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Dossier "Les féminismes en Amérique latine et dans les Caraïbes (XXe-XXIe) : identités et enjeux"
Féminismes pluriels

Processos de Empoderamento e Práticas de Sustentabilidade e Autogestão entre Professoras Pataxó no Território Kaí-Pequi

Paulo de Tássio Borges da Silva

Abstracts

The proposal is based on research work with the Pataxó women from the Kaí-Pequi Indigenous Territory, located in the extreme south of Bahia, particularly, in the village of Cumuruxatiba, in the municipality of Prado, Bahia. The paper seeks to show off the dialogues woven with Pataxó teachers from the Kijetxawê Zabelê Indigenous State School, aiming to reflect their empowerment, sustainability and self - management practices of the Pataxó. Is proposed to reflect beyond the school, with the intention to perceive how the Pataxó teachers act in the different spaces in which they are inserted. The experiences are supported by ethnographies research with the accompaniment of several meetings and assemblies in the communities, gender workshops with Pataxó women, counsulting and regularization of associations and specific projects with women, as well as the mãgute workshop (traditional Pataxó cuisine), ethnomedicine Pataxó workshop, cutting and sewing workshop, pedagogical journeys, workshops of cipó, among other spaces of sociability carried out by Pataxó women.

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Considerações Iniciais

  • 1 Foi convencionado pela Associação Brasileira de Antropologia, desde 1953 que a primeira letra da gr (...)

1A proposta está situada em trabalhos de pesquisa com mulheres Pataxó1 do Território Indígena Kaí-Pequi, localizado no Extremo Sul da Bahia, particularmente na Vila de Cumuruxatiba, Município do Prado, Bahia, e em reflexões junto ao grupo de pesquisa « Currículo, Subjetividade e Diferença », sob a coordenação da professora Elizabeth Fernandes Macedo no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – PROPED/UERJ, onde realizo meu doutoramento. O trabalho busca evidenciar os diálogos tecidos com as professoras Pataxó da Escola Estadual Indígena Kijetxawê Zabelê, tendo como objetivo refletir seus processos de empoderamento e práticas de sustentabilidade e autogestão. Vale ressaltar, que escola aqui é vista como um espaço de fronteira, « [...] espaço de trânsito, articulação étnica de conhecimentos, assim como espaços de incompreensões e de redefinições identitárias dos grupos envolvidos nesse processo e não-índios » (Tassinari, 2001 : 50). Neste sentido, a reflexão propõe ir além da escola, na busca de perceber como as professoras Pataxó agenciam nos diferentes espaços em que estão inseridas.

2O conceito de gênero é tratado aqui como um efeito de discurso, levando-se em conta o diálogo com a etnologia indígena e seus diferentes trabalhos etnográficos, para não incorrer em uma possível violência epistêmica, compreendendo que é impossível a separação do gênero de outras categorias que a ele se interseccionam, como por exemplo, cultura e política (Butler, 1990). Concebido como “[...] um ato ou uma sequencia de atos que está sempre e inevitavelmente ocorrendo” (Salih, 2012 : 68), o gênero preexiste a um corpo, a uma pessoa. Para Mccallum (2001) é « [...] uma condição epistemológica para a ação social, que é acumulada na carne e nos restos de verdadeiros seres humanos, que têm agência, [podendo] ser feminina ou masculina » (Mccallum, 2001 : 5). Apoia-se ainda no conceito de performatividade de Butler (2015), entendendo-o como processo de tradução e reiteração na construção de identidades, atos performativos de promoção de inteligibilidades, sustentados em discursos. Neste sentido, é importante dizer que toda tradução e reiteração são falsas, tendo escapes e recombinações muitas vezes imprevisíveis, formações discursivas que se reconfiguram em movimentos de reiteração e fabricação de novas normatizações.

  • 2 A entrada na América Latina do conceito de empoderamento se dá com obra « Desarrollo, crisis y enfo (...)

3Por empoderamento se entende o « [...] processo que parte do enfrentamento de fatores referentes à estrutura de poder presentes na esfera micro e macrossocial, o que consequentemente implica na redistribuição do poder » (Marinho, 2014 : 13). A luta por empoderamento surge no movimento feminista como pauta na construção de uma sociedade mais igualitária nas questões de gênero, segundo Marinho (2014), na América Latina o conceito ganhou intensidade na década de 1980.2 No Brasil, o conceito ganha certa popularidade na década de 1990 com o estudo encomendado à Margareth Arilha pela Agência Internacional de Desenvolvimento sobre Gênero e Fertilidade no país. Arilha (1995) com seu estudo « Contraception, Empowerment and Entitlement: a necessary crossroads in a woman’s reproductive life »,

Defende que o empoderamento das mulheres e a titularidade de seus direitos são necessários para que o uso de contraceptivos aconteça de forma consciente e resulte efetivamente em maior controle sobre a própria vida. Na concepção da autora, o empoderamento deve estimular o desenvolvimento de uma consciência de gênero e de um senso de direitos especialmente no âmbito privado (Marinho, 2014 : 16).

  • 3 Segundo denúncias feitas a Ministério Público Federal, as laqueaduras foram induzidas por agentes d (...)

4Vale dizer que a problemática do estudo encomendado a Arilha (1995) também dizia respeito às mulheres indígenas, na década de 1990. A dissertação de mestrado de Souza (2007) apresenta denúncias que ganham os jornais da Bahia, mostrando a esterilização em massa de mulheres Pataxó Hã Hã Hãe em idade fértil em 19983.

5Em relação ao conceito de autogestão, esta pesquisa apropria-se da definição de Catani (2003) : um modo de agir coletivo que está pautado numa ação social de objetivos do grupo, sendo essa ação fundada na repartição de poderes, ganhos e desafios, com um modo de gestão democrática, em que todos (as) em algum momento têm a possibilidade de contribuir.

6Por sustentabilidade, compreende-se este como um conceito polissêmico em que se « [...] correlaciona e integra de forma organizada os aspectos econômicos, sociais, culturais e ambientais da sociedade » (Grossi, 2014 : 111). Interseccionada às questões de gênero, Grossi (2014) aponta que:

O reconhecimento e o respeito pelo papel da mulher são pressupostos do desenvolvimento sustentável, bem como a igualdade de oportunidades para homens e mulheres. Um país desenvolvido é acima de tudo um país socialmente justo, no qual homens e mulheres, de diferentes culturas, grupos sociais e faixas etárias, têm os mesmos direitos e obrigações, a mesma consideração e o mesmo reconhecimento, e as mesmas oportunidades. A mulher, sem dúvida, é um importante agente de transformação do comportamento da sociedade e tem papel fundamental para dar o tom da mudança necessária para seguir rumo à sustentabilidade (Grossi, 2014 : 112).

7Neste sentido, a sustentabilidade será aqui tratada como possibilidade de igualdade de gênero, sem desvinculá-la das capacidades de agência das professoras Pataxó na autogestão do território em que estão situadas. Para tanto, a discussão tomará corpo nas práticas de saúde e sustentabilidade construídas na escola Pataxó.

8As experiências se apoiam metodologicamente em etnografias realizadas com o grupo, a partir de atividades diversas como: reuniões e assembléias nas comunidades, oficinas de gênero com mulheres Pataxó, assessoramento e regularização de associações e projetos específicos com mulheres, bem como oficinas de mãgute (culinária tradicional Pataxó) e etnomedicina Pataxó, oficinas de corte e costura, jornadas pedagógicas, oficinas de cipó, entre outros espaços de sociabilidade protagonizados pelas mulheres Pataxó.

9O texto terá como itinerário a apresentação de algumas perspectivas de gênero na etnologia indígena, seguida de uma contextualização antropológica e histórica sobre o Povo Pataxó. Partindo para os diálogos com as muheres Pataxó, serão discutidos seus processos de empoderamento e autogestão, e suas práticas em saúde e sustentabilidade na Escola Estadual Indígena Kijetxawê Zabelê.

Algumas Perspectivas de Gênero na Etnologia Indígena

10Da primeira década do século XXI até os dias atuais, a etnologia indígena vem desenvolvendo inúmeros trabalhos relacionados às questões de gêneros nos contextos indígenas brasileiros. Dentre esses trabalhos, destacam-se as pesquisas de Cecília McCallum (2001) e Belaunde (2001). Cada etnografia vem enfatizando de uma maneira geral que, nos contextos indígenas pesquisados, o gênero não é algo dado, mas está vinculado às cosmologias e processos de construção cotidiana. Nesses contextos, é possível afirmar que as pessoas não nascem com gênero, elas o adquirem no decorrer dos seus ciclos de vida, através de suas relações de trabalho, sexo e parentesco (Mccallum, 2001 ; Belaunde, 2001).

11Em sua etnografia com os Kaxinawá, McCallum (2001) nos mostra que é a partir da construção do corpo, com a menstruação, que a menina tem a aquisição do gênero e seu papel na organização do grupo. Segundo Souza (2007), « [...] a menstruação tem origem cultural e se relaciona, intimamente, com o parentesco, e com a definição das atividades que serão desempenhadas por homens e mulheres » (Souza, 2007 : 19). Para os Kaxinawá, a menstruação é a propulsora do desejo e capacidade de se procriar, sendo que os seres só se tornam pessoas a partir da capacidade de procriar e produzir alimentos.

12Ao etnografar os Piro, Belaunde (2003) apresenta o processo ritualístico da menstruação, estando este « relacionado com as futuras condições do corpo da mulher e sua capacidade para as atividades produtivas e reprodutivas » (Souza, 2007 : 20). É por meio de reclusões e dietas alimentares que o corpo vai sendo moldado para a constituição do gênero. « O corpo é, portanto, resultado da ação de outras pessoas (parentes), alimentos e plantas, tanto no plano ritual como no cotidiano » (Souza, 2007, p. 20). Logo, o gênero também é construído nessa relação de parentesco e sociabilidade.

13Soma-se a essa perspectiva de gênero, a partir da fabricação dos corpos, a contribuição etnográfica de Rodrigues (1995) sobre os índios Javaé. Para fundamentar sua etnografia, Rodrigues (1995) nos apresenta o mito da origem da menarca para os Javaé:

Dois irmãos resolveram se casar com as duas filhas de um poderoso feiticeiro, duas belas moças que viviam em um tempo em que o mundo ainda estava em transformação. Para isso, teriam que se submeter a uma série de provas, como trazer piranhas vivas ou buscar mel de uma abelha muito venenosa. Os irmãos vencem todas as provas e em consequência o feiticeiro concorda com o casamento. Contudo, o pai das moças prepara uma surpresa desagradável aos dois, colocando piranhas dentro do útero das futuras esposas. Após descobrir a armadilha, um dos irmãos introduz no útero das moças uma planta venenosa para matar as piranhas, mas uma delas sobrevive. É essa piranha que, a partir de então, todos os meses provoca sangramento e dores nas mulheres, num período no quais os homens não têm relações sexuais, pois temem a “vagina dentada” de suas esposas (Rodrigues, 1995 : 43).

14Ao utilizar-se do mito da « vagina dentada », Rodrigues (1995) nos faz refletir acerca da menstruação como caminho de construção do corpo e dos papéis de gênero. Uma vez que o período de menstruação não afeta apenas as mulheres, mas os homens, que sentem medo de manter relações com as mulheres e terem seu pênis mutilado. Tal mito pode nos levar a refletir sobre ausência do aspecto relacional dos gêneros na política de gênero brasileira, sendo o homem anulado da discussão. Homens e mulheres estão o tempo todo se afetando em suas performatividades de gênero. Nesta mesma linha de análise, Belaunde (2001) etnografa que o período de menstruação entre os Airo-Pai afeta toda a comunidade, inclusive aos homens que desempenham o papel doméstico : « O cuidado com o mênstruo, por parte das mulheres, é benéfico tanto para elas, quanto para seus companheiros. Contudo, as prescrições só podem ser observadas, se os homens, durante o período menstrual, assumirem as tarefas femininas » (Souza, 2007 : 23).

15Voltando às etnografias de Mccallum (1996) com os Kaxinawá, a autora apresenta a menstruação numa ligação com o plano mítico. É a menstruação que promove a ligação entre os humanos e os espíritos. Desta forma, o sangue menstrual é ofensivo aos espíritos das florestas e dos rios, transar com uma mulher no período de menstruação significa tornar-se mau caçador (Mccallum, 1996 : 167).

16Acerca das etnografias com mulheres indígenas no Nordeste Brasileiro, temos o trabalho de Tota (2013) com as mulheres Potiguara. Em seu trabalho, o autor problematiza as relações de gênero a partir de casamentos com não indígenas, e o protagonismo de professoras e agentes de saúde indígenas na construção de associações de mulheres indígenas, com o objetivo de « fortalecimento cultural », iniciativas preventivas à saúde da mulher indígena, entre outras questões.

17No que concerne aos Povos Indígenas da Bahia, trazemos os trabalhos de Carvalho (1977, 2000, 2006) entre os Pataxó, e de Souza (2007) com os Pataxó Hã Hã Hãe, todos localizados no Sul e Extremo Sul do Estado.

18Souza (2007) aborda em suas etnografias o protagonismo das mulheres Hã Hã Hãe na demarcação da Reserva Indígena Caramuru-Paraguaçu. Dialogando com as etnografias de Tota (2013), a autora traz questões interessantes na construção do movimento das mulheres indígenas no Nordeste:

O chamado “movimento de mulheres indígenas” vem experimentando um certo incremento nos últimos anos, especialmente na região nordeste. Mobilizadas para a política, a partir de questões macro-estruturais, como reconhecimento de identidades e conquista dos territórios, as mulheres indígenas começam, também, a atentar para questões internas à vida nas aldeias, e ao âmbito de suas casas. O que parece indicar estar em curso alterações no campo das relações de gênero (Souza, 2007 : 112).

19As etnografias de Tota (2013) e Souza (2007) servem para situar-nos sobre as mulheres indígenas no Nordeste, tendo estas questões específicas e diferentes das mulheres indígenas das demais regiões brasileiras. Não obstante, tais mulheres estão localizadas em zonas de fronteiras e cruzamentos étnicos, sendo necessária uma análise a partir do que Oliveira (1998) nos convida a pensar como « etnologia dos índios misturados », uma etnologia que vá além das perdas e ausências culturais.

20Acerca dos Pataxó, Carvalho (1977) nos apresenta a mulher no subsistema econômico do grupo étnico em questão:

A mulher, além de fundamental bem de troca nas alianças que garantem a existência social do sistema, intervém continuamente em sua reprodução, tanto a nível biológico quanto econômico, e, consequentemente social, tal como o homem provê a manutenção e reprodução não apenas de sua força-de-trabalho pessoal, mas também a daquela que biologicamente cria num segundo momento, e, ao fazê-lo, estabelece uma relação com seu parceiro que poderia ser de quase absoluta simetria se não fosse o poder social e político que aquele detém, e que por ela é continuamente reforçado (Carvalho, 1977 : 213).

21Em minhas etnografias realizadas com os Pataxó desde 2006, venho acompanhando novos papéis e agenciamentos das mulheres Pataxó. Até mesmo por sua dinâmica de construção cultural, as mulheres Pataxó têm estado presentes como « Cacicas », Pajés, entre outras funções nas aldeias. O grupo Pataxó que aqui me refiro está localizado no Território Indígena Kaí-Pequi, em Cumuruxatiba/Prado, Bahia.

22Acerca das mulheres, há presença destas na chefia de famílias, com ou sem a presença do cônjuge. Ao analisar a possibilidade da homossexualidade sob um « regime de índio », sendo este entendido como a capacidade de atualizar práticas tradicionais na interação em diferentes arenas culturais, possibilitando certa legitimidade étnica (Grünewald, 1999), deparei-me com a presença de mulheres indígenas se relacionando entre si, rompendo, desta forma, este poder social e político etnografado por Carvalho (1977).

Quem são os Pataxó?

23O Povo Pataxó pertence ao tronco linguístico Macro-jê e à grande família Maxakali, sendo distribuído em 39 aldeias nos Estados da Bahia e Minas Gerias, estando 33 aldeias localizadas na Bahia e 6 em Minas Gerais. Os Pataxó são índios Sul-Americanos, brasileiros, conhecidos como Pataxó Meridionais, diferindo-se dos Pataxó Setentrionais, ou Pataxó Hã-hã-hãe, também pertencentes ao tronco linguístico Macro-jê e à família Maxakali.

24Na historiografia indígena brasileira, o primeiro relato acerca dos Pataxó é do século XVI. O relato ocorre em 1577, com a entrada de Salvador Correia de Sá, ao encontrar populações Aimoré nas imediações do Rio Doce, e outras nações onde cita como Patachos, Tapuias, Apuris e Puris (Emmerich & Monserrat, 1975 : 5). Outro relato é do engenheiro civil Wilhem C. Feldner, que em 1813, ao encontrar um grupo de Maxacali na Vila do Prado, capitania de Porto Seguro, consegue obter dados a partir desses informantes quanto aos ritos de enterramento e maneiras de viver. Em 1816, o Príncipe Wied Maximiliam encontra os Pataxó, já mantendo alianças com os Maxacali. Eis alguns relatos etnográficos apresentados pelo viajante:

No aspecto externo, os Patachós assemelham-se aos Puris e aos Machacaris, com a diferença de que são mais altos que os primeiros; como os últimos, não desfiguram rostos, usando os cabelos naturalmente soltos, apenas cortados no pescoço e na testa, embora alguns rapem toda a cabeça e deixem um pequeno tufo adiante e outro atrás. Há os que furam o lábio inferior e a orelha, metendo um pequeno pedaço de bambu na abertura (Wied Maximilian, 1989 : 214).

25Além dos aspectos físicos relatados por Wied Maximilian (1989), o mesmo descreve uma cena de negociação entre os Pataxó e os moradores da Vila do Prado em 1810, sendo possível observar desde esta data o escambo Pataxó com os colonos.

Eram tribos Patachós, da qual eu não tinha visto nenhuma até então, e haviam chegado poucos dias antes das florestas, para as plantações. Entraram na vila completamente nus, sopesando armas, e foram imediatamente envolvidos por um magote de gente, traziam para vender grandes bolas de ceras, tendo nós conseguido uma porção de arcos e flechas em troca de lenços vermelhos (Wied Maximilian, 1989 : 214).

26Ao analisar a história, Bourdieu (2007) salienta seu poder reificador de legitimação de uma falsa cumplicidade que une a história incorporada na apropriação do portador desta história. Nesse sentido, observa-se na historiografia indígena brasileira um velamento iconográfico de silêncio e preconceito, considerando-os como « fósseis vivos » e « povos em infância ». Cornélio Vieira de Oliveira (1985 : 4), exemplificando o poder silenciador da história, nos diz que o significado que a história veio atribuindo à resistência do índio « [...] foi registrado em nossa história de outra maneira. Deram-lhe nome: Preguiça. A fama de preguiçoso pegou, justificando toda uma ideologia colonial ». Para Nunes (2000),

« [...] representações de representações [...] formas transitórias de comportamento modelado que impregnam os manuscritos, as publicações oficiais ou os textos de pesquisa precisam ser percebidos através e além dos sinais convencionais da escrita » (Nunes, 2000 : 12).

27O que não se pode deixar de mencionar é que tais representações estereotipadas acerca das populações indígenas brasileiras não estão somente nos manuscritos dos séculos passados, o que para uma abordagem mais crítica soaria como anacronismo. Ainda há prevalência nos livros didáticos de uma abordagem essencialista destes povos, sendo estes tratados como seres do passado, quando senão atrasados, « restos » de um passado não civilizado.

As mulheres Pataxó: processos de empoderamento e práticas de autogestão

28A inclusão de indígenas, especialmente das mulheres, sob a abordagem de gênero e etnia no contexto das ações afirmativas, em diversos programas e políticas públicas vem exigindo destes segmentos sociais um associativismo compulsório e formal a categorias ocidentais. Este processo se torna complexo, e muitas vezes problemático, quando comparados com as diferentes cosmologias e as formas tradicionais de organização social nas aldeias, e seus mecanismos de tomada de decisão entre as lideranças e clãs. Uma recente publicação, « Pelas Mulheres Indígenas » (Thydêwá, 2015), financiada pela Secretaria de Políticas para as Mulheres – SPM demonstra tal descuido para com as particularidades dos povos indígenas. O livro traz categorias ocidentais problemáticas quando são impostas em contextos diferenciados como os indígenas, tais como alienação parental e violência doméstica, colocadas de maneira colonizadora, sem pelo menos uma análise das performatividades de gênero e sexualidades das etnias abordadas na publicação.

29Neste sentido, as mulheres Pataxó com as quais tive contato nas minhas etnografias eram mães, filhas e avós, desenvolvendo as mais variadas funções na aldeia (donas de casa, professoras, agentes de saúde, pajés, entre outras). Algumas tinham como objetivo apenas dominar a máquina de costura e consertar as roupas rasgadas da família, outras perseguiam o desejo de montar uma associação de mulheres que promovesse a geração de renda e melhorasse o cotidiano de suas vidas e da família (segurança alimentar). O trabalho se deu com acompanhamento de diversas reuniões e assembléias, refletindo com as comunidades como inserir uma associação formal nas dinâmicas internas de organização de cada aldeia, sem gerar conflitos e competições internas entre suas lideranças. Procurou-se não cair na armadilha das sobreposições de poderes entre as associações e os modos próprios de organização interna das aldeias. Nestes momentos, as atividades de capacitação foram realizadas, para a apropriação dos rituais e das formalidades (assembléias, livros de registro, diretoria, aspectos legais), com o foco neste objetivo foram realizadas três oficinas com mulheres, em assessoria à regularização formal e registro de duas associações.

30Nas oficinas com as mulheres, a preocupação com a família e os rumos da comunidade era constante, evidenciada em falas dos tipos: « Eu quero que não falte comida pra minha família e pra aldeia », « quero paz pra minha aldeia », « ser mulher Pataxó é ser forte ». As falas somadas às iniciativas de autogestão (associação de mulheres) e segurança alimentar e nutricional (etnomedicina, técnicas agroecológicas em horticultura diversificada e criação de animais) evidenciavam papéis e agenciamentos como mantenedoras das aldeias.

31O protagonismo das mulheres indígenas, em particular das mulheres Pataxó com suas táticas autogestionárias, é uma constante em sua performatividade de gênero. Entendo este conceito como tradução, reiteração, recombinação e desvio de signos e significantes do que vem se constituindo discursivamente acerca do ser mulher Pataxó. Mobilizações são organizadas em diferentes regiões do Estado, reunindo indígenas de diferentes etnias que se propõem a discutir os problemas e desafios de suas comunidades, bem como o papel da mulher indígena diante desses desafios. Entre os exemplos estão os encontros de mulheres indígenas Pataxó, espaços de socialização e construção de políticas públicas para as mulheres indígenas, que vêm sendo realizados com o apoio de Universidades, da Fundação Nacional de Amparo ao Índio – FUNAI e Conselho Indigenista Missionário – CIMI, e os encontros que ocorrem dentro dos territórios indígenas, sendo estes organizados por diferentes grupos de mulheres das aldeias.

Enuãy Pakhê: práticas de saúde e sustentabilidade na Escola Pataxó

32A categoria escola indígena no Brasil foi criada com o Parecer 14/99 do Conselho Nacional de Educação. Nele a escola é definida no Artigo 2º, por sua « localização em terras habitadas pelas comunidades indígenas ». Contudo, a compreensão dos espaços-tempos em que esta se realiza não pode ser entendida como um estabelecimento de ensino localizado nas aldeias, localidades em que vivem comunidades indígenas. Do ponto de vista sócio antropológico, sua concepção extrapola os espaços e os tempos institucionalizados, visto que inclui a vida comunitária e seus processos de produção sociocultural. Paladino e Czarny (2012) nos propõem a ideia de uma escola indígena como espaço de cruzamento. Uma escola que não necessariamente destruiria as experiências dos Povos Indígenas, sendo esta um lócus de negociação, aceitação e rejeição (Paladino; Czarny, 2012).

33Nesta esteira, Silva (1998) define que a escola indígena é uma nova forma de instituição educacional para a revitalização e reelaboração cultural de cada povo, tendo como objetivo a conquista de sua autonomia social, econômica e cultural contextualizada e alicerçada em sua memória histórica, na reafirmação de sua identidade étnica. Segundo esta análise, Álvares (1999 : 233) remete à escola indígena como um local de negociação de valores e reinterpretação de significados culturais e simbólicos.

34Seguindo essas perspectivas de análise acerca da escola indígena, há de refletir que a partir do momento em que a escola se insere em determinado contexto, há a construção de uma cultura escolar, sendo esta compreendida como : « [...] práticas e condutas, modos de vida, hábitos e ritos, a história cotidiana do fazer escola – objetos materiais – função, uso, distribuição no espaço, materialidade física, simbologia, introdução, transformação [...] e modos de pensar, bem como significados e ideias compartilhadas » (Viñao Frago, 1998 : p. 68). É neste jogo de reelaboração cultural, de reafirmação de identidades étnicas e de reinterpretações culturais e simbólicas, que a escola indígena como lugar de fronteira cria uma cultura escolar que lhe é própria e peculiar. Desta forma, não temos escola indígena, mas escolas indígenas que constroem diferentes sujeitos sociais. Escolas interculturalizadas ou não interculturalizadas com os não indígenas, com conhecimento científico, ou apenas com conhecimentos tradicionais, configurando sujeitos novos e práticas novas, fazendo (re) emergir sujeitos tradicionais.

35Dentre as experiências escolares vivenciadas por mim numa das escolas Pataxó, a Escola Estadual Indígena Kijetxawê Zabelê, apresento aqui o trabalho desenvolvido pela professora Jandaia com a Etnomedicina Pataxó. A escolha se deve a um maior acompanhamento realizado em conjunto com a professora e sua comunidade. As aulas de etnomedicina ocorreram a partir da iniciativa da professora Jandaia e do agente de saúde da aldeia Kaí, Dário, seu esposo. A Etnomedicina foi eleita como tema gerador, sendo interseccionado os componentes curriculares de base nacional (Ciências, Matemática, Geografia, História e Língua Portuguesa) propostos pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia. Os objetivos das aulas eram : a) Identificar e valorizar as tradições terapêuticas Pataxó; b) Valorizar o conhecimento tradicional Pataxó com as ervas, plantas, rezas e benzeções; c) Levantar e conhecer legumes, hortaliças, ervas e plantas medicinais que fazem parte da etnofarmacologia Pataxó; d) Valorizar a medicina Pataxó como método eficiente no tratamento de enfermidades.

36As aulas ocorreram com a sistematização dos conhecimentos a partir dos (as) mais velhos (as), e em um momento contou com a presença de um agroecologista e um estudante de biologia da UNEB, tendo como atividade a construção de um herbário com os (as) alunos (as) na escola. A temática se deu de forma mais específica no componente curricular de ciências, situada nos temas transversais: Terra e Conservação da Biodiversidade, Auto-sustentação, Saúde e Educação, ambos propostos pelo Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas - RCNEI.

37O tema « Terra e Conservação da Biodiversidade » está pautado no Território Indígena com sua fauna, flora e cosmologia. O mesmo tem como objetivo « [...] valorizar e refletir sobre a realidade fundiária e ambiental do Brasil e conscientizar a sociedade nacional para a construção do futuro, no que diz respeito à dignidade dos povos indígenas, à sua vida em comum e à harmonia com o seu meio » (Brasil, 2005 : 96). O tema da « Auto-sustentação » está relacionado aos projetos societários de cada comunidade. Entre os objetivos propostos estão:

[...] Participar da criação de alternativas de auto-sustento a partir das condições socioambientais atuais [...] Desenvolver atitudes para o trabalho e a vida social que reforcem os laços de solidariedade familiar e comunitária [...] Conhecer procedimentos e técnicas, adequadas culturalmente e ambientalmente corretas, que permitam o enriquecimento alimentar e a melhoria das condições de vida e saúde [...] (Brasil, 2005 : 99).

38O tema « Saúde e Educação » busca « [...] repensar a cultura de saúde dos povos indígenas, valorizando os conhecimentos acumulados por esses povos ao longo de séculos e buscando alternativas eficientes para os novos desafios a serem enfrentados » (Brasil, 2005 : 105). Segundo o RCNEI, o ensino das ciências nas escolas indígenas está justificado:

[...] pela necessidade que essas sociedades tem de compreender a lógica, os conceitos e os princípios da ciência ocidental, para poderem dialogar em melhores condições com a sociedade nacional e, ao mesmo tempo, apropriarem-se dos instrumentos e recursos tecnológicos ocidentais importantes para a garantia de sua sobrevivência física e cultural (Brasil, 2005 : 254).

39Para o Pataxó da aldeia Tibá, Vazigton Oliveira Pataxó, estudante de medicina da UFMG, e colaborador nas aulas de Etnomedicina:

  • 4 Entrevista realizada com Vazigton Oliveira Pataxó em Cumuruxatiba, Prado, Bahia – Brasil, 05 de mai (...)

A Educação Escolar Indígena deve priorizar a valorização cultural das várias formas de conhecimento indígena e, em se tratando de saúde não é muito diferente. Pois é dessa forma que nossas comunidades mantém a transmissão de conhecimento. Além disso, foi a base desse conhecimento que nos foi permitido cuidar de nosso povo. Sem reconhecimento próprio do legado que nos foi deixado não há cultura que sustente, onde hoje há tanta influência externa de ameaça constante (Vazigton O. Pataxó, 2013).4

40A fala de Vazigton Oliveira Pataxó revela o que tem sido a Educação Escolar Indígena Pataxó na Escola Indígena Kijetxawê Zabelê : um espaço de construção e fortalecimento da etnicidade. Desta forma, observei que o trabalho nas escolas indígenas tem uma função política na construção da autonomia das comunidades, estando as mulheres no protagonismo desse trabalho.

Considerações Finais

41O trabalho revela a necessidade de um diálogo com as concepções de gênero dos Povos Indígenas, que em muito podem contribuir nesse campo de estudo. No que se refere à Educação Escolar Indígena, percebe-se agenciamentos da mulher indígena que vão além do espaço escolar, uma vez que a própria Educação Escolar Indígena está inserida dentro de uma dimensão comunitária em que a mulher, ou mesmo o homem, como profissional da escola, assumem outras tarefas, não desvinculando essas do ambiente escolar. No que diz respeito ao campo da saúde, é possível considerá-lo como espaço de agência na construção de si, sendo legitimado e delimitado politicamente nas legislações que o tratam, interseccionado com a Educação Escolar Indígena.

42Diante do exposto, é possível perceber quão desconhecidos são os cotidianos das mulheres indígenas no território brasileiro, o que nos leva a questionar como vêm sendo construídas as iniciativas de políticas públicas para essa população em nosso país. Diante da falta de dados acerca dessas populações, o que prevalece muitas vezes são concepções “alienígenas” e colonialistas, não levando em conta as diversas construções de gênero das populações indígenas e os agenciamentos específicos das mulheres de cada povo.

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Bibliography

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Notes

1 Foi convencionado pela Associação Brasileira de Antropologia, desde 1953 que a primeira letra da grafia dos nomes tribais e ou grupos étnicos deve ser escrita com letra maiúscula, tanto para registrar os substantivos, quanto o adjetivo gentílico e mesmo quando contextualizados no plural, neste caso substantivos e adjetivos não flexionam, dispensando o emprego do “s”.

2 A entrada na América Latina do conceito de empoderamento se dá com obra « Desarrollo, crisis y enfoques alternativos: Perspectivas de La mujer en El tercer mundo », de 1988, preparada por Gita Sen e Caren Grown para a Conferência de Nairobi e marca a entrada do termo empoderamento nesse campo de estudos (Stromquist, 1997).

3 Segundo denúncias feitas a Ministério Público Federal, as laqueaduras foram induzidas por agentes de campanha de um médico deputado, não sendo a prática comum de contracepção somente no Sul da Bahia, mas com mulheres indígenas do Nordeste brasileiro.

4 Entrevista realizada com Vazigton Oliveira Pataxó em Cumuruxatiba, Prado, Bahia – Brasil, 05 de maio de 2013.

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References

Electronic reference

Paulo de Tássio Borges da Silva, Processos de Empoderamento e Práticas de Sustentabilidade e Autogestão entre Professoras Pataxó no Território Kaí-PequiAmerika [Online], 16 | 2017, Online since 29 June 2017, connection on 06 December 2024. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/amerika/8122; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/amerika.8122

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