1O Hino Nacional do Brasil compõe um dos símbolos de sua República, proclamada em 1889. Segundo a letra, esse país “tem mais flores” é “um gigante pela própria natureza”, local de “lindos campos” que repousam sob um céu “formoso, risonho e límpido”.
2Os elogios à beleza da natureza brasileira também marcaram presença em livros escolares, canções populares, na literatura romântica e, principalmente, na propaganda turística. Em guias dirigidos a turistas de várias partes do mundo, não é difícil encontrar a imagem de um Brasil naturalmente belo, juntamente com afirmações sobre a descontração e a alegria do seu povo.
3A insistência em imagens desse tipo atingiu o apogeu na década de 1980, quando, dentro da propaganda turística, a mulher brasileira foi insistentemente assimilada à beleza natural de sua terra. Fotografias e desenhos de brasileiras seminuas, muito à vontade em meio a praias ensolaradas, tornaram-se uma espécie de cartão-postal privilegiado da publicidade realizada pela Empresa Brasileira de Turismo – Embratur – criada em 1966. De acordo com Pires, a década de 1980 inaugurou o período no qual “a Embratur mais abusou dos usos das figuras femininas em seu material” (Pinto, 2015:59). A partir desse tipo de imagem comercial, rapidamente transformada em clichê, fica a impressão de que haveria uma brasileira “típica”, naturalmente bela, sensual e bastante integrada às forças naturais do país.
- 1 Eclésia, ano VI, número 61, São Paulo, dezembro de 2000.
- 2 Ana Paula Naves, “Beleza sem culpa” in Eclésia, op.cit., p.50.
4Entretanto, desde o último século, o Brasil também foi transformado numa espécie de paraíso para a expansão da indústria da beleza e, nomeadamente, da cirurgia plástica. Basta uma consulta às estatísticas internacionais e às reportagens divulgadas em revistas e jornais, para perceber o destaque conquistado pelos brasileiros no ranking mundial das cirurgias com fins estéticos. Novamente, as mulheres são as que mais representam a beleza nacional, agora “esculpida pelo bisturi” e dependente do uso de vários medicamentos e cosméticos. Até mesmo entre os evangélicos, cujas igrejas conheceram um sucesso fulgurante nas últimas décadas, a cirurgia plástica tornou-se um recurso positivo e bem visto. Por exemplo, na edição de dezembro de 2000, a revista evangélica Eclésia, publicada no Brasil, exibiu como matéria de capa o tema da cirurgia plástica.1 Segundo o artigo intitulado “Beleza sem culpa”, os evangélicos também buscam o embelezamento cirúrgico e se alegram com essa novidade. Uma das religiosas chegou a dizer que, afinal, “Deus não fez as mulheres com seios caídos, barrigas flácidas e rugas”. 2
- 3 Luiz Caversan “Botox movimenta R$100 milhões por ano no país” in Folha Online, 2, de dezembro de 20 (...)
5Além das cirurgias, o Brasil também se destaca no consumo de remédios inibidores do apetite e de produtos para o preenchimento de rugas. Já em 2002, os brasileiros ocuparam o segundo lugar no ranking do consumo mundial do “Botox”.3 Em suma, um país que, conforme uma conhecida canção brasileira, é “abençoado por Deus e bonito por natureza”, apresenta-se hoje como um fiel adepto à fabricação diária da beleza às custas de cirurgias, medicamentos, entre outros procedimentos científicos e industrializados.
6Essa situação aparentemente contraditória desvenda uma das características mais espetaculares da realidade brasileira contemporânea. No artigo que se segue, trata-se de compreender como foi possível, num país cujo clichê maior é aquele da beleza natural, ocorrer uma adesão significativa das diferentes classes sociais aos tratamentos médicos e cirúrgicos para o rejuvenescimento e o embelezamento. Seria o caso de indagar: haveria uma continuidade histórica entre antigos mitos de uma beleza natural e a exigência de construir uma aparência jovial na atualidade?
7Evidentemente, a exigência da beleza e o sucesso da cirurgia plásticas entre outros procedimentos rejuvenescedores não são exclusividades do Brasil; mas restaria compreender por quais razões esse país ocupa lugares de destaque nas estatísticas internacionais sempre que se observa o consumo de produtos favoráveis ao embelezamento e, em particular, a realização das cirurgias plásticas.
8O mito da brasileira naturalmente bela, em meio à uma natureza paradisíaca, integrou a literatura nacional romântica do século XIX. Entretanto, o sonho do paraíso é mais antigo, e esteve na base da descoberta da América. Ou seja, antes do sucesso das cirurgias plásticas e da propaganda turística, existe uma tendência histórica na qual o Brasil deveria corresponder às qualidades de um verdadeiro Éden. Por exemplo, o sonho de encontrar um Novo Mundo, repleto de riquezas naturais, preservado de dilúvios, rico em ouro e pedras preciosas já era conhecido dos teólogos da Idade Média. Nesse caso, o Paraíso Terreal não representava “apenas um mundo intangível, incorpóreo, perdido no começo dos tempos, nem simplesmente alguma fantasia vagamente piedosa, e sim uma realidade ainda presente em sítio recôndito, mas porventura acessível” (Holanda:2007, IX-X).
9Mitos tradicionais foram atualizados com a descoberta do Novo Mundo e, a partir deles, o Brasil foi inúmeras vezes representado como uma terra abençoada, na qual tudo era dom de Deus e não o resultado do árduo trabalho humano. Ao contrário de uma natureza avara, a brasileira seria dadivosa: “enquanto que no Velho Mundo a natureza avaramente regateava suas dádivas, repartindo-as por estações e só beneficiando os previdentes, os diligentes, os pacientes no paraíso americano ela se entregava imediatamente em sua plenitude, sem a dura necessidade”. (Holanda:2007, X)
- 4 Renato Khel, por exemplo, célebre eugenista brasileiro, escreveu sobre as diferenças entre as feias (...)
10Entretanto, ao longo da história brasileira, o mito edênico não cessou de ser contraposto à imagem de um país cindido, identificado por gritantes contrastes geográficos, sociais e econômicos. A ilusão do paraíso, no qual a exuberância natural casar-se-ia com a inocência do seu povo, não resistiu às críticas, especialmente àquelas do século passado, indicadoras da forte permanência do racismo, do autoritarismo e da injustiça social entre os brasileiros. Mesmo antes do sociólogo francês Roger Bastide considerar o Brasil uma “terra de contrastes”, poetas romanticos do século anterior mostraram o quanto a morada idílica de um povo inocente e selvagem havia sido manchada pelo sistema escravocrata, cujo fim oficial ocorreu somente em 1888. Os brasileiros inconformados com a dissonância entre a ideia de um paraíso tropical, como simples moldura da injustiça oriunda da escravidão, não foram poucos (Bosi, 1992:232). Mesmo após a abolição, o valor positivo da mistura das raças existente no país não foi suficiente para calar aqueles que desejavam branquear a todos. A ideologia do “branqueamento” foi forte durante a primeira metade do século passado, quando era possível encontrar nas revistas femininas o desprezo pelas peles “muito morenas” também chamadas pejorativamente de “peles encardidas”, como se estas fossem sujas e devessem portanto ser limpadas. Mácula para uns, virtude para outros, a diversidade dos tipos físicos existente no Brasil também passou pelo crivo de escritores que execravam o que chamavam de feiura resultante da mistura das raças.4
11Após a Segunda Guerra Mundial, em plena voga desenvolvimentista característica do governo de Juscelino Kubischeck, o francês Jacques Lambert, publicou o livro, Le Brésil: structures sociales et institutions politiques, cuja tradução foi intitulada Os dois Brasis. A partir dessa obra, a imagem de um Brasil cindido entre modernidade e arcaísmo dominou uma parte importante das pesquisas interessadas em compreender a realidade nacional. E, embora esta duplicidade fosse menos exata geograficamente do que parecia àquele autor, ainda hoje há a tendência em recorrer à suposição de um Brasil dividido sempre que se quer denunciar as injustiças sociais, inclusive as gritantes diferenças entre aqueles que podem consumir produtos e serviços de qualidade para a melhoria corporal e aqueles pouco incluídos nesse consumo.
12Mas a valorização da beleza física entre os brasileiros nem sempre foi definida e tratada da mesma maneira. Se hoje ela é, em grande medida, fabricada cirúrgica e cosmeticamente, antes de meados do século XX, os padrões de beleza falavam muito mais em nome de intervenções externas ao corpo. Ou seja, o embelezamento abarcava roupas, calçados e adereços; os conselhos dirigidos às mulheres focavam sobretudo a pele do rosto e os cabelos, concentrando-se nas partes físicas mais expostas ao olhar alheio. Já para os homens, além do cuidado com as vestimentas, para manter a o garbo era preciso cuidar dos cabelos, do bigode e da barba. Algumas cintas destinadas a “afinar o talhe” respondiam muito mais à necessidade de cultivar “a elegância das linhas” do que de construir para si mesmo uma “boa forma”.
13Mesmo que o advento da República tenha representado um passo importante na direção da expectativa de modernizar o Brasil, tal como pretendiam as elites locais, apenas uma minoria da população possuía acesso aos bens e serviços industrializados, destinados a embelezar segundo o último grito da moda francesa. Para a maior parte da população, residente no meio rural, o embelezamento contava, em geral, com o uso de plantas e receitas caseiras, transmitidas oralmente entre familiares e amigos. Tratava-se de uma experiência mais extraordinária do que cotidiana, ligada a ocasiões especiais, tais como festas e cerimônias.
14É claro que para as elites urbanas do começo da República, a moda francesa, mais do que a americana, ocupava um lugar privilegiado nas referências do que era ser civilizado e elegante. Entre 1900 e 1910, por exemplo, o mundanismo da cidade do Rio de Janeiro, capital do país na época, era favorável à uma beleza fabricada graças ao uso espartilhos, perfumes e tinturas para os cabelos, além de um apreço rigoroso por vários adereços. Entretanto, a intervenção nas formas corporais em nome da beleza ainda não devia ser atribuída à ginástica ou aos esportes, especialmente quando se tinha mais de 30 anos. Da mesma maneira, as cirurgias plásticas estavam longe de integrar com naturalidade as reportagens dos jornais e revistas do país. As alusões à beleza espiritual eram ainda bastante comuns na imprensa feminina e nos manuais de civilidade destinados à mulher. Na década de 1930, o médico Hernani de Irajá, por exemplo, mostrou o quanto a beleza da alma podia não apenas compensar a falta da beleza física mas ultrapassá-la em importância e valor (Irajá, 1932: 16-17)
15Na verdade, antes da década de 1950, o embelezamento costumava ser visto como um sinal de vaidade e não propriamente como uma necessidade diária. Raramente o cuidado com a aparência era considerado uma experiência propiciadora do que hoje é chamado de “autoestima”. Ver-se no espelho não era ainda uma experiência frequente e esse objeto não estava presente em vários locais nos quais hoje ele reina. O uso de cosméticos, especialmente da maquiagem, ainda parecia algo suspeito, típico de uma vida libertina. O espectro da “mulher fácil” embaraçava o consumo de produtos para a formosura. A libertinagem era representada pelas publicações chamadas “galantes”, nas quais a nudez feminina era representada juntamente com o gosto por vaidades, ociosidade e prazer sexual.
16Para as brasileiras consideradas de boa família, a beleza verdadeira devia ser um “dom divino”, mais do que um trabalho sobre si. Além disso, num país no qual o espectro da fome era comum, os regimes para emagrecer tendiam a ser menos importantes do que aqueles para engordar. Durante décadas, foi mais comum associar a formosura à gordura, como se o corpo fosse um “armazém” que deveria estar sempre bem guarnecido. Acreditava-se que os dons divinos revelavam-se nos corpos harmoniosos em relação às forças naturais que os envolviam. Em suma, a autonomia do corpo, masculino ou feminino, demorou décadas até adquirir algum direito de se expor e de se impor dentro da sociedade brasileira.
17A obsessão em parecer moderno e civilizado à moda europeia desdobrava-se em três necessidades consideradas urgentes às elites republicanas: a adoção de novas tecnologias, a civilização dos corpos e a dominação das forças da natureza. Ora, ao longo do último século, o embelezamento produzido pela emergente indústria de cosméticos e, mais tarde, pelas cirurgias plásticas, foi uma maneira de responder a essas necessidades.
Academia em Brasília
Camilla Amaral 2003
18Após a década de 1950, principalmente, quando a população urbana se tornou maior do que aquela do meio rural, o “american way of life” penetrou na propaganda e no cotidiano dos brasileiros dos setores médios em ascensão, facilitando a transformação do embelezamento em tema privilegiado da imprensa nacional. É quando conforto e bem-estar viram valores essenciais para uma vida considerada moderna e uma aparência bela. No caso feminino, as exigências com o corpo aumentaram, na proporção em que este passou a se expor mais em praias, piscinas, nas imagens publicitárias e cinematográficas. O embelezamento passou a ser anunciado como um direito de todas as mulheres, jovens e idosas, ricas e pobres, uma necessidade que começa muito cedo e não tem hora para acabar.
19Mas foi somente a partir das décadas de 1960 e 1970 que a propaganda em prol das cirurgias plásticas ganhou destaque na imprensa. Alguns cirurgiões brasileiros se tornaram conhecidos mundialmente e a difusão das belezas cirurgicamente produzidas começaram a conquistar valores positivos, nunca antes admitidos. Ao mesmo tempo, as novelas da rede Globo de televisão exploraram intensamente a imagem da brasileira, ícone de beleza e sensualidade, justamente numa época de grande difusão da indústria turística nacional. Nos anos 1980, o Brasil não era mais visto apenas como um paraíso verde e sim como um país paradisíaco para quem quer, por meios cirúrgicos, rejuvenescer e se embelezar. Um país no qual as mulheres não se sentiriam incomodadas em aderir às novidades do mercado da beleza, nem de exibirem seus corpos modificados cirurgicamente. Um lugar repleto de clínicas de beleza e com cirurgiões famosos internacionalmente.
- 5 O estudo do imaginário relacionado às cirurgias plásticas é fruto de nossa pesquisa de campo realiz (...)
20Todavia, a aceitação da modificação das formas físicas por meio da cirurgia plástica, assim como a exibição dos corpos em praias e outros espaços públicos, não são tão fáceis para as brasileiras como muitas vezes se imagina. Há lugar determinado socialmente para mostrar e também para esconder as diversas partes do corpo, assim como normas para fazê-lo. Há prescrições da moda para tirar e colocar roupas, assim como usos do corpo – por exemplo, do sorriso e do jeito de andar – cujos significados respondem a jogos de poder locais. E há, principalmente, três tipos de imperativos que atravessam as diversas classes sociais brasileiras e explicam, em parte, o sucesso da indústria embelezadora no país.5
- 6 Expressão utilizada por Roberta Brandi Pfrimer in: A gravidez célebre, Mestrado, São Paulo: PUC-SP, (...)
21O primeiro refere-se à necessidade de rejuvenescer, um imperativo que, embora seja globalizado, é intensificado em países com uma população majoritariamente formada por jovens. A população brasileira, quando comparada com aquela de países europeus, se destaca pela quantidade significativa de pessoas que possuem menos de 40 anos de idade. Nessa situação, intensifica-se a exigência para apagar dos corpos as marcas da idade e, no caso da mulher que tem filhos, há também uma necessidade maior de apagar as marcas da maternidade. Enquanto uma profusão de imagens midiáticas valorizam a “barriga grávida” de celebridades,6 o corpo pós-parto é incitado a retornar rapidamente às formas físicas anteriores à gravidez. Existem exigências do mercado de trabalho e da moda segundo as quais o corpo verdadeiro, bem disposto e sedutor precisa ter seios e nádegas firmes, pele sem traços de flacidez ou rugas. Ou seja, num país de jovens, uma aparência física rejuvenescida representa uma promessa poderosa de não exclusão do mercado de trabalho e, também, das relações amorosas.
22O segundo imperativo, intimamente ligado ao primeiro, é o da urgência. Se a imagem do Brasil como um país do futuro foi amplamente divulgada na segunda metade do século passado pela publicidade turística, ela também foi acompanhada pelo seu oposto: trata-se do receio desse país não ter futuro. De onde se explica uma parte do déficit de confiança num tempo que virá e a necessidade de viver os prazeres aqui e agora. Em certa medida, esse sentimento de urgência favorece a retomada de um antigo valor, já presente na propaganda de remédios do século XIX: o milagre. As experiências que, como num passe de mágica, oferecem mais beleza e saúde rapidamente, gozam de prestígio, incluindo os procedimentos cirúrgicos para o rejuvenescimento e a beleza. Mas quando tudo tende a ser visto sob o prisma da urgência, como saber quais são as prioridades? Pode-se pensar que numa sociedade na qual a maior parte das metas tende a se tornar urgente, é difícil distinguir o que é importante daquilo que é secundário. Evidentemente o sentimento de urgência se manifesta em outras sociedades da época contemporânea. Contudo, no Brasil, o embelezamento considerado um “milagre cirúrgico”, por exemplo, tende a ser visto não apenas como uma maneira eficaz de fazer face às marcas do tempo sobre os corpos, mas uma prova – muitas vezes dita explicitamente - de que se possui tempo e dinheiro para cuidar de si.
23Além disso, a palavra milagre serve, várias vezes, para descrever a transformação vivida por meio cirúrgico. O milagre supõe que não é mais preciso um árduo e longo trabalho para melhorar as aparências. O milagre da medicina estética e das cirurgias forneceria ao médico o papel de um “conversor” fundamental e ao paciente a impressão de que conquistou um corpo “abençoado”.
24O milagre tende a ser uma ideia positiva entre as brasileiras que a ele se referem quando se submetem às injeções rejuvenescedoras. Portanto, trata-se de um milagre que não se opõe à ciência, mas diferente disso, foi por esta atualizado. De onde advém, em certa medida, a facilidade com que muitas brasileiras consideram que a cirurgia plástica é algo positivo e não necessariamente o último recurso quando todos os outros não mais resolvem. Eliminando rapidamente o indesejável, a cirurgia, tal como o milagre, também dispensa os esforços prolongados, necessários, por exemplo, em regimes e ginásticas. Aqui, o antigo mito de uma natureza que não exige de seus homens esforço nem labor reaparece. Como se o corpo tomasse esse lugar da natureza e devesse, tal como ela, ser sempre rico, exuberante e inesgotável em sua energia. Da beleza e da natureza como dons divinos, passa-se para a beleza e o corpo como resultados do milagre da medicina.
Caminhada a beira mar em Fortaleza
Hervé Théry 2003
25O terceiro imperativo, estreitamente relacionado aos dois primeiros, refere-se à necessidade de transformar os recursos e produtos de beleza em meios não apenas para alcançar a distinção social mas, principalmente, para ser bem sucedido. A cirurgia plástica representaria uma maneira de vencer a passagem do tempo para atender as urgências da vida, pois com um “novo corpo” - fabricado e ao mesmo tempo pensado como um “presente merecido” - espera-se viver com mais sucessos e menos penas. Um corpo rejuvenescido cirurgicamente aparece portanto como aquele capaz de conquistar um cotidiano mais certo do que inseguro, distante do espectro da velhice, da doença e sobretudo do abandono.
26Ao mesmo tempo, toda a medicina estética atual representaria uma espécie de “passarela”, capaz de fornecer acesso ao usufruto de uma tecnologia de ponta, a qual, no Brasil, sempre foi considerado um luxo. Graças a essas cirurgias, muitas brasileiras das classes médias baixas, por exemplo, esperam migrar do mundo incerto dos pobres para habitar o universo imaginado dos ricos.
27É preciso ainda considerar que, entre os brasileiros em geral, o ideal de um corpo individualizado, autônomo e livre nem sempre está muito distante do ideal que funciona como o seu contrário. Mais complicada ainda é a noção de “trabalho sobre si”, presente nos conselhos de beleza espalhados pelas revistas e programas de televisão. Esse trabalho não escapa completamente à tendência de esperar que a beleza funcione como um dom, não mais divino, mas sim fornecido pelas novidades da indústria e da ciência, sendo portanto passível de compra e venda.
28Resta que um rosto sem rugas evoca para muitos brasileiros uma vida distante das dificuldades que os mais pobres enfrentam diariamente. Assim, num universo imaginado de riquezas e ociosidades – como se fosse novamente um paraíso nos trópicos – seria possível aos brasileiros serem finalmente “proprietários de seus corpos”. A medicina estética seria uma maneira de torna-los donos de um corpo que no lugar de parecer um fardo ou um “peso morto”, seria um “corpo abençoado” e que, como tal, fornece apoio no lugar de atravancar. Muito do sucesso das imagens de uma beleza física brasileira passa por essa expectativa de “adquirir” um corpo capaz de surpreender positivamente o seu “dono”, sendo imune aos sofrimentos. Um corpo utópico, porque sempre forte e belo, mas que tende a ser visto como um corpo verdadeiro, possível de ser adquirido numa terra que afinal de contas ainda hoje é vista como sendo abençoada por Deus. Um corpo, em suma, sempre belo e portanto mais natural do que o corpo inato.
29Por fim, vale retomar mais uma vez a imagem de um Brasil naturalmente belo segundo a propaganda turística. Nesse caso, a visão tropical da natureza tende a ser aquela de uma potência gigantesca, com uma beleza e uma vitalidade inesgotáveis. Mas se o Brasil ainda hoje é identificado como um “gigante por sua própria natureza” o verdadeiro brasileiro seria então igualmente belo e potente. As cirurgias plásticas responderiam a essa espécie de cliché, mas elas também são vistas como uma espécie de ponte fabricada por cada um para escapar das desigualdades sociais: com um corpo e um rosto mais jovens e belos, espera-se conseguir uma espécie de conversão milagrosa para se afastar de uma vida de muito esforço, e, finalmente, descansar, tal qual a antiga imagem do Brasil, ou seja, como um belo “gigante adormecido”.