes no incentivo do governo à produção de alimentos e à produção de biodiesel no município baiano de Morro do Chapéu, entre 2007 e 2012. Neste período, o de maior influência dos programas públicos na região, foi possível verificar os efeitos dos programas nos processos territoriais do município. Com os resultados aqui apresentados, espera-se contribuir para uma lacuna de pesquisas, ou seja, os resultados de programas implantados pelo governo federal como políticas públicas e sua influência na melhoria de qualidade de vida de populações carentes, por meio do aumento de emprego e renda.
2A escolha da área de análise se deu porque Morro do Chapéu integra a principal região produtora de mamona do Brasil, cultura que se tornou um dos símbolos do favorecimento da agricultura familiar nordestina na ocasião do lançamento do PNPB. A sede da Cooperativa de Produção e Comercialização da Agricultura Familiar do Estado da Bahia (Coopaf) se localizava no município no período citado e a cooperativa executou ações de ambos os programas (PNPB e PAA) em Morro do Chapéu, fatores que permitiram a comparação na escala local.
3As bases teóricas e metodológicas que delinearam a pesquisa estão apoiadas no entendimento da categoria geográfica Território, que permitiram a análise sobre os interesses e atores sociais evolvidos nos jogos de poder na área de estudo.
4Assim, para tratar das disputas territoriais ocorridas por influência das ações do PAA e, principalmente, do PNPB em Morro do Chapéu, foi necessária uma análise dos objetos geográficos inseridos no espaço e as ações para sua implantação, numa abordagem como preconizado por Santos (2009), para o espaço geográfico, ou seja, o espaço “definido como um conjunto indissociável de sistemas de objetos e de sistemas de ação” (SANTOS, 2009, p. 21).
5As dinâmicas promovidas pelos programas públicos no município de Morro do Chapéu no período citado são consideradas frutos de processos que se dão em diversas escalas, entrelaçadas e articuladas entre o local e o global. A valorização do espaço além de articular os fatores físicos e sociais, ainda associa à dinâmica local os estímulos externos, “pelo fato de que os lugares – por intermédio das pessoas – se relacionam” (MORAES, 2000, p. 16). Nesse sentido, as ações de políticas públicas gestadas em locais centrais, acabam afetando a dinâmica local, influenciando-a. Há, assim, um embate de forças entre o dinamismo interno da localidade e as influências externas sobre ele, que acabam por gerar um processo de valorização do espaço.
6Para Moraes (2000), “a valorização do espaço pode ser apreendida como processo historicamente identificado de formação de um território [...] Do ponto de vista epistemológico, transita-se da vaguidade da categoria espaço ao preciso conceito de território” (MORAES, 2000, p. 17).
7Para entender os conflitos e contradições existentes em Morro do Chapéu neste período, algumas categorias analíticas do espaço foram consideradas, entre elas as formas, funções, estrutura e processos.
O espaço se define como um conjunto de formas representativas de relações sociais do passado e do presente e por uma estrutura representada por relações sociais que estão acontecendo diante de nossos olhos e que se manifestam através de processos e funções. (SANTOS, 2008a, p. 153).
8Nessa linha, as propriedades rurais dos cooperados da Coopaf, a sede de Morro do Chapéu e os povoados localizados nos distritos da zona rural tiveram, como ponto de partida, a análise das formas – ou os arranjos espaciais apresentados pelas culturas e organizações sociotécnicas na área.
9Os estímulos do poder público produziram mudanças nas formas espaciais no município. Ao mesmo tempo, representaram uma nova função determinada pelo poder público federal para a agricultura familiar e as áreas em propriedade destas famílias. A função aqui é entendida como “tarefa ou atividade esperada de uma forma, pessoa, instituição ou coisa” (SANTOS, 1985, p. 50). Assim, a organização social manteve-se fundada no trabalho familiar, mas este deixou de ter um caráter local, de subsistência com comercialização do excedente, para inserir-se na produção (função) voltada ao mercado de combustível.
10Considerando-se que no espaço ocorre “uma ação contínua, desenvolvendo-se em direção a um resultado qualquer, implicando conceitos de tempo (continuidade) e mudança” (SANTOS, 1985, p. 69) os processos de dinamização e valorização do espaço em Morro do Chapéu, ocorrido a partir de 2007, foram analisados e destacado nesse trabalho.
11Para complementação da compreensão dos atores envolvidos nesse processo, foi necessária uma enquete com as principais lideranças da agricultura familiar existente na área de estudo. Para tanto, utilizou-se a técnica da história oral visando organizar as informações necessárias para avaliar se as mudanças ocorridas por conta do PNPB e o PAA contribuíram para que ocorressem alterações na estrutura social do município e promovessem novas dinâmicas na produção territorial de Morro do Chapéu. As informações contidas neste trabalho estão no campo da experiência de agricultores e profissionais envolvidos com o tema da pesquisa e foram apuradas por meio da sistematização de uma série de entrevistas realizadas ao longo de um período de dois anos no município com os atores.
12Optou-se pelo apoio da história oral temática, mais próxima das entrevistas tradicionais (MEIHY, 2007, p. 39), para obter informações relativas ao processo ocorrido entre 2007 e 2012.
13A utilização da história oral foi a forma escolhida para favorecer a produção de documentos que atendam ao imediatismo dos efeitos e a rapidez com que as mudanças afetaram o espaço analisado. O que garantiu unidade e coerência às entrevistas enfeixadas em um mesmo conjunto foi “a repetição de certos fatores que, por fim, caracteriza a memória coletiva” (MEIHY, 2007, p. 28).
14A partir da sistematização das entrevistas de história oral, da documentação complementar e de dados estatísticos oficiais as informações foram associadas e consolidadas expondo um panorama das mudanças provocadas pelas ações do PAA e do PNPB no município baiano entre 2007 e 2012 e as contradições inerentes às iniciativas internas da comunidade. É importante destacar que os levantamentos e as análises foram realizadas a partir dos dados da produção agrícola municipal, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para complementar as informações colhidas em campo.
15Para apresentar as mudanças e contradições provocadas pelo PNPB e o PAA para o espaço em Morro do Chapéu é necessário considerar uma série de aspectos, entre estes, os de ordem econômica, que impuseram novas dinâmicas às formas de diversas áreas, à função destinada às terras de agricultores e à própria organização do território.
- 1 Por meio da sistematização dos dados do Sistema IBGE de Recuperação Automática (Sidra-IBGE) é possí (...)
16Em relação às formas espaciais, é possível verificar que as mudanças mais evidentes são aquelas relacionadas ao PNPB ocorridas na zona rural. Isso porque as áreas cultivadas com a mamona se expandiram no município a partir do início das discussões na esfera federal para a consolidação do programa1 (Quadro 1), no início do século XXI.
Quadro 1 Àrea total de culturas temporarias e área com mamona
Após 2002 a cultura da mamona teve maior representatividade na relação com o total de culturas temporárias em Morro do Chapéu, tanto nos anos de grande produção quanto nos de baixa.
Fonte: Sidra/IBGE. Elaboração: AUTORES
17A expansão das áreas cultivadas com a mamona representa também a regionalização da cultura em mais espaços dentro do “território contínuo” (SOUZA, 2011, p.93) que é Morro do Chapéu. Ao longo das décadas as áreas ocupadas pela cultura passaram por sucessivos movimentos de expansão e retração.
18Entre 2007 e 2011, áreas do município que não eram tradicionalmente cultivadas com mamona passaram por movimentos de expansão da cultura. Este processo coincidiu com a transformação do camponês em cooperado da Coopaf, o que trouxe melhores condições de negociação para os agricultores familiares, além de maior autonomia destes em relação aos atravessadores, que antes do período em análise financiavam o plantio da cultura e se apoderavam das áreas cultivadas por agricultores.
19A partir da disputa de influência entre a cooperativa e os atravessadores é possível verificar movimentos de TDR, ou de “territorialização – desterritorialização – reterritorialização” (FERNANDES, 2005, p. 29) em Morro do Chapéu entre 2007 e 2012. Estes movimentos “da agricultura camponesa”, ou da agricultura familiar, também representaram alterações nas “paisagens”, na “estrutura fundiária” e nas “relações sociais” (FERNANDES, 2005, p. 29) na esfera local.
20É possível compreender o período de fortalecimento da atuação da cooperativa como um processo de territorialização da influência dos cooperados e desterritorialização dos atravessadores, enquanto os movimentos de enfraquecimento da Coopaf representavam a reterritorialização dos intermediários nas localidades.
21Obviamente, outra série de fatores ajuda a explicar os movimentos de expansão e retração das áreas ocupadas pela mamona no município. O aumento e a estabilização do preço da mamona após o início do PNPB pode ser considerado o principal aspecto econômico relacionado às dinâmicas territoriais promovidas pelo programa em Morro do Chapéu.
22A variação no preço da saca da mamona permite verificar uma maior disputa de poder sobre os territórios de cultivo pelos cooperados e pelos atravessadores. A forma que estes negociantes encontraram de manter alguma influência sobre os territórios nos quais atuavam foi pressionando o valor da mamona para cima. A estratégia permitiu que os atravessadores mantivessem suas atividades mesmo no período de domínio dos cooperados sobre o controle das áreas de cultivo nas localidades analisadas.
23Quando as atividades da Coopaf entraram em decadência a partir da interrupção do contrato com a PBio (Petrobras Biocombustíveis), entre 2010 e 2011, a principal parceira da cooperativa, os atravessadores passaram a retomar o controle sobre o financiamento, a comercialização da cultura da mamona, os preços e, sucessivamente, sobre os territórios de cultivo, reconquistando o espaço perdido num processo de reterritorialização.
24A análise de dados oficiais, entre estes os produzidos pelo IBGE, e os relatos de agricultores familiares mostram que o PNPB teria produzido um processo intensivo de valorização financeira da mamona entre 2007 e 2011 em Morro do Chapéu, processo que se intensificou com a criação e a entrada da PBio no mercado.
25A valorização fez as áreas ocupadas com a cultura se expandirem com intensidade nas áreas tradicionalmente produtoras de mamona do município, como a região do Velame e da Malhada de Areia. Em casos de localidades como o Icó a influência financeira da mamona após o PNPB provocou a substituição de culturas tradicionais, como o sisal.
- 2 Comparando as dinâmicas de expansão e retração da ocupação da mamona com aspectos físicos, em Morro (...)
26A repercussão do aumento nos preços da saca da mamona também levou agricultores e produtores de áreas com histórico produtivo de atividades mais valorizadas, como a pecuária e o cultivo do feijão, ou mais elaboradas, como a farinha de mandioca, a ampliarem as áreas plantadas com a mamona. Foi o caso de Fedegosos2. Neste povoado, os relatos de diversos agricultores sugerem que as áreas plantadas com mamona e o número de pessoas trabalhando com a cultura aumentou com a atuação da Coopaf no município.
27No Velame e na Malhada de Areia (Figura 1), em Morro do Chapéu, a mamona passou a exercer pressão sobre a oferta de terras disponíveis para o cultivo. Os próprios cooperados expandiram seus espaços de cultivo sobre as áreas vizinhas. Com a elevação dos ganhos financeiros provenientes do cultivo da mamona o volume de áreas disponíveis para arrendamento na localidade também escasseou.
Figura 1 – O agricultor Jaílson Rosa Rodrigues
O agricultor Jaílson Rosa Rodrigues em uma das propriedades que arrendou na localidade da Malhada de Areia, em Morro do Chapéu, em 2011, para o cultivo da mamona. O preparo da área para o plantio havia sido realizado com a ajuda do trator de um familiar.
Foto: AUTORES
28Após a consolidação do PNPB e a intensificação da atuação da Coopaf outras mudanças nas formas de uso da terra na zona rural de Morro do Chapéu pareceram ser evidenciadas. Houve a recuperação de estabelecimentos rurais de diversas localidades da região nos últimos anos e o número de propriedades sendo vendidas também foi reduzido.
29A questão climática no sertão baiano, no entanto, impôs restrições à produção da mamona (Quadro 2) no período de atuação do programa e pode ter contribuído para a variação do valor de mercado da cultura (Quadro 3). A escassez do produto devido à estiagem influenciou a dinâmica de oferta e procura, por exemplo, e pode ter contribuído para os recordes nos valores pagos pela saca de mamona em Morro do Chapéu entre 2010 e 2011, quando a mamona ocupou quase 70% das áreas com culturas temporárias colhidas no município.
Quadro 2 Perda na produção de mamona
A questão climática influencia a produtividade histórica da mamona em Morro do Chapéu. No entanto, a intensificação dos aspectos técnicos relacionados à cultura reduziram as perdas a partir do início das discussões para a criação do PNPB.
Fonte: Sidra/IBGE. Elaboração: AUTOR
Quadro 3 Valor por saca de mamona de 60 kg
Vários fatores influenciam a variação histórica do preço da mamona em Morro do Chapéu. O período de debates sobre o uso de variadas oleaginosas para o PNPB, entre elas a mamona, em 2003 e 2004, por exemplo, pode ter pressionado o preço da cultura em Morro do Chapéu, que se estabilizou após 2007.
Fonte: Sidra/IBGE. Elaboração: AUTOR
30Houve agricultores que conseguiram comercializar sacas de mamona por valores entre R$ 120 e R$ 130 durante certa época de 2011. Em mais de 100 anos de cultivo da cultura na localidade a única época em que o preço da mamona havia atingido patamar semelhante foi na década de 1980.
31Os valores pagos pela mamona, no entanto, também encareceram o óleo da cultura, utilizado para a produção do biodiesel. O custo financeiro representado pela utilização do óleo da mamona no composto adicionado ao combustível mineral, cuja variação possivelmente representou aumento de gastos para a PBio, é tido como um dos fatores que colocou em risco a utilização da mamona para o PNPB em detrimento de outras culturas menos nobres, portanto, menos valorizadas, como a soja.
32As variações no valor da saca da mamona estão relacionadas a fatores como a área plantada da cultura em Morro do Chapéu, a perda de áreas cultivadas, a produtividade e fatores climáticos. No entanto, questões como a capacidade de absorção da produção agrícola pela indústria ricinoquímica, os valores de mercado pelos quais a PBio aceitaria adquirir o óleo e a capacidade de organização e de influência dos atravessadores também devem ser consideradas e tornam mais complexa a análise.
33Em 1997, por exemplo, um período chuvoso possibilitou uma safra de mamona significativa no município. A grande oferta do produto, no entanto, inviabilizou a comercialização e provocou a estocagem das sacas a céu aberto, nas próprias propriedades dos agricultores ao longo de diversas semanas.
34Na época, os atravessadores eram os principais atores reguladores do preço da saca da mamona no local e a indústria ricinoquímica o único destino da produção. O ano de 1996 não havia sido produtivo para a cultura no município. Em 1997, a área plantada e colhida expandiu-se, o que fez aumentar a oferta do produto e derrubar o preço da mamona. Isso ocasionou novos objetos geográficos, temporários, em meio às propriedades rurais, representada pelo depósito de pilhas de sacas de mamona, inutilizadas pela falta de compradores.
- 3 De 3.000 hectares plantados com mamona em 1998 no município, equivalente a 65% da área total de cul (...)
- 4 Apenas 600 hectares com mamona foram colhidos em Morro do Chapéu em 1999, de uma área plantada de 1 (...)
35O preço do produto subiu em 1998. No entanto, a perda da produção em mais de 90% da área plantada3 neste ano fez o preço da saca da mamona voltar a disparar em 1999, ano no qual, novamente, a área colhida foi menor do que a metade da plantada4. O valor da cultura volta a cair entre 2000 e 2001 diante do baixo percentual de perdas nestes anos. As incertezas em relação ao cultivo e aos ganhos com a mamona, ou seja, à função da cultura em satisfazer as necessidades do núcleo familiar, tornou a cultura menos atrativa para o agricultor familiar, até o início do PNPB.
36Além do fornecimento de sementes adaptadas ao clima semi-árido, desenvolvidas e certificadas pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), para os agricultores familiares de Morro do Chapéu e da região, contratos firmados entre a Coopaf e órgãos públicos e, posteriormente, entre a cooperativa e a PBio, previam, além da comercialização da produção, a assistência técnica rural aos produtores de mamona. A implantação de técnicas de plantio e o acompanhamento das etapas de cultivo por técnicos agrícolas familiarizados com as localidades produtoras podem ter sido os principais fatores para o aumento da produtividade da cultura no município a partir de 2007.
37Foi a partir deste ano que, de acordo com os dados da série histórica do Sidra-IBGE para o município, a produtividade anual da mamona passou a ultrapassar a média histórica da região (Quadro 4), que é de 600 quilos por hectare. Em 2008, a agricultura do município registrou a maior produtividade da mesma série histórica.
Quadro 4 Produtividade da mamona
A produtividade da cultura em Morro do Chapéu manteve relativa estabilidade após o início das discussões para a implementação do PNPB e aumentou a partir de 2007.
Fonte: Sidra/IBGE. Elaboração: AUTORES.
38Mesmo a produtividade tendo sido abaixo da média histórica nos anos de 2009 e 2010 e este fato estar associado às perdas na produção e aos fatores climáticos, a média anual da produtividade no período entre 2007 e 2011 ainda é superior à média histórica da região. Neste período de cinco anos foram produzidos 648 quilos por hectare e o preço da mamona manteve-se elevado em relação ao padrão de negócios anterior ao PNPB.
39Na maioria dos casos, a percepção de que a produtividade da lavoura de mamona aumentou depois do PNPB é difícil de ser mensurada pelos agricultores familiares. Isso porque, a atual contagem de sacas por hectare – 10 sacas de 60 quilos por hectare seria o indicativo de alcance da média histórica – não era utilizada anteriormente, o que impede a comparação. Até 2007, os agricultores em geral não controlavam o volume comercializado, estando subordinados aos atravessadores e mantendo-se num ciclo de pobreza.
- 5 Os agricultores que tinham pequenas roças da cultura realizavam diversas quebras do produto ao long (...)
- 6 Os novos padrões de armazenagem e comercialização mantiveram-se enquanto a Coopaf deixou de comerci (...)
40Antes do PNPB a mamona era tida como a feira do agricultor5. O aumento da concorrência no mercado da mamona por conta da atuação da PBio e a consequente variação nos preços da saca alterou as práticas de comercialização dos agricultores familiares. Com o programa, os agricultores passaram a acumular volumes à espera do melhor preço para, então, comercializarem a produção6.
41A necessidade de repassar a mamona para garantir a alimentação da semana antes do PNPB levava os agricultores a ficarem até mesmo sem volumes para semear a propriedade na época do plantio. A distribuição de sementes pela Coopaf e, posteriormente, por outras cooperativas, remediou temporariamente o problema.
42No entanto, o agricultor familiar ainda não possui capacidade financeira, de infraestrutura, de logística ou cultural para estocar mamona e alterar o cenário de mercado no qual a cultura está inserida. Sem o PNPB, o agricultor volta a depender apenas dos atravessadores, que custeiam o plantio da mamona. A falta de financiamento bancário destinado à cultura é outro fator prejudicial à capacidade da agricultura familiar de influenciar os preços praticados pelo mercado.
43Da mesma forma que o PNPB gerou expectativas em relação ao aumento da renda de milhares de famílias no sertão baiano (Figura 2) também trouxe incertezas conforme alguns fatores se consolidaram. Quando a valorização excessiva do preço da mamona interrompeu a aquisição da produção da oleaginosa em Morro do Chapéu por parte da PBio, o dinheiro deixou de circular com a intensidade anterior e o movimento do comércio do município foi reduzido.
Figura 2 – José Barbosa de Jesus na lavoura de mamona
José Barbosa de Jesus na lavoura de mamona plantada na propriedade da esposa, no Icó, em Morro do Chapéu. Para o agricultor, o comércio nas sedes das cidades e nos povoados da zona rural da microrregião de Morro do Chapéu evoluiu durante os anos de execução do PNPB.
Foto: AUTORES
44Na época, o alto custo do óleo de mamona para aproveitamento no programa do biodiesel preocupava os agricultores. A identificação de problemas administrativos na Coopaf, a consequente interrupção do contrato de comercialização da PBio com a organização, da compra da produção da agricultura familiar pela cooperativa, a escassez de chuvas, os atrasos nos salários dos técnicos e trabalhadores da cooperativa, a dispensa dos trabalhadores, entre outros fatores colocaram em dúvida as previsões de sucesso da iniciativa.
45Embora a Coopaf não tenha negociado mamona nas safras anteriores, o que fez o preço da saca do produto cair, até 2012 os agricultores continuavam vendendo a produção para os atravessadores a preços superiores àqueles praticados antes do PNPB. Mesmo assim, fatores como o avanço do agronegócio e da soja no oeste da Bahia (Quadros 5 e 6) e a possibilidade do grão e dos empresários dominarem completamente o fornecimento de óleo para o mercado de biocombustíveis, põem mais incertezas nas perspectivas da agricultura familiar.
Quadro 5 - Evolução do plantio de soja na Bahia e percentual de áreas plantadas com a cultura em relação ao total de culturas temporárias nos municípios.
Na legenda, o índice de 100% equivale à totalidade de áreas com culturas temporárias plantadas com soja e o “zero” à inexistência de áreas ocupadas com a cultura nos municípios.
Fonte: Sidra/IBGE. Elaboração: AUTORES
Quadro 6 - Evolução da produção de soja em toneladas por município na Bahia
Fonte: Sidra/IBGE. Elaboração: AUTORES.
46Sem a participação da PBio, representada pela atuação da Coopaf, os atravessadores voltaram a ser os atores hegemônicos para a definição dos preços da mamona no mercado local de Morro do Chapéu. Num curto período o valor da saca da mamona variou de R$ 130 para R$ 70. Os agricultores foram os principais prejudicados pela interrupção da comercialização pela PBio e a desvalorização da cultura no campo, já que os custos de produção da mamona não diminuíram no mesmo período, pelo contrário.
47É possível estabelecer relações entre a limitação da atuação das atividades vinculadas à Coopaf, inclusive a interrupção do contrato com a PBio, e os problemas administrativos enfrentados pela cooperativa. Um dos fatores que deram início à instabilidade do PNPB em Morro do Chapéu foi a suspeita de fraudes na Coopaf . O afastamento da diretoria e um processo de escolha de representantes ocorreram em meados de 2011, em meio à assembleia para a votação das contas da cooperativa do ano de 2010.
48A movimentação de grandes volumes financeiros, a hesitação de pessoas ligadas à administração da organização e o envolvimento político-partidário de integrantes da Coopaf estariam relacionados aos problemas da organização (AUTOR, ANO, p. 135). O sentimento de perda dos agricultores pela ausência dos técnicos agrícolas orientando a produção nas roças foi precedido pela desmotivação destes. A falta de assistência técnica fez alguns agricultores perderem partes das roças de mamona em 2011 e em outros anos por conta de doenças que, sem assistência, não souberam tratar.
49Além da mamona, o leite e o café são considerados os produtos agropecuários mais influentes em Morro do Chapéu atualmente. Apoiada na diversidade agrícola do município, a Coopaf passou a adquirir parte da produção da agricultura familiar e destiná-la às famílias carentes do município, por meio do PAA (Programa de Aquisição de Alimentos). O programa ofereceu regularidade na produção e comercialização de uma variedade de produtos.
50O principal efeito do PAA para os agricultores do município foi a valorização da produção e o conseqüente aumento da renda familiar. Entre os produtos que tiveram seus preços valorizados na região por conta do PAA estão o milho e o mel. Como a iniciativa garantia a compra pelo preço mínimo estabelecido pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), no caso do mel, foi necessária a articulação da cooperativa para que a companhia pública definidora de preços aumentasse os valores pagos pelo produto tanto na Bahia quanto em Sergipe, considerados defasados pelos responsáveis pelo programa na Coopaf.
51O aumento de preços de produtos ou a sobrevalorização do valor local em relação ao definido pela Conab fizeram a cooperativa substituir nas cestas doadas, em alguns casos, itens cujos preços de mercado na região estavam muito acima daqueles estabelecidos pelo Programa de Garantia do Preço Mínimo para os Produtos da Agricultura Familiar (PGPAF). Isso aconteceu com o feijão, doado às comunidades carentes do município durante apenas um mês de execução do programa.
52Entre os agricultores que acessaram recursos do PAA por meio da Coopaf está um grupo de mulheres do povoado de Fedegosos, em Morro do Chapéu. As participantes chegaram a fornecer beiju, derivado da mandioca, para a cooperativa por cerca de dez meses durante o ano de 2008. Antes, além de realizarem os cuidados diários nas propriedades rurais que possuíam nas imediações do povoado, algumas agricultoras extraíam a farinha de tapioca da mandioca da própria roça e produziam o beiju para o consumo doméstico ou para vender na feira livre do povoado.
53A principal função do PAA foi a de complementar a renda familiar (Figura 3). No período em que a produção era garantida pelo programa algumas participantes chegaram a produzir 62,5 quilos do produto por mês. Para isso, dedicavam dois ou três dias inteiros de trabalho. Com o rendimento obtido com o programa, ocorreu a reforma de casas, a compra de móveis, vestuário entre outros itens.
54O grupo começou produzindo o beiju na casa de farinha da associação comunitária de Fedegosos, mas logo algumas integrantes construíram fornos (Figura 4) nas próprias casas do povoado para facilitar a produção. Assim como o PAA tem no aumento da renda dos participantes um dos principais efeitos econômicos gerados em Morro do Chapéu, o mesmo aconteceu com o PNPB.
55O aumento da renda é indissociável do aumento no volume de postos de trabalho diretos e indiretos gerados a partir do programa do biodiesel no município. Como o volume de trabalho aumentou em diversas localidades por conta da intensificação da produção da mamona pelo PNPB e de alimentos pelo PAA houve mais oportunidades de trabalho, tanto para aqueles que pretendiam complementar a renda obtida com a roça própria quanto para aqueles que não possuíam propriedades.
Figura 3 – Merendeira de uma escola em Fedegosos, no Morro do Chapéu
Simone dos Santos Souza posa para a fotografia ao lado da televisão que comprou com o dinheiro do PAA, dentro da casa em que vive com a família no povoado.
Foto: AUTORES
56
Figura 4 – A agricultora Maria Aparecida Leite Cardoso
A agricultora Maria Aparecida Leite Cardoso arruma o forno de barro construído nos fundos da casa no povoado de Fedegosos com o objetivo de fornecer beiju para o PAA.
Foto: AUTORES.
- 7 Trabalhadores que não possuem a posse da terra, que vendem o dia de trabalho para outros proprietár (...)
57No entanto, a propriedade da terra difere os agricultores familiares dos trabalhadores que são apenas diaristas7. Esse fator é determinante para que o pequeno proprietário possa receber a concessão da Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), ser reconhecido como agricultor familiar e possa ser beneficiado por programas como o PNPB e o PAA. Os trabalhadores que não possuem a propriedade da terra estão sujeitos a mais variáveis, como a escassa oferta de emprego nos períodos de baixa produção rural.
58De uma maneira geral, depois da chegada da Coopaf e do aumento de preço da mamona, a agricultura familiar passou a ter uma condição financeira melhor. Mas, os avanços não beneficiaram só a categoria. Os fluxos comerciais, por exemplo, também se intensificaram a partir do aumento da renda. Paralelamente, mesmo com os avanços, as condições de sobrevivência dos agricultores familiares continuaram sendo influenciadas pelas condições climáticas. Por isso, em alguns períodos, não há garantias de que somente o trabalho na roça promova o sustento da maior parte das famílias.
59A influência de uma série de avanços relacionados à infraestrutura do município e do sertão em geral durante o processo de melhoria dos meios de comunicação que se deu em Morro do Chapéu a partir de 2007 contribuiu para a intensificação dos fluxos de pessoas, mercadorias e informações. O maior acesso ao dinheiro fez também os fluxos serem intensificados entre as propriedades rurais e os povoados e dos povoados para a sede ou para as principais cidades vizinhas. Seja porque os agricultores tenham passado a possuir renda para adquirir o próprio veículo, o que facilitou as viagens, ou pagar pelos serviços particulares de transporte com regularidade, com a melhoria das estradas, o tempo para percorrer as distâncias foi reduzido.
- 8 Dados do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) mostram que a frota de automóveis em Morro do (...)
60É possível identificar o aumento nos fluxos entre a zona rural e a cidade como um dos principais efeitos do aumento da renda, principalmente, após 2007. Neste caso, houve tanto a modernização da frota como o aumento do número de veículos circulando8.
61No caso do comércio, o crescimento do volume financeiro em circulação se deu tanto por conta das mudanças estruturais que influenciaram a região quanto pela instalação da Coopaf na sede do município. A atividade em geral evoluiu conforme a cooperativa contratava profissionais e negociava mamona e regrediu quando a PBio interrompeu a compra e os salários dos trabalhadores atrasavam .
62O comércio nos povoados e na sede de Morro do Chapéu e das cidades próximas também foi influenciado, principalmente, pelo avanço das atividades do PNPB e se intensificou. Novos estabelecimentos foram abertos, o acesso ao crédito foi facilitado e, com mais recursos financeiros, o consumo aumentou , vide quadros 7 e 8.
Quadro 7 Variação do emprego formal em Morro do Chapeú
Comércio, serviços e construção civil são as áreas que mais empregaram trabalhadores com carteira assinada no município baiano nos últimos anos.
Fonte: Caged/MTE. Elaboração: AUTOR.
Quadro 8 Variação histórica do emprego formal em Morro do Chapeú
As dinâmicas promovidas pelas atividades do PNPB na região influenciaram a variação do emprego formal em Morro do Chapéu em alguns períodos.
Fonte: Caged/MTE. Elaboração: AUTORES
63A valorização da produção de mamona também gerou efeitos relacionados à maior fixação do homem na zona rural em Morro do Chapéu. O número de pessoas que deixou o campo diminuiu no município no período de atividades do PNPB e do PAA.
64Apesar de alguns avanços técnicos e a geração de novos postos de trabalho a partir da valorização da mamona, a história da agricultura em Morro do Chapéu ainda é semelhante à da maioria dos municípios do sertão nordestino. A constante migração da população, especialmente dos jovens que atingiram a fase adulta e cujas famílias não possuem terras, ou as possuem em espaço insuficiente para todos os descendentes, faz o município ser fornecedor de mão-de-obra para outras regiões do país. Pesquisas anteriores já haviam constatado esse fenômeno, como em Haesbaert (2007).
65Devido à acumulação histórica, e não resultado dos recursos “naturais” que dispõem (AGNEW, 2003, p. 6), a relativa estagnação econômica das localidades analisadas, principalmente, até o desenvolvimento das dinâmicas do PNPB, prejudica as classes menos favorecidas da sociedade.
66As condições impostas ao território de Morro do Chapéu ao longo da história pós-colonização fizeram, em alguns períodos, as secas provocarem a fragmentação quase total da estrutura social de áreas do município baiano. Numa das crises hídricas do município, entre 1930 e o início de 1933 “não havendo [...] produção” (CUNEGUNDES, 1981, p. 35) em Morro do Chapéu, “os pequenos agricultores já sem recursos [...] em desordem foram abandonando os campos, em busca das Cidades” (Idem, p. 35). Numa outra lógica, os programas aqui analisados produziram uma mudança na organização social local, com os pequenos proprietários de terras que aderiram ao programa, ascendendo a oportunidades que seus ancestrais de camadas socioeconômicas similares nunca tiveram.
67A valorização da cultura da mamona também intensificou a mecanização da agricultura em Morro do Chapéu. No oeste do município, o trator passou a ser um maquinário frequente no cotidiano dos agricultores após o PNPB. O aumento da renda e a chegada do equipamento à localidade da Malhada de Areia permitiram que diversos agricultores pagassem pelo serviço mecanizado e realizassem o preparo do solo para o plantio de mamona, reduzindo o tempo gasto no trabalho manual e facilitando a ampliação dos espaços cultivados.
68 Outro aspecto relacionado à expansão da ocupação da cultura da mamona em Morro do Chapéu e à recuperação de propriedades rurais no município é a falta de áreas mantidas em pousio, ou repouso, que promovam a recuperação dos solos e o posterior cultivo. A questão da rotatividade de solo se torna problemática para a agricultura familiar em Morro do Chapéu, que em geral possui propriedades rurais não muito extensas. Pelo menos não o suficiente para abrir mão da possibilidade de obter renda com alguma cultura, como a mamona, ao invés de manter áreas em repouso (Figura 5).
Figura 5 Luciano Bernardo de Brito observa a lavoura de mamona
Luciano Bernardo de Brito, o Lula, do Velame, observa a lavoura de mamona na propriedade da família, no povoado quilombola do Velame, em área na qual os familiares conseguiram manter em repouso por alguns anos.
Foto: AUTORES
69A intensificação do meio técnico, representada por fatores como a mecanização da lavoura, por outro lado, também gerou novos postos de trabalho e a qualificação de alguns trabalhadores. Além dos operadores de maquinário e fretadores, o aumento da renda promoveu também serviços de empresas de perfuração de poços artesianos em Morro do Chapéu.
70As mudanças que passaram a acontecer com mais intensidade na escala local após 2007, advento da evolução do meio técnico-científico-informacional (SANTOS, M., 2009, p. 238) em Morro do Chapéu, expõem as contradições do atual esquema de participação da agricultura familiar em programas públicos. Isso é, quanto mais o sertanejo presta serviços fora de sua propriedade menor é a possibilidade de ele manter-se dentro de um dos critérios básicos para ser considerado agricultor familiar pelo poder público federal e de ser beneficiado por iniciativas como o PNPB e o PAA.
- 9 Renda proveniente de atividades na propriedade do agricultor.
71O atual sistema de concessão da DAP define que enquanto a renda extra-rural – obtida por meio de atividades de prestação de serviços, como a locação de um trator, por exemplo – é totalmente contabilizada, apenas metade da renda rural9 é válida . Isso abre o debate para a discussão de se o PNPB e o PAA representam o aumento da autonomia dos agricultores familiares em relação à influência de outros atores de mercado ou apenas a inserção gradual da categoria dentro da sociedade de consumo numa escala mais ampliada.
72Por meio da análise dos efeitos econômicos e políticos dos programas públicos analisados em Morro do Chapéu, é possível verificar que a expectativa de mudança social para uma situação mais alentadora é maior quando além da propriedade, há existência de formas de organização social. “O espaço social, delimitado e apropriado politicamente enquanto território de um grupo, é suporte material da existência e, mais ou menos fortemente, catalisador cultural-simbólico – e, nessa qualidade, indispensável fator de autonomia” (SOUZA, 2011, p. 107).
73Ainda assim, é importante considerar que mesmo com a articulação social e o envolvimento de movimentos, como o sindical, como aconteceu para a implementação do PNPB e o PAA em Morro do Chapéu, as alterações, as rupturas promovidas pelo “efeito cumulativo complexo” (SOUZA, 2011, p. 108) em dado espaço dependem de outra série de fatores para se tornarem representativas.
74Apesar dos indícios de que o aumento da renda e do nível de emprego por meio dos programas públicos tenha gerado, em alguns casos, a independência financeira de agricultores em Morro do Chapéu, a rede de relações que envolvem a principal cultura motivadora das mudanças – a mamona –, dificulta a previsão do futuro da iniciativa. Dada a instabilidade de perspectivas, é possível considerar que, até agora, a autonomia da categoria da agricultura familiar na escala local, possivelmente, sofreu apenas uma transformação por conta de dinâmicas do “regime de classes” (FERNANDES, 2008, p. 69) que ocorreram em escala nacional.
75Considerando que a lógica econômica do “capitalismo dependente” brasileiro “interfere e restringe, normalmente” (FERNANDES, 2008, p. 74), as funções do regime de classes – neste caso, da classe do campesinato – e que a “articulação de estruturas arcaicas e modernas”, junto com a “modernização do campo” (FERNANDES, 2008, p. 72), são requisitos do capitalismo dependente, o que pode ter ocorrido em Morro do Chapéu após 2007 foi a melhoria das condições de vida, por conta do aumento do emprego e da renda, mas ainda sem gerar a autonomia socioeconômica almejada por este campesinato.
76Assim, é possível afirmar que os efeitos financeiros do PNPB em Morro do Chapéu atingiram uma escala de influência maior do que aquela alcançada pelo PAA. Apesar da menor influência econômica, o PAA parece interferir menos na autonomia de agricultores do que o PNPB. Enquanto a dedicação a este tem potencial de prejudicar até a segurança alimentar dos agricultores, no caso de ampla ocupação da mamona e produção escassa, o PAA apenas garante a venda de produtos tradicionais da cultura sertaneja no município a preços considerados justos.
77De modo geral, a agricultura familiar do município e os trabalhadores que não possuem propriedades são influenciados por iniciativas como os programas públicos citados, que favorecem algumas culturas em detrimento de outras.
- 10 Limite da maior área da parte ocidental do território de Morro do Chapéu.
78Um aspecto da intensificação do meio técnico-científico-informacional no sertão baiano, promovido pelo aumento do padrão de consumo dos agricultores, que merece destaque é a expansão da irrigação. O Velame é uma das localidades da área da bacia do rio Jacaré10 nas quais a irrigação chegou em menor intensidade. Em 2012, havia cinco poços artesianos em uso nos arredores do povoado. Em comunidades próximas, menores, havia mais de 20 poços perfurados em funcionamento.
79A ampliação das redes de energia elétrica também se mostrou condicionante para as dinâmicas espaciais do avanço da irrigação. A prática contribui para a disseminação do plantio de espécies de mamona adaptadas à irrigação na região e estes fatores têm provocado a valorização das terras em Morro do Chapéu.
80Ao tempo que a mamona irrigada se apresenta como uma possibilidade de renda para a agricultura familiar – caso os preços da matéria-prima se mantenham relativamente valorizados – também representa fator determinante para a territorialidade no município, especialmente para o padrão de alimentação sertanejo. Isso aconteceria por conta do estímulo à expansão da ocupação da cultura agrícola em detrimento dos gêneros que garantem a autonomia alimentar da agricultura familiar no sertão.
81Sem assistência técnica adequada, o que requer investimento financeiro, já que o PNPB e a PBio não favorecem o cultivo da mamona irrigada, a produtividade da cultura irrigada se mostra tão instável quanto o cultivo de sequeiro.
82Enquanto a PBio promove a intensificação da base técnica com o uso corporativo do território (PEREIRA, KAHIL, 2010, p. 295), no caso de Morro do Chapéu, por meio da mamona, a própria empresa impõe normas em relação à regulação da atividade nas localidades. A firma se recusava publicamente a negociar a produção de mamona a partir do uso das reservas subterrâneas de água no semi-árido por meio do programa do biodiesel. Obviamente, isso não impedirá que atores como os intermediários da indústria ricinoquímica absorvam a produção de mamona irrigada.
83A disseminação da irrigação compreendida como um “fenômeno técnico” nas localidades pode ser considerada ação constitutiva do “espaço geográfico” e pressupõe o estabelecimento de novas normas, na relação do estudo do “direito à geografia” (ANTAS, 2005, p. 186), que não necessariamente estão se dando na escala local.
- 11 O processo de desertificação já é evidente na microrregião do antigo distrito de Caraíbas de Morro (...)
84O risco ambiental promovido pela intensificação da irrigação já era formalmente reconhecido, pelo menos, desde 1997 (ROCHA, 1997, p. 122). Caso não haja a regulação do poder público frente os processos de intensificação da base técnica em localidades do sertão baiano, como aquelas próximas ao Velame, é possível que nos próximos anos estas áreas experimentem dinâmicas de retração econômica como aquelas que a vizinha microrregião de Irecê enfrentou11.
85Assim, a intensificação da irrigação servirá apenas para que lugares como o Velame sejam utilizados até a exaustão dos recursos disponíveis, pelos interesses de atores hegemônicos, servindo ao “adversário global, concentrador e anti-democrático” (OLIVEIRA, 2001, p. 19). Portanto, não significarão novas formas autônomas de desenvolvimento local.
86Neste caso, programas públicos como o PNPB terão servido apenas para facilitar a incorporação de áreas por atores com vínculos mais estreitos com os interesses do mercado globalizado. Outro problema é que aqueles agricultores que permanecerem nessas áreas e incorporarem a intensificação da base técnica nas propriedades podem acabar perdendo as características de agricultores familiares, o que também entra em contradição com o objetivo do programa de promover o fortalecimento do campesinato.
87Para evitar isso e possibilitar o maior poder de influência dos pequenos agricultores sobre os territórios nos quais vivem, seria necessário que o poder público federal, o principal responsável pelas dinâmicas relacionadas ao PNPB na escala local, atuasse a favor do fortalecimento da agricultura familiar em aspectos que não foram suficientemente valorizados. O apoio à diversificação da produção, uma característica histórica da categoria, através de iniciativas como o PAA e o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) é um destes aspectos.
88Do mesmo modo, seria exigido maior poder de organização dos agricultores, com a criação de novas organizações de comercialização e representação ou o fortalecimento das já existentes, com o devido acompanhamento e assistência necessária por parte do poder público. Este parece ser um dos modos de fazer a agricultura familiar nas localidades equilibrar a disputa frente aos atores de mercado globalizados do setor agropecuário e ao agronegócio e tornar mais balanceados os efeitos de iniciativas como o próprio PNPB.
89A partir das informações apuradas junto a lideranças locais, órgãos de governo e representantes de cooperativas, este trabalho buscou verificar como e em quais dimensões se deram as contradições geradas por meio do Programa Nacional de Uso e Produção do Biodiesel (PNPB) e do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) no município de Morro do Chapéu. A apresentação das comunidades e povoados de Morro do Chapéu expõe um padrão de vida inerente ao município, à região e, talvez, ao semi-árido brasileiro.
90A análise de dados do IBGE fundamentou os relatos de agricultores familiares de que o PNPB teria produzido um processo de valorização financeira da mamona no período, processo que se intensificou com a criação e a entrada da Petrobras Biocombustíveis (PBio) no mercado. A melhoria das condições de negociação fez a mamona se tornar a principal geradora de empregos no município no período analisado e provocou alterações nas relações de trabalho e no padrão de armazenamento e comercialização da cultura.
91O estudo revelou ainda que a maior inserção da agricultura familiar na lógica capitalista promoveu também dinâmicas relacionadas à mecanização da produção. Do mesmo modo, a expansão da eletrificação na zona rural do município favoreceu a intensificação da perfuração de poços artesianos, alguns clandestinos, e a ampliação das áreas irrigadas.
92Em relação ao PNPB, conclui-se que a finalidade dos biocombustíveis está associada ao mercado especulativo da economia capitalista. Com isso, a função do programa como um motivador da evolução das bases sociais da agricultura familiar se torna questionável. A principal característica do PNPB seria a de um programa de capitalização ao invés de econômico ou social.
- 12 Veja por exemplo SUZUKI, 2007, p.93.
93O apoio à produção da mamona pelo governo federal estaria de acordo com o processo histórico de investimento estatal nas culturas de interesse do setor industrial, como já demonstrado por outros pesquisadores12. Este aspecto também estaria em contradição em relação ao objetivo do programa de favorecer a agricultura familiar. Isso não acontece com o PAA, por exemplo, apesar de ser evidente a diferença entre os efeitos financeiros do programa em relação ao PNPB.
94Caso não haja maior participação da agricultura familiar como ator decisório dentro da lógica de mercado da cultura da mamona, a sojicultura continuará dominando quase que totalmente a produção de biodiesel e a expansão da sua produção impedirá o avanço de outras culturas dentro e fora do PNPB. Nessa situação, cada vez mais áreas de Estados como a Bahia deverão ser ocupadas por grandes fazendas de soja.
95Repensar a lógica do uso de diferentes culturas agrícolas para o PNPB exigiria a elaboração de um novo marco regulatório para o biodiesel. As regras deveriam levar em conta a continuidade da orientação de apoio à agricultura familiar e à produção de mamona no Nordeste. O principal fator que deveria garantir essas características são os próprios efeitos sociais obtidos pelo programa em municípios como Morro do Chapéu.
96Já as mudanças promovidas por conta do PAA contribuíram diretamente para a valorização de diversas culturas agrícolas e a melhoria das condições de vida do agricultor familiar, sem representar riscos ao retrocesso das condições de existência do campesinato. Torna-se importante refletir sobre as dinâmicas futuras dos programas públicos analisados em uma realidade em que o contexto global está cada vez mais presente nas localidades.
97Isso porque a emersão de novas formas e funções espaciais no município baiano parece ocorrer numa dinâmica cada vez maior de diferenciação espacial, ao invés de homogeneização do espaço. Assim, ao invés de promover a inclusão da região de Morro do Chapéu em novas dinâmicas tecnológicas, considerando os preceitos dos movimentos ambientais transnacionais, a globalização tem aproveitado as características particulares de localidades como Morro do Chapéu para redefinir os interesses econômicos a partir de seus valores, fazendo-os pelo nível local e determinando as normas de uso dos lugares.