1O rearranjo e a conformação de antigas noções a novas realidades não ocorre, por assim dizer, na velocidade do pensamento autoral. A sucessão de etapas e períodos mais ou menos longos e de grandes incertezas é frequente toda vez que se põe em marcha um processo de desenvolvimento desse tipo. Não há linearidade e objetividade unívocas no trabalho paciente da elaboração conceitual, o qual, em muitas de suas etapas, ocorre quase que de forma inconsciente e sem a sistemática revisão, tão comum e esperada das ciências para que se preste à soldagem, em tempos de crise, dos estatutos epistemológicos fragmentados dos diversos campos disciplinares. A dinâmica do debate teórico-conceitual nas assim chamadas ciências humanas envolve crises, descontentamentos, expectativas, críticas e reelaborações até a consagração ou o destronamento de um novo conceito, cujo valor é dado pela aceitação do ajuste ao seu tempo. Se a colonização das Américas promoveu uma revolução no campo das mentalidades, o início de uma atividade regular de investigação social nas terras do novo mundo iria, igualmente, desestabilizar concepções fortemente arraigadas no imaginário e no trabalho disciplinar. O fenômeno da fronteira esteve, assim, intimamente ligado a toda essa modelagem complexa do conceito. As ideias que seguem se inserem no escopo da investigação sobre o ajuste e, mesmo, sobre a redefinição do conceito tradicional de região.
- 1 O método regional até esse período trazia consigo, de forma bastante arraigada, a observação como p (...)
- 2 “Se, por um lado, Pierre Monbeig foi formado na tradição das grandes teses regionais da escola fran (...)
- 3 Isso é o que fica evidente, por exemplo, nas observações feitas por Monbeig a respeito da cidade de (...)
2 Talvez o primeiro nome de peso a ligar o fenômeno da fronteira a uma interpretação reveladora das novas dinâmicas sociais e dos novos conteúdos associados às dinâmicas territoriais do além-mar tenha sido Frederick Jackson Turner. Mas, em terras mais ao sul, foi Pierre Monbeig quem condensou e deu início a uma revolução que ultrapassa aquela que recaiu diretamente sobre as formas de compreender a América e o Brasil. A condição que fez dele “um geógrafo pioneiro” – e, aqui, a riqueza do termo empregado por Martine Droulers e Hervé Théry (1991) remete simultaneamente à posição que o geógrafo ocupou em seu próprio campo disciplinar – o expôs também às solicitações do terreno em relação aos ajustes nos aportes conceituais da Geografia. É flagrante a desorganização pela qual passam os métodos e os conceitos herdados da tradicional Geografia Regional nas sucessivas e insistentes tentativas de compreensão da nova realidade. Monbeig teve de se empenhar num exame cuidadoso das categorias, métodos e conceitos transmitidos pelo grande mestre francês, ao mesmo tempo em que dava início a uma produção sistematizada de conhecimento sobre o território brasileiro. O vacilo da tradicional noção de região e do método vidaliano fica evidente a partir de dois movimentos importantes em seu trabalho. São eles: a percepção da fronteira como limite do emprego dos tradicionais métodos de regionalização e do consagrado conceito de região; e a proposição da monografia urbana. No primeiro caso, é o próprio conceito de região que, juntamente com os seus pressupostos tradicionais, começa a se desagregar como solução mais ou menos de ordem geral para os problemas de definição do “recorte”, da escala e do objeto dos estudos da Geografia. No segundo caso, a expectativa de se salvar o método das monografias, ainda útil nesse estágio “primitivo” da acumulação de conhecimentos sobre o terreno1 e elemento fundamental da formação do geógrafo francês nesse momento da história disciplinar2, aponta para a necessidade de revisão da escala na e para a qual ele foi forjado. Isto decorre do fato de que, dadas as condições observáveis em território brasileiro naquela ocasião, os elementos frequentemente utilizados nos procedimentos de regionalização ou na identificação do fato regional não estavam formados e, mesmo quando apresentavam algum contorno mais ou menos nítido, respeitavam a comportamentos distintos se comparados àqueles encontrados nos terrenos onde se originou o compêndio metodológico de base que orientava a produção das monografias regionais. No Brasil, a cidade e o fato urbano era aquilo que, ao mesmo tempo em que se apresentava como um fenômeno passível de conhecimento em seus diversos estágios e configurações, apesar de a extensão territorial e dos dados demográficos atrelados à urbanização apontarem uma grande margem para a expansão, o que se cumpriu em tempo relativamente curto, mantinha já um alinhamento a muitas das condições encontradas na Europa.3
3 Desse ponto de vista, não há dúvida de que, além de uma sutil e discreta, mas intensa, perspectiva revisionista que jazia naquele que chegava ao Brasil como estandarte de uma tradição das mais poderosas dentro do pensamento geográfico ocidental, as condições encontradas por aqui foram cruciais para os rumos de sua produção. De acordo com Hervé Théry (1991, p. 88), ao se interrogar sobre o fenômeno da fronteira, Pierre Monbeig “não encontra apoio muito firme nos fatores clássicos de regionalização”. A especificidade do fenômeno da fronteira se elabora como alteridade a partir do modelo social europeu, no interior do qual muitos dos conceitos primeiros da moderna Geografia foram forjados e ressignificados.
4As sociedades de fronteira, em contraste com o padrão sociogeográfico europeu, no qual o uso e o conhecimento de todo o espaço havia consolidado padrões regionais e de regionalização mais estáveis, se definem a partir de uma dinâmica territorial em constante avanço, capaz mesmo de redefinir constantemente, em função disso, os conteúdos dos espaços já explorados e mesmo distantes em relação à linha de expansão do processo de ocupação e exploração do território. No novo mundo, a dinâmica territorial de avanço da civilização ocidental, ao mesmo tempo em que exigia novos recursos teóricos e conceituais para a sua devida interpretação, abria um novo universo de possibilidades no campo disciplinar da Geografia. Para Monbeig, “toda região pioneira é essencialmente marginal, incerta e fugidia. Isso torna difícil, sem dúvida, sua cartografia exata. Mas, o valor de seu estudo reside precisamente no conhecimento de uma sociedade em movimento” (MONBEIG, 1966, p. 975). Talvez por isso, essa economia e sociedade de fronteira tenham sido definidas por Sérgio Buarque de Holanda mais como “uma forma de sociedade do que uma área geográfica” (HOLANDA, 1978, p. 27). Todo este universo, mesmo que exigente do desenvolvimento de novos recursos metodológicos e conceituais, poderia, no entanto, se coadunar perfeitamente com os fundamentos teóricos importados da velha Europa juntamente com os intelectuais fundadores. Mas os eventos da fronteira, se, por um lado, poderiam sugerir ao pesquisador um reforço da perspectiva essencialista da adaptabilidade do homem ao meio, normalmente como um desdobramento bem ancorado no princípio fundante do estatuto epistemológico da relação homem-natureza, um princípio genérico e maleável para muitas correntes, por outro, pareciam desestabilizar não somente um hábito disciplinar, ou os consagrados métodos e conceitos do grande edifício constituído da chamada Geografia Regional, mas também uma parte da forte tradição teórica desse imenso campo do conhecimento. Pierre Monbeig, diante do fenômeno das franjas pioneiras, recusou a tentação naturalista de observar e descrever in statu nascendi os princípios disciplinares que trazia da Europa e soube, por isso, apresentar caminhos inusitados diante de uma nova realidade que se apresentava para o conhecimento, sem se livrar, no entanto, da tensão entre a bagagem epistêmica e a pressão do universo de experiências adquirido da fronteira.
- 4 Evidentemente, é possível notar uma inclinação intelectual anterior de Monbeig aos assuntos de orde (...)
5As “franjas pioneiras”, por serem frequentemente interpretadas como situações nas quais o homem inicia um relacionamento com a “natureza ainda não-humanizada”, guardavam o potencial, naquele momento, de se colocarem como o objeto por excelência de reforço dos princípios unificadores e legitimadores da ciência geográfica; eram quase, para muitos, o fundamento material do princípio ecológico da relação homem-natureza. Mas Monbeig não seguiu a via do caminho mais fácil e acabou, por isso, promovendo uma dissonância no âmbito da Geografia Regional. No entanto, na condição de um importante ponto de alavancagem para o desenvolvimento teórico e conceitual da Geografia, é comum notarmos uma tensão no interior de sua produção entre o arcabouço conceitual com que chegou para o desvendamento da nova realidade e aquele que desenvolve e adquire durante o trabalho de pesquisa e reflexão empreendido no novo mundo4. Em seus textos e digressões metodológicos, muitas vezes, Monbeig recuperou, fez uso e enfatizou a pertinência de concepções que vinham sendo, pouco a pouco, superadas no interior de sua própria produção acadêmica e pelo dinamismo do seu pensamento na interpretação da realidade.
- 5 “Vidal, ele mesmo, devia bastante à Michelet por seu interesse pela vida dos povos do passado. Além (...)
6 Os conceitos de meio, de ambiente e de ecúmeno (oekoumène), que são frequentes em alguns trabalhos de Monbeig, vêm de longe. Ora, “como todos os geógrafos formados entre as duas guerras, Pierre Monbeig deve sua concepção da ciência geográfica a Paul Vidal de La Blache”. Além de ter contribuído “na organização do ensino superior de Geografia na França”, Vidal “deu as primeiras bases científicas da Geografia Humana no seu livro-testamento: Les principes de géographie humaine” (DROULERS, 1991, p. 35). A influência do grande mestre francês, no entanto, na análise da “formação da escola francesa” feita por Vincent Berdoulay, estende-se também na medida em que geógrafos “vidalianos” começam de plus en plus ocupar importantes cargos nas instituições francesas (BERDOULAY, 1995, 175-181). Essa escola fundamentou a noção de região e a própria Geografia Regional no princípio ecológico da relação homem-natureza. De acordo com Milton Santos, em Vidal de La Blache “o espaço como objeto de estudo seria o resultado de uma interação entre uma sociedade localizada e um dado meio natural”. Esse seria “um argumento sob medida para reforçar a ideia de região como unidade do estudo geográfico” (SANTOS, 1996, p. 19). “O conceito de gênero de vida proposto por Vidal de La Blache é também um desses numerosos paradigmas que orientaram a geografia humana moderna. Segundo esse enfoque, seria por intermédio de uma série de técnicas confundidas com uma cultura local que o homem entra em relação com a natureza” (SANTOS, 1996, p. 19). Tais “gêneros de vida”, como fundamento da geografia regional de orientação viadaliana e sob a forma em que foram amplamente apreendidos por grande parte da comunidade acadêmica de geógrafos, revelariam “os meios desenvolvidos por uma coletividade para sua sobrevivência, ultrapassando em diversos graus o desafio da natureza num meio concreto e imediato. Eles são o fruto de escolhas humanas face ao ambiente”, sendo os gêneros de vida atuais “os resultados contingentes de gêneros de vida anteriores” (GOMES, 1993, p. 94). Esse princípio de conectividade histórica, herdada do campo acadêmico da História Local5, acabava por fortalecer “uma certa estrutura circular” que amarrava a noção de gênero de vida aos arranjos e soluções de caráter local, que se voltam sobre si mesmos a partir de uma estrutura de relacionamento entre o homem e seu meio, assim como as próprias noções de meio, ecúmeno, ambiente e organismo. Considerando que a Geografia que se desprende daqui assumiu dimensões planetárias e, mesmo, a partir da relação homem-meio, passou a dar os fundamentos de seu campo disciplinar, pode-se entender a persistência de alguns conceitos no seio de uma revolução em curso que recaía, acima de tudo, sobre o próprio repertório conceitual e sua matriz teórico-epistemológica.
A galaxia intelectual de Pierre Monbeig
Martine Droulers, exposicão Espaços-tempos do Brasil, 2009
- 6 Na segunda parte dos Principes, Vidal de La Blache, abordando a temática que ele mesmo define como (...)
- 7 Apesar da dificuldade de aceitação no debate epistemológico contemporâneo do argumento, Antônio Car (...)
7O problema ligado ao emprego das noções de meio, de ambiente, de ecúmeno ou à manutenção da relação homem-meio como princípio fundante do campo disciplinar consiste, no entanto, no fato de que esse universo teórico e conceitual tenha sido traçado sob a forte influência de uma perspectiva ecológica que se define a partir do duplo pressuposto da tendência ao equilíbrio e da horizontalidade nas relações dos homens entre si e entre o homem e a natureza6. A identidade com a perspectiva das teorias neoclássicas e a inspiração de natureza essencialmente liberal que se pode rastrear a partir daqui não é fortuita de acordo com algumas correntes que põe em destaque a relação da Geografia institucional com seus Estados de origem. Para Antonio Carlos Robert Moraes, o liberalismo reinante na organização política francesa nesse momento se coloca como um ponto importante em oposição ao quadro semi-totalitário alemão de um Estado recém-constituído e de forte participação na organização social e econômica de seu país. Além disso, a própria influência do liberalismo teórico no ambiente intelectual francês é mais completa. Se Ratzel foi acusado de naturalizar o homem por conta da adoção dos métodos próprios das ciências naturais, pesou sobre La Blache, muitas vezes, a sugestão de que ele teria lançado mão de uma concepção de homem típica do liberalismo, um homem abstrato, portanto. Como crítico da naturalização e da passividade do elemento humano na teoria de Ratzel, La Blache defendeu a criatividade como forma de atividade e de expressão da liberdade como características humanas que se manifestam em sua relação com o meio. Daí a origem de sua Geografia Humana. No entanto, e em função disso, algumas interpretações apontaram para o caráter solidário e para a soldagem interna que atingiram o elemento social posto diante da natureza (generosa ou hostil)7. Haveria, assim, uma espécie de “natureza humana”. Devemos encarar o fato, no entanto, de que, em nosso tempo, as necessidades sociais são decorrentes de um mesmo regime social que as produz como forma de reproduzir a si mesmo, ultrapassando os termos propostos por um quadro idílico que pretende analisar a sociedade e seu meio a partir de uma concepção ecológica da relação homem-natureza. Apesar da sensibilidade patente de Monbeig a essa crítica, contudo, o recorrente retorno ao pressuposto da fundamentação disciplinar na relação homem-meio aprisionou, aparentemente, uma parte de seu trabalho no âmbito do universo conceitual da Geografia da grande escola.
8Em O estudo geográfico das cidades, um artigo de intenções e caráter quase que exclusivamente metodológicos, esse quadro se define com mais clareza. Em diversas passagens, Monbeig retorna a um pressuposto da fundamentação disciplinar que já se põe em descompasso com o avanço do seu próprio trabalho e com as novas descobertas exigentes de outros parâmetros para a ciência geográfica. Mesmo nesse artigo de interesse da Geografia Urbana, Monbeig defende que “a monografia geográfica de uma cidade permanece fiel ao método geográfico e a seu princípio, que é o estudo das relações das sociedades humanas com o meio natural no passado e no presente” (MONBEIG, 2004, p. 280). Um desdobramento lógico da persistência desse princípio em seu trabalho encontra-se no fato de que, desse ponto de vista, “o ponto de partida de toda pesquisa de geografia urbana é pois o estudo do quadro natural em que nasceu e cresceu a cidade”. Deste modo, para Monbeig, no gesto inicial do pesquisador, “deve-se, em suma, fazer tábula rasa de tudo o que os homens puderam acrescentar ao cenário natural por meio de suas casas, estradas etc.” (MONBEIG, 2004, p. 281). E, assim, do que decorre desse posicionamento, resta uma avaliação da atividade humana mais como adaptação do que como produção. O protagonismo da atividade e criatividade humanas previstas no escopo da teoria vidaliana limita-se, nesses termos, à adaptação, tendo a natureza e as condições do meio físico como o limite e as possibilidades de um determinado grupo humano. Assim, a partir dessa orientação, “pode-se pensar que as maiores cidades modernas são o tipo mais acabado de uma perfeita adaptação da técnica humana às condições do meio” (MONBEIG, 2004, p. 299).
9A justificativa da Geografia Urbana como campo legítimo estabelecido no interior do grande ramo disciplinar da Geografia Humana foi feita por Pierre Monbeig, em 1941, utilizando-se de uma suposta acentuação das exigências que faziam da Geografia, como um todo e em seus sub-ramos, uma ciência de síntese, um tronco do saber nascido do potencial de agrupamento dos diversos saberes. Para Monbeig, é no ramo da Geografia Urbana que “o geógrafo vê-se, então, mais que em qualquer outro terreno familiar às suas pesquisas, levado a trabalhar com auxílio dos historiadores, dos sociólogos e dos economistas e, mais ainda, a consultar os técnicos das cidades que são os urbanistas. Assim, o caráter eminentemente sintético da geografia humana se acha acentuado nos inquéritos de geografia urbana” (MONBEIG, 2004, p. 278).
Pierre Monbeig na USP com colegas do Departamento de geografia
Fonte: USP
10Essa perspectiva revela, além do mais, de forma associada, uma determinada concepção de espaço. Aqui, os desdobramentos do campo epistemológico rebatem diretamente não só no horizonte metodológico como também, e marcadamente, no campo teórico e das definições conceituais. Na medida em que a especificidade disciplinar da ciência que se ocupa do espaço consiste em tomar para si a tarefa de realização da síntese dos objetos, dos elementos e das conclusões que são próprios de outros campos do conhecimento, porque os reconhece como partes integrantes não só do saber geográfico mas, fundamentalmente, como conteúdos dispostos “sobre” uma determinada superfície de interesse do geógrafo, essa ciência assume para si que o espaço se manifesta e ganha existência meramente como lugar de uma imensa coleção de ações e objetos, um suporte onde tudo se encontra a partir de uma dada “organização”, um verdadeiro depositário. O método das monografias regionais e, mais tarde, urbanas é revelador dessa concepção que será duradoura na Geografia, mesmo depois de suas renovações pragmática (quantitativa) e crítica. Nesta questão particular, o debate entre uma postura metodológica de propensão idiográfica ou nomotética pouco altera o cerne da questão. Assim como o problema segundo o qual se questiona tratar-se de uma ciência humana ou natural, não deverá alterar substancialmente as concepções basais da disciplina – talvez se mude aqui exclusivamente o conjunto de fenômenos e dos especialistas em questão.
11A concepção que situa o espaço como suporte das atividades e das coisas é duradoura, pois constitui um elo importante entre elementos e objetos disciplinares dificilmente convergentes. A questão posta pelo neokantismo, da separação entre as ciências humanas e as ciências naturais a partir de seus métodos e objetos, foi introjetada como um problema disciplinar pela comunidade de geógrafos. A indefinição quanto ao caráter humano ou natural da disciplina foi apontado por muitos como o fundamento da crise que acompanha, desde o nascimento, a evolução da Geografia moderna. A análise de Sandra Lencioni (2009, pp. 87 e 122), no entanto, situa o ponto dessa crise fundante da Geografia moderna e das questões epistemológicas da disciplina não somente como um dado endógeno ou estrutural da própria ciência geográfica. A separação do universo científico entre campos teóricos e metodológicos distintos, levantada sobretudo a partir da influência neokantiana (no campo da economia esse debate já estava posto desde meados do século XIX por John Stuart Mill), relegou à Geografia uma posição pouco ajustada aos novos parâmetros que regulavam o campo de legitimidade científica nesses termos.
12As três perspectivas mais significativas que conseguiram elaborar ao menos um esboço de resposta às questões levantadas a partir da divisão entre as ciências humanas e naturais, que inquiriam também sobre o lugar da Geografia, e que, por isso, podem ser encontradas até hoje são definidas por: (1) aquela que fundamenta o estatuto epistemológico da geografia na condição de ser esta uma ciência de síntese; (2) aquelas orientações fundadas na definição do campo específico da Geografia a partir do estudo das relações homem-meio; e (3) aquelas vertentes empenhadas em garantir um lugar à Geografia a partir de uma perspectiva comparativa (diferenças e similitudes) entre unidades geográficas não coincidentes. Entre essas três perspectivas há uma aproximação por identidade ou complementação. De certa forma, todas elas fundamentam a perspectiva de ser a Geografia uma ciência de síntese. A base da investigação das relações homem-meio, após a aceitação dos parâmetros sancionados durante a revolução neokantiana, deve recorrer simultaneamente a elementos próprios do conjunto das disciplinas chamadas humanas e daquelas classificadas como naturais. A perspectiva comparativa, sendo ela o elemento forte de distinção do campo disciplinar, deve igualmente orientar seu inquérito a partir dos conhecimentos produzidos por outras ciências. Outro aspecto que aparece com força a partir de uma relação de reforço mútuo entre essas perspectivas é a dimensão regional como unidade básica dos inquéritos da Geografia. A região foi frequentemente defendida, com propriedade, a partir das três perspectivas. Ela foi o objeto e o caminho da síntese dos conhecimentos, o ambiente da relação e da união entre os aspectos sociológicos, econômicos, botânicos, pedológicos, geomorfológicos, geológicos, hidrográficos, climáticos etc. Assim sendo, foi também encarada como o lugar da união e da observação da relação entre o homem e a natureza e, finalmente, constituiu-se, para parte da ciência geográfica, como a unidade básica da diferenciação e comparação entre as partes da superfície terrestre. Esse conjunto de relações recíprocas fortaleceu, simultaneamente, as três perspectivas e acabou por prorrogar a duração desses enunciados no centro do sistema normativo da ciência geográfica. No entanto, a fragilidade dessas definições, que permaneceu escondida no conjunto introvertido das relações mutuamente legitimadoras existentes entre cada um daqueles princípios, aparece em face de considerações externas ao ambiente lógico auto-referenciado de seu próprio sistema de certificação.
13O emprego da noção de síntese como elemento distintivo da posição da Geografia no rol da comunidade das ciências (“duras” ou humanas) nunca funcionou efetivamente nem dentro e muito menos fora da própria Geografia. “Primeiro, porque a geografia jamais desenvolveu o instrumental necessário para realizar a necessária síntese; segundo, porque é uma estultícia reservar esse papel de escol para uma só disciplina. Todas as ciências são de síntese ou simplesmente não são ciências” (SANTOS, 1996, pp. 97-98). Essa pretensão somente afastou ainda mais a Geografia das demais ciências das quais devia se aproximar, prejudicando mesmo internamente a sustentação de um discurso já fragilizado no nascedouro: o da interdisciplinaridade congênita do geógrafo. Assim, a concepção de espaço que emerge daí, colocando-o como substrato dessa imensa coleção de ações e objetos, atribuídos cada qual a um determinado ramo do conhecimento, além de reforçar a inércia como uma característica própria do objeto central da disciplina (o que se tornou especialmente problemático a partir da verificação do dinamismo atribuído ao tempo como campo elementar das disciplinas históricas), retirava do geógrafo a especificidade e, por consequência, a pertinência de seu trabalho.
14Com relação à definição ecológica de região como a unidade básica da investigação geográfica, ela sugere também alguns percalços. Partindo da hipótese de que o princípio epistemológico da relação homem-meio, quando posto a serviço da definição do objeto regional como unidade elementar do estudo geográfico, coloca empecilhos para a generalização da aplicação dos métodos e teorias para quaisquer outras escalas espaciais, a própria proposição, exatamente nesses termos, de uma “monografia urbana” guarda algo da intuição de algum tipo de insuficiência dos métodos e princípios da então tradicional Geografia Regional. Tomando como ponto de partida o fato de que, do ponto de vista ecológico, na relação homem-meio o segundo termo se remete a algo histórica ou logicamente anterior e, portanto, portador de uma substância “não-humana”, a Geografia Urbana é uma preocupação derivada e não essencial. A unidade básica, nesses termos, é a região como o conjunto expressivo das formas adaptativas que revelam as técnicas e, consequentemente, um gênero de vida locais próprios de uma unidade que antecede e se impõe às soluções de uma ordem distante, ela é o resultado direto e mais amplo que nasce na relação desse homem com o seu meio. A cidade aqui é um objeto, muitas vezes importante e até estrutural, é certo, mas apenas um elemento da região; é, afinal de contas, uma solução adaptativa que revela a identidade regional. Talvez tenha sido por isso que, em La France de l’Est, Vidal de La Blache tenha assumido que a “cidade cria a região”, mas, ainda assim, dá pouca importância a ela. A importância que a noção de gênero de vida assume nessa vertente somente torna a perspectiva dos estudos urbanos cada vez mais distante do centro de preocupações de uma disciplina que se forma num mundo cada vez mais urbano.
15Em Monbeig, a tensão entre a bagagem epistêmica e sua forma de observar os fenômenos sociais se tornou a fonte do potencial inovador de seu trabalho. Ao mesmo tempo em que as dificuldades para aplicar e lidar com os padrões clássicos dos estudos regionais iam surgindo no contato com a realidade da fronteira, a estrutura e a forma de tratamento típicos das monografias regionais ainda pesavam sobre as opções feitas no curso das pesquisas e das orientações. Esse desacordo entre a estrutura formal e a dinâmica do conteúdo será, aqui, o germe crítico que vai resultar numa grande reviravolta do pensamento geográfico nesse autor. Por isso, a maior importância de Monbeig, para nós, não está na sua capacidade de aplicar o método apreendido com os mestres franceses, mas na sua sensibilidade às novas demandas do real. Se as fragilidades do arcabouço tradicional, tal como vinha sendo aplicado na Geografia, já davam sinais no trabalho de Monbeig, o que surpreende, muitas vezes, é a potência crítica trazida no conjunto de suas reflexões que aponta para uma necessidade de renovação que só se concretizaria algo entre 15 ou 20 anos mais tarde. Desembaraçando esse conteúdo revolucionário do repertório conceitual anterior, nota-se uma nova Geografia nascendo dos trópicos.
16No mesmo O estudo geográfico das cidades, o princípio normativo disciplinar da relação homem-meio, tal qual definido acima, apesar de não ter sido o primeiro e nem o único, foi o elemento estrutural que começou a ser abalado a partir das novas descobertas nos trópicos. A preponderância do fator econômico e das articulações multiescalares que uma economia observada em seus amplos aspectos sugere exigia do trabalho de Monbeig uma revisão do princípio ecológico como fundamento epistemológico da Geografia. O elemento financeiro ganha destaque como elo de conexão entre as diversas escalas que acabam suplantando simultaneamente tanto o pressuposto fundamental da relação ecológica homem-meio quanto os padrões da produção disciplinar fundados na escala e nos princípios da tradicional Geografia Regional. De certa forma, a partir do reconhecimento de uma ruptura histórica no âmbito social e econômico, Monbeig, mesmo que mantendo em seus textos parte do arcabouço metodológico e conceitual que se remete diretamente a essas heranças da tradição francesa, destrona o princípio ecológico da relação homem-meio como um elemento central e estruturante do estatuto epistemológico de sua disciplina. É nesse sentido que, para ele, “as revoluções industriais ocidentais substituíram o meio natural por um novo meio, mas à condição de se acrescentar que este é constituído tanto pelos mecanismos financeiros quanto pelas técnicas do maquinismo” (MONBEIG, 2004, p. 304). Nas franjas pioneiras do estado de São Paulo, observa Monbeig, “após a construção das máquinas de beneficiar café etc., o estabelecimento das sucursais dos grandes bancos é um índice seguro da solidez do organismo urbano e de seu enraizamento” (MONBEIG, 2004, p. 304).
Pierre Monbeig em campo
Fonte: excursão AGB em Santa Catarina
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17 Essa mesma linha de argumentação aparece ainda com mais força e mais bem delineada num trabalho da maturidade escrito após a publicação de sua tese e de seu retorno à França. Em Capital e geografia, Monbeig apresenta sua crítica ao emprego tradicional do conceito estruturante de gênero de vida de modo a implodir a sua relação direta com o conceito de região. Além de exigir a consideração dos aspectos econômicos e financeiros como um elemento organizador da vida e dos espaços nas regiões de fronteira, coisa que o habitus disciplinar desprezava até então, Pierre Monbeig, ao tecer suas considerações sobre a pertinência desses elementos na análise geográfica, ressalta tanto o papel das determinações extra-regionais e sobre-escalares na relação entre o homem e seu espaço8 quanto o impulso constituído pelo capital à dissolução do gênero de vida e da própria organização regional a partir dele estruturada9. A preponderância dos fatores naturais, também pressuposta nos conceitos de base ecológica de “meio”, “ambiente” ou “ecúmeno”, é assim deslocada do centro de preocupação da disciplina. Observando diferentes formas de uso e ocupação do solo, diferentes dinâmicas territoriais, Monbeig afirma que “os processos de financiamento criam, pois, analogias, que se superpõem às diferenças do meio geográfico” (MONBEIG, 1957a, p. 221). Para ele, “cabe aqui perguntar se não se devia proceder à revisão da cartografia costumeira dos modos de ocupação do solo e da economia em função dos grandes quadros naturais e, eventualmente, substituí-la por uma cartografia baseada nos modos de utilização do capital” (MONBEIG, 1957a, p. 221). Assim, vê-se em operação, além da substituição de concepções clássicas e de uma certa crise que chega ao âmbito disciplinar da Geografia, o reconhecimento de que as mudanças exigidas no campo conceitual e epistemológico partem diretamente de mudanças estruturais que vêm ocorrendo na realidade objetiva das dinâmicas observadas pela disciplina. O vacilo da concepção ecológica da relação homem-natureza como princípio fundante do campo disciplinar da Geografia deve muito, nesses termos, ao trabalho atento ao terreno que Pierre Monbeig realizou. A forma de coalisão e ajuste entre formação e experiência em Pierre Monbeig surge com um tipo de periodização silenciosa, aplicada em diversos momentos de sua obra, que marca, a bem da verdade, os pontos de ruptura entre o geógrafo e sua Geografia maternelle.
- 10 Agradeço a precisa sugestão de Hervé Théry a respeito dessa temática, a qual incorporo nestes dois (...)
- 11 “A tese complementar sobre o crescimento da cidade de São Paulo demonstrou o interesse que Pierre M (...)
- 12 “Nesse país insensato, onde se dá às regiões os nomes das linhas férreas, Pierre Monbeig tem todas (...)
18Se, por um lado, a intuição crítica a respeito do patrimônio regional já aparece em O estudo geográfico das cidades, e também aí Monbeig dá fortes demonstrativos da insuficiência dos métodos e pressupostos dos trabalhos monográficos dos quais ainda pretende salvar a estrutura, por outro, há de se considerar que talvez tenha sido mais o conjunto de trabalhos sobre a fronteira do que os trabalhos de Geografia Urbana a serem aqueles que se colocam na origem de uma transformação radical. Se havia algo de significativo no fato de Monbeig ter “puxado” a escala e a unidade geográfica das monografias para o espaço urbano, isso pode ser observado já como decorrência da percepção de uma instabilidade dos tradicionais conceitos da consagrada Geografia Regional. Além disso, ao escolher escrever uma tese complementar de Geografia Urbana, Pierre Monbeig rompia com outro tabu. Normalmente, em seu tempo, os geógrafos faziam a opção de redigir uma tese complementar de Geografia Física quando a tese principal era de Geografia Humana, e vice-versa10. Assim ele foi capaz de, deslocando a temática no interior do grande campo da Geografia Humana, relacionar diferentes escalas da realidade social e atrelar o fenômeno urbano brasileiro ao movimento pioneiro. Mas a observação de que a cidade e a urbanização do território apareciam como o conteúdo e o produto privilegiado e de maior estabilidade na ordem dessa “sociedade em movimento”, apesar de guardar a potência de uma importante chave de interpretação da dinâmica geografia econômica brasileira, não constituiu elemento central de suas preocupações. Assim como para La Blache, a cidade foi também para Monbeig um elemento nas considerações elaboradas numa escala bem mais ampla11. O que estava em profunda transformação eram as formas de encarar os fenômenos geográficos e seus instrumentais teóricos, conceituais e metodológicos12.
- 13 A tensão entre as distintas perspectivas chega a aparecer no mesmo parágrafo: “Uma região pioneira (...)
- 14 Essa não foi uma experiência significativa exclusivamente para a Geografia. Roger Bastide também de (...)
19Em Les franges pionnières, duas concepções divergentes de ecúmeno parecem habitar o mesmo texto. Uma, que vem da antiga tradição do pensamento geográfico francês, concebe o homem como uma entidade (universal) definida em relação à natureza. Desse ponto de vista, não haveria cisões ou divisões no interior da humanidade concebida (mas não problematizada) em termos abstratos como unidade, o que desloca do primeiro plano as relações sociais (entre os homens). A humanidade e “o homem” são tomados por analogia como a espécie, nos termos do tratamento dado pela biologia, ou são reduzidos a um conjunto de indivíduos idênticos, como por influência dos parâmetros categoriais apriorísticos que descendem do liberalismo clássico. O ecúmeno aqui é a área ocupada e utilizada por toda a humanidade, ou, como aparece algumas vezes, a genérica “natureza humanizada”. A outra concepção, que é, a bem da verdade, a concepção emergente e que, na perspectiva aqui adotada, qualifica o trabalho de Pierre Monbeig, representa uma ruptura com o pano de fundo teórico e conceitual dessa perspectiva ecológica. Nessa concepção, a sociedade humana aparece cindida pela desigualdade entre grupos sociais distintos que lutam entre si e o ecúmeno é considerado como sendo, mais próximo dos termos em que foi concebido o espaço vital ratzeliano, o espaço de abrangência de um determinado grupo social, povo ou formação econômica13. A universalidade, ou melhor, a totalidade, nessa perspectiva, é mediada e alcançada a partir de categorias histórico-sociais críticas. Nesses termos, o estudo das franjas pioneiras modernas tem interesse para a compreensão da “integração de todas as partes do mundo num só espaço econômico cuja unidade de direção pertencia à Europa. Onde quer que elas fossem situadas, os avanços pioneiros recebiam seu impulso da Europa e, sobretudo, da Europa Ocidental” (MONBEIG, 1966, p. 979). “Triunfo da Europa”, continua. “Mais ainda, triunfo da raça branca, crescimento e unidade do mundo livre-cambista” (MONBEIG, 1966, p. 980). A partir desse entendimento, a totalidade buscada por Pierre Monbeig não pode ser considerada uma simples tradução da “ideia de unidade terrestre”, nos termos de Vidal de la Blache, ou do “princípio de conectividade”, como para Jean Brunhes. Trata-se de uma totalidade essencialmente não harmônica e conflituosa, descoberta nos trópicos e pela desigualdade social desvelada nas zonas de contato14. Uma totalidade mais efetiva (objetiva) que procedimental ou epistêmica.
20Monbeig não reposicionou somente a possibilidade de se pensar as relações sociais entre os homens e os grupos no interior de seu próprio campo disciplinar ao sustentar essa última concepção e perspectiva. Ao reconhecer os impulsos extra-regionais e com capacidade de sobredeterminação que imperam sobre o local, ele buscou compreender a lógica, os grupos e os interesses que orientam essa dinâmica geografia da fronteira. Por isso, para ele, “a extrema mobilidade dos pioneiros [que] se explica, para muitos, pela excessiva velocidade com a qual se esgotam os solos devastados (...) é igualmente imputável às oscilações implacáveis das economias comerciais, às incertezas dos mercados” (MONBEIG, 1966, p. 981). Monbeig construiu assim, também, a abertura para uma perspectiva não ecológica da relação homem-natureza.
21Não só pelo rompimento vislumbrado com o universo das relações ecológicas entre o homem e seu meio, mas também pelo tipo de fenômeno que Monbeig observa a partir da fronteira, a clássica noção de região abandona pouco a pouco o seu interesse para a compreensão da nova geografia nascente no mundo e entre as ciências. A partir do rompimento com uma noção de região elaborada com base nos princípios autofundadores das dinâmicas sociais e culturais internas, que decorrem das relações homem-meio findadas com referência numa determinada escala local ou regional de caráter introvertido, Monbeig entendeu que a produção do lugar ocorre a partir de relações forjadas numa espécie de “ordem distante”, lançando luz sobre as dinâmicas espaciais típicas do período de maior intensidade dos processos de expansão econômica. Para ele, não somente o urbano era, simultaneamente, o conteúdo e o resultado dos processos observados nas franjas pioneiras, como a própria franja pioneira respeitava a ordens vindas do centro mundial de organização econômica. A liberdade de sua forma de observar o fenômeno lhe permitiu chegar à conclusão, antes mesmo da virada da metade do século (já na sua tese de doutoramento), de que “o movimento pioneiro paulista era cada vez mais um negócio mundial” (MONBEIG, 1984, p. 112) e que “assim se confunde o dinamismo da frente de povoamento paulista com o da economia mundial” (MONBEIG, 1984, p. 119). Desse modo, Monbeig rompe com a perspectiva que dava centralidade à escala regional nos estudos de Geografia Humana. A maleabilidade escalar de seu trabalho coloca em questão a primazia da própria Geografia Regional. Segundo Jean Revel-Mouroz (1991, p. 159), “em algumas páginas reunidas, Pierre Monbeig joga com as escalas (do agricultor e de sua exploração até o mercado mundial, passando pela escala da economia nacional brasileira e por aquela dos estados produtores, como o Paraná) para nos dar uma lição de geografia econômica”.
22 Se nas condições da franja pioneira, “por toda a parte, na cidade e no campo, sente-se que nada se estabiliza, nada é definitivo” (MONBEIG, 1984, p. 21), num contexto em que os impulsos dessa dinâmica territorial incessante vêm de longe, torna-se muito difícil reconhecer uma unidade geográfica a partir da aplicação do método tradicional. Nessas condições, “o sentimento de pertencer a uma região, o desejo de fixar-se nela, de enraizar nela a família, a emulação que o espírito regional pode desencadear, não passam de noções confusas” (MONBEIG, 1984, p. 387). A região não aparece, aqui, como um dado ontológico cristalizado, senão como resultado de estratégias elaboradas no campo das forças políticas. Logo, ao se falar de região nessas condições, deparamo-nos com aquilo que Antonio Carlos Robert Moraes chamou de “ideologias geográficas” (MORAES, 1996) para caracterizar a formação de identidades politicamente úteis. Naquele momento, e nas condições desse país novo e das franjas pioneiras, “fica-se inclinado a ver no sentimento regional, tal como se manifesta (...), a expressão de interesses comuns de classe” (MONBEIG, 1984, p. 387). Na falta do caráter ontológico permanente da formação regional, encontramos, portanto, mais um impulso que resultou na busca em outra escala da unidade geográfica primordial. O esforço compreendido em O estudo geográfico das cidades encontra aqui mais uma de suas justificativas, quando também “o pequeno pioneiro passa da tentação dos grandes espaços ao orgulho municipal” (MONBEIG, 1984, p. 387).
Exposição do centenario do nascimento de Pierre Monbeig na USP
23Hervé Théry, 2008
24Ao buscar, a partir da análise da identidade do pioneiro, do padrão arquitetônico e morfológico das habitações, dos elementos ligados à produção agrícola, da estrutura da rede urbana e dos meios de transporte, os elementos para empregar o método monográfico e “descobrir” os processos formadores da região a partir da observação do fenômeno das franjas pioneiras, Monbeig chega à conclusão, sucessivas vezes, de que “fixar os limites dessas regiões é praticamente impossível” (MONBEIG, 1984, p. 385). Entende, assim, que as próprias categorias do “gênero de vida” e do “espaço vital” são insuficientes para o empreendimento de um programa incondicional de regionalização (MONBEIG, 1984, pp. 375-387). Ao invés disso, quando opta por reconstituir as etapas da marcha pioneira no lugar de estabelecer um programa rígido de regionalização e rejeita os elementos tradicionais fornecidos pela geografia física como guias para esse empreendimento, Monbeig vê maior conveniência em “traçar os pontos da franja pioneira nos períodos de crise econômica”. Segundo ele, “o geógrafo poderá, então, marcar as fases da progressão e investigar em que medida elas são explicáveis pelo jogo dos elementos naturais ou, ao contrário, até que ponto elas conduzem aos mecanismos econômicos” (MONBEIG, “São Paulo”, L’information géographique, XVI, de 1952. pp. 32-34. Apud. THÉRY, 1991, p. 82).
25De acordo com Hervé Théry, é preciso dar destaque ao fato de que, “renunciar, de saída, começar pelos ‘elementos físicos’ era uma atitude difícil que mal conseguimos mensurar hoje em dia. Colocar em primeiro lugar, e tomar como articulações maiores, as crises econômicas também” (THÉRY, 1991, p. 82). Mas vale lembrar que essa não foi uma consideração isolada. Ela acabou por se constituir numa daquelas grandes descobertas frequentemente utilizadas como importante chave analítica. Em Os problemas de divisão regional em São Paulo, Monbeig também coloca a economia como a explicação crucial para a compreensão do quadro geográfico do estado de São Paulo. Nesse caso, segundo ele e em função disso, inclusive, “seria possível demonstrar como as relações sociedade-região natural (...) dão sempre uma visão deformada da realidade” (MONBEIG, 1957b, p. 140). Foi somente por essa via que Monbeig chegou a propor uma interpretação geográfica original a respeito do fenômeno da fronteira móvel como um elemento central para a explicação da realidade socioeconômica brasileira. Foi a partir desse marco analítico-crítico que o fenômeno da fronteira ou das franjas pioneiras, como o definiu Pierre Monbeig em Pioneiros e fazendeiros de São Paulo, abandonou o postulado do princípio ecológico que localizava sua explicação por excelência no interior mesmo de uma formação geográfica específica e passou a se remeter sempre a uma realidade geográfica distante: vem daí ter derivado o caráter eminentemente extralocal e, no limite, extra-regional da frente pioneira. A articulação dos elementos que constituem a franja pioneira, no trabalho de Monbeig, se remete sempre a um impulso originado fora das condições da fronteira ao mesmo tempo em que a agitação e a instabilidade próprias desse padrão de uso e ocupação do solo, exemplares desse momento da produção do território, não fornecem as condições para a consolidação de um habitus tipicamente formador da região. Compreendido como um fenômeno espacial de recorte possível somente pelos aspectos humanos (históricos e sociais), o recurso aos elementos físicos da paisagem como fatores de formação e análise regional são subsidiários. Neste sentido, a concepção clássica de região não encontra emprego possível na análise que Pierre Monbeig faz da dinâmica territorialmente expansionista dessas frentes de avanço no território. Manifesta-se e se reconhece aqui, em primeiro lugar, o princípio essencial que está atrelado à dissolução da região concebida em termos clássicos assim como da própria Geografia Regional herdeira da mais arraigada tradição das monografias algumas décadas mais tarde.
26O ponto alto da crítica à concepção regional da Geografia tradicional será atribuído ao movimento da geografia ativa, iniciado na mesma França de Vidal, ou da geografia crítica, como ficou conhecido o movimento que emerge no Brasil sob a forte influência da renovação crítica francesa e das leituras marxistas, já bastante importantes na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP nos anos 1970. O fundamento da crítica desenvolvida a partir desse momento está ancorado na percepção da impertinência do princípio ecológico segundo o qual as unidades geográficas de destaque para a análise aparecem como resultados da interação entre um determinado grupo humano e seu meio geográfico específico. A intensificação das trocas e do comércio internacional não havia deixado alternativa para os defensores da geografia regional tradicional definida nesses termos. Tornava-se inviável qualquer consideração a respeito do fato regional exclusivamente a partir dos parâmetros extraídos do universo intra-regional das relações homem-meio. As análises geográficas do subdesenvolvimento, que se normalizaram nos estudos de geografia e foram empreendidas em diversas escalas, reforçavam essa inviabilidade. A observação dos nexos internacionais da economia industrial, a formação das redes de poder interestatais ou a consolidação de um novo poder hegemônico na escala mundial também. Mesmo a emergência do planejamento como disciplina incorporada pelo geógrafo e prática exigida pelos Estados do pós-guerra contribuiu para o esclarecimento dessa situação. A emergência desse universo analítico e as novas experiências da segunda metade do século XX pontuavam a perda da autonomia regional como a substância da dissolução da geografia tradicional. Assim, com o auxílio dos desdobramentos da história, a geografia chegava à crítica já ensaiada e preparada há alguns anos. Monbeig, no entanto, havia percebido os limites do conceito regional de uma forma ainda pouco explorada. Isso foi possível porque, na sua crítica ainda amarrada à bagagem tradicional, em vez de buscar um limite exclusivamente temporal (diacrônico) para a validade da geografia regional, o que garantia um campo de validação histórica para a perspectiva ecológica, Monbeig trilhou o caminho do referencial sincrônico (e espacial, portanto) para destronar a condição paradigmática do gênero de vida vidaliano. Ele não podia esperar que o tempo e a história destronassem a categoria central da geografia regional tradicional. Era preciso demonstrar os seus limites naquele momento diante da potente realidade descoberta da franja pioneira: uma realidade incompatível com os parâmetros da geografia regional tradicional in loco e uma descoberta que, pelo seu potencial de totalização, não deixava incólume nem mesmo o quadro regional que havia sido berço das antigas concepções. Assim, o dinamismo espacial frenético do novo mundo, observado de maneira privilegiada no movimento da fronteira, revelava a verdade original não percebida no centro antes da intensidade assumida pelo fenômeno político e econômico no pós-guerra: o objeto de interesse da geografia deveria ser mais a mobilidade e os seus estímulos que a apreensão, num instante qualquer, de uma configuração espacial passageira; deveria ser mais o movimento que forja e destrona simultaneamente tais configurações do que cada uma delas tomada em particular.
27A raridade de trabalhos apresentados nessa linha se torna ainda mais aguda quando as retomadas e as homenagens prestadas à Monbeig passam a assumir, em grande parte, o lado da valorização da perspectiva ecológica também presente, por herança ou por inércia, na obra do geógrafo. Ora, isso é o que já existia! Nesse sentido, o que importa aqui, mais do que revelar o excelente aluno que o nosso autor deve ter sido quando tomou lugar nas carteiras da escola francesa de geografia, é resgatar aquilo que está em dissonância com a sua formação e que, por isso, guarda um potencial de inovação ou até mesmo revolucionário.
28Nestas breves considerações, espero ter apresentado alguns elementos que apontam para o caráter inovador presente no trabalho e na reflexão de Pierre Monbeig a partir de seu envolvimento com as questões suscitadas pela franja pioneira. Esse potencial, no entanto, não se volta exclusivamente à percepção e aos conteúdos revelados por meio da pesquisa de um fato geográfico, mas se dirige também ao universo das próprias definições teóricas, conceituais e metodológicas pertinentes ao campo epistemológico e disciplinar da geografia. Assim, esse potencial parte de um posicionamento crítico que se refere tanto ao discreto reconhecimento da insuficiência e da impertinência do princípio ecológico quanto à concepção que destrona o conceito de região como um dado ontológico e afirma sua igual impertinência como unidade geográfica elementar da realidade e da disciplina. Apesar da ausência de uma crítica sistematizada aos parâmetros teóricos e metodológicos da geografia regional francesa, é possível extrair esse universo crítico das considerações de Monbeig sobre a realidade da fronteira. Foi investigando a fronteira que Monbeig expôs ao mundo os fortes estímulos extra-regionais, elaborados nas mais diversas escalas, que a dinâmica de avanço sobre o território recebe; foi investigando a fronteira que Monbeig levantou como um caractere essencial da situação dessa “sociedade em movimento” a fraca presença do elemento histórico na soldagem de identidades entre o pioneiro e o seu espaço; foi na situação de fronteira que foi igualmente possível identificar a economia como um fator mais importante para essa dinâmica territorial que os próprios elementos naturais do terreno; foi, em suma, na fronteira que o princípio ecológico de regulação da relação homem-natureza caiu por terra e que se verificou a impossibilidade de emprego, identificação e formação da estrutura regional tal como elaborada pela geografia tradicional. Se há um aspecto relevante no trabalho de Pierre Monbeig que se remete não só ao conteúdo social de suas descobertas, mas também ao campo do debate epistemológico da geografia, ele deve ser buscado aqui, nas dissonâncias entre o geógrafo francês e a geografia de seus mestres.