- 1 Vazquez, Laura, El oficio de las historietas, Buenos Aires, Paidós, 2010, p. 25-131.
1No interior da multifacetada produção de histórias em quadrinhos (HQs) na América Latina, seguramente a Argentina é um dos espaços onde esta linguagem consolidou-se de forma mais significativa. É possível encontrar um cenário já bem consolidado ao longo dos anos 1940 a 1960 e que inclui editoras, autores e leitores, além de uma crítica especializada. Observa-se a construção de um campo marcado pelo amplo reconhecimento social da importância de uma prática cultural que se encontrava apartada dos meios bem estabelecidos de saber1.
- 2 Cf. Gomes, Ivan Lima, “Editar historietas en América Latina: algunas cuestiones desde una perspecti (...)
2Ora, se a história das HQs na América Latina é, em grande medida, uma história das circulações e apropriações culturais que as constituem como uma expressão híbrida e que corresponde às transformações da modernidade latino-americana do século xx, isso significa dizer que as HQs nos convidam a pensar para além de fronteiras historicamente estabelecidas, como as do Estado-nação. Em seu lugar, enfatizam-se os trânsitos e as trocas que reconfiguram sentidos e representações. Na América Latina, as HQs oriundas dos Estados Unidos passaram por uma série de adaptações e releituras que sintetizam muito bom o caráter tenso das disputas no interior das práticas culturais, vide o curioso caso dos balões de fala apagados em HQs publicados no México ou a introdução de um criado negro para Chiquinho, versão brasileira de Buster Brown, criado originalmente por Richard Outcault. Seguir as pistas dos trânsitos e trocas culturais suscitadas pelas circulações em torno das HQs parece ser um caminho sugestivo para a reflexão sobre o tema2.
- 3 Espagne, Michel, “Transferts culturels et histoire du livre”, Histoire et civilisation du livre, v. (...)
3As reflexões de Michel Espagne em torno da noção de “transferência cultural” contribuem para investigar as trajetórias de objetos culturais e instâncias de mediação – como artistas e editores – no processo de translação de um dado objeto de estudo entre um contexto de surgimento e outro de recepção, que incidem positivamente, por sua vez, neste mesmo objeto, agregando-lhe sentidos3. É neste sentido que seguiremos, a partir de notas preliminares de pesquisa, a atuação de João Mottini no mercado das HQs na Argentina. Artista brasileiro que migra em fins dos anos 1940 para Argentina, Mottini publicou HQs e trabalhou com nomes importantes do mercado de HQs deste país. Retorna ao Brasil no início da década de 1960, trazendo consigo a experiência de alguém que alcançara reconhecimento no mercado argentino de HQs, para atuar num projeto editorial voltada para a defesa da nacionalização desta mídia no Brasil. Destacaremos alguns momentos desta longa década de Mottini na Argentina, de forma a lançar luz sobre alguns aspectos do mundo das HQs argentinas e compreender seu impacto na formação artística de Mottini.
- 4 Groensteen, Thierry, La bande dessinée: un objet culturel non identifié, Angoulême, Editions de l’A (...)
4A pesquisa em história das HQs aponta para questões teórico-metodológicas específicas que merecem serem destacadas, na medida em que este artigo procurou enfrentá-las ao longo da investigação que lhe deu origem. Por um lado, as HQs são parte importante da história da adoção de novas tecnologias para a impressão de livros e jornais e da massificação dos impressos, marcas da história editorial dos séculos xix e xx. As HQs foram publicadas ao longo de décadas por editoras que, por vezes, dedicavam-se quase exclusivamente à publicação de revistas, jornais e suplementos de HQs em altas tiragens, direcionadas a um público leitor dedicado e fiel. Por outro lado, elas são pouco preservadas, o que impõe desafios à pesquisa histórica. Nas palavras de Thierry Groensteen, seriam um “objeto cultural não identificado4”, uma vez que, por mais que goze, atualmente, de rara legitimação social, a HQ ainda seria uma “arte sem memória”, destituída de espaços que contribuam para a conservação e difusão de sua memória e legado cultural.
5Uma saída para o acesso a fontes e documentações ligadas ao universo de publicações de HQs encontra-se no contato junto a colecionadores, que buscam preservar e discutir a memória das HQs. Historicamente presentes em edições especializadas ou em fanzines, atualmente se encontram disponíveis em sites, blogs e fóruns de discussão online, não raro configurando uma espécie de memória de fãs que se afirma em relação a outras formas de investigação do passado, como a historiografia. Ao historiador cabe agir nas “lacunas” entre acervos e memórias em conflito, de forma a construir uma narrativa mais ampla, abrangendo-os de forma crítica, mas sem restringir-se a um ou outro.
6Para a composição geral deste artigo, trabalhamos com fontes documentais diversas, tendo como eixo a trajetória de João Mottini no mundo editorial das HQs argentinas. Através dele cotejamos acervos públicos e privados, enfrentando os dilemas relativos a distintas políticas de memórias atinentes a cada espaço. Faremos considerações mais aprofundadas sobre eles à medida que nosso personagem os mobilize com suas HQs. Por ora, cabe destacar a importância dos acervos digitais, amplamente trabalhados aqui. Cientes das implicações materiais presentes na digitalização de impressos e que podem se configurar como desafios à análise aqui proposta, decidimos valermo-nos dos acervos digitais de HQs na medida em que eles nos possibilitaram apreender, de forma única, a trajetória de João Mottini num universo editorial tão diverso quanto o das HQs argentinas. Por fim, trata-se de uma primeira aproximação sobre o artista em seus anos na Argentina.
- 5 Torresini, Elizabeth, “Breve história da circulação de livros, das livrarias e editoras no Rio Gran (...)
- 6 Luis Rosales foi um investigador e colecionador de HQs argentinas que compilou muitos dados e fonte (...)
7Nascido em 1923, na cidade brasileira de Santana do Livramento, localizada no estado do Rio Grande do Sul, o desenhista João Batista Mottini ingressa cedo no mundo da ilustração editorial. Aos quinze anos de idade, já trabalhava na editora da Livraria do Globo, fundada em 1883 e que se destacava no mercado editorial gaúcho dos anos 1930 e 1940 pela publicação de enciclopédias e coleções de clássicos da literatura mundial5. Mottini atuou no setor de ilustrações, dedicando-se a obras clássicas como Os Três Mosqueteiros, Dom Quixote, Robin Hood e Rei Arthur, livros escolares e a absorver influências de artistas plásticos como Ernst Zeuner, João Fahrion e Edgar Koetz6.
- 7 Rosales, Luis, “Algo más sobre Mottini”, op. cit.
8Fatores como a proximidade geográfica entre o estado do Rio Grande do Sul e, mais especificamente, a cidade de Santana do Livramento, e a Argentina; a presença de colegas brasileiros no mercado editorial argentino, como Edgar Koetz, Victorio Gheno e Paulo Flores, entre outros7, com quem Mottini já trabalhara na Livraria do Globo; e a experiência como ilustrador de livros didáticos devem ter atraído a atenção de Mottini para o mercado editorial argentino, que vivia anos de expansão e desenvolvimento comercial.
- 8 Sarlo, Beatriz, El imperio de los sentimientos: narraciones de circulación periódica en la Argentin (...)
- 9 Soares, Gabriela Pellegrino, Semear horizontes. Uma história da formação de leitores na Argentina e (...)
- 10 De Diego, José Luis de. La época de oro de la indústria editorial. In: De Diego, José Luis (comp.),(...)
9Conforme identificou Beatriz Sarlo, desde as décadas de 1910 e 1920 a Argentina já contava com um rico mercado de revistas semanais de perfil folhetinesco e em paralelo às vanguardas literárias, o que indica o aquecimento de um mercado editorial que, na virada do século xx, já se configurava com o terceiro país do mundo com a maior proporção de jornais por número de habitantes8. Teve um papel importante para estabelecer a produção impressa a ênfase pública de escolarização infanto-juvenil: segundo Gabriela Pellegrino Soares, “muitos autores buscaram o reforço das políticas públicas dedicadas ao sistema escolar e bibliotecário para conquistar espaço9”. Nas décadas seguintes, o desenvolvimento de um mercado interno de impressos estimulados, em grande medida, pela interrupção das importações europeias de livros e revistas graças à Segunda Guerra Mundial e pela introdução de novas práticas editoriais a partir da chegada de imigrantes italianos e espanhóis configuraram o mercado de impressos argentino ao ponto de torná-lo, entre os anos de 1930 e 1950, o mais importante centro editorial em língua hispânica do mundo10.
- 11 Scarzanella, Eugenia, Uma editora italiana na América Latina: o Grupo Abril (décadas de 1940 a 1970 (...)
10É neste contexto que Mottini se muda para Buenos Aires em 1946, onde seus trabalhos alcançam considerável repercussão no mercado editorial das HQs argentinas. Talvez um dos primeiros trabalhos reconhecidos do artista tenha sido junto à editora Abril, fundada em 1941 a partir dos entrelaçamentos entre as experiências autoritárias dos anos 1920-1940, os exílios de judeus europeus pela América que a elas se seguiram e as novas redes de sociabilidade intelectual que se forjaram na Argentina. A editora Abril investiu nas revistas em quadrinhos, em adaptações literárias e nas fotonovelas11. Representante de Walt Disney na Argentina, o carro chefe da editora certamente esteve nas revistas do universo Disney, como El Pato Donald, lançada em 1944. Porém, a editora Abril contribuiu não apenas para consolidar a cultura dos comics na Argentina, mas também para introduzir leitores e leitoras a novos gêneros e formatos, como a fotonovela, de bastante êxito na Itália.
- 12 Scarzanella, Eugenia, “Mujeres y producción: consumo cultural en la Argentina peronista: las revist (...)
- 13 A revista Argumentos teria sido criada por artistas que se desligaram de uma publicação intitulada (...)
11As fotonovelas rapidamente se popularizaram no país, principalmente, entre o público feminino, aproveitando que práticas de leitura de gêneros como cinenovelas já se encontravam consolidados no país. Como temas de suas histórias, promoviam adaptações de obras nacionais e estrangeiras, contribuindo para a integração cultural em diversos níveis, na medida em que a fotonovela remetia a expressões tipicamente italianas, como o neorrealismo popular e o divismo, ao mesmo tempo em que estabelecia diálogos entre a produção internacional e as demandas locais12. Eram publicações relativamente baratas e que serviam como uma espécie de laboratório para introduzir e apresentar artistas estrangeiros e novos nomes ligados à produção local. Enquanto jovem imigrante brasileiro, de origem italiana e desconhecido do público leitor argentino, João Mottini começaria a atuar profissionalmente em revistas como Ídilio, voltada para a publicação de fotonovelas. Logo atuaria em outras publicações menos conhecidas, como Argumentos, desenvolvendo adaptações ilustradas de filmes argentinos13.
- 14 Para comentários e reproduções de páginas de Sucesos e discussões sobre o criador da revista, susci (...)
12Seus trabalhos na editora Abril, onde também colaborou como capista de diversas revistas, habilitaram Mottini a diversificar suas atividades profissionais, aproximando-o do universo das historietas. Logo levou o estilo realista e próximo da linguagem cinematográfica, reforçado pelo trabalho com aquarela nas publicações de fotonovela e adaptações da Abril, para outras revistas argentinas, como é o caso de Sucesos. Tal como no caso de Argumentos, os dados relativos a essa revista ainda são pouco precisos, o que indica um mercado bastante dinâmico de publicações nos anos 1950, muitas delas de vida bastante efêmera14.
13É sugestivo pensar que a atuação numa revista como Sucesos tenha proporcionado a Mottini trabalhar de forma mais criativa seu desenho a partir de um contato mais aprofundado com o mundo dos artistas de HQs na Argentina. Nela atuaram desenhistas que se destacariam na produção local e internacional, como Alberto Breccia, Alberto Romero, Carlos Roume, Eugenio Zoppi, Manuel Veroni, Oscar Novelle, Roberto Mezzadra e Vicente Le Voci, além do italiano Sergio Tarquinio. Com a ênfase no desenvolvimento narrativo de imagens e no trabalho com gêneros como aventuras e policial, observa-se um amadurecimento de uma estética realista em sua obra, em diálogo com as linguagens do cinema e da fotonovela e do desenho em aguada. Aliando as apropriações criativas no âmbito estético a temas ligados à História e à cultura argentina e latino-americana, a revista parece responder à necessidade de estabelecer um diálogo com a realidade complexa do país.
- 15 Gociol, Judith, Rosemberg, Diego, La historieta argentina. Una historia, 2ª edição, Buenos Aires, E (...)
- 16 Gociol, Judith, Rosemberg, Diego, op. cit., 2003, p. 25-26. Vazquez, Laura, El oficio de las histor (...)
14Afora estes trabalhos na editora Abril e em publicações menos consolidadas no mercado, merece destaque sua atuação ao longo dos anos 1950 junto à editora Dante Quinterno em revistas como Patoruzito e Patoruzú, consideradas umas das mais importantes publicações desta que é considera a “época de oro” dos quadrinhos argentinos15. A despeito de eventuais críticas direcionadas a Dante Quinterno e sua postura controversa enquanto editor, merece destaque aqui o fato de que Quinterno criou a primeira agência argentina de HQs, ao reter para si os direitos autorais do índio Patoruzú e, inspirado na experiência do King Features Syndicate, fundou o Primer Sindicato Argentino de Distribución de Historietas16.
- 17 Vazquez, Laura, op. cit., p. 31-33.
15Rapidamente percebe-se, pois, uma mudança de eixo, que passa do interesse imediato pelas HQs enquanto expressão da vida cultural dos Estados Unidos para a necessidade de afirmação de uma voz nacional que, não raro, situava-se enquanto contraponto crítico à presença massiva dos Estados Unidos no cotidiano do país. Ao seu modo, expressavam as tensões da Guerra Fria, na medida em que se afirmam criticamente em relação à presença dos comics no país. É na década de 1950 também que começam a ganhar destaque vozes em defesa da especificidade argentina da produção de historietas, de modo a contrastá-las com a produção estadunidense de comics não só desde o nível da produção, mas também dos conteúdos específicos representados nas HQs argentinas, de modo a representarem certa “idiossincrasia nacional”17.
16Em Patoruzito, Mottini lançou trabalhos como Aurelio, el Audaz (1950), baseada na trajetória de um aventureiro francês que se autoproclamou Rei de Araucania e Patagônia, além de atuar em adaptação de clássicos da literatura para os quadrinhos. Também passou a ilustrar, desde a segunda metade dos anos 1950, as capas da revista. Sem deixar Patoruzito, assumiu em 1957, no lugar de José Luis Salinas, a série Ellos e, entre 1958 e 1961, a detetivesca Quintín Duval e o western Cara de Tigre, todas publicadas em Patoruzú.
17Logo Mottini tornou-se parte do “time de ouro” da revista. Numa edição do Libro de Oro Patoruzito, de 1956, a revista apresentou o desenhista “Juan Bautista Mottini” nos seguintes termos:
- 18 Libro de Oro Patoruzito, Buenos Aires, Dante Quinterno, 1956, apud. Martinez, Carlos, “El dream tea (...)
Santa Ana do Livramento, en Río Grande do Sul, es el sitio de nacimiento de este artista, radicado entre nosotros. En dicho pueblo fronterizo con el Uruguay es donde según versiones modernas José Hernández comenzó a escribir su “Martín Fierro”, después de llegar a pie allí, entre los derrotados en Ñaembé. “No he hecho nada más que dibujar”, declara Mottini. Su nombre y su calidad de dibujante tienen en las historietas con que colabora en “Patoruzito” justa estimación y popularidad. El “Libro de Oro” presenta una sugestiva versión de su pincel, de los pasajes culminantes de un relato de Jack London, el famoso escritor, cuya pluma se especializó en asuntos de hondo interés por su atmósfera dramática y por su geografía donde la realidad alterna con lo exótico y la historia se toca con la ficción mágica18.
18De João Batista a Juan Bautista, passando pela relação com a saga épica do gaúcho Martin Fierro, a referência acima parece indicar que Mottini já se encontrava plenamente ambientado na nova paisagem editorial. Bem inserido na indústria de HQs argentina e com atuação na publicidade, Mottini também foi um nome de destaque na formação de artistas.
19Na Argentina em 1950 deflagra-se a ascensão da “época de oro” das historietas não apenas pela presença de inúmeras editoras e publicações centradas em HQS, mas também pela constituição de espaços de referência para a formação e a crítica estética e histórica das HQs. Uma referência importante diretamente relacionada ao nosso tema foi a Escuela Panamericana de Arte (EPA), fundada por Enrique Lypszic em 1955 a partir de uma primeira iniciativa intitulada Escuela Norteamericana de Arte e de publicações como a revista Club de Aficionados Alex Raymond, voltada à divulgação de novidades das HQs dos Estados Unidos e de comentários e exercícios de desenhistas que atuavam no mercado argentino sobre temas como composição de personagens e elaboração de títulos.
20Mottini colaborou na revista e é possível encontrar comentários elogiosos ao artista já na sua primeira edição, publicada em 1952. Nela encontrarmos um artigo sobre técnicas de movimento, orientadas pelos desenhos e acompanhadas por comentários de João Mottini. Na revista, Mottini merece destaque por imprimir “agilidad en la historieta”:
- 19 Martinez, Carlos, “La revista argentina de Alex Raymond (final)”, Top Comics, 29 mar. 2017 [https:/ (...)
Juan Mottini, brasileño, 28 años de edad, hace siete años que se encuentra en la República Argentina.
Dotado de un talento maravilloso para bocetar de su imaginación poses en movimento […] combinado a la soltura que adquieren sus dibujos, una vez que los ha
trabajado con el pincel, califican a este dibujante como uno de los más completos historietistas (también es uno de los más modestos).
En la actualidad es uno de los dibujantes que mejor dominan las poses en movimiento, otorgándole así una agilidad y un ritmo vivaz en la historieta.
Alternando con esta labor, trabaja también para la publicidad; ha creado los avisos de los dos ninõs jugando con las sábanas para la firma Grafa.
Actualmente, hace las tapas de “Rayo Rojo”, también una historieta en la revista “Patoruzito”: “El Monarca del Ultimo Horizonte”.
Observando esta historieta, notarán que hemos tenido razón al conceptuar al amigo Mottini un gran valor de las historietas19.
21É provável que a atuação anterior na revista do Club de Aficionados Alex Raymond tenha contribuído para que, ainda na primeira metade dos anos 1950, ingressasse na EPA. Ao lado de nomes importantes dos quadrinhos argentinos e mundiais como Alberto Breccia, Pablo Pereyra e Hugo Pratt, integrou o grupo dos “12 famosos artistas”, que ofereciam cursos de desenho por correspondência pela EPA20.
- 21 Vazquez, Laura, op. cit., p. 61-67.
22Dirigida por Enrique Vieytes entre 1954 e 1968, a EPA foi um espaço importante para o estabelecimento da arte das HQs como um bem cultural na Argentina, na medida em que possibilitou acesso a lições de desenho a parcelas expressas de aspirantes a artistas que não tinham acesso a uma educação cultural mais ampla. Com filiais no Brasil e no Peru, a EPA contribuiu para interiorizar a arte das HQs não só na Argentina, mas em diversos países da América do Sul, estimulando a formação profissionalizante que aponta para carreiras nas artes gráficas, sem deixar de lado a dimensão artística21.
23É o que se percebe ao lermos a descrição de João Mottini:
- 22 12 famosos artistas, Escuela Panamericana de Arte, Buenos Aires, s/d, p. 10.
Varias generaciones de Mottini habitaron en el Estado do Rio Grande en Brasil. Su hijo Joao era un chico peleador y fuerte y aprendió a boxear.
Como el muchacho prometía sus padres lo dejaron que siguiera la profesión que él quería.
Dibujo. Tenía 15 años cuando entró como ayudante en una editorial brasileña. A los 16 años ya tenía varios libros escolares ilustrados.
Pero su primer trabajo habíase publicado, cuando tenía 10 años, (Su maestra lo había llevado al diario) presentaba a una sirena. A los 16 años ya era famoso (le hicieron un reportaje a toda página).
A los 18, ya era un hombre. Le gustaba trabajar y dibujar, las tardes de sol radiante y las noches frescas y nadar, jugar al fútbol y salir los sábados a la noche con sus compañeros de dibujo, dibujar a sus parientes y correr detrás de las chicas coquetas.
Ilustró libros como Robin Hood, Los Tres Mosqueteros, con diferentes estilos, todos personalísimos.
A los 23 años, traslada su típico hogar a la Argentina. Aquí nacieron sus dos hijitos.
En 1950, comienza en Patoruzito “El Monarca del Ultimo Horizonte” y vuelca todo su talento, toda su habilidad en una historieta extraordinaria. Donde las figuras y el movimiento cobran una importancia que pocos habían buscado hasta entonces.
¡Naturalidad en el movimiento!22
24Ao retomar alguns trechos da descrição presente na revista Club de Aficionados Alex Raymond, adicionam-se aqui elementos como a vocação, desde seus anos de juventude, para o desenho e a ilustração, que apontam para uma rápida e bem-sucedida profissionalização no mercado editorial, sem deixar de lado as alegrias familiares. Porém, tudo isso não seria suficiente para mantê-lo na Argentina.
- 23 Última Hora, Porto Alegre, 15 fev. 1964, p. 5.
- 24 Vazquez, Laura, op. cit., p. 26-28.
25Afora os trabalhos na Dante Quinterno, Mottini permaneceu atuando em outras editoras de histórias em quadrinhos e agências de publicidade argentinos até 196223. O início dos anos 1960 é marcado, segundo a historiografia, pelo ocaso das revistas semanais e por sua substituição por álbuns mensais de melhor acabamento. Dificuldades para obter papel importado a melhores preços, ausência de políticas oficiais de incentivo à produção de historietas, a desvalorização do salário de setores médios e populares e a entrada da televisão são apontados como fatores para explicar a crise das publicações em quadrinhos que se observa neste período e que levou a muitos artistas e buscarem inserção no mercado internacional, que mostrava-se mais dinâmico24.
26No mesmo ano em que era publicada uma obra fundamental das HQs argentinas como Mort Cinder, de Alberto Breccia e Héctor Oesterheld, Mottini deixou o mercado de quadrinhos argentinos e decidiu ir brevemente ao Brasil em julho para seguir em direção aos Estados Unidos:
- 25 Rosa, Rodrigo, João Mottini: um resgate de sua obra nas histórias em quadrinhos, trabalho de conclu (...)
[…] eu vinha a Porto Alegre apenas para me despedir […], pois estava de viagem marcada para os Estados Unidos. Alguns dos companheiros da Argentina já estavam lá e o trabalho do Bruno Premiani assombrou tanto a ‘King Feature [sic] Sindicate’ que lhe foi encomendado parte da ilustração da história do país. Estávamos em 62 e o Bruno dizia que artistas do nosso porte deviam procurar um país maior onde nos pudéssemos projetar para o mundo25.
- 26 Shimamoto, Julio, entrevista concedida a Ivan Lima Gomes, novembro de 2013.
- 27 Rosa, Rodrigo, ibid., p. 22.
27Chegando ao Brasil, porém, encontrou seu irmão mais velho atacado pelo câncer e decidiu permanecer no país. Ingressou então na CETPA, acrônimo para Cooperativa Editora e de Trabalho de Porto Alegre. Desdobramento das discussões em torno da elaboração de políticas públicas que fomentassem uma espécie de syndicate que atuaria para promover uma “substituição de importações” em favor das HQs brasileiras, as HQs publicadas pela CETPA buscavam valorizar temas, cenários e personagens considerados tipicamente brasileiros. Na CETPA, desenhou por um breve período a tira de aventura Aba-Larga, protagonizada por uma dupla de policiais da Brigada Gaúcha e publicada na edição regional do jornal Última Hora. Além disso, de acordo com Julio Shimamoto, um dos artistas ligados à CETPA, Mottini teria desenhado algumas páginas de sua História do Rio Grande do Sul, supostamente por terem sido perdidos os originais do desenhista paulista26. E, segundo Rodrigo Rosa, Mottini teria chegado a preparar obras para a cooperativa que nunca foram publicadas e que permanecem inéditas até hoje, como A Campanha de Canudos e A Escravidão no Brasil. A primeira seria considerada por Mottini como o seu melhor trabalho em histórias em quadrinhos, ao passo que Escravidão no Brasil contaria com mais de 450 quadros, o que totalizaria algo próximo a 90 páginas, segundo estimativa do desenhista. Infelizmente, ambas as produções de Mottini teriam sido levadas para São Paulo por um editor não identificado da CETPA, sendo consideradas perdidas desde então27.
28Outro trabalho de Mottini para a CETPA foi a série Crimes que abalaram o Rio Grande do Sul, também publicada na edição gaúcha de Última Hora e que estreia em 18 de fevereiro de 1964, acompanhando notícias policiais e do cotidiano da cidade de Porto Alegre. O primeiro episódio se intitula “O açougue macabro da Rua do Arvoredo” e marca o centenário da série de crimes da Rua do Arvoredo que povoam o imaginário gaúcho. Chama a atenção, entretanto, o fato de que o jornal gaúcho passa a manter, a partir daquela data, uma coluna de histórias em quadrinhos que não publica nenhum nome diretamente envolvido com a cooperativa gaúcha. Ainda que não sejam conhecidas as razões exatas para ter sido a CETPA preterida pelo jornal que sempre a apoiou em relação a esses outros quadrinhos, o fato é que a cooperativa que visava afirmar a possibilidade de uma HQ brasileira encerrou suas atividades em 1964.
29Muitas são as justificativas dadas para o fim desta iniciativa editorial e não as cabe retomá-las aqui. Interessa-nos apenas ressaltar o fato de que, em paralelo aos seus trabalhos como quadrinista, Mottini também assumiu a direção de arte da cooperativa. Porém, ao que parece, a sua experiência junto ao mercado argentino de quadrinhos foi ignorada, segundo palavras do próprio. Mottini defendia que a CETPA seguisse o modelo exitoso de Patoruzito e publicasse material estrangeiro ao lado de HQs nacionais, de forma a dialogar com a comunidade de leitores. As duras críticas direcionadas aos comics dos Estados Unidos também já não encontrariam respaldo junto a parcelas expressivas do público brasileiro em 1964, quando um golpe civil-militar apoiado pelos Estados Unidos interrompe o governo de João Goulart e impõe uma ditadura de décadas no país.
- 28 Stein, Daniel, Denson, Shane, MEYER, Chirstina (comp.), Transnational perspectives on graphic narra (...)
30O estudo das circulações e trânsitos culturais contribui para a construção de uma abordagem que vá mais além das fronteiras nacionais historicamente estabelecidas, na medida em que situa em primeiro plano as lógicas internas que orientam as movimentações de determinados agentes históricos. O caso de João Mottini na Argentina permite apreender as possibilidades de uma abordagem transnacional para as HQs28. Sua chegada no país permite destacar as configurações específicas de um mercado de publicações massivas que incluía artistas oriundos de nacionalidades diversas e de um público leitor bastante diversificado. Para além de expressões tradicionais como “época de ouro”, o fato é que, desde o ponto de vista dos quadrinhos, a Argentina dos anos 1940-1950 configura-se como um espaço de referência latino-americano ao congregar artistas com trajetórias bastante diversas entre si, que trocavam informações e referências em revistas de altas tiragens.
- 29 Simmel, Georg, “Sociabilidade – um exemplo de sociologia pura ou formal”, in Moraes Filho, Evaristo (...)
31Por tratar-se de uma aproximação preliminar, alguns pontos permanecem a serem investigados em eventuais pesquisas futuras. Pensando com Simmel29, como se dava o jogo que configurava as redes de sociabilidade no mercado editorial deste período, em especial para possibilitar a inserção de artistas estrangeiros? No caso de Mottini, o diálogo com outros artistas brasileiros com quem trabalhara no Rio Grande do Sul e que já atuavam na Argentina parece ter sido fundamental, mas é um dado ainda a pesquisar. O mesmo vale para a circulação entre revistas e editoras: ainda faltam informações mais precisas sobre como se davam as contratações, parcerias e vinculações, para além das rupturas que assumem ares anedóticos nas memórias de fãs. Em resumo, esperamos que, apesar destas e de outras questões a serem respondidas por outras pesquisas, este artigo contribua para incentivar outras pesquisas em HQs sob dois aspectos. O primeiro deles refere-se à atenção a trajetórias artísticas marcadas pelos trânsitos culturais, como é o caso de João Mottini e as HQs sul-americanas. Um segundo aspecto aponta para uma reflexão sobre a importância histórica da Argentina na história da HQs latino-americanas nos marcos da Guerra Fria. Acima de tudo, procurou-se destacar aqui a necessidade de refletirmos sobre objetos de investigação que priorizem as transferências culturais e as circulações em perspectiva transnacional.