1Ao traçar o perfil de Lúcio Cardoso, M. Cavalcanti Proença afirma que, no romance Maleita, já transparece a “busca da consciência mais íntima” que será a marca da literatura de seu autor na maturidade. (Proença, s/d, p.5) Mas menciona também a importância do “vocabulário regional e (da) paisagem sempre atuante”, elaborando uma seção de notas para esclarecer o leitor sobre o significado de alguns termos e expressões regionais. (Proença, s/d, p. 7 e 135-136)
2Fundamentando seus estudos na interpretação psicanalítica, a Professora Ruth Silviano Brandão menciona a importância da função do pai, que “opera uma verdadeira travessia” na obra de Lúcio Cardoso: “Já em Maleita, seu romance de estreia, o leitor encontra a saga desse pai real e ficcionalizado, cuja ausência na vida familiar do escritor transforma-se em presença no branco da página e no imaginário da ficção.” (Brandão, 1998, p. 29)
3Em que pese a relevância dos diversos estudos sobre a literatura de Lúcio Cardoso, a perspectiva de nosso trabalho é a de interpretar o romance Maleita tendo em mente a história de Pirapora e a cultura regional. Assim, demonstraremos a historicidade do romance e os traços regionalistas que o caracterizam, embora estejamos cientes de que o autor não residiu naquela comunidade, sendo o livro baseado em relato de seu progenitor – Joaquim Lúcio Cardoso.
4Dois historiadores do município escreveram sobre o Coronel Joaquim Lúcio Cardoso, cujo trabalho foi relevante para o desenvolvimento de Pirapora, em sua fase inicial: “Cabia-lhe comandar os negócios da Companhia Cedro e Cachoeira, de propriedade da família Mascarenhas, de Curvelo.” (Silva, Mota, 2012, p. 35)
5Examinaremos nos segmentos deste artigo algumas características e componentes que se destacam no romance Maleita como a história local, a paisagem, os tipos regionais, as relações de poder (o poder local), traços da cultura regional e do sistema de crenças, que remetem a essa vertente tão relevante da literatura brasileira: o regionalismo.
6No segmento “Região e realidade”, do capítulo dedicado a Franklin Távora, o Professor Antônio Cândido esclarece-nos:
A virtude maior de Távora foi sentir a importância literária de um levantamento regional; sentir como a ficção é beneficiada pelo contacto de uma realidade concretamente demarcada no espaço e no tempo, que serviria de limite e em certos casos, no Romantismo, de corretivo à fantasia. (Cândido, 2007, p. 616)
Barcos no porto de Pirapora
@Hervé Théry 1977
7Antônio Cândido menciona também a relevância da paisagem nordestina na obra de Franklin Távora. No segmento “Fundador de linhagem”, refere-se à “linhagem ilustre” que se inicia com Távora - “culminada pela geração de 1930”. (Idem, p. 615)
8Mas, nessa importante vertente da literatura brasileira (o regionalismo), deve-se incluir, antes da década de 1930, autores de outras regiões. Vejamos, a seguir, a opinião do Professor Alfredo Bosi:
A linha mestra da República (com a exceção breve dos anos de estreia, militares) propiciou a consolidação das subculturas regionais, mormente daquelas que já dispunham de estruturas materiais e políticas sólidas ou em expansão. (...) A consciência aguda dos valores mineiros, paulistas, gaúchos – que deixa para a retórica da ideologia geral o vago amor à brasilidade – é traço cultural e emotivo que não encontrara condições felizes para expressar-se durante o Império. (Bosi, 1984, p. 299)
9O que se pode pensar acerca desta afirmação de Alfredo Bosi?
10Pode-se inferir que as chamadas “subculturas regionais” – sobretudo, em Minas, São Paulo e no Rio Grande do Sul - ganham substância com o advento da República, sobretudo, em sua fase civilista. O autor menciona “a consciência aguda” dos valores regionais no texto de alguns escritores. Dentre esses, cita o mineiro Afonso Arinos que se destaca, sobretudo, mas não apenas, com a publicação do livro de contos Pelo sertão (1898). Deve-se acrescentar que a formação dessas “subculturas” bebe na fonte da cultura popular: resulta da apropriação, pelas elites intelectuais, de traços dessa cultura - costumes, vocabulário, casos. Mas outras características da ficção regionalista devem ser ressaltadas como a paisagem, o sistema de crenças (mitos, magia) etc. Ademais, os tipos regionais, integrantes de grupos sociais pertencentes às classes populares, já aparecem na prosa de ficção desse período da literatura brasileira.
11A “geração de trinta” constituiu-se sob o influxo do romance A bagaceira, de José Américo de Almeida, publicado em 1928. Segundo Otto Maria Carpeaux, esse livro “abriu nova fase na história literária do Brasil”. (Carpeaux, 1955, p. 275)
12Assim, “estava introduzido o engenho, a cana-de-açúcar, os cambiteiros, a sociedade patriarcal latifundiária, na ficção moderna” conforme o Professor Guilhermino César, que acrescenta:
...a conjuntura econômica incerta, as carências da população, mormente na área da seca, o cangaço, a hipertrofia dos latifúndios, o coronelismo opressor, enfim, o marginalismo de consideráveis parcelas da população corria a fixar-se na literatura de protesto, de denúncia (...). (César, 1984, p. 438)
13Pouco tempo depois, foram publicados outros romances regionalistas, relevantes para a literatura brasileira como O Quinze, de Rachel de Queiroz (1930), no qual o tema da seca é abordado em profundidade. Menino de Engenho, de José Lins do Rego, veio a lume em 1932, revelando, junto com outros romances do autor, a vida social nos engenhos do Nordeste brasileiro bem como a introdução das usinas de cana-de-açúcar. Também foi marcante a contribuição de Graciliano Ramos – São Bernardo (1934) e o primoroso Vidas secas (1938) dentre outros.
14É ainda Guilhermino César quem contribui para compreendermos a importância do regionalismo na literatura brasileira: “...o nosso romance, de 30 a esta parte, tem gravitado muito, talvez mais do que na era romântica, em torno das regiões.” (César, 1984, p. 446) São incontáveis os autores que escreveram romances e contos inspirados nas culturas regionais, a partir dos anos 1930.
15Publicado em 1934, Maleita, de Lúcio Cardoso, possui traços significativos dessa vertente tão rica e significativa da literatura brasileira: o regionalismo.
16Recorremos ao instrumental teórico da Antropologia para revelar os traços regionalistas presentes no romance Maleita. Proposto pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss, o conceito de cultura que transcrevemos abaixo foi adotado neste artigo como recurso fundamental de interpretação, destacando-se a linguagem, os mitos, a magia e a religião como sistemas simbólicos sem se perder de vista suas relações com outros sistemas:
Toda cultura pode ser considerada como um conjunto de sistemas simbólicos em cuja linha de frente colocam-se a linguagem, as regras matrimoniais, as relações econômicas, a arte, a ciência, a religião. Todos estes sistemas visam a exprimir certos aspectos da realidade física e da realidade social e, ainda mais, as relações que estes dois tipos de realidade mantêm entre si e que os próprios sistemas simbólicos mantêm uns com os outros. (Lévi-Strauss, 1974, p. 9)
17Outros conceitos serão comentados e utilizados como instrumental de interpretação nas seções seguintes.
18Nosso interesse inicial sobre romance Maleita começa com a publicação do livro Navegantes da integração: os remeiros do Rio São Francisco (Ed. UFMG, 1998).
19A descrição da paisagem é um dos critérios que os historiadores da literatura utilizam para estudar o regionalismo brasileiro. Assim, selecionamos alguns trechos do romance Maleita visando exemplificar este critério. Como vimos, a valorização da paisagem no romance brasileiro inicia-se com a prosa literária de Franklin Távora.
Mapa do rio São Francisco
Distâncias medidas a partir de Pirapora
Fonte: Companhia de navegação do São Francisco
20Utilizamos o conceito de sistema econômico regional para caracterizar a paisagem humanizada - a gradativa integração econômica do povoado à região do Médio São Francisco.
21Não se pode perder de vista a interação de grupos sociais diversos e a existência de um saber que é inerente à atividade econômica. Esses grupos sociais dominavam códigos que possibilitavam as relações econômicas e a integração de Pirapora à região. Nesse particular, é importante ressaltar a função exercida pelos meios de transporte. As citações do romance que selecionamos mostram a ação do homem sobre o meio natural. Verifica-se assim a gradativa humanização da paisagem.
22O protagonista do romance, que podemos inferir tratar-se de Joaquim Lúcio Cardoso, o pai do autor, faz um relato na primeira pessoa sobre tudo o que vê e o que vivencia como forasteiro chegando ao povoado de Pirapora em 1893 e lá permanecendo durante alguns anos. Ao aproximar-se do povoado, começa por descrever a paisagem:
E o rio surgiu. Profundamente sereno, ardendo aos últimos lampejos da tarde. Banhado de uma cor indefinível, cinza-verde ou cinza-avermelhado. Parecia uma coisa viva, rolando na areia da praia, diferente da calma que guardava no centro, como a lâmina incendiada de uma faca. (Cardoso, s/d, p. 20)
23Cenas das cheias do São Francisco foram descritas com precisão pelo autor como, aliás, podiam ser observadas em Pirapora, antes da construção da barragem de Três Marias: “Árvores partidas, raízes viradas para o alto, vinham na correnteza, de mistura com animais mortos e até pedaços de embarcações, colhidas pelo temporal.” (Idem, p. 98)
24A rapidez e a impetuosidade das águas do Rio São Francisco solapavam os barrancos. As árvores que se encontravam mais próximas do rio eram arrancadas inteiras e levadas pela correnteza. O fenômeno da “queda de barreiras” era muito mencionado na ribeira, antes da construção das barragens, pois colocava em risco pequenas embarcações e, até mesmo, as choupanas de pescadores e vazanteiros. Em Pirapora ou em viagem a bordo dos vapores, era comum ver-se uma árvore com suas raízes para cima, descendo o rio.
O rio entre Pirapora e Januária
Wiki Commons
25Os animais mortos levados pela correnteza podiam ser vacas ou cavalos. Daí, a “adivinha” do folclore regional que, nos anos 1950, fazia parte das brincadeiras de crianças e adolescentes naquela cidade ribeirinha: “O que é, o que é? Um morto carregando um vivo?” A resposta era esta, que transcrevemos a seguir ou outra, muito semelhante: “Um boi morto descendo o rio com um urubu vivo em cima da carcaça.” (1)
26É verdade que pedaços de embarcações podiam ser vistos descendo o rio como o autor descreve. Mas é importante acrescentar que era também possível avistar canoas ou paquetes inteiros levados pela correnteza. Nesse caso, a imprevidência de seus proprietários, não fazendo as devidas amarras das embarcações no barranco, podia causar-lhes sérios prejuízos, tendo em vista que canoas e paquetes eram seus instrumentos de trabalho, ou seja, instrumentos de trabalho de pescadores e roceiros. Estes últimos costumavam plantar no “lameiro das ilhas” – sendo naturalmente as canoas o meio de transporte que os levava até as ilhas.
27Os que viajavam pelo São Francisco no período das cheias certamente tinham a oportunidade de ver cenas como esta, descrita pelo autor: “Árvores submersas balançavam vagarosamente as folhas que surgiam sobre a água.” (Cardoso, s/d, p. 104) Vastas extensões de terra firme eram cobertas pela massa líquida. Árvores e arbustos ficavam submersos. Mas, a partir dos anos 1960, a barragem de Três Marias passou a controlar o regime das enchentes. Ainda assim, houve grandes cheias como a de 1979.
28Vejamos, a seguir, a descrição da cachoeira de Pirapora: “A cachoeira rolava com redobrado furor e a espuma subia tão alto como uma nuvem que descesse sobre o rio.” (Idem, p. 98)
29Na primeira metade do século XX, antes da derrocada de trechos da cachoeira de Pirapora levada a efeito pelos construtores da Ponte Marechal Hermes e pelos fabricantes de brita e paralelepípedos, ouvia-se o barulho da torrente sobre as pedras a considerável distância, no período das chuvas e enchentes – ou, como se dizia, “no tempo das águas”. Do alto da cidade, no Bairro Santo Antônio, ouvia-se o rumor das águas sobre as pedras.
30Mas a leveza, a singela beleza propiciada pelo meio ambiente pródigo, apresentava-se aos olhos do observador atento: “O voo moroso das garças cortava a tarde mansa.” (Idem, p. 44) Ainda hoje é possível contemplar o espetáculo das garças – talvez, em menor número - na cachoeira de Pirapora. Nas tardes, ao cair do sol, pode-se ainda admirá-las partindo em busca de abrigo. A brisa suave do rio e a serenidade propiciada pelas garças favorecem o recolhimento, a paz, que alivia o cansaço.
31Lúcio Cardoso menciona a “vasta extensão da praia” em Pirapora. (Idem, p. 52) Dentre as belezas naturais da cidade, destaca-se de fato a Praia do Areão nas proximidades do porto.
32Esses pequenos detalhes fazem-nos pensar que Lúcio Cardoso esteve em Pirapora (e, talvez, tenha viajado em algum vapor) antes de escrever o romance Maleita. Mas, sem dúvida, aproveitou muito bem a narrativa oral de seu pai sobre o povoado.
33É importante conhecermos, através da pena do autor, algumas características da paisagem humanizada – o homem em sua ação sobre o meio ambiente. Expande-se a rede de relações econômicas, intensificando-se a transformação da paisagem natural pela ação do homem. Verifica-se a maior integração do povoado ao sistema econômico regional.
34Vejamos, a seguir, a descrição da chegada de um pequeno “gaiola”: “O vaporzinho vinha de longe lutando contra o rio. Defronte do lugarejo, pôs-se a apitar. Aquele silvo longo, doloroso, soava como um apelo, onde só o grito da ventania desabava de vez em quando.” (Idem, 42) Esta descrição de Lúcio Cardoso faz-nos lembrar os primeiros versos da “Oração ao grande rio”, de Inácio Quinaud, o poeta que adotou Pirapora como sua cidade e lá faleceu nos anos 1950: “Sobre o teu dorso, São Francisco imenso / Arfa o vapor, gemendo, trepidante / Num arrojo sem fim que, às vezes, penso / Ver lutar um anão contra um gigante.” (Quinaud, 1946, p. 183)
35Proveniente de Juazeiro – BA, Quinaud trabalhou nos escritórios da CIVP - Companhia Indústria e Viação de Pirapora, empresa proprietária de diversos vapores.
36Mas não apenas os “gaiolas” chegavam a Pirapora. O texto de Lúcio Cardoso revela a presença de outros meios de transporte no povoado: “Os vapores entravam, apitando de longe... O cincerro das mulas chocalhava nas estradas, mais largas agora, onde também rinchavam os carros de bois de outros povoados...” (Cardoso, s/d, p. 65) O cincerro das mulas indica o movimento de tropas de animais de carga, que – diga-se de passagem – já haviam sido mencionadas por Richard Burton em sua visita ao povoado em 1867. (Burton, 1977, p. 169)
37Vapores, barcas, carros de bois, tropas... Assim, a precoce vocação de Pirapora como centro catalisador do comércio regional e dos meios de transporte fica evidenciada no texto de Cardoso.
38Em outra oportunidade, analisamos a intercomplementaridade dos meios de transporte em Pirapora, inclusive, quando chegaram os trilhos da EFCB - Estrada de Ferro Central do Brasil em 1910. O lugarejo evoluiu de um simples povoado nos anos 1890 para uma cidade-polo importante no sistema econômico regional na primeira metade do século XX. (Neves, 2012, p.56-92)
Chegada do vapor
@Hervé Théry 1977
39Alguns vapores, ou “gaiolas” como prefere o autor, são citados nominalmente a exemplo do “Saldanha Marinho” e do “Mata Machado”, que – vale acrescentar - pertenceram à Empresa Viação do Brasil, constituída na última década do século XIX. Barcas de figura movidas pela força física dos remeiros também foram mencionadas no romance Maleita: “Estrela Azul”, “Nossa Senhora da Vitória”, “Estrela do Norte”, “Esperança”, “Santa Maria”, “Sant’Ana da Lagoa”. Dentre essas embarcações, estavam registradas na Capitania dos Portos em Juazeiro - BA: a “Estrela do Norte”, a “Esperança” e a “Santa Maria”. (Neves, 2009, p. 98)
40Em sua viagem à Bacia do São Francisco, o engenheiro inglês James Wells legou-nos informações acerca das atividades de uma fábrica de tecidos em 1875: “Pela manhã, pusemo-nos de pé cedo para inspecionar a fábrica. A tecelagem recebe o algodão cru sem limpar, entregue na porta pelos camponeses, que cultivam pequenas plantações no vizinho Vale do Rio das Velhas.” (Wells, 1995, p. 180) Essa fábrica localizava-se nas proximidades do córrego do Cedro, não muito distante de Curvelo - MG. Em contato com os irmãos Mascarenhas, proprietários da fábrica, Wells tomou conhecimento da alta lucratividade do investimento iniciado “há apenas três anos” conforme seu relato. Os resultados financeiros possibilitaram aos referidos empresários a ampliação de suas atividades, fundando outra fábrica. Assim, constituiu-se a Companhia Cedro e Cachoeira que ainda hoje atua no ramo da indústria têxtil.
41O sucesso dos empreendimentos também tornou possível a fundação de um depósito às margens do Rio São Francisco. O povoado de Pirapora foi escolhido como o local ideal para a sua construção em 1894 conforme o Sr. Geraldo Magalhães Mascarenhas, que escreveu a história da referida empresa por ocasião de seu centenário em 1972. Utilizando os vapores, o depósito distribuía o tecido da fábrica no Médio São Francisco e recebia o algodão produzido na região. (Mascarenhas, 1972, p. 178, 149)
42Esses fatos históricos estão presentes no romance Maleita.
43O protagonista do romance fora nomeado pela empresa para fundar o depósito em Pirapora. Assim, ficção e realidade aproximam-se uma vez que o Sr. Joaquim Lúcio Cardoso, pai do autor, de fato o fundou e administrou. No romance, o autor menciona, sobretudo, o termo “armazéns”, mas eventualmente se refere ao “depósito” como sinônimo. Vejamos um trecho de carta do protagonista, endereçada ao personagem Antônio Menezes, dirigente da fábrica sediada em Curvelo - MG:
...e, conforme esperávamos, é este o ponto propício para fazermos os armazéns. Tudo é muito grande e os caminhos são muito largos, cumprindo somente que estudemos o meio de diminuir a distância. Precisamos que os vapores, já por si tão escassos, se detenham aqui para avivar o comércio, trazer mantimentos e levar correspondência. Espero também as sementes... (Cardoso, s/d, p. 32)
Barcos do São Francisco com a sua distintiva carranca
Acervo do Núcleo de Estudos do Vale do São Francisco
44A fundação do depósito propiciou as condições para o incremento do comércio e do transporte de cargas. No romance confirma-se o fato histórico: “O vapor descarregava sacos de mantimentos, bagagens, malas e caixotes, animais e ferramentas. Vinha tudo de mistura, arrastados pela prancha, amontoados em desordem no barranco.” (Cardoso, s/d, p. 43) O “gaiola” fazia o transporte de cargas enquanto outras embarcações adentravam o porto para fazer o comércio ambulante: “Também se aproximavam barcos com mercadorias, negociando com os habitantes, a troco de moedas ou mesmo produtos do lugar, que iam vender mais adiante.” (Idem, p. 45) Eram as barcas de figura (carranca) e os paquetes, cujos proprietários negociavam no varejo, praticando também o escambo, a troca de produtos, conforme o comprovamos em trabalho de pesquisa. (Neves, 2004, p. 36-39)
45Outras características da paisagem humanizada são descritas por Lúcio Cardoso: “Nas cercas, as flores grandes das abóboras, ou as espigas louras do milho, balançavam saudando.” (Cardoso, s/d, p. 37) As abóboras “brigando com as melancias por um palmo de areia da praia. Melancia, abóbora, mandioca...” (Cardoso, s/d, p. 52) Estes eram alguns produtos das culturas de vazante propiciadas pelas cheias do São Francisco.
46Mas Pirapora estava longe de ser um paraíso: “Aquele brilho – oh! – aquele brilho era o mesmo do homem que tombara vencido de sezão. Eu o pressentia ali, escarninho, o demônio da maleita, na guerra surda contra a vida.” A doença que devastava as pobres vidas de nativos chegara à casa do protagonista, à sua esposa: “(Elisa) Tremia toda, indefesa, vencida. Carreguei-a para a cama, sem saber o que fizesse, passando as mãos pela sua testa ardente, procurando um meio de afastar o suplício.” (Cardoso, s/d, p. 66) A maleita (ou malária, sezão) é transmitida pelo mosquito do gênero anopheles, que habita áreas pantanosas.
47O caráter letal da maleita são-franciscana também é mencionado por Guimarães Rosa no conto “Sarapalha”, do livro Sagarana:
48Ela veio de longe, do São Francisco. Um dia, tomou caminho, entrou na boca aberta do Pará, e pegou a subir. Cada ano avançava um punhado de léguas, mais perto, mais perto, pertinho, fazendo medo no povo, porque era sezão da brava – da “tremedeira que não desamontava” – matando muita gente. (Guimarães Rosa, 1984, p. 133)
49Era a famigerada “terça maligna”!!!
50A maleita foi mencionada no livro Navegantes da integração: os remeiros do Rio São Francisco – no capítulo dedicado à descrição do processo técnico do trabalho. (Neves, 2011, p. 177-178)
51Há diversas referências a grupos sociais, típicos da região, no romance Maleita. Seus componentes quase sempre são anônimos, identificando-se, em geral, pelo trabalho que realizam. Mas não deixam de ocupar um lugar importante no romance.
52A piscosidade da Cachoeira de Pirapora foi descrita por viajantes do século XIX, por exemplo, James Wells:
Este lugar, pela abundância de magníficos peixes que a cachoeira deposita nos caldeirões das rochas (e só é necessário um menino com uma lança para obter qualquer qualidade ou tamanho de peixe que se queira) fornece a principal fonte de alimentação de seus habitantes (...). (Wells, 1995, p. 269)
Migrantes da Bahia em um vapor no Rio São Francisco
@Hervé Théry 1977
53Lúcio Cardoso menciona os pescadores do povoado, descrevendo algumas modalidades de pesca:
A pesca de tarrafa era feita na margem do rio. O pescador esperava pacientemente que o tremer da água denunciasse se o cardume era de curimatás ou matrinxãs. Então a rede se estendia rapidamente em círculo sobre a água e trazia, para a luz do sol, peixes miúdos que saltavam inutilmente dentro das malhas. (Cardoso, s/d, p. 53)
54Os “peixes miúdos” pescados com tarrafas e manjubeiras podiam servir como “isca viva” para a pesca de grandes peixes como o dourado conforme mencionamos em outra oportunidade. “Curimatá” é termo regional; substitui “curimatã” e “curimbatá”. (Neves, 2006, p. 75-76)
55Vejamos, a seguir, outra modalidade de pesca mencionada por Cardoso: “Quando pescavam de rede, entravam na canoa e iam procurar as grotas e os lugares propícios.” (Cardoso, s/d, p. 53) Ou seja, o pesqueiro. Dependendo de suas medidas, as redes exigiam um maior número de homens para o seu manuseio e de canoas para levá-las aos lugares onde havia os cardumes.
56Lúcio Cardoso explica que o anzol era utilizado “para a espera noturna do surubi ou dourado de quilos.” (Cardoso, s/d, p. 53) Nos dias atuais, ainda se utilizam os anzóis nas “groseiras” (cordas com uma cabaça e linhas pendentes em cuja extremidade são colocados chumbada e anzóis) e nas “linhas de mão”, ou seja, linhas ou cordas finas com chumbo e anzol. (Neves, 2006, p. 74)
57Mais uma modalidade de pesca pode ser conhecida através da pena do romancista:
Por último, havia o “batin”. Espécie de instrumento bárbaro, que lembrava o arco e a flecha dos indígenas. A corda terminava numa flecha com ponta em arpão de ferro. Atirado sobre o peixe, zunia e penetrava na água, fisgando-o com incrível rapidez. Um meio prático que poupava as malhas da rede. (Cardoso, s/d, p. 53)
58Nos dias atuais, o termo é grafado na região com a letra “m” – batim (ainda não dicionarizado).
59Os tropeiros também estão presentes no romance, com suas tropas de animais de carga: “(Ricardo Rafael) Guiava os tropeiros que tangiam os machos, chocalhando cincerros pela estrada poeirenta. As bruacas, de lado, balançavam ritmicamente.” (Idem, p. 32) As bruacas eram recipientes de couro onde se acondicionavam cereais e outros produtos da região. Mas o personagem Anjo Gabriel da Anunciação, alfaiate, fala ao protagonista: em tempos passados, “(os tropeiros) eram muitos” quando “ainda não banzavam por aí os vapores”. Mas as tropas continuavam cortando “o norte de Minas e o sul da Bahia”. (Idem, p. 25 e 67)
60Nas estradas do sertão, os carreiros e guieiros contribuíam para a trama das conexões regionais, sobretudo, para a ligação campo/cidade: “O chiar dos carros de bois era constante e as modinhas dos carreiros enchiam o ar.” Mais adiante, o autor acrescenta: “E as rodas grosseiras varavam os caminhos poeirentos (...).” (Idem, p. 124 e 126)
61O trabalho dos carreiros na região já foi mencionado em pesquisa. (Neves, 2006, p. 145-147)
Carro de bois
@Hervé Théry 1977
62Remeiros e barqueiros chegavam ao povoado com suas barcas de figura: “As barcaças rangiam de encontro uma às outras e os mastros nus ponteavam a escuridão com as pontas brancas.” (Cardoso, s/d, p. 74) Os pequenos detalhes – o rangido das barcas, por exemplo – parecem revelar que o escritor visitou algum porto do Médio São Francisco. É importante esclarecer: algumas barcas faziam o transporte a frete; outras, o comércio ambulante.
63Citado nominalmente, um personagem destaca-se no romance por sua oposição ao protagonista: o curandeiro Randulfo que “receita tisanas” aos nativos. (Idem, p. 28) Os curandeiros eram personagens típicos da região como, por exemplo, o “Nêgo de Ló”, da sub-região de Paratinga / Ibotirama - BA, famoso nas décadas de 1950-1960 por suas garrafadas e seu domínio sobre cobras.
64As lavadeiras da Cachoeira de Pirapora, que já inspiraram poetas, também são mencionadas no romance, lavando e estendendo roupas à beira-rio. (Idem, p. 124-125) Esse costume preservou-se em Pirapora até os anos 1970, pelo menos: as lavadeiras levavam à cachoeira suas trouxas de roupas que, depois de lavadas, eram estendidas sobre a grama, “para quarar” conforme diziam.
Lavadeiras em Ibiaí
@Hervé Théry 1977
65A partir de agora, vamos conhecer a importância do imigrante no romance Maleita. Vale adiantar a seguinte informação: a história de Pirapora é marcada, de fato, pelas levas de imigrantes nordestinos que lá chegaram, sobretudo, os baianos. (Neves, 2012, p. 84-88)
66Em 1879, o engenheiro Teodoro Sampaio percorreu o grande rio, da foz até a Cachoeira de Pirapora, e revelou-nos o drama dos flagelados: “O São Francisco, como um oásis no deserto, através dos sertões adustos da Bahia ao Ceará, de Pernambuco ao Piauí, é na verdade a terra da promissão e o refúgio daqueles povos assolados pela seca prolongada e periódica.” Em alguns momentos de sua viagem rio acima, Sampaio encontrou retirantes famintos de “aspecto triste, desconsolado e doentio”. (Sampaio, 2002, p. 65-66, 73)
67Esta descrição da realidade social observada pelo viajante é semelhante ao teor da narrativa de Lúcio Cardoso, que menciona os “nortistas fugindo das secas”:
68Ao cair de uma tarde os imigrantes apontaram no princípio do caminho. Formavam uma longa fila que vinha pela margem do rio, como serpente que rastejasse junto à água. Muitos chegavam esfarrapados, descalços, o rosto afilado pela fome. Outros se vestiam melhor, com sacos pendurados nas costas. E ainda outros arrastavam mulheres e filhos, e até cachorros e papagaios. (Cardoso, s/d, p. 36)
69O caminho que margeava o Rio São Francisco era conhecido na tradição oral dos ribeirinhos de Minas como a “estrada baiana” conforme mencionamos em outra oportunidade. (Neves, 2006, p. 103) Através dele, os retirantes chegavam a pé ao povoado.
70Os que podiam pagar o bilhete de passagem chegavam nos vapores:
O fumo da chaminé continuava subindo, espesso e negro, em largas ondas compassadas. As vozes de bordo retiniam, gritando para os que estavam em terra.
Dez, vinte, trinta passageiros. Contavam a sua história, por que tinham sabido do lugarejo, quais eram as suas esperanças. (...) Falavam do trabalho como coisa abençoada. (...) olhavam longamente a terra, bebiam pensativos a fartura que corria pelos areais, nas grandes flores de abóbora e nos ramos escuros das melancias. Mais longe, o milho balançava-se suavemente e as esponjas amarelas enchiam de perfume os caminhos tortuosos e fundos. (Cardoso, s/d, p. 43)
71Percebiam, portanto, o contraste entre a terra esturricada do semi-árido e a fertilidade das vazantes do São Francisco.
72Com imaginação criativa, o romancista tenta perceber um pouco da psicologia do retirante, do desenraizado; procura captar seus anseios de reconstruir a vida. Nesse sentido, é importante conhecermos outro trecho de sua narrativa: “Os que tinham deixado família longe depunham na terra que pisavam agora as suas maiores esperanças. Sonhavam mandar buscar um dia as ‘velhas’ e as ‘comadres’ que haviam ficado, os ‘trastes’, a parentada toda, unida pela miséria e pela adversidade.”. (Idem, p. 36-37) Era comum o imigrante estabelecer-se na terra e, em seguida, trazer mãe, pai e irmãos que haviam permanecido nos povoados e na zona rural de estados nordestinos.
73Outros meios de transporte levavam o imigrante até Pirapora conforme o autor: “Raro era o dia em que um cavalo, vindo do sul ou do norte, não trouxesse mais uma pessoa para o lugarejo”. Em seguida, Cardoso menciona a circulação de informações que favoreciam as migrações: “Tinham sabido da notícia (sobre as oportunidades de trabalho) a muitas léguas de distância e vinham ver com os próprios olhos.” (Idem, p. 44).
Vaqueiros em Xique-Xique
@Hervé Théry 1977
74Aqui, é importante acrescentar que os tropeiros, vapozeiros e tripulantes das barcas de figura encarregavam-se de difundir as novidades da ribeira. Assim, contribuíram para o incremento das imigrações em direção ao povoado.
75As migrações no âmbito regional estão no livro Na carreira do Rio São Francisco. (Neves, 2006, p. 110-114)
76Escrito nos anos 1940, o romance Seara Vermelha, de Jorge Amado, revela a saga de migrantes nordestinos, tangidos pela seca, que embarcavam em Juazeiro com destino a Pirapora; e, de lá, partiam nos vagões da Estrada de Ferro Central do Brasil em busca do seu Eldorado: São Paulo e outros estados da região sudeste/sul. (Amado, 1969)
77O PODER LOCAL
78As relações de poder que entrevemos no romance podem ser mais bem compreendidas se atentarmos para o teor da citação abaixo:
Além das relações de dependência pessoal, fundamentais para a compreensão do processo social no meio rural, é importante ressaltar a existência de um outro componente estrutural nas relações entre proprietários e camponeses: a violência. Não raramente, os “coronéis” e fazendeiros recorriam a “oficiais de caveira” (jagunços, capangas) encarregados de reprimir oponentes e contestadores que se opusessem à estrutura de poder, ou seja, ao mando. (Neves, 2011, p. l34)
79Mesmo sendo um adventício, o protagonista incorpora as práticas do poder local, que eram generalizadas no São Francisco e em outras regiões do país: exerce um poder discricionário no povoado com a introdução do tronco em praça pública para coibir a delinquência, o batuque e a dança a que estavam acostumados os nativos. Impõe suas concepções morais e religiosas, proibindo a nudez dos habitantes do povoado, sobretudo, dos pescadores, que, segundo o autor, eram descendentes de índios e negros: “- Vocês andam nus, falei. Parece que não conhecem Deus nem temem sua vontade. Ele proíbe que as criaturas andem nuas; na capital, em Curvelo, todos os homens se vestem...” Exercendo o mando no povoado, ganha o status de chefe político: “- Então, coroné? O peixe vai sê bom... Não qué espiá as rede?” (Cardoso, s/d, p. 53, 130) Passa a ser tratado como coronel, autoridade respeitada no povoado.
80Mas Pirapora desenvolve-se. Crescem também as ambições políticas. O protagonista do romance, acossado pelo Coronel Tibúrcio Pedreira, recebe um recado desse “chefão político”: “- (Coronel Tibúrcio) Disse que a cidade não é de vossemecê”. E constata que ali “a lei é a do sangue e da violência”. O recurso mais comum para afastar adversários políticos fica delineado no romance: “Os pés-de-pau, simples baluartes para tocaias, e as curvas das estradas, trincheiras especialmente preparadas para a eliminação daqueles que são considerados demais.” (Cardoso, s/d, p. 124 e 127)
81Perpetuou-se na tradição oral uma frase atribuída ao Coronel João Duque, de Carinhanha - BA, cidade ribeirinha do São Francisco: “Em política, não há assassinatos, mas remoção de obstáculos.” A frase revela essa característica das relações de poder em alguns municípios sob o coronelismo: a violência.
O coronel indica e o povo confirma
@Hervé Théry 1977
82O recado, acima transcrito, recebido pelo protagonista do romance, contribui para a compreensão do poder coronelístico. O bem público e o privado confundiam-se. O coronel era o “dono” do município.
83A “sebaça”, ou seja, o butim ou saque, era outra prática comum nas lutas entre os mandões locais do Vale do São Francisco. Havia também o exílio. Na história regional pode-se comprovar esta característica das relações de poder: derrotado pelo Coronel João Duque, Dr. Josefino, até então intendente em Carinhanha, foi obrigado a exilar-se.
84No romance, um típico jagunço, Randulfo, inimigo do protagonista, coloca-se a serviço do coronel Tibúrcio, sendo nomeado delegado no povoado: “(Coronel Tibúrcio) Traz papel do governo... nomeando o Randulfo.” – Assim fala um personagem. (Cardoso, s/d, p 126)
85“Papel do governo” é uma expressão fundamental para se compreender a relação entre governos de províncias e os “coronéis”. Em troca de votos nos municípios, eram nomeados os apaniguados dos chefes políticos. Verifica-se aí uma das características da “política dos governadores”, vigentes na Primeira República.
86Randulfo ganha poder sob a proteção do coronel Tibúrcio, passando a intimidar o adversário: “Neste momento o mulato passava novamente, seguido por quatro ou cinco jagunços a cavalo. Em todas as faces eu li o mesmo olhar de ódio.” (Cardoso, s/d, p. 126) Estava selado o seu destino: a fuga ou a morte. O protagonista preferiu deixar o povoado.
87Naqueles municípios ribeirinhos onde o coronelismo se apresentava com sua face mais violenta, havia outras formas de punição contra adversários derrotados. Vejamos, a seguir, a fala de um jagunço: “- Óia, botemo ele dentro duma canoa... É pecado matá um home assim.” Seus companheiros concordaram: “- Tá certo, falaram alguns. Na canoa...” (Cardoso, s/d, p. 101) Colocar o adversário numa canoa sem remos, no meio do rio, e deixá-la descer ao sabor da correnteza – eis mais uma forma de livrar-se da presença de um inimigo.
88Nesta seção, dedicamos maior ênfase à linguagem como sistema simbólico, relacionada a outros sistemas simbólicos, conforme a menciona Lévi-Strauss em seu conceito de cultura. Interpretamos a linguagem dos personagens como expressão da cultura regional, bem como o canto e a dança.
89Tão logo o protagonista chega ao povoado, ele observa a predileção dos nativos pelo folguedo: “O batuque se feria na praia, ao anoitecer. Com o calor, o rio era um paliativo desejado. As risadas vibravam na sombra, longas e incessantes.” (Cardoso, s/d, p. 44) Ao longo de todo o livro, o batuque é mencionado. Mas, em alguns momentos, o autor menciona o “batuque à moda da Bahia” (Idem, p. 83) que pensamos seja uma variante trazida pelos imigrantes baianos que chegaram ao povoado, em grande número, depois da construção do armazém (depósito) da empresa Cedro. A música e a dança escandalizam o referido personagem, mas, para os nativos, era prazer e alegria. Confrontam-se, assim, os princípios morais do protagonista, de um lado, e a liberdade dos nativos, de outro. O batuque é citado reiteradamente, o que faz pensar em resistência dos nativos que persistem no folguedo. Mas, para o autor, o protagonista assume uma face heróica.
90Vejamos, a seguir, alguns versos do batuque, presentes no romance Maleita: “Felão já veio? / Não veio, não / Por que é que não veio / Não sei, não...” (Idem, p. 61) Lúcio Cardoso teve a preocupação de transcrever esses versos no Português erudito, ao passo que Saul Martins, que era folclorista, registrou-os com termos e expressões populares como foram recolhidos no município de São Francisco - MG: “Felão vei? / Num vei, não! / Pru que num vei? / Num sei, não!” Acrescentando os seguintes versos: “Felão, Felão, Felão, / o Alfere da mardição!” (Martins, 1997, p. 55)
91Vale citar outros versos presentes no romance, mas igualmente pertencentes à cultura popular tradicional do Norte de Minas conforme os identificamos: “Batuque no beco / está fervendo / cuido que pago / estou devendo...” (Cardoso, s/d, p. 57)
92M. Cavalcanti Proença elaborou uma seção de notas contendo termos do vocabulário regional. (Proença, s/d, p. 135-136) Acrescentamos-lhe outros termos e expressões, localizados na leitura do livro Maleita:
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Apear – Descer, desembarcar;
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Barranqueiro – Designava o homem ribeirinho de origem rural; nos dias atuais, generalizou-se: é o indivíduo nascido às margens do rio São Francisco;
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Capanga - Jagunço, cabra, guarda-costas;
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Descansar – Morrer; morrer evitando sofrimento;
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Entonce – Então.
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Espiar – Olhar.
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Paçoca – Carne seca frita e farinha de mandioca grossa, socadas no pilão. A paçoca é muito consumida no desjejum com café;
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Pé-de-pau – Árvore;
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Perau – Ribanceira de grande profundidade junto à margem do rio.
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Rapariga – Prostituta, quenga, couro.
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Tamborete – Banquinho de madeira com três pernas;
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Trocando as pernas - Bêbado. (Cardoso, s/d, p. 82, 31, 127, 95, 99, 130, 80, 127, 31, 130, 84, 74)
93Em outros segmentos deste artigo, o leitor poderá conhecer outros termos e expressões regionais que o autor utiliza em seu romance.
94As tropas de animais de carga eram novidadeiras. Levavam notícias, recados e outras informações da ribeira para outras localidades; e vice-versa. Vejamos, a seguir, as novidades relatadas pelo personagem Ricardo Rafael, tropeiro, ao chegar a Pirapora: “- Perto de Pitirica caiu um barranco e matou um menino que brincava. Seu Inacinho da vendola está de mau-olhado e Nhá Lula teve parto desinfeliz.” (Cardoso, s/d, p. 33) Eram também difundidas informações que contribuíram para mudanças sociais e econômicas na região como as migrações.
95Os bens e objetos da cultura material mencionados no romance são típicos da região. Vejamos, a seguir, um exemplo: “Durante o dia, a palha de buriti que cobria o casebre esquentava e o calor tornava-se horrível.” (Cardoso, s/d, p. 94) As choupanas do caboclo ribeirinho eram de origem indígena. Nos dias atuais, pesquisas arqueológicas comprovam que grupos indígenas habitavam nas proximidades da cachoeira - em Pirapora e no vizinho município de Buritizeiro, localizado à margem esquerda do Rio São Francisco. É importante acrescentar que os buritizais ainda vicejam nas veredas do Norte de Minas, fornecendo aos geraiseiros recursos para a sua subsistência; dentre eles, a palha para cobertura de abrigos e casas.
96Os primeiros dias dos imigrantes no povoado eram de adaptação a um meio diferente de suas origens. Dormiam ao relento abrigando-se como podiam: “Alguns armavam as redes de tucum entre dois troncos de árvores, com o cachimbo fumegante nos dentes negros.” (Cardoso, s/d, p. 38) Quarenta anos depois, podia-se verificar uma situação semelhante a essa, desta feita descrita por um viajante que esteve mais de uma vez na região:
Mas a sombra da gameleira que enfeita o porto de Pirapora tem dado abrigo a muito flagelado que vem corrido da seca e que procura remir a vida em outras terras, como também ribeirinhos do S. Francisco que abandonam o rio, pensando que existam outras paragens onde o pobre seja mais feliz. (Proença, Ribeira do São Francisco, s/d, p. 137)
97Deve-se destacar no texto a visão humanística do autor. Nos anos 1940, quando foi escrito o texto acima, já havia o trem da EFCB – Estrada de Ferro Central do Brasil que transportava os imigrantes para São Paulo e outros estados.
98Em seu conceito de cultura, Lévi-Strauss menciona a religião como sistema simbólico. Neste segmento examinamos traços do sistema constituído por mitos, pela magia e pela religião, vigentes no povoado de Pirapora, confrontando informações do romance com o matérial de pesquisas realizadas na região. O todo incluía diversas crenças.
99No romance há uma referência ao Velho Totonho, do Ribeirão, “aquele que rezava muito e os meninos chamavam de seu padre porque distribuía medalhinhas da Virgem.” (Cardoso, s/d, p. 38) Trata-se de um agente típico do Catolicismo popular. Mas a religião de Seu Totonho coexistia com outras crenças, provavelmente de origem indígena e africana, mescladas com as de origem lusitana. O personagem Anjo Gabriel da Anunciação, por exemplo, falava “em assombrações e mulas-sem-cabeça”. João Randulfo acreditava que seus sequazes andavam “de trato com o sujo”, ou seja, com o capeta. Outro personagem, moribundo, mencionava as “almas do outro mundo”. (Cardoso, s/d, p. 25, 30, 76) É importante ressaltar que as crenças são narradas utilizando-se alguns termos e expressões da linguagem regional.
100Em décadas mais recentes, os curandeiros e benzedeiras da região dominavam rezas contra quebranto, espinhela caída e mau-olhado. Receitavam garrafadas, chás, infusos, cataplasmas e outras meizinhas. (Neves, 2011, p. 234-237)
101Referindo-se à influência do curandeiro Randulfo sobre os nativos, opina o personagem Anjo Gabriel da Anunciação: “Randulfo era para eles sagrado.” Acreditavam no seu poder de curar. E temiam o “mau-olhado”. (Cardoso, s/d, p. 35 e 33).
Sala dos milagres em Bom Jesus da Lapa
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102O autor também menciona a crença na existência de seres míticos do rio: “De novo as lendas surgiam, o caboclo d’água com suas tropelias dentro do rio, as canoas viradas, os remeiros afogados nos redemoinhos imprevistos.” E um público muito atento a essas narrativas orais: “Os outros escutavam, comovidos, a lenda daquele rio que era uma entidade palpável em suas vidas, fornecendo, para suas almas, a alegria e o sofrimento, assim como fornecia água e alimento.” (Idem, p. 116)
103Nas entrevistas, o Caboclo d’Água - o duende das profundezas - foi assim descrito: baixo, atarracado, calvo e dotado de uma cabeça grande. Habita um palácio encantado no fundo do rio. “Pelo menos três sentimentos humanos são atribuídos a este ser (o Caboclo d’Água) e estão presentes em versões do mito: a ira, a vingança, a afeição.” (Neves, 2011, p. 237-243) Esse mito é o mais difundido na ribeira. Mas outros duendes e monstros fazem parte do imaginário regional: a Mãe d’Água, o Negro d’Água, o Romãozinho, o Minhocão, o Cavalo d’Água etc.
104No romance, é também mencionada a crença no poder das figuras de proa de espantar os seres míticos do grande rio: “Os mastros oscilavam docemente e as cabeças de cachorro, armadas para espantar caboclo d’água, pareciam mais feias e grotescas.” (Cardoso, s/d, p. 53) Descrevemos e interpretamos a magia atribuída às figuras de proa num livro recentemente publicado em segunda edição. (Neves, 2011, p. 243-251)
105Por fim, em sua cruzada moralista e religiosa, o protagonista consegue levar a sua religião ao povoado de Pirapora: “E Deus entrou no povoado, em companhia do padre Lucas Simão, numa vaga tarde de maio.” Pode-se afirmar que novos símbolos passaram a coexistir com as velhas crenças: “O sino repicou pela primeira vez.” E, assim, os nativos de Pirapora e os imigrantes foram conhecer Seu vigário”. (Cardoso, s/d, p. 123)
106Publicado em 1934, Maleita inscreve-se nesta linhagem tão rica e significativa da literatura brasileira: o regionalismo. Presentes no romance: a paisagem, os nativos da região, os imigrantes, as relações de poder (o coronelismo), a cultura regional e o sistema mítico-mágico-religioso. Retrata também a história do povoado de Pirapora.
107Com base em conceitos das Ciências Sociais e estribados em pesquisas já realizadas na região, tivemos a oportunidade de descrever e interpretar esses componentes do romance Maleita.