1Nas políticas voltadas ao meio ambiente no Brasil, a participação social foi fortalecida na década de 1990 com a criação de vários conselhos consultivos e deliberativos em todos os níveis governamentais, com a participação regulamentada da sociedade civil organizada (Carvalho, 2012; ASA, 2017). Os Conselhos de Meio Ambiente, os Comitês de Bacias Hidrográficas (CBH) e os Conselhos Gestores de Áreas de Proteção Ambiental (APA) prevêem a participação de segmentos da sociedade como Organizações Não-Governamentais (ONG) e movimentos sociais (CBHSF, 2017).
2A gestão dos recursos hídricos no Brasil iniciou uma nova fase com a aprovação, em janeiro de 1997, da Lei n° 9.433, da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH): “entre os princípios internacionalmente aceitos sobre gestão de recursos hídricos, incorporados a Lei nº 9.433, estão os fixados na Agenda 21, da conferência Rio-92, que foram aprimorados para serem factíveis e passiveis de serem implementados” (Castro, 2012, p. 42). Além desta lei nacional, outros doze estados também promulgaram legislações semelhantes, sabendo que o estado de São Paulo foi o primeiro a tratar da descentralização da gestão da água ainda no início dos anos 90 do século passado: “datada de 1991, a lei estadual nº 7.633 definiu a gestão como sendo participativa, integrada e descentralizada em nível de unidades de bacias hidrográficas” (Martins e Lima, 2017, p. 118). Quatro princípios desta lei são inovadores na gestão hídrica brasileira: a gestão por bacia, a unicidade da outorga, a exigência de plano de gestão e o instrumento de cobrança.
3Na América do Sul, esse processo aconteceu apenas em países como Argentina e Equador com comitês consultivos, a Guiana Francesa com comitê deliberativo e o Chile, a Bolívia e a Venezuela com projeto de implementação. As próprias agências de água ao nível das bacias, quando existem, possuem um caráter evidentemente técnico, reforçando a centralização dos programas governamentais. Entretanto, com uma configuração administrativa ativa, o Brasil se destaca dos demais países por ser o único a ter instrumentos institucionais que estabelecem esses princípios (Castro, 2012; Theodoro, 2017). Ampliando-se a escala de observação para toda a América Latina, vê-se ainda a vigência de estruturas tradicionais de gestão, pautadas em decisões descendentes e com exclusão participativa. Isso é fruto de modelos estatais herdados da colonização que garantiram o caráter de “bem público” da água, mas não permitiram a regulação democrática dos seus usos (Theodoro, 2017).
4As preocupações com os usos da água vão além do consumo humano e da dessedentação dos animais em épocas de escassez. Tem sua dimensão econômica, social e cultural que precisa estar contemplada na gestão a partir das bacias hidrográficas. A descentralização se tornou uma discussão presente no cenário internacional de políticas públicas, ao buscar se distinguir a “desconcentração, na qual atores locais continuam subordinados ao poder central, à descentralização política que se refere à transferência de poder decisório aos agentes que prestam contas às populações locais, normalmente através de eleições” (Abers e Jorge, 2005). Nesse sentido, a legislação brasileira de recursos hídricos criou o sistema institucional que possibilita a articulação para atuar no seu gerenciamento. Destarte, a União, os estados, os municípios, os usuários de recursos hídricos e a sociedade civil atuam em conjunto, preferencialmente, de forma harmônica e integrada (Pereira e Johnson, 2004).
5Entende-se que a governança é a uma forma de coordenação inter-organizacional modelada em redes, especialmente as auto-organizados (Gregory, 2013). A governança da água, assim, refere-se ao conjunto de aspectos políticos, sociais, econômicos e sistemas administrativos (Kooiman, 2008) que estão no local para desenvolver e gerenciar os recursos hídricos, a prestação de serviços de água e para implementação de soluções para melhoramento da qualidade da água, em diferentes níveis da sociedade (ANA, 2005; Theodoro, 2017). A governança é mais abrangente que a governabilidade, refere-se a um guia de gerenciamento e, ao mesmo tempo, a um processo de coordenação social e econômico. Com isto, envolve os diversos atores não estatais no processo de negociação e tomada de decisão. Em um plano mais amplo, a governança engloba a sociedade como um todo (Gravel e Lavoie, 2009; Rosenau, 2002; Gonçalves, 2006). Pensar a governança das águas é entender essa discussão envolve essencialmente diversas áreas do saber, ações políticas e de gestão.
6Nesse contexto, destaca-se a região semiárida brasileira que, historicamente, vivencia problemas sociais, econômicos e ambientais em decorrência de uma gestão hídrica falha que impactou fortemente a governança da água. É imensurável o montante financeiro investido na região nos últimos cento e trinta anos a partir das incontáveis ações do estado; porém, essa ainda continua padecendo de problemas sociais, principalmente aqueles oriundos das secas sazonais. Percebe-se que o modelo de gestão em vigência não é o mais adequado e criar novos órgãos ou burocratizar ainda mais o processo certamente não minimizou o problema. Por outro lado, a população residente na região pouco foi ouvida sobre seus conhecimentos aplicados às minimizações dos impactos sociais resultantes da falta de acesso à água.
7O estado de Pernambuco possui, ao todo, cento e oitenta municípios, dos quais cento e vinte e dois estão na região semiárida, os demais encontram-se nas áreas de Mata Atlântica e litoral. Do ponto de vista demográfico, Pernambuco possui total de 8.796.448 habitantes, sendo 3.655.822 residentes no semiárido e, por fim, deste total 2.376.320 residem em áreas urbanas e 1.279.502 nas zonas rurais (INSA, 2011). É ainda um dos estados que mais recebeu investimentos no seu semiárido, bem como um local, reconhecidamente, importante nas políticas públicas. Do total de municípios do estado, nenhum está com nível muito alto de IDHM: Seis estão com alto nível de IDHM, setenta com médio, um está muito baixo e os demais como baixo. Nenhum município do semiárido possui alto nível de IDHM (ADH, 2018).
8Isso posto, partiu-se para estudar o rio mais importante no semiárido de Pernambuco. As águas do Rio São Francisco são utilizadas na geração de energia, no fornecimento de recursos à indústria e irrigação, notadamente o agronegócio, e no fornecimento de água potável e saneamento das cidades e áreas rurais. Entretanto, a água também tem uma dimensão religiosa para as comunidades quilombolas e indígenas (MMA, 2005; Cirillo, 2008; ASA, 2017; Marques, 2018; Reis, 2018). O amálgama desses temas, quando estão em pauta na gestão hídrica, provoca tensões e lutas entre os membros.
9A gestão hídrica no Brasil segue a lógica da atuação multiescalar e, isso posto, o estado de Pernambuco tem seus recursos hídricos, ora geridos pelo governo estadual, ora por pelo governo federal com influência da escala regional que, nesse caso, torna-se interestadual. Esse complexo engendramento, aliado às decisões político-partidárias e a atuação das ONGs, torna a gestão hídrica complexa em sua execução. Nesse sentido, pergunta-se: como deve ser o processo de gestão hídrica para a região semiárida de Pernambuco através do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF)?
- 1 O texto aqui presente é um recorte do capítulo oito da tese de doutorado intitulada “Análise de um (...)
10Nesse sentido, objetiva-se discutir o processo de governança da água no semiárido de Pernambuco a partir do CBHSF, com foco da Câmara Consultiva Regional (CCR) do Submédio São Francisco e tendo-se em mente que a gestão hídrica através do CBHSFé, essencialmente, um processo de governança da água1.
11Então, há, inicialmente, o processo de construção dos comitês de bacias hidrográfica no Brasil e, em particular, os comitês da bacia do Rio São Francisco com suas câmaras consultivas regionais. Em seguida, discute-se, a partir das entrevistas coletadas, a análise das atas a atuação da CCR do Submédio São Francisco com destaque nas percepções e objetivos dos seus membros; as estratégias para a tomada de decisão; a participação cidadã e dos membros no comitê; as tomadas de decisão; o papel do estado de Pernambuco na gestão da CCR e, por fim, a avaliação da gestão a partir da bacia hidrográfica.
12A pesquisa aqui proposta fez uso de dados e informações publicadas e de entrevistas com os membros da CCR do Submédio São Francisco. Foram consultadas as publicações de órgãos governamentais e da sociedade civil organizada em mídias impressa e eletrônica. Para o entendimento da gestão a partir do CBHSF, foram consultadas todas as atas de plenárias das reuniões da CCR São Francisco entre 2003 e 2018. A sua escala de atuação é local, mas pensada regionalmente a partir da região do Submédio São Francisco.
13O CBHSF realiza reuniões plenárias nas quais participam o poder público, usuários e as comunidades, com o intuito de discutir e planejar ações que contribuam para uma gestão eficiente dos “recursos hídricos ”, proporcionando aos municípios que integram a bacia um desenvolvimento sustentável –sendo que no período referido, foram realiza das trinta e cinco Reuniões Plenárias Ordinárias.
14O questionário aplicado aos membros titulares e suplentes da CCR do Submédio São Francisco foi construído visando dar voz e aprofundar o conhecimento sobre a gestão da água. Buscava-se entender o que não é revelado nas atas das plenárias, tais como as ideias defendidas e suas estratégias, preencher as lacunas de conhecimento não evidenciadas nos documentos (Minayo, 2012).
15Nesse sentido, o questionário contou com 17 perguntas divididas em 6 blocos tematicamente como se segue: atuação dos membros; critérios para a tomada de decisão sobre a gestão das águas; processo de tomadas as decisões; participação cidadã nos comitês e a avaliação da gestão das águas através dos comitês. Por fim, reservou um espaço para dar liberdade aos entrevistados trazerem quaisquer temas que eles julgassem relevantes e que não haviam sido tratados nas perguntas.
16A escolha dos entrevistados seguiu o critério da sua participação na CCR do Submédio São Francisco, seja como conselheiro titular ou suplente no mandato de 2016-2020. Verificou-se que, em sua maioria, os membros residem nas capitais e cidades do interior dos estados da Bahia e de Pernambuco, uma informação importante no processo de conhecimento e tomada de posicionamento quanto aos temas tratados nas reuniões. Ao todo, nove membros foram entrevistados, sendo quatro pessoalmente, uma por telefone e quatro por correio eletrônico como evidenciado. Dos nove entrevistados, três ocupam postos de instituições de Pernambuco. Os demais estão ligados ao estado de Bahia.
Tabela 1 – Membros entrevistados da CCR do Submédio São Francisco
Data |
Local da entrevista |
Duração da entrevista |
Nome fictício |
23/11/2018 |
Juazeiro (BA) |
62 minutos |
Jorge |
30/01/2019 |
Petrolina (PE) |
33 minutos |
Chico |
04/02/2019 |
Correio eletrônico |
- |
Geraldo |
07/02/2019 |
Correio eletrônico |
- |
Oswaldo |
16/02/2019 |
Correio eletrônico |
- |
Alceu |
20/02/2019 |
Juazeiro (BA) |
67 minutos |
Fred |
22/02/2019 |
Petrolina (PE) |
43 minutos |
Adilson |
24/02/2019 |
Correio eletrônico |
- |
Jorge |
29/03/2019 |
Por telefone |
35 minutos |
Maria |
Fonte: elaboração própria.
17De posse do material bruto das entrevistas, fez-se uso da técnica de análise de verbatim que consiste em coleta e análise de dados de entrevistas coletivas e/ou individual (Paillé e Mucchielli, 2003; Paillé, 2007). Os dados das entrevistas foram analisados de forma rigorosa, sistemática e verificável apontando quem são as pessoas entrevistadas e quais órgãos representam no comitê.
18Em seguida, procedeu-se com a leitura das transcrições para a identificação de pontos de aproximação. A análise prosseguiu executando uma codificação axial do texto literal. Assim, cada parte do texto foi classificada em uma categoria que representasse a ideia que ela transmitisse. Essas categorias foram agrupadas em temas gerais, aqui identificados como: percepções e objetivos dos membros; as estratégias para a tomada de decisão; participação cidadã e dos membros no comitê; as tomadas de decisão; o Estado de Pernambuco na gestão da CCR do Submédio São Francisco e, por fim, avaliação da gestão a partir da bacia hidrográfica.
19Cada categoria foi analisada, aprofundada e confrontada com as informações constantes nas atas das plenárias. Assim, fez-se o uso de documentação e entrevistas para, em conjunto, ter uma ideia mais verticalizada e, ao mesmo tempo, mais próxima da realidade de um fórum de discussões com formação hidrogena e objetivos convergentes e divergentes.
20A Lei nº 9.435/97 estabelece que a União, em articulação com os estados, gerencia os recursos hídricos de interesse comum. Sendo assim, as leis estaduais estabelecem que esses deverão se articular com a União, outros estados e municípios. Entretanto, nenhum texto legal estabelece como deve ocorrer esta articulação em bacias hidrográficas nacionais, seja no tocante aos instrumentos de gestão (outorga, fiscalização e cobrança), seja no que concerne aos organismos de bacia (relação entre o comitê do rio principal e os comitês de rios afluentes, sob jurisdição federal ou estadual) (Castro, 2012; Theodoro, 2017).
21No âmbito da acima citada, foi criado o Sistema Integrado de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH), no qual se organiza estruturalmente a gestão dos recursos hídricos no país por bacia hidrográfica. O marco regulatório é baseado em instrumentos de comando e controle (planos de bacia, autorização para captação e uso da água, classificação dos cursos de água e sistemas de informação) e em incentivos econômicos para o uso racional dos recursos hídricos (cobrança pelo uso da água e compensações financeiras) (Porto e Porto, 2008; Theodoro, 2017).
22Os comitês de bacias hidrográficas são interestaduais e estaduais, e se caracterizam por serem organismos colegiados que fazem parte do SINGREH e existem no Brasil desde 1988 (Theodoro, 2017). A composição diversificada e democrática dos Comitês contribui para que todos os setores da sociedade tenham representação e poder de decisão sobre sua gestão (CBHSF, 2017), possuindo como órgão executivo, a Agência de Bacia, que tem suas atividades relacionadas com a Agência Nacional de Águas (ANA) e com os órgãos estaduais. Ao instituir as competências jurídicas, administrativas e financeiras voltadas para a gestão das águas, o estado brasileiro priorizou as condições sistêmicas e institucionais sob as quais se dá o exercício da gestão dos recursos hídricos. A instalação da ANA e dos comitês de bacias, juntamente com os instrumentos de gestão de recursos hídricos, definidos pela Lei Federal 9.433/97, propiciou condições para a governabilidade dos recursos hídricos no Brasil (Pereira, 2003).
23Em princípio, o processo de gestão dos recursos hídricos, no semiárido traria novas práticas e extinguiria ações anteriores, tais as decisões governamentais tomadas de forma centralizada; as ações assistenciais que caracterizam os períodos de seca e o desinteresse e a ausência de iniciativa dos usuários e da sociedade na busca de alternativas para gestão sustentável dos recursos hídricos. O Estado de Pernambuco seria, assim, beneficiado diretamente por esse processo.
24O CBHSF foi criado por decreto presidencial em 5 de junho de 2001. Possui atribuições normativas, consultivas e deliberativas, sendo formado por sessenta e dois membros titulares e sessenta e dois suplentes, sendo que só os membros titulares têm o direito ao voto. A divisão de participação se apresenta com 38,7% com os usuários, 32,2% com o poder público federal, estadual e municipal, 25,8% com a sociedade civil e 3,3% com as comunidades tradicionais (CBHSF, 2017). A Diretoria Colegiada (DIREC) é constituída pela Diretoria Executiva (presidente, vice-presidente e secretário) e pelos coordenadores das CCRs e se encarrega de desempenhar as atividades político-institucionais do CBHSF. Fica sob a responsabilidade da Diretoria Executiva as atribuições administrativas encaminhadas pelos membros, bem como as discutir e deliberar sobre as propostas de cunho técnico-científico e institucional apresentadas pelas Câmaras Técnicas. Entre a Diretoria Colegiada e a Diretoria Executiva, ficam as agências de bacias, no caso do CBHSF, quem atua é a Agência Peixe Vivo.
25As CCRs são o principal canal do CBHSF no processo de gestão descentralizada, integrada e compartilhada. São as responsáveis por fazerem a interlocução do CBHSF com os comitês de seus afluentes, bem como com as comunidades usuárias dos recursos hídricos. Cabem às CCRs promoverem a mobilização em suas regiões, buscando o envolvimento da comunidade, com a realização de cursos, seminários, oficinas temáticas e consultas públicas. Atuam ainda como mediadoras dos conflitos oriundos do uso dos recursos hídricos. São 4 câmaras: do Alto, do Médio, do Submédio e do Baixo São Francisco, como demonstra a figura a seguir.
Figura 1 – Divisão político-administrativa da Bacia do Rio São Francisco
Fonte: elaboração própria com dados do CBHSF.
26A Agência Peixe Vivo é uma associação civil, pessoa jurídica de direito privado, criada em 2006 para exercer as funções de Agência de Bacia para o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas. Desde então, com o desenvolvimento dos trabalhos e a negociação com outros comitês para que fosse instituída a Agência única para a Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, o número de comitês atendidos aumentou consideravelmente, sendo necessária a reestruturação da organização.
27As CCRs contam com a participação de vinte Organismos Governamentais federais e seis Organismos não governamentais e associação de classes, bem como três Organismos internacionais. As quatro CCRs possuem autonomia na elaboração de suas agendas de discussões e a atenção que desprendem para cada demanda. Não obstante, as regiões fronteiriças podem ter sobreposição de gestão, mas isso não foi apontado como um problema por nenhum dos entrevistados ou constou em atas. Posto isso, a CCR do Submédio São Francisco se reúne ordinariamente quatro vezes por ano, sendo duas na Bahia e duas em Pernambuco e, caso necessário, solicita-se uma reunião extraordinária. Normalmente, as reuniões acontecem em cidades diferentes para possibilitar a participação de pessoas de comunidades e municípios distintos, sendo que cada reunião dura dois dias de discussões temáticas.
28Há na fala dos participantes um direcionamento no entendimento que a gestão das bacias, tal qual está sendo feita, tem seus avanços. Cada membro, à sua maneira, expõe seu entendimento da água como bem comum, mas deixando claro que defendem, em princípio, os interesses das instituições que representam. Por exemplo, Luiz chama atenção que a configuração dos comitês é: “[...] muito interessante porque reflete mais ou menos a sociedade e também todos os conflitos e todos os interesses”. Já as tensões entre poder público e interesses privados se evidenciam em algumas falas. Para o entrevistado, Geraldo é difícil: “estabelecer a governança em uma área tão dominada pelo poder púbico e pelos usuários. Sendo sociedade civil e não servil desses poderes”.
29Não existe, em princípio, discordância de que a água é um recurso natural e deve ser usada. Outrossim, há divergência em como ela deve ser utilizada e, principalmente, a prioridade dos seus usos. Nesse sentido, Oswaldo afirma que: “a ideia que a água possa ser usada de forma racional, atendendo a toda a população, mas com especial atenção às populações mais vulneráveis. Evitar toda e qualquer forma de contaminação, desperdício, monopólio e domínio sobre seu uso”. Adilson afirma que: “a gente defende como indústria: a utilização da água conscientemente dentro de padrões de controles normais, e, assim como, os dejetos, o retorno ao rio da água dentro dos padrões de qualidade exigidas, no caso da indústria”.
30A preocupação de quem trabalha para o estado e sabe da importância da manutenção do Rio fica clara na fala de Chico quando afirma que defende
a revitalização do rio, a gente sabe que hoje o desmatamento, a poluição através do aterramento sanitário e ações que a gente possa trazer de volta as nascentes que hoje já não existem mais. Esses são as ações que eu mais defendo lá dentro do comitê para que a gente possa revitalizar a Bacia como um todo, e aí sim, a gente poder garantir que a gente vai ter água no rio São Francisco.
31Por mais que a dinâmica de funcionamento do comitê seja definida e registrada, a sua compreensão não é assimilada por todos, sendo que os mandatos de quatroanos são apontados como razoáveis, mas como a participação nos comitês não é a atribuição principal dos seus membros, se leva tempo para a compreensão de todo o processo e, quando isso acontece, é normalmente na parte final dos mandatos. Isso é apontado por Luiz, que já está no seu terceiro mandato e por Fred que está no primeiro.
32Luiz critica a hierarquização do comitê, tratando ainda que nem todos os membros se sentem à vontade na hora do diálogo. Há registros de conflitos por falas menos acadêmicas serem criticadas e registro que profissionais do estado ou de empresas que nem sempre se sentem confortáveis ao escutar críticas e denúncias de alguns usuários e representantes de comunidades ribeirinhas.
33A defesa das propostas converge no entendimento do uso racional da água, mesmo que exista aí uma ambiguidade. O entendimento daqueles que representam as indústrias diverge dos que defendem a população que usa diretamente a água do rio, sobretudo nas áreas rurais, bem comodas pessoas que residem nas cidades e são abastecidas diretamente pelo serviço de água fornecido pelo estado.
34As preocupações quanto aos vários usos da água e a necessidade de se pensar a gestão a partir da ideia de convivência com o semiárido é presente nos discursos. Assim como as discussões sobre a gestão. Entretanto, nas falas ficam claras as tensões, os conflitos e as estratégias para a tomada de decisão. O clientelismo e o uso do estado para interesses privados tão presentes na gestão estatal não cessam a sua existência na gestão a partir da bacia hidrográfica.
35As tensões afloram quando os usos sobre a água divergem. Para Oswaldo: “o viés econômico quase sempre tem um peso maior que o ambiental”. Ao que Alceu reitera: “somos atropelados pelos interesses entre os dois segmentos, usuários e poder público”.
36Os problemas da gestão autoritária do estado e o uso dos comitês para atender fins privados é evocado em várias falas. Há problemas no represamento da água para a produção de energia, bem como a ausência de preocupação com o rio e com as pessoas que possuem menor influência política. Alceu afirma que: “[...] na totalidade os interesses entre usuários e poder público andam juntos com a tal utopia de progresso destruidor onde massacra os menos favorecidos, ou seja, as comunidades”.
37Os temas que mais suscitam discussões são aqueles que tocam diretamente no uso da água para indústria, produção de energia, outorga e a transposição. Temas como a preservação do rio, suas nascentes e afluentes não ocupam a mesma proporção de discussão nas reuniões.
38Do lado de quem defende o uso da água do rio para fins industriais, existe a premissa de que a água que vai para o mar deve ser utilizada antes de se perder, isso em nome do progresso. Soma-se a isso a defesa de que as indústrias pagam pelo seu uso e geram empregos, movimentando a economia local. Para os defensores, tanto a regulamentação como a cobrança da água servem para evitar os usos clandestinos. Maria chama atenção que existe uma discussão sobre a metodologia de cobrança pelo uso da água que propões o atendimento uniforme para todas as categorias usuárias do recurso hídrico.
39A participação no comitê é um tema essencialmente sensível, uma vez que esse é um fórum de discussão e deliberação que necessita da presença efetiva daqueles que deliberam, bem como daqueles que são direta ou indiretamente impactados pelas ações. Há divergências em como se vê a avalia a participação das entidades e dos cidadãos nas reuniões do comitê.
40Alceu afirma que: “estamos conseguindo mobilizar a sociedade civil, as dificuldades é que, quando não vêem as ações rápidas ficam um pouco desacreditadas, mas conseguindo dentro dos conflitos marcarem presenças de muitos [...]”.
41Um contraponto é dado por Jorge quando declara que: “Empecilhos para a presença e poder de voz são de ordem individual e pessoal, além do incentivo e promoção que o CBHSF sempre faz. Depende sempre da disponibilidade e capacidade das pessoas. O que se nota é uma ausência dos gestores municipais e estaduais, na maioria”. Por fim, Chico tem a seguinte análise sobre a participação no comitê: “a gente tá vivendo um processozinho que já mudou muita coisa no país, esse processo de participação, esse processo de gestão, de governança, de... dar a voz, eu acho que a gente melhorou muito”.
42Os conflitos, normalmente, afloram no processo de tomada de decisão entre os grandes e pequenos. Todas as demandas dos usuários e dos municípios podem ser levadas aos comitês, não excluindo demandas que são de entidades que não são membros do comitê. Sobre a tomada de decisão, Alceu alega que:
conseguimos fazer muitas coisas, pelo São Francisco na CCR com a cobrança de outorgas estamos fazendo a parte políticas como: elaboração de planos municipais, projetos de proteção de nascentes, recuperação de matas ciliares, desassoreamentos de alguma região, [...] dentro das condições do CBHSF por ter poucos recursos são feitas ações dentro da bacia com o próprio dinheiro da cobrança.
43Dos temas elencados como mais conflitantes, a outorga da água é a mais sensível. Para Jorge: “a atualização da cobrança é a proposta mais relevante e de maior impacto no CBHSF”. Fred afirma que “nós temos uma arma muito grande na mão que é cortar a outorga da Empresa, eu quero ver, claro que não é assim né?”
44Há, entretanto, dentro do comitê quem defende o aumento da cobrança pelo uso industrial das águas, bem como aqueles que defendem que esse tipo de uso deixe de existir, uma vez que a geração de empregos e riqueza não coaduna com os fortes impactos ambientais causados pelo agronegócio. Maria explica que as propostas são as mais variadas possíveis, discute-se todo o contexto da Bacia do São Francisco, desde a questão social, a questão ambiental, a questão econômica.
45As estratégias de negociação para se chegar um acordo incluem não só os debates durante as reuniões como as conversas de bastidores. Um ponto destacado por vários membros é a importância da participação da universidade no suporte técnico e reflexivo sobre a tomada de decisão na gestão. Desde a chegada da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF) ao comitê, ampliou-se a dimensão da conservação do rio e das pessoas que mais precisam dele.
- 2 Agência Pernambucana de Água e Clima.
46A gestão hídrica para Pernambuco não é bem avaliada pelos participantes. Geraldo diz que: “ a participação de Pernambuco é péssima, passou a ter um empenho e desempenho melhor com a entrada da UNIVASF no Comitê ”. Jorge afirma que: “a gestão de Pernambuco, via APAC2 é sofrível, pois o estado que muito precisa da água do Rio São Francisco, não coopera na gestão compartilhada [...] A gestão pernambucana é fraca”.
47Divergindo de ambos, Alceu defende que: “Pernambuco está recebendo bons projetos, como agora que entregamos uma adutora e uma estação de tratamento na comunidade indígena Pankará na cidade de Itacuruba que vai beneficiar mais de mil famílias tanto para o consumo humano, quanto para a irrigação sustentável”.
48A fala mais ponderada vem de Chico ao explicar que:
- 3 Mesorregião do estado de Pernambuco que comporta 71 municípios, todos no semiárido.
a gente precisa de uma melhora em relação ao governo de Pernambuco de uma forma geral. A preocupação hoje com o abastecimento passou a frente dos demais, porque a gente tem uma situação de crise hídrica bastante agravante, principalmente no Agreste3 do Estado [...], o governo de Pernambuco está trazendo água através de adutoras, nossa perda com evaporação, por infiltração, as perdas, furtos são bem menores e são mais controladas.
49Certamente, há convergência na avaliação da gestão da água pela bacia hidrográfica. Todos os entrevistados deixaram isso claro em suas falas, mesmo com ressalvas. Para Luiz: “o comitê ainda funciona muito separado da sociedade. Isso depende também porque o Submédio não é organizado, é difícil organizar a sociedade pra participar. Nós temos no comitê uma parte de comunicação, e aqui também nessa parte de comunicação, se terceiriza coisas”. Geraldo ressalva que: “o governo que acha que Comitê é o próprio governo, não entende que os membros do governo que compõem o Comitê são membros como qualquer um da sociedade civil. Comitê não é governo, não é ONG, não é associação, é um ente de estado e precisa ser visto assim”.
50Na verdade, o processo de gestão dos recursos hídricos no semiárido a partir das bacias hidrográficas ainda está em processo de amadurecimento. Na prática, esses objetivos ainda não foram, plenamente, alcançados, mas caminham para o seu aperfeiçoamento, pois a agenda da água precisa ocupar as políticas públicas dos municípios, estados e da União.
51A busca de uma descentralização no processo de gestão hídrica no Brasil, em direção uma melhor governança da água, se intensifica a partir do século xxi. A participação de diversos atores, tais os órgãos estatais, as organizações civis e cidadãos, se consolida nos comitês de bacias hidrográficas. Isso não evita, entretanto, os conflitos e interesses divergentes em convívio. As entrevistas colhidas, bem como as atas examinadas evidenciam isso.
52Mesmo com ressalvas e melhoras necessárias apontadas ao longo desse trabalho, há convergência na boa avaliação da gestão por bacia hidrográfica pelos entrevistados. Por outro lado, a gestão hídrica para o Estado de Pernambuco não é bem avaliada, principalmente com a pouca participação das instituições que representam o estado que, na maior parte das vezes, estão ausentes das reuniões como atestam as atas. Nesse sentido, o processo de governança da água não tem avançado como deveria.
53Para se alcançar uma governança da água, é fundamental fortalecer os comitês de bacias e intensificar as parcerias com a sociedade civil organizada e até uma participação popular. A criação de conselhos e a descentralização na tomada de decisão constitui um passo positivo em busca da democratização na elaboração das políticas públicas e, consequentemente, de uma governança mais eficiente, uma vez que a descentralização constitui um instrumento legal e formal, representando um instrumento para garantir o funcionamento da democracia.
54Para os comitês, espera-se que seus membros tenham uma contrapartida das instituições que representam a ser pensada em cada caso, sejam de empresas, organizações governamentais ou da sociedade civil organizada, bem como mais tempo para se dedicarem a estudar o seu funcionamento. Ainda sobre o tema, é preciso que os comitês possuam mais autonomia e respaldo do Estado no encaminhamento e tomada de decisão.
55Mesmo que o Brasil esteja num processo mais desenvolvido e maduro na sua gestão hídrica quando comparado aos vizinhos da América do Sul, ainda é incipiente para às dimensões do país, bem como suas reservas hídricas. Nesse sentido, o caso do semiárido de Pernambuco é apenas mais um dentro de uma complexa rede institucional robusta e pouco articulada.
56Por fim, a gestão hídrica necessita ser aprofundada no Brasil em sua totalidade, mas chama-se atenção que isso é ainda mais sensível no semiárido, uma região marcada por processos de decisões autoritários e centralizados. As experiências de gestão do semiárido precisam ser mais estudadas porque seus equívocos e acertos são fundamentais para ser vista como um laboratório propositivo para uma agenda futura. A relação entre os diversos aprendizados acumulados ao longo do tempo precisa estar disponível para as demandas presentes e futuras. É fundamental que o processo seja constantemente avaliado, que a sociedade civil organizada seja estimulada a participar e que o Estado ceda aos anseios e decisões dos comitês.