Donde no hay justicia, misericordia ni benevolencia, no hay civilización; donde se proclama ley social la struggle for life, reina la barbarie.
González Prada, “Nuestros indios”
1No panorama da segunda metade do século XIX e início do século XX, quando se vivia uma ideologia de modernização e de progresso, a temática de Civilização e barbárie foi base dos mais diversos debates, adequando-se à ideia de civilização o modo de vida do modelo europeu ocidental (em particular os das elites), configurando-se como seu oposto o bárbaro, que representaria tudo aquilo que não fazia parte deste modelo, seja na questão cultural ou racial.
2Era o momento do auge do imperialismo europeu, que baseado na crença da superioridade da Europa Ocidental frente aos demais povos, como um pretexto para o domínio militar, econômico, político e cultural sobre o resto do mundo.
3Para as elites de países como o Peru, era necessário se aproximar e se identificar com o mundo civilizado ou seja, a Europa Ocidental. Elas procuravam espelhar o imaginário europeu através de medidas superficiais como reformas urbanas, ou através de uma política de imigração claramente racista, priorizando o elemento branco, ou seja o civilizado, em franca oposição às massas mestiças, negras e índias que apesar de serem a maioria da população, faziam parte da barbárie.
4Por esta razão, nesta perspectiva, o racismo se associava claramente à visão de civilização. Tomada como ciência, o racismo “cientifico”, foi uma ideologia constituída para justificar as desigualdades humanas, procurando mostrar que as estruturas de poder e dominação eram fruto de um desenvolvimento racial e não fruto das desigualdades sociais que se formaram ao longo do tempo.
5As teorias raciais, portanto, representavam uma transferência de responsabilidade para a natureza dos problemas sociais. Desta forma os negros, índios e mestiços foram transformados em bárbaros, inferiores, um obstáculo ao desenvolvimento e ao progresso.
- 1 Hannah Arendt, em sua obra clássica, As origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, (...)
- 2 Cavalli Sforza explica que Darwin jamais defendeu esta ideia, uma vez que ele percebia que seria im (...)
6Estas teorias foram desenvolvidas a partir de ideias de autores como Artur de Gobineau, que publicou em 1853 o livro “Ensaio sobre as desigualdades das raças”, onde buscava ilustrar que a miscigenação racial produzia sempre descendentes inferiores1. É importante salientar que de forma imprópria, a teoria evolucionista de Charles Darwin, com a sua obra seminal “A evolução das espécies” (1859), foi aplicada no sentido de embasar o racismo com a ideia de que a evolução das raças humanas podia ser estudada da mesma forma que as demais espécies da natureza2.
7Isto era do interesse do imperialismo europeu, que via nesta leitura equivocada de Darwin a sua justificativa para o domínio sobre outros povos, o que interessava às elites de países como o Brasil e o Peru.
8Era o chamado darwinismo social, que abriria a discussão sobre a evolução das raças humanas e daria margem ao surgimento de diversos estudos raciais na Europa. Desta forma surgiram autores como Gustave Le Bon, com obras como A psicologia das massas, defendia a superioridade racial, assim como Cesar Lombroso, que defendia a vinculação das raças com a criminologia e Luiz Gumplowicz, que defendia a ideia de uma “guerra racial” onde os mais fortes inevitavelmente iriam dominar os mais fracos.
- 3 Anderson, Benedict, Comunidades imaginas, São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
9O racismo científico, porém, entrava em contradição direta, a formação do Estado Nacional. Como nos lembra Benedict Anderson, o tripé da formação do Estado Nacional era composto por uma comunidade limitada (que conhece as suas fronteiras físicas), imaginada (uma vez que desconhece fisicamente as pessoas que compõem a comunidade, mas sabe que existem) e soberana (uma vez que dentro desta comunidade detêm as leis e a cultura que a representam).3
10O racismo servia para eliminar as pessoas consideradas inferiores, do imaginário da nação. Promovia, portanto, a segregação da população, transformado a representante da nação – a civilizada – e a maioria considerada racialmente inferior – ou seja bárbara.
11No caso do Peru, que iremos ilustrar em seguida, a aristocracia formada no país via a maioria da população sob esta perspectiva. Para eles a nação peruana era representada, principalmente, pela elite que se considerava “branca”, de origem espanhola e aristocrática, que excluía, conforme os seus interesses, a maioria da população do país, composta por indígenas e mestiços. O que se definia como nação peruana era, portanto, bastante limitada, segregacionista e baseada na sua crença de superioridade racial.
12A importância de Manuel González Prada será capital: será o primeiro pensador a criticar abertamente a aristocracia, destruindo a sua imagem de civilização e ilustrando como a tal barbárie atribuída a índios e mestiços era fruto da ação desta aristocracia.
13A divisão social do Peru – tema que será marcante e fundamental no pensamento de González Prada - foi fruto de seu passado colonial. Desde a conquista espanhola, foi assentada uma aristocracia na Lima, na costa, que se vendo como representante da Espanha, portanto da “civilização”, que subjugava a maioria da população indígena, tratada como “bárbara” e inferiorizada social e racialmente.
14O processo de independência tão pouco representou uma alteração a este quadro, uma vez que a aristocracia não se mostrou a favor da independência, que teve que ser imposta por Simón Bolivar, em 1824.
15Portanto o novo país que se configurava ao longo no século XIX era de um Estado excludente, mantendo as mesmas relações sociais e de poder do período colonial, onde a população indígena foi completamente marginalizada do aspecto político.
16Na segunda metade do século XIX, houve um crescimento da economia mundial e em particular do Peru, graças a exploração das jazidas de guano (excremento de aves marinhas usadas como adubo natural) e de salitre (que além de adubo, era usado na fabricação da pólvora) na região desértica ao sul do país. A elite peruana se viu rica, próspera, vivendo no luxo, ao passo que a exploração aos trabalhadores das minas foi brutal. O trabalho de extração do guano podia ser do “bárbaro” indígena, mas o lucro gerado pela exploração do guano era destinado à elite “civilizada.”
17Porém, foi a guerra do Pacífico (1879-1883) que alterou este quadro. A guerra foi provocada pela decisão da Bolívia de impor novas regras à extração e ao comércio do guano (parte das jazidas se encontrava no território boliviano) por companhias inglesas, que não aceitando estas imposições financiaram e armaram o Chile.
18Desta forma, em 1879, o Chile invadiu a Bolívia, tomando-lhe a costa, e em seguida invadindo o sul do Peru, chegando a conquistar Lima, onde manteve as tropas até 1883. A consequência foi que o Chile fez um acordo de exploração com a Inglaterra, com grandes lucros. Já a Bolívia ficou arrasada com a perda da saída do mar, e o Peru perdeu a parte sul do território e todas as jazidas de guano e salitre, o que arruinou economicamente o país.
19O Peru ficou em estado de choque, a perda econômica, territorial e a humilhação da ocupação ilustraram a fragilidade do país – o que foi marcante para toda a geração de intelectuais do período, sendo o mais importante sem sombra de dúvida foi para Manuel González Prada, que impactado com a guerra, iria iniciar uma grande discussão sobre a fragilidade do país, vista por ele como a maior razão para a derrota.
20Manuel González Prada nasceu em Lima, no Peru, em 06 de janeiro de 1844, originário de uma família aristocrática, proprietária de terras e profundamente conservadora. Em 1853 a sua família se mudou temporariamente para Valparaíso, no Chile, onde González Prada estudou obras de vários filósofos, como: Schopenhauer, Nietzche, Spencer e Hegel.
21No retorno a Lima, González Prada estudou no seminário Santo Toribio, algo que lhe desagradou profundamente, ajudando a alimentar nele um sentimento anti-religioso e ateísta. Chegou a estudar química (para ser aplicada na agricultura) e começou uma atividade literária, principalmente na poesia e ao estudo da filosofia, em especial a alemã.
22O que chama a atenção é que neste momento, González Prada já estava desenvolvendo uma personalidade contestadora a sua própria classe social. A rejeição ao catolicismo e ao conservadorismo da elite, bem como o descaso com a população indígena, eram cada vez mais marcantes no seu pensamento, como pôde ser ilustrado pela consequência da guerra do Pacífico.
23A derrota nesta guerra marca, de certa forma, o início das discussões políticas da vida de Manuel González Prada, um ponto fundamental para a compreensão da sua obra política – que se estenderá até quase a sua morte, em 1918, é justamente o caráter de evolução das suas ideias. O que começou como uma crítica à elite peruana, que ele via como responsável pela guerra do Pacífico, e ao Chile identificado como um “bárbaro”, se torna uma crítica mais profunda e radical contra a aristocracia e da sua imagem “civilizada”, partindo do positivismo e do nacionalismo exacerbado, para um pensamento radical e anarquista.
- 4 Basadre, Jorge. Perú: problema y posibilidad y otros ensayos. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1992, p (...)
24Jorge Basadre explora a ideia de que parte da rebeldia de González Prada contra a sua classe social era derivada de um sentimento burguês que começava a ganhar forma no Peru contra a aristocracia de origem colonial, em virtude do desenvolvimento do país.4
25Por esta razão, a sua crítica representava mais do que apenas um ódio de classe, se dirigindo essencialmente contra as hipocrisias que conhecia no meio em que circulava. Por esta razão o seu discurso é geralmente dirigido de “nós” (aristocracia) sobre “eles” (povo), ou seja, de uma crítica interna da sua própria classe, a quem via como sendo a responsável pelos problemas do país.
- 5 Chang-Rodriguez, Eugenio. “El ensayo de Manuel González Prada”, Revista Ibero-americana, nº 42, Uni (...)
26Um achado para compreendermos o radicalismo de González Prada é o que Chang Rodriguez ilustra sobre uma tensão permanente e insuportável entre a classe social a qual ele pertencia e a sua personalidade contestadora, levando-o a criticar o país e a própria aristocracia. 5
27É importante pensarmos que a crítica social que se estabelece em González Prada como fruto da guerra do Pacífico se refere à falta de uma coesão nacional e a inclusão do indígena na vida política do país.
- 6 González Prada, Manuel. “Grau”. In Páginas Libres/Horas de Lucha. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 197 (...)
28Neste sentido é que González Prada diz que na guerra “no sólo derramamos la sangre, exibimos la lepra.”6 O desastre da guerra foi para González Prada uma mostra de que o país estava doente, enfermo, e a maior causa desta derrota foi sem dúvida a divisão social do país.
29O grande achado de González Prada é ver nesta aristocracia o verdadeiro culpado pela situação política e social. Ou seja, ele desmonta a imagem da aristocracia como sendo “civilização” ao ilustrar que era ela a grande responsável pelas fragilidades do país, em especial da situação do indígena, “barbarizado” e “embrutecido”.
- 7 Mariategui, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. São Paulo: ed. Express (...)
30A atitude de González Prada em criticar a aristocracia e não aos indígenas pelo fracasso na guerra, foi uma quebra de paradigma fundamental na história peruana. É aquilo que José Carlos Mariátegui chamou de primeiro instante de lucidez no Peru7, ou seja, foi a partir deste momento, que construindo uma crítica a sua própria classe, que González Prada pôde demonstrar que esta era apenas um verniz de “civilização”, e de fato responsável pela barbárie a qual o indígena estava submetido.
31A divisão social e a consequente falta de coesão nacional, era para González Prada o fator fundamental para a derrota frente ao Chile:
- 8 Ibid, “Discurso del Politeama”, ibid, pág. 45.
por eso, en el momento supremo de la lucha, no fuímos contra el enemigo un coloso de bronce, sino una agrupación de limaduras de plomo; no una pátria unida y fuerte, sino una serie de indivíduos atraídos por el interés particular y repelidos entre sí por el espítitu de bandería.8
32Por esta razão, que González Prada refaz o jogo da aristocracia de uma forma brilhante: a aristocracia que se via como representante da “civilização”, branca e espanhola, não era o representante do que formava a nação peruana; a este papel caberia o indígena, que visto como “bárbaro”, era o que de fato representava o país:
- 9 Idem, “Discurso en el Politeama”, ibid., pág. 45-46.
no forman el verdadero Perú las agrupaciones de criollos y extranjeros que habitan la faja de tierra situada entre el Pacífico y los Andes; la nación está formada por las muchedumbres de indios diseminadas en la banda oriental de la cordillera.9
- 10 Cunha, Euclides da. Os sertões, São Paulo: Ateliê editorial, 2004, pág. 789.
33É interessante comparar o pensamento de González Prada ao do brasileiro Euclides da Cunha. O autor de Os Sertões também tinha o objetivo de encontrar a essência da nação brasileira, identificando neste caso o povo sertanejo, que vivendo fora da “civilização” da costa, pôde se desenvolver, se transformando na “rocha viva” 10 do país.
- 11 González Prada, Manuel. “Los partidos y la Unión Nacional”, ibid., pág. 209.
34Portanto, ao contrário de culpar os índios, ou seja, a “barbárie” pela fraqueza institucional do país, Prada diz que o verdadeiro responsável era a própria elite peruana, que havia reduzido o índio àquela situação. Ou seja, a barbárie era fruto da “civilização”: “Cuando la parte más civilizada de una nación se prostituye y se desvigoriza, sube del pueblo una fecunda marejada que todo lo regenera y lo fortifica.”11
35Em outras palavras, Prada vê que a aristocracia “civilizada” nada representa de futuro ao país – e corrompida, decadente, sem força, interesse ou vigor para superar os problemas nacionais. Por isto diz que a solução ao Peru está justamente na classe considerada “bárbara”, ou seja, os mestiços e índios, que relegados ao papel de inferioridade social, assim estão em razão da decadência de valores e da opressão impostos pela “civilização”.
36González Prada conhecia muito bem a história do Peru para saber que a origem da dicotomia civilização e barbárie no país, era fruto das desigualdades surgidas pelo passado colonial. E como sendo originário da aristocracia, González Prada tinha conhecimento da hipocrisia e do desprezo que imperava dentro de sua classe social.
37Um ponto importante no pensamento de González Prada se refere justamente na visão que tinha de que a aristocracia, era a responsável pela situação do índio, e como este era a base nacional do país – “a rocha viva” de Euclides - não era possível construir uma unidade nacional:
Aquí tenemos por base nacional una masa de indios ignorantes, de casi primitivos que hasta hoy recibieron por únicos elementos de cultura las revoluciones, el alcohol y el fanatismo.12
38E complementa:
se debe, sí, constatar que desde los primeros albores de la Conquista, los blancos hicieron del indio una raza sociológica, o más bien, una casta ínfima de donde siguen extrayendo el buey de las haciendas, el topo de las minas y la carnaza de los cuarteles.13
39González Prada ainda dizia que o verdadeiro culpado pela situação do indígena é o homem ilustrado, que como representante da aristocracia:
que prodigó lecciones de inmoralidad, cuando debió educar al pueblo con el buen ejemplo dándole una verdadera lección de cosas. La muerte moral se concentra en la cumbre o clases dominantes. Nos parecemos a los terrenos que surgen del Océano y llevan en las capas superiores los detritus de la vida submarina. El Perú es una montaña coronada por un cementerio14.
40Nesta passagem, González Prada pode ilustrar de forma incisiva a questão de como a barbárie é um produto da aristocracia. E a partir dela e de suas ações que se processam os problemas sociais associados à população indígena, corrompida, apresentando uma falsa imagem de “civilização”, engendrava assim a barbárie em seu interior.
- 15 Idem, “El intelectual y el obrero”, ibid., pág. 234.
41González Prada via nas lutas sociais uma busca por justiça. Assim, quando os índios partem para protestos ou lutas sociais, isto representava uma luta contra esta situação que lhes foi imposta. É uma demonstração de vida da sociedade; é uma ação que demonstra a capacidade do índio de se rebelar contra a situação social a qual ele estava resignado: “¡es la inundación de los bárbaros! Mas una voz, formada por el estruendo de innumerables voces, responderá: no somos la inundación de la barbarie, somos el diluvio de la justicia.”15
42A verdadeira barbárie, estava, portanto, na própria aristocracia. Ao promover a segregação social, a opressão, a segregação racial e ao mesmo tempo ser corrupta, a aristocracia era de fato bárbara em sua essência:
- 16 Idem, “Nuestra aristocracia”, ibid., pág. 294.
En el Perú la corrupción actúa en sentido inverso de lo acostumbrado: en las naciones más civilizadas subsiste un fondo primitivo de donde suben a la superfície los elementos de la barbarie; pero entre nosotros existe una clase superior, y en esa clase una costra de donde bajan al asiento los gérmenes de todas las miserias, de todas las prostituciones y de todos los vicios16.
43Ao inverter o jogo, González Prada procurava demonstrar como a aristocracia corrupta, mantinha a população sob opressão e na miséria. E da mesma forma, ele ironiza a imagem de civilização da aristocracia, fazendo um jogo comparativo e sarcástico entre o indígena da serra e o “civilizado” da costa:
- 17 Idem, “Nuestros inimigrantes”, ibid., pág. 309.
mientras los indios de punas y serranías siguen dormitando en su barbarie colonial, los habitantes de la costa se pulen a medias, asimilándose lo malo de la civilización. Muchos de esos grandes hombres que pontifican en universidades y congresos o señorean en tribunales y ministerios, no llevan plumas en la cabeza porque las guardan en el cerebro17.
44Esta contradição era evidente para González Prada, a aristocracia era tão corrupta que não adiantava se portar como civilizada: por mais que fossem criadas instituições que aparentemente se mostrariam civilizadas, sempre seriam bárbaras, uma vez que a barbárie fazia parte da natureza da aristocracia.
45Assim, este era o mais importante elemento da hipocrisia da aristocracia: se mostrar civilizada, mesmo se comportando como bárbara; e criticar o índio pela sua barbárie, sem ao menos refletir que os elementos que compunham esta barbárie foram aqueles introduzidos pela aristocracia/civilização: o fanatismo religioso e o álcool, mantendo-os na mesma servidão e exclusão social.
46Um ponto interessante para a compreensão do significado de barbárie e civilização em González Prada se refere a sua análise sobre as touradas: vendo estas como parte da cultura peruana, independentemente da classe social, ele faz uma análise sobre a natureza da civilização e barbárie.
- 18 Idem, “Nuestros aficionados”, ibid., pág. 316.
47Na concepção de González Prada, a ideia de civilização tem que estar relacionada a prática da misericórdia e do respeito a todos os seres vivos do planeta. A prática das touradas ilustrava para ele a existência de um fenômeno agressivo e bárbaro da sociedade peruana. Assim ele descreve o seu conceito de barbárie: “Bárbaro el que inutilmente deshoja una flor o destruye una planta, bárbaro el que innecesariamente o por mera diversión suprime un insecto.”18
48A sua descrição, embora sucinta, não poderia ser mais direta e crítica à aristocracia. Não é esta a visão que ele tinha da aristocracia peruana? Não seria este o elemento crítico na qual ele via a população peruana sendo tratada pela aristocracia? O descaso, falta de interesse da aristocracia não seria justamente neste sentido?
49Indo de forma mais sarcástica, ele diz que aquele que não se compadece ou ama os animais, não se compadece com os homens - assim a aristocracia tão admiradora dos jogos, por que deveria respeitar os índios, por exemplo?
50Ao chamar os peruanos adoradores dos jogos de aficionados, González Prada percebe que toda a população peruana estava envolvida: pobres, jornalistas, presidentes da República, aristocratas, classe operária. Como Prada dizia, os limeños podem discordar de tudo, exceto é claro, das touradas.
51A análise desta prática social é um excelente elemento para González Prada ilustrar como a barbárie estava presente na cultura peruana de forma que não conseguiria ser eliminada nem com a influência de outras nações. A barbárie fazia parte da cultura geral do povo peruano.
Nos sorprende que nosotros, a pesar de recibir una instrucción europea, leer los libros de los pensadores eminentes y vivir en íntimo comercio con inmigrantes de las naciones más civilizadas, no hayamos podido eliminar la sangre torera y continuemos figurándonos un gran honor merecer el título de Aficionados19.
52A barbárie, portanto está no cerne da nossa civilização. Portanto a guerra, a destruição, a conquista, a dominação de outros povos e grupos humanos, fazem parte do nosso modelo de civilização.
53Por esta razão diz que Alexandre, Cesar, Napoleão Bonaparte, Moltke representam uma tradição bárbara, figurando como uma linha de barbárie que remonta a pré-história, mas que fazem parte da nossa civilização. Ou seja, de forma irônica ele enaltece que não seriam grandes bárbaros os heróis da civilização?
54A barbárie estava no âmago da civilização, mesmo para os que se julgam mais ilustrados: os intelectuais, também a reproduziam:
Por mucho que blasonen de intelectuales, no andan muy lejos del troglodita: un cerebro luminoso en un organismo insensible es una lámpara en el fondo de un sepulcro. De mucho carecemos para merecer el título de hombres, cuando nos falta la piedad, esa justicia del corazón. La Humanidad perfeccionada, la que distará de nosotros como nosotros distamos del antropoide, será hija del amor y de la misericordia20.
55A evolução moral para González Prada reside exatamente aqui: a misericórdia e o amor ao próximo. É curioso que para ele, vindo de uma escola positivista, tenha uma análise que se assemelha à religiosa. Porém, vale dizer: o que nos torna de fato civilizados, para González Prada, é ver o outro como igual, respeitando-o e procurando ajudar a ele a se levantar e se estruturar. A misericórdia é vista como uma forma de civilização.
- 21 Ward, Thomas. La anarquia inmamentista de Manuel González Prada, Peter Lang Publishing, New York, 1 (...)
56Este sentido religioso em González Prada foi bem explorado por Thomas Ward, que procurou ilustrar que apesar de severo crítico à religião católica e a defesa da ciência, González Prada mantinha de certa forma um sentimento religioso como base nas suas análises sociais.21
57Como exposto anteriormente, o racismo científico surgiu na segunda metade do século XIX e atendia aos interesses da aristocracia peruana, que se vendo como “branca”, podia assim justificar o seu poder, a sua imagem de “civilização” frente o restante da população “bárbara”: indígena, negra, mestiça ou chinesa, ou seja, transferindo a culpa dos problemas sociais para a natureza. O imaginário de uma nação peruana, construído pela aristocracia, era excludente.
- 22 Sobre a comparação entre os dois escritores, vale citar o meu livro Nacionalismos anti-racistas: Ma (...)
58González Prada foi um dos primeiros pensadores latino-americano a denunciar as falácias do racismo científico. Neste sentido existe uma proximidade intelectual com um outro escritor brasileiro, Manoel Bomfim, autor de A América Latina – males de origem (1905), que utilizava os mesmos elementos críticos sobre o racismo e a sociedade brasileira. Tanto González Prada quanto Manoel Bomfim foram os pioneiros na crítica ao racismo na América do Sul e foram, de forma similar, alvo de várias críticas22.
59González Prada, assim como outros intelectuais de seu tempo, como os brasileiros Silvio Romero e Nina Rodrigues e o peruano Francisco Garcia Calderón, estavam bastante conscientes das teorias racistas que permeavam o mundo intelectual, com a influência dos já citados Gumplowicz e Le Bon.
60A diferença entre estes pensadores, é que González Prada assim como Manoel Bomfim, construiu uma crítica visceral ao racismo – um antirracismo – usando da retórica para descontruir o pensamento racial e mostrar como era um instrumento de dominação e controle social.
61É importante salientar que a consciência antirracista de González Prada foi sendo estruturada paulatinamente ao longo do tempo. Por exemplo, ao mostrar em Páginas Libres da importância do indígena como a base da nação peruana, foi somente após o regresso de sua viagem pela Europa, em 1898, é que González Prada radicalizou a maioria das suas ideias e a sua crítica ao racismo em particular.
62Esta mudança no seu pensamento é bastante ilustrativa na conferência que ministra quando do seu retorno ao Peru, criticando de uma forma bastante irônica as ideias racistas do momento:
- 23 González Prada, “Los partidos y la unión nacional”, ibid., pág. 209.
Riamos de los desalentados sociólogos que nos quieren abrumar con sus decadencias y sus razas inferiores, cómodos hallazgos para resolver cuestiones irresolubles y justificar las iniquidades de los europeos en Asia y África. ¡Decadencia! Si estamos hoy de caída, ¿cuándo brilló nuestra era de ascensión y llegada a la cumbre? ¿Puede rodar a lo bajo quien no subió a lo alto?23
63González Prada atingia um ponto de indignação na sua crítica sobre a existência de raças inferiores e de como estas eram uma construção ideológica. O tema do antirracismo se tornou para ele crucial em sua crítica à aristocracia peruana. Se tornava evidente para González Prada que a tal “barbárie” - os índios, negros, mestiços, zambos não eram derivados da biologia e sim, das ações da aristocracia.
64Assim ele, usando de retórica diz que:
Y ¿las razas inferiores? Cuando se recuerda que en el Perú casi todos los hombres de algún valor intelectual fueron indios, cholos o zambos, cuando se ve que los poquísimos descendientes de la nobleza castellana engendran tipos de inversión sexual y raquitismo, cuando nadie hallaría mucha diferencia entre el ángulo facial de un gorila y de un antiguo marqués limeño, no hay para qué aducir más pruebas contra la inferioridad de las razas24.
65Da mesma forma, ficava evidente para González Prada de que o racismo era de âmbito mundial, onde as teorias raciais se adequavam ao imperialismo europeu sobre o mundo, mostrando o racismo como uma ideologia usada para justificar o poder:
- 25 Ibid., “Nuestros índios”, ibid, pág. 333.
Muchos no lo escriben pero lo dejan leer entre líneas, como Pearson cuando se refiere a la solidaridad entre los hombres civilizados de la raza europea frente a la Naturaleza y la barbarie humana. Donde se lee barbarie humana tradúzcase hombre sin pellejo blanco25.
66Denunciando o imperialismo europeu, González Prada identificava o branco como sendo bárbaro e agressor – e não como um “agente da civilização”: “veremos que en medio de la civilización blanca abundan cafres y pieles rojas por dentro” e que os imperialistas europeus “llevan lo blanco de la piel mas esconden lo negro en el alma26.”
67Aqui ele faz uma leitura da dicotomia civilização X barbárie de forma bastante visceral: o racismo era o mecanismo ideológico para garantir o poder do branco “civilizado” frente ao restante “não-branco” e “bárbaro” da humanidade. A conquista e o domínio sobre outros povos eram, portanto, justificadas pelo racismo.
68González Prada percebia que o racismo também operava dentro da raça branca onde se estabeleciam classificações de superioridade e inferioridade, em especial contra os latinos, vistos como inferiores, aos anglo-saxões, visto como superiores.
69Ele percebe esta manipulação e em especial dentro do axioma criado, no qual os crimes e defeitos dos anglo-saxões são vistos como inerentes à espécie humana e os referentes aos franceses e italianos são vistos como sinal de decadência e de degeneração da “raça latina”.
70Por isto a posição de González Prada faz contra Gustave Le Bon é vigorosa, em especial quanto o autor francês diz que os latinos da América são inferiores aos latinos da Europa: “O ¿habrá dos leyes sociológicas, una para los latinos de América y otra para los latinos de Europa?27”
71Ele também ridiculariza a posição de Le Bon sobre a incapacidade dos latino-americanos de se autogovernarem e assim dependerem de uma tutela dos EUA. Como ele diz, existem índios trabalhando em Câmaras Municipais, magistraturas, universidades e ateneos, não demonstrando ser melhor ou pior do que pessoas de outras raças.
72Toma uma posição semelhante em relação aos negros e “amarillos” (chineses), que os defeitos a eles atribuídos foram causados pela sua condição de vida e exploração e não pela questão racial: “Efectivamente, no hay acción generosa que no pueda ser realizada por algún negro ni por algún amarillo, como no hay acto infame que no puede ser cometido por algún blanco28.”
73Aqui ele faz uso do seu discurso narrativo retórico, equiparando as raças, mas ressaltando os opostos: o negro é valorizado e os defeitos atribuídos à eles podem sim estar relacionados aos brancos. Sobre Gumplowicz, González Prada também inverte a situação: o que aconteceu na conquista do Peru foi um processo de dominação e extermínio e não uma guerra racial.
74Neste aspecto, González Prada dizia que na prática o que existe é uma verdadeira mistura de raças entre os membros da aristocracia – que se auto determinava branca. O racismo desta aristocracia se fundia com a imagem que ela construía de si mesma. González Prada relaciona a aristocracia como:
- 29 Idem, “Nuestra aristocracia”, ibid., pág. 290-291.
hipócritamente blancos, no se imagina oprobio mayor que guardar en las venas un poco de sangre indígena o africana; y por eso, cuando riñen los limeños y agotan el diccionario de los insultos, apelan a tratarse de zambos o de cholos: el zambo y el cholo equivalen a un cartucho de dinamita29.
75Ou seja, para González Prada que se passava pela aristocracia era uma “máscara” na qual se punha como civilizada, mesmo sendo bárbara nos seus pensamentos e ações, em particular com a população indígena.
76Nesta passagem González Prada destrói por completo a ideia de inferioridade racial de negros e índios, mostrando que a aristocracia era o verdadeiro bárbaro:
Un negro y un indio pobres, mas instruidos y desfanatizados, pertenecen a clase más elevada que un blanco noble y rico, mas ignorante y supersticioso. El ser hombre no depende tanto de llevar figura humana como de abrigar sentimientos más depurados que los instintos de un animal inferior. ¡Cuántos nobles y ricos distan menos de uno chimpancé o de un gorila que de un Spencer o de un Tolstoi! 30
- 31 Idem, “Nuestros indios”, ibid, pág 340.
77Ao expor desta forma, mostra que a tal “inferioridade” do negro e do índio é um produto cultural, da educação a qual receberam. Portanto não são refratários da civilização: ele é um produto da aristocracia. Por esta razão, ele diz que “el indio recibió lo que le dieron: fanatismo y aguardiente.”31 E o branco da mesma forma, apesar de se posar como civilizado, apesar de toda a sua riqueza e poder, é um bárbaro.
78O homem branco, visto aqui não no sentido biológico, mas no sentido social e ideológico, apesar de posar como um “agente civilizador”, ou representante da civilização, nada mais é que um bárbaro, seja no seu comportamento, seja na sua ação de transformar e manter outros povos em uma posição inferiorizada ou barbarizada. Se como ele diz “todo blanco es, más o menos, un Pizarro, un Valverde o un Areche”32, a “civilização” – da qual a aristocracia faz parte – representa a violência, a destruição, a imposição de valores e uma ordem social que se adequava ao seu discurso dominante.
79Como foi exposto no início deste artigo, o tema Civilização e Barbárie, tem um alcance universal. Apesar de analisarmos o caso peruano e de González Prada em particular, é um tema que exerceu uma grande influência entre os intelectuais: Eric Hobsbawm, Hannah Arendt, Lenin, Norbert Elias, Edward Said, Jean Starobinski, Niall Ferguson, entre outros, que trabalharam o tema de forma bastante aprofundada em suas obras.
- 33 Sarmiento, Domingo F. Facundo ou civilização e barbárie. Cosac Naif, São Paulo, 2010.
- 34 Sobre este tema em particular, estou realizando um pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP) (...)
80No contexto latino-americano, é importante mencionar a obra do argentino Sarmiento, Facundo, que se tornou uma das obras mais importantes sobre a temática de civilização e barbárie.33 Já contemporâneo a González Prada, é importante assinalar o papel desempenhado por Euclides da Cunha, que em sua obra-prima Os Sertões (publicado em 1902) pôde mostrar um quadro semelhante ao que González Prada na sua crítica a “civilização de empréstimo” da costa brasileira, contrária à população sertaneja do interior do país. Se González Prada tinha grandes semelhanças com Manoel Bomfim no que tange a crítica ao racismo e ao nacionalismo, eles possuíam outras semelhanças sobre civilização e barbárie com Euclides da Cunha34.
- 35 Starobinski, Jean. As mascaras da civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
81Para González Prada, portanto, as noções de civilização e barbárie acabam se invertendo e se redefinindo. É claro, como nos lembra Jean Starobinski, a civilização constrói máscaras que ocultam a barbárie e que procuram construir nesta uma representação daquilo que mais abominam em si mesma.35
82Portanto, fica evidente para González Prada como a civilização, no caso a aristocracia, construía a barbárie – ou seja, o restante da população, mantendo-a como submissa, atrasada, sem ação política e para quebrar ou questionar as regras construídas. Assim, a barbárie não é o índio, o negro, o mestiço; a barbárie é a situação de degeneração a que estavam todos submetidos pela aristocracia “civilizada” que se apropriava de elementos como fanatismo e o álcool, assim como o racismo – para criar a barbárie.
83Retomado a discussão sobre o Estado Nacional em Benedict Anderson, é interessante mencionar que em um país tão segregado, se tornava inevitável que jamais poderia se tornar uma nação. A integração nacional – que envolvia a superação da dicotomia de civilização X barbárie é necessária.
- 36 Ward, Thomas. Buscando la nación peruana. Lima: Editorial horizonte, 2009.
84Para González Prada, isto só poderia ocorrer pelo esforço indígena em ascender socialmente, representando aquilo que Thomas Ward36 dizia ser ele um sonhador indigenista da nação peruana. De certa forma promovendo a ruptura da tradição e criticar a aristocracia, expondo que a sua imagem de civilizada era apenas uma falácia, de que mostrar de que eles eram os verdadeiros bárbaros e afirmar o papel do indígena, González Prada pôde assim, abrir espaço para discussões para um maior engajamento nas lutas por reformas sociais no Peru.